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“O movimento de direitos humanos precisa aprender com seus pares”

Carlos Quesada

Edouard Evangelisti

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Entrevista com Carlos Quesada
Por Revista Sur

Não é uma tarefa fácil refletir sobre o futuro quando se trata do movimento de direitos humanos. Entretanto, esse não é um problema novo ou inédito e, para muitas organizações, tem sido a pergunta posta à mesa ano após ano. Obviamente, um contexto pandêmico e “pós-pandêmico” gera uma preocupação especificamente atrelada à sobrevivência e à relevância das pautas, principalmente quando o trabalho é desenvolvido na América Latina. De que maneira as organizações de direitos humanos têm enfrentado e estão enfrentando desafios recentes, como os últimos anos impactaram a agenda de trabalho e redefiniram as dinâmicas internas em um contexto de incerteza em relação ao presente e ao futuro, são perguntas que tentamos responder nesta edição da Sur.

Em entrevista concedida à Revista Sur, Carlos Quesada, Diretor Executivo do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Race and Equality ou Raza e Igualdad), organização da sociedade civil com atuação internacional, nos fala, entre outras coisas, sobre os aprendizados institucionais que deixou a pandemia; a importância do autocuidado, o fortalecimento da capacidade organizacional, os desafios da interseccionalidade e do financiamento, bem como algumas estratégias e práticas regionais de incidência regional em curso que fazem parte do exercício de imaginar e construir coletivamente futuros possíveis.

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Revista Sur • Carlos, conte-nos um pouco sobre a organização. O que é a Race and Equality e como ela atua?

Carlos Quesada • Somos uma organização de capacidade institucional e incidência internacional. Basicamente, o que fazemos é fortalecer as organizações da sociedade civil na América Latina, especialmente nos países em que atuamos, com dois objetivos principais: que elas possam utilizar o sistema interamericano de proteção de direitos humanos e o sistema universal de proteção de direitos humanos. Somos uma organização que atua “nos bastidores”. Não falamos em nome das organizações, mas as capacitamos através de determinados instrumentos para que possam utilizar os sistemas por elas mesmas. Por exemplo, no caso do Comitê que monitora a Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) e a Revisão Periódica Universal (RPU) da Organização das Nações Unidas (ONU), apoiamos as organizações da sociedade civil para que elas preparem e apresentem seus próprios relatórios alternativos. Dessa forma, iniciamos um trabalho de incidência com elas, para que influenciem esses mecanismos com o objetivo de incluir suas recomendações nos documentos oficiais. Não damos apenas capacitação sobre os sistemas e como utilizá-los, mas também sobre como incidir de maneira eficaz, desse modo, as capacitações são realizadas no contexto de alguma revisão específica perante os diferentes órgãos. Para isso, utilizamos vários manuais de treinamento, incluindo um sobre como preparar Relatórios de Direitos Humanos para a Incidência.11. "Manual para la elaboración de informes de derechos humanos para la incidencia", International Institute on Race, Equality and Human Rights – Race and Equality, junho de 2020, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://raceandequality.org/wp-content/uploads/2020/09/Manual-IDH_-web_ilustrado.pdf. Estamos sempre apoiando e dando voz às organizações. Somos uma espécie de organização-fantasma. Mas por que isso é importante para nós? Porque fortalece as organizações, elas se apropriam de seus relatórios e realizam trabalhos de impacto direto e imediato. As organizações precisam saber o que fazer, como fazer e o que está acontecendo com o que estão fazendo. E, com o passar dos anos, construímos uma relação próxima com relatoras e relatores e com comissários e comissárias, tanto do sistema interamericano quanto do sistema universal, e isso tem ajudado a melhorar a forma com que as organizações utilizam os sistemas. Por outro lado, também fazemos litígio estratégico quando as organizações não podem fazê-lo. Por exemplo, apresentamos casos perante o sistema interamericano sobre jornalistas na Nicarágua, casos contra a liberdade de expressão no marco da atual crise de direitos humanos intensificada desde 2018; visto que as vítimas não são uma organização, mas sim indivíduos, e, em situações como essas, fazemos um trabalho de litígio estratégico direto. Também atuamos dessa maneira no caso de Cuba, da República Dominicana, Brasil e em alguns casos da Colômbia quando identificamos vítimas que não estão recebendo apoio de organizações. Do mesmo modo, mandamos Cartas de Alegações (denúncias individuais) sobre casos concretos para o sistema de procedimentos especiais das Nações Unidas (peritos independentes). Mas, em linhas gerais, o ideal é que sejamos uma instituição para a promoção da capacidade institucional que busca fortalecer as organizações, a fim de que elas possam utilizar ambos os sistemas de uma maneira eficaz e eficiente.

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Sur • Quantos anos tem a organização?

C.Q. • Fundei a organização em 2014, mas, antes disso, trabalhei na Global Rights: Partners for Justice, nos Estados Unidos. De alguma maneira, transferi para a Race and Equality o que já estávamos fazendo ali, portanto, posso dizer que trabalho há muitos anos com Criola,22. Criola, Homepage, 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://criola.org.br/. Geledés,33. Portal Geledés, Homepage, 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.geledes.org.br/. no caso do Brasil, e com outras organizações, sempre no mesmo esquema: estando nos bastidores, digamos assim, sempre as organizações são as protagonistas. No caso da Colômbia, trabalhamos com Afrodes44. Afrodes, Homepage, 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, http://www.afrodescolombia.org/. quando ela era uma organização em prol de direitos humanos chamados de “primeira geração”. Ela era literalmente uma organização de vítimas. Hoje, estamos muito felizes em ver como Afrodes e outras organizações colombianas chegaram aonde chegaram. Isso implica capacidade institucional. Geledés, por exemplo, agora litiga sozinha no sistema interamericano. Quando as organizações não precisam mais de nós e entramos em uma dinâmica de sermos contrapartes no mesmo nível, significa que fizemos algo bom. Aí está um pouco da filosofia da capacidade institucional.

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Sur • Quais os desafios estruturais enfrentados pela organização por conta da pandemia e do contexto dela decorrente? Como tudo isso os afetou em termos de política institucional? O que vocês tiveram de implementar e quais foram os aprendizados?

C.Q. • Eu gostaria de falar do lado positivo. Com relação às oportunidades, foi adaptar-se imediatamente ao que estava por vir. Lembro-me que tínhamos uma oficina presencial em maio de 2020 com Víctor Madrigal, Especialista Independente sobre orientação sexual e identidade de gênero da ONU. Tínhamos fechado o escritório na terceira semana de março e com a minha equipe LGBTQI+ imediatamente pensamos: o que faremos? Já usávamos ferramentas como Zoom e Skype, pois somos uma organização internacional. Temos 65 pessoas ao redor do mundo, com escritório em Bogotá e no Rio de Janeiro e um pequeno escritório em Genebra e consultoras e consultores espalhadas/os em vários países da região. Logo, o universo virtual não chegou a ser uma surpresa. Na verdade, o desafio foi adaptar as oficinas que dávamos para o virtual: como fazer com que as pessoas não se sentissem cansadas e entediadas? Aprendemos várias lições com a oficina do Víctor e começamos a comprar webinários. Eles são gratuitos até certo ponto, depois precisávamos comprá-los, porém, logo depois, havia outras opções. As oficinas de três dias não podiam ser feitas em três dias consecutivos. Tivemos de reduzi-las para três jornadas, em três semanas diferentes, o que fez com que tivéssemos que nos mobilizar rapidamente.

O grande desafio que enfrentamos a nível interno, institucional, tinha a ver com a maneira como nos sentíamos como pessoas dentro das organizações. Eu moro em Washington D.C, nos Estados Unidos, e houve três meses em que estávamos chegando no ponto de “sermos abordados na rua caso ousássemos colocar o nariz para fora”. Washington fica muito perto de Nova York (NY), e a Covid-19 atingiu NY em cheio. Obviamente, o pessoal que estava em Washington passou por desafios enormes. Uma grande preocupação no início foi saber o que aconteceria com eles e também com a instituição. Evidentemente, no segundo mês, entrei em contato com financiadores e lhes disse: “bom, precisamos saber se vocês vão continuar nos financiando. Precisamos reajustar o orçamento, porque, neste momento, necessito garantir que o pessoal continue trabalhando. A verdade é que a resposta dos/as financiadores/as foi bastante positiva. A resposta foi: “vocês devem priorizar o pessoal.

Outra ação que promovemos foram as jornadas de autocuidado grupal. Hoje em dia parece que todo mundo fala disso, mas antes as pessoas (principalmente da América Latina) não gostavam de falar de psicólogos ou apoio psicossocial. Então, contratamos profissionais de psicologia para essas jornadas on-line. Do nada, enquanto estávamos em uma reunião no Zoom, aparecia uma colega com três crianças pequenas correndo pra todo lado. Ela se sentia mal, achava que não estava dando tudo de si, aquelas falsas percepções sobre o que vão pensar dela, “vão pensar que não estou trabalhando” etc. Em razão disso, conseguimos implementar, em junho de 2020, processos internos de capacitação, que não eram obrigatórios. A cada um mês e meio tínhamos uma jornada em grupo com uma psicóloga para falarmos sobre como nos sentíamos e aprender a lidar com nossas emoções. Aliás, acho que há pontos importantes para mencionar aqui: em primeiro lugar, a estabilidade. Tivemos sorte, porque muitos financiadores não fizeram o mesmo. Estou falando do nosso caso, todas nossas doadoras e doadores, do âmbito público ou privado, se adaptaram. E o outro ponto, o qual gosto de enxergar como uma oportunidade, é que constatamos que havíamos conseguido executar tudo o que gostaríamos, e ainda sobrou dinheiro. Logo, tivemos de solicitar as chamadas no cost extensions (ampliação de projeto sem custo, em tradução livre) para destinar o dinheiro para atividades complementares. Isso foi algo bastante positivo em meio a esse processo, mas sei que outras organizações, principalmente na América Latina, não tiveram a mesma sorte. Da mesma maneira, muitas ONGs nos Estados Unidos fecharam ou reduziram o quadro de pessoal.

Sobre as lições aprendidas está também o mundo virtual. No fim, não aguentávamos mais trabalhar online, mas a verdade, e é importante dizer isto, o ambiente virtual como instrumento ou ferramenta complementar vai e deve permanecer. Ele nos uniu, não apenas como instituição, mas também nos conectou com as nossas contrapartes, considerando que fizemos todo o processo on-line. Também nos permitiu perguntar às e aos colegas como estavam. Como a vacinação nos Estados Unidos começou muito antes, levamos o pessoal da América Latina para ser vacinado lá enquanto não havia vacina em seus respectivos países. Então, quando colegas na Colômbia iam à Miami para se vacinar, aproveitávamos a oportunidade para organizar reuniões presenciais. Outra coisa importante é que contratamos pessoas durante essa fase, então acabamos descobrindo que ver pessoas cara a cara não é um requisito para algo funcionar. Acho que isso é algo relevante.

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Sur • Uma das publicações recentes da organização aborda o autocuidado.55. “Guía para el autocuidado: ‘Si yo me cuido, puedo cuidar a los demás’”, International Institute on Race, Equality and Human Rights – Race and Equality, maio de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, Antes da pandemia, esse já era um assunto nas organizações? Como a pandemia ressignificou o tema e o colocou no centro?

C.Q. • Nos Estados Unidos existe uma cultura de trabalhar mais de 8 horas por dia, e é considerado normal trabalhar 10 ou 12 horas. Como defensoras e defensores de direitos humanos, também acreditamos que devemos trabalhar muitas horas por dia. Acho que um legado da pandemia foi que não é preciso trabalhar 12 horas para fazer o que pode ser executado em 8 horas ou menos. Em segundo lugar, algo que pode ser aplicado em todos os trabalhos, não apenas em matéria de direitos humanos, é a necessidade de nos vermos não apenas como colegas de trabalho, mas também como seres humanos com necessidades e frustrações.

Foi interessante quando divulgamos esse material de autocuidado, porque, em uma das reuniões em grupo com a psicóloga, perguntei a uma colega: “como você está?” e foi como se ela tivesse sido repreendida. Ela começou a chorar, e chorar, mas a pergunta era apenas “como você está?”. Nesse momento, percebemos que, e também em conversas com a psicóloga, era óbvio que muita gente se sentia pressionada. E a mensagem evidente era: para cuidar das outras pessoas, temos que cuidar muito de nós mesmos. Nessa época, já estávamos trabalhando em três países que são muito difíceis: Cuba, Nicarágua e Colômbia. Colegas que integram organizações da sociedade civil nesses três países sofreram muito psicologicamente e estavam recebendo apoio psicossocial muito antes da pandemia. Ao trabalhar com direitos humanos, situações de violência te atingem, mas te afetam como ser humano. Isso é algo que antecede a pandemia, então já haviam situações diante das quais tínhamos que nos cuidar.

Implementamos uma ação chamada pandemic-day, aplicada em toda a organização. Bastava avisar “amanhã vou tirar um pandemic-day”, que consistia em um dia para fazer qualquer coisa. Pode fazer o que quiser, basta nos informar sua indisponibilidade por motivo de “dia de pandemia” que não haveria problema. E, de fato, ouvia-se frequentemente: “talvez essa pessoa não esteja trabalhando porque tirou um pandemic-day”. Então, já sabíamos que se tratava de uma pessoa se cuidando, passando por seu processo. Para ser honesto, nos últimos meses, ninguém mais solicitou um dia de pandemia. E nós não cancelamos essa ação. Ela ainda está ativa para quem quiser.

Trabalhamos com temáticas muito difíceis. Não é fácil trabalhar com direitos humanos. Carregamos também as nossas coisas pessoais: a pessoa com quem namoramos ou dividimos a vida, a casa, a família etc. Eu sempre digo a quem trabalha conosco “se você quiser um dia pessoal, apenas avise o/a coordenador/a”. Além disso, disponibilizamos sessões individuais de assistência psicológica e oferecemos um apoio psicossocial intensivo pago por um período de até três meses. E muita gente aceitou esse apoio psicossocial. No que diz respeito ao autocuidado, organizações feministas já vinham trabalhando em torno do assédio sexual e trabalhista sofrido por defensoras nas organizações de direitos humanos, ou seja, também não era uma novidade. Os motivos são distintos, mas é necessário cuidar-se. E ponto. Precisamos nos cuidar.

Também fazemos uma certa pressão para que as pessoas tirem suas folgas ou férias utilizando o argumento do autocuidado. Isso tem resultado em uma melhor comunicação interna, bem como em uma maior horizontalidade, relações muito mais horizontais (não sei se isso aconteceu em outras organizações).

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Sur • A questão racial é, pelo menos no Brasil, um grande desafio em termos de autocuidado, de políticas institucionais, de mobilidade dentro das organizações. Conte-nos sobre o papel da raça (que parece central) no trabalho de vocês.

C.Q. • Raça propriamente dita, ou o racismo, não é o nosso eixo central, mas faz parte de um dos três enfoques mais importantes com os quais trabalhamos – gênero, raça e orientação sexual/identidade de gênero. Portanto, a temática da interseccionalidade é essencial para nós e sempre foi algo “normal”. A questão racial é algo muito importante porque é algo que vínhamos trabalhando desde a época da Global Rights. Por exemplo, como sociedade civil, lutamos pela aprovação da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, bem como da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, que começaram a ser discutidas como uma, mas logo precisaram ser divididas para os países do Caribe anglófono.66. Abordar a temática LGBTQI+ era o problema, visto que ela ainda era considerada crime em muitos países anglófonos do Caribe. Desse modo, eles declararam: “Não avançaremos com a convenção se não houver uma separação”. A convenção é como meu bebê. Comecei a trabalhar no tema da convenção em 1998, quando se acercava da conferência preparatória em Santiago, no Chile, para a Conferência Mundial contra o Racismo que foi realizada em Durban em 2001. Nessa ocasião, conseguimos que os Estados perguntassem à Organização dos Estados Americanos (OEA) se era ou não necessária uma convenção interamericana contra o racismo. Nossa avaliação como sociedade civil era: “por que não existe uma convenção interamericana contra o racismo?”. Apesar de já haver uma convenção internacional, não é a mesma coisa. Queremos uma convenção interamericana, já que nosso sistema é reparador. Naquele momento, em 1998, liderados pela missão do Brasil e pela sociedade civil brasileira, questionamos a OEA, conforme o plano de ação de Santiago,77. "Segunda Cumbres de las Américas", OAS, 1998, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.oas.org/xxxivga/spanish/reference_docs/cumbreamericassantiago_planaccion.pdf. acerca da necessidade de criar ou não uma convenção. É a partir desse ponto que a convenção começa. Apostamos tudo nela. O movimento afro-brasileiro foi uma peça-chave para essa conquista, pois, logo em seguida e de forma estratégica, pedimos a criação da Relatoria aos povos afrodescendentes dentro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em um trabalho de incidência com o Brasil. Naquela época, a atuação de Silvio José Albuquerque Silva, que fazia parte do CERD e hoje é embaixador no Quênia, foi primordial nesse processo. Afirmo tudo isso do ponto de vista de um gay afro-latino. Esse novo instrumento era super importante. Em seguida, precisamos convencer países como a Costa Rica e o Uruguai a ratificar o instrumento, porque teria efeito com duas ratificações. Foi um trabalho e uma estratégia impressionantes. Aliás, algo intrínseco na Convenção é a temática da interseccionalidade. Uma mulher negra, lésbica, com deficiência e que vive numa comunidade não é igual a uma mulher negra com doutorado no Brasil, que também sofre discriminação. Não estamos dizendo quem sofre menos, mas certas condições tornam seus direitos mais vulneráveis.. Portanto, ao ser criada a organização, ela tinha o seguinte enfoque: raça, igualdade e direitos humanos.

Embora seja um assunto muito importante, abordamos outras questões em outros países. Na Nicarágua, trabalhamos com direitos civis e políticos, além da questão racial; na Colômbia e em Cuba também. Mas em outros países trabalhamos intensamente a questão racial.

Todavia, é importante dizer que incluímos a palavra “raça” no nome da organização não como um conceito biológico – as raças não existem –, mas sim sociológico: o racismo existe. Esse é o motivo pelo qual a temática da interseccionalidade é muito importante para mim; é evidente que os direitos nem sempre são efetivados de modo igualitário para todas as pessoas.

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Sur • Conte-nos mais sobre os desafios estruturais enfrentados pelo movimento de direitos humanos na região.

C.Q. • Eu acho que compartimentar direitos nos impede de reconhecer outros direitos. Isso acontece com parte do movimento feminista em relação ao movimento trans, das mulheres negras em relação ao movimento de mulheres brancas ou mestiças, assim como em outros casos. Não podemos continuar compartimentando direitos. Acho que esse é um grande desafio do movimento de direitos humanos hoje, já que sua divisão tem impedido o reconhecimento absoluto dos direitos e, muitas vezes, a colaboração entre pares. Mesmo durante a pandemia, observei que havia organizações de direitos humanos ajudando a certas organizações, mas não outras. Em muitas ocasiões, isso aconteceu de forma deliberada.

É um grande desafio e, por isso, junto a 14 organizações, criamos um processo chamado Fórum Regional de Direitos Humanos que logo passou a se chamar Regionar, o qual consistia em: que parássemos de falar de individualidades e começássemos a falar de desafios coletivos, das oportunidades que temos e das estratégias que podemos criar coletivamente, pois se alguém tem a certeza do que quer, são os grupos antidireitos. Tais grupos têm isso muito claro e o expressam em um único parágrafo. Uma pessoa antidireitos no Peru, no México ou em qualquer outro país consegue dizer em uma única frase o que é “ideologia de gênero”. Mas se você for conversar com o movimento tradicional de direitos na América Latina, não temos uma linguagem comum e inteligível, nem contra os grupos antidireitos, nem entre nós. Logo, é um desafio nos encontrar para além dos sobrenomes “eu trabalho nisso e em aquilo” e poder dizer que um dos problemas estruturais das organizações é a sustentabilidade do movimento, o acesso a recursos. Tendo em vista que esse desafio atinge todo o movimento de direitos humanos, deveríamos discuti-lo coletivamente a fim de tentarmos encontrar estratégias conjuntas para alcançar doadoras e doadores como a mesma mensagem. Costumamos nos dar muito bem, até que um edital é lançado e começamos a brigar por dinheiro. E, nesse sentido, enxergo certa perversidade de quem faz as doações. É importante que doadoras e doadores entendam que a sustentabilidade é um desafio e que implica o possível enfraquecimento do sistema de direitos humanos.

Dentro da própria sustentabilidade, há outro desafio vinculado à independência. Quando você concorre a algo, o objeto da concorrência geralmente já se encontra pré-estabelecido. Há uma desconexão entre o que doadoras e doadores querem e a realidade, e no meio disso, temos que nos adaptar à realidade em que vivemos para atender à agenda de quem faz as doações. Digo isto aos financiadores, alguns nos ouvem, outros apenas dizem, é uma pena, já está estabelecido! Todavia, acho importante que pessoas doadoras, físicas ou jurídicas, também escutem isso de outras organizações, não apenas de uma. Para elas, não faz diferença se ouvirem isso apenas de Carlos Quesada, da Race and Equality; entretanto, se ouvirem também da Camila Asano da Conectas ou do Rodnei Jericó do Geledés, e de tantos outros, bem, isso demonstra que o movimento está preocupado.

Isso resume um pouco a ideia do Regionar. O objetivo é que possamos levar nossas preocupações em comum a quem faz as doações, mas também à Comissão Interamericana e ao sistema universal pela forma que protegem direitos humanos. Outro problema que também existe na América Latina é o fato de que temos endeusado os sistemas universal e interamericano, porém devemos tecer as devidas críticas quando necessário. Estamos nos ajeitando, apesar de os desafios serem muitos. E digo aqui que, se não organizarmos uma linguagem comum, baseada no respeito e na coerência entre as entidades, o futuro dos direitos humanos é incerto.

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Sur • Então, como fortalecer, com uma abordagem transnacional, a solidariedade diante dessas questões importantes que você mencionou? Regionar seria uma estratégia nesse sentido, visando uma articulação mais forte que ainda não existe?

C.Q. • Sim, de fato, quando começamos com o processo que nos levou à Regionar, passamos por um processo de ouvir muita gente que tinha as mesmas preocupações: “Estamos nos dividindo, nos matando por recursos, quem doa não estão nos entendendo”. Algo muito importante que almejamos visibilizar com Regionar é que devemos aprender com nós mesmos. O movimento de direitos humanos precisa aprender com seus pares. Nunca me esqueço da primeira reunião com o comitê mobilizador. Estavam presentes 14 entidades e, quando demos início às discussões sobre direitos humanos em geral, a organização Abya-Yala nos disse: “esperem , tudo o que vocês estão dizendo soa maravilhoso, mas a gente não vê o mundo desse jeito, e não é dessa forma que enxergamos direitos humanos nem sua defesa e proteção”. Isso foi como um tapa na cara. Foi como um despertar para quem estava ali presente. Percebemos, então, que devemos aprender com nossos pares: o movimento feminista precisa aprender com o movimento negro, o movimento LGBTQI+ precisa aprender com o movimento pela proteção das crianças, o movimento indígena de outros movimentos, nós precisamos aprender com o movimento indígena etc. E essa, creio eu, foi a estrutura que conseguiu amalgamar Regionar. Temos que aprender com nós mesmos, antes de podermos construir algo juntos. Durante todo esse processo que se desenrolou nos dois anos que precederam a conferência,88. A II Conferência Regional aconteceu em Bogotá entre os dias 29 e 30 de novembro de 2022, contando com a presença de mais de 50 organizações. foram feitas previsões e muita gente participou. Organizações afins precisaram convidar outras entidades para que não fosse apenas uma reunião de amigos. Eu não conhecia nem 10% das organizações que compareceram ao evento. Todo mundo queria aprender com todo mundo. E essa é a grande lição que nós, na qualidade de movimento de direitos humanos, podemos buscar internamente, aprendermos uns dos outros para conseguirmos criar mensagens comuns. Creio que faz falta esses momentos dentro do movimento na América Latina, para deixarmos de considerar apenas as especificidades e pautarmos as coisas que nos unem nas lutas, e, a partir dessas lutas, podermos nos ajudar mutuamente. Também faltam espaços isentos de competição. É em direção a isso que estamos caminhando com Regionar, que está na fase embrionária, mas a ideia é somar e tentar instituir essa filosofia. Por exemplo, nós não falamos só sobre raça, gênero, identidade sexual ou de gênero, nós discutimos problemas comuns, como doadoras e doadores nos enxergam, como podemos ter uma conversa mais pessoal com quem doa, ou entre nós mesmos, e coisas desse tipo, sobre como aprender com os movimentos, a importância de reconhecer as diferenças, respeitá-las e, se possível, aprender com elas. Regionar foi uma experiência muito valiosa. Não sei aonde vai chegar, mas acredito que é um bom começo e está dando certo.

E gostaria de encerrar assim: o mundo evolui, o movimento de direitos humanos na América Latina tem que evoluir. A forma como protegemos os direitos humanos tem que evoluir. Estamos em constante evolução, só que nem nós estamos entendendo, nem quem está doando está entendendo, mas somos um movimento em evolução.

Carlos Quesada. Foto de arquivo pessoal

Entrevista conduzida por Maryuri Mora Grisales em 08 de dezembro de 2022.
Original em espanhol. Tradução de Naiade Rufino.