O uso de estratégias internacionais como uma forma de reduzir as assimetrias de poder na relação entre direitos humanos e empresas
A destruição da bacia do Rio Doce com o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, em 2015, é um caso emblemático da tensa relação entre assegurar direitos humanos, dentro de standards internacionais, e a ação das empresas, sobretudo transnacionais em países do Sul Global. Ao longo do caso, tornou-se clara a fragilidade do Estado, em suas mais diversas instituições, em assegurar os direitos às comunidades atingidas frente ao poder econômico das empresas envolvidas. Na prática, as empresas responsáveis pelas violações são as que estão reconstruindo à sua maneira a vida nos territórios. O trabalho da sociedade civil e de entidades internacionais tem buscado romper com a inércia estatal e com práticas violadoras, tais como o cerceamento do debate, das garantias de acesso à justiça e da participação social. O presente artigo traz um relato sobre parte dos esforços para conferir visibilidade internacional ao caso e, a partir dele, propõe uma reflexão sobre o cenário de aprofundamento dos retrocessos socioambientais e violações de direitos humanos derivados da implementação do atual modelo de exploração mineral no Brasil.
“Chovia pingos de lama”.
Foi assim que um morador de Bento Rodrigues descreveu o momento em que se deu conta de que a barragem de Fundão havia se rompido, no município de Mariana, Minas Gerais. A “chuva de lama” era causada pela existência de um anteparo rochoso contra o qual a onda de rejeitos vinda da barragem rompida se chocava antes de seguir seu curso vale abaixo. No percurso, ela encontrava novas formações rochosas que produziam redemoinhos, remansos e correntes que levavam árvores, objetos e pessoas, aumentando o seu potencial destrutivo11. Marcos Cristiano Zucarelli, “Efeitos Institucionais e Políticos dos Processos de Mediação de Conflitos,” in Desastre no Vale do Rio Doce: Antecedentes, Impactos e Ações sobre a Destruição, orgs. Bruno Milanez e Cristiana Losekann (Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2016): 311-35..
A partir daquele momento, por volta das 16 horas do dia 05 de novembro de 2015, deu-se início a um longo e tortuoso percurso, por parte das comunidades afetadas, de organizações da sociedade civil e de órgãos de tutela de direitos difusos e coletivos (Ministério Público e Defensoria Pública), para cobrar das autoridades públicas e das empresas envolvidas – Samarco, Vale e BHP Billiton – as devidas responsabilidades pelas ações e omissões, bem como a reparação integral e compensação pelas violações de direitos e impactos ambientais causados pelo desastre.
Quase dois anos após o fatídico evento, o horizonte final deste caminho ainda permanece longínquo. São milhares as ações com pedidos de indenização individuais, ações coletivas e diversos acordos judiciais e extrajudiciais, além de inquéritos e processos criminais para apurar as responsabilidades penais pelo evento. Apesar disso, o conjunto de medidas tomadas pelo poder público e pelas empresas denota um somatório de ações paliativas e insuficientes para lidar com um desastre de tamanha proporção.22. “Especialistas em Direitos Humanos da ONU Apelam para Ação Urgente no Aniversário do Colapso Devastador de Barragem no Brasil,” OHCHR, 14 novembro 2016, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/Documents/Press/PRBrazil4Nov2016_Portuguese.docx; em inglês: “UN Experts Launch Urgent Call for Action on Anniversary of Devastating Brazil Dam Colapse,” OHCHR, 4 novembro 2016, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=20829&LangID=E.
Por sua magnitude e gravidade, o rompimento da barragem de Fundão já nasceu com uma dimensão que vai muito além dos 850 km de extensão do Rio Doce entre Mariana e a sua foz no oceano Atlântico, faixa que foi contaminada pelos mais de 40 milhões de metros cúbicos de lama despejados pela barragem. Considerada a pior tragédia socioambiental da história do Brasil e o caso mais grave de desastre tecnológico envolvendo barragens de rejeito da mineração nos últimos dois séculos33. Ver: Lindsay Newland Bowker, “Samarco Dam Failure Largest by Far in Recorded History.” Bowker Associates, Science & Research In The Public Interest, 12 dezembro 2015, acesso em 25 junho 2017, https://lindsaynewlandbowker.wordpress.com/2015/12/12/samarco-dam-failure-largest-by-far-in-recorded-history/., o rompimento da barragem em Mariana/Rio Doce ganhou imediatamente forte atenção da imprensa em todo o mundo e repercutiu no mercado financeiro internacional. As ações da BHP Billiton despencaram na bolsa de Nova Iorque após o evento.44. James Wilson, “BHP Billiton Shares Fall After UN Accusations on Dam Spill.” Financial Times, 26 novembro 2015, acesso em 25 junho 2017, http://www.ft.com/cms/s/0/9f6e7c4c-9430-11e5-b190-291e94b77c8f.html#axzz3sRz4sncK.
Mesmo diante do escrutínio da comunidade internacional, os atores locais públicos e privados adotaram, em um primeiro momento, uma “postura defensiva”,55. “Brazilian Mine Disaster: ‘This Is Not the Time for Defensive Posturing’– UN Rights Experts,” Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), 25 novembro 2015, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=16803&LangID=E. por razões de conveniência ou mesmo por incapacidade de lidar com as consequências do desastre. Entre as ações mais ilustrativas do espírito reativo e da falta de empatia para com as vítimas do desastre no imediato pós-rompimento estão a atitude do governador do estado de Minas Gerais em dar a primeira coletiva de imprensa na sede da Samarco, a afirmação do secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais de que empresa era a vítima do rompimento e a demora de sete dias até que a presidenta Dilma Rousseff fizesse um sobrevoo pela área atingida (e apenas em Minas Gerais, não no Espírito Santo).
Desde o início, ficou claro para as organizações da sociedade civil e para os representantes dos atingidos que, no plano doméstico, a possibilidade de reparação integral dos danos e a revitalização do território e da Bacia do Rio Doce só viriam se houvesse pressão internacional. O presente artigo narra uma parte do esforço de conferir visibilidade internacional ao caso e traz reflexões sobre as violações de direitos humanos derivadas da implementação do atual modelo de exploração mineral no Brasil.
O artigo está dividido em mais três seções, além desta introdução. A seção seguinte contextualiza o caso do rompimento da barragem de Fundão dentro do arcabouço sobre a responsabilidade das empresas pelos direitos humanos, atentando-se para sua repercussão sistêmica. Em seguida, são apresentadas algumas das estratégias e ações adotadas para conferir maior visibilidade internacional ao caso. A parte seguinte discute a importância que essa abordagem teve no deslinde de alguns dos nós mais graves observados no processo de remediação das violações. As considerações finais indicam possíveis caminhos futuros tendo em vista o cenário existente completados quase dois anos do rompimento.
A Samarco Mineração S.A é uma sociedade de capital fechado fundada em 1973, desde sua origem se organiza com uma join venture societária composta por 50% de capital da Vale S.A e 50% da BHP Billiton Brasil Ltda. Ela representa um ícone da inserção subordinada do Brasil no mercado global por apresentar um complexo mina-mineroduto-pelotizadora-porto, assegurando a extração dos bens naturais semitransformação e exportação integral como commoditiy ao mercado internacional.66. Bruno Milanez e Cristiana Losekann, Desastre no Vale do Rio Doce: Antecedentes, Impactos e Ações sobre a Destruição (Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2016): 43-4.
A barragem do Fundão faz parte do complexo de operações Alegria, em Mariana-MG, composta por dois diques um arenoso e outro para lama, com capacidade para 79,6 milhões de m³ e 32,2 milhões de m³ respectivamente.77. “Parecer Único Supram CM N° 79/2008 Protocolo Nº 259470/2008,” Governo do Estado de Minas Gerais, 7 maio 2008, acesso em 27 junho 2017, http://www.meioambiente.mg.gov.br/images/stories/riodasvelhas/4reuniao/6-1%20samarco%20pu.pdf. Segundo o laudo pericial da Policia Civil de Minas Gerais a causa do rompimento foi a liquefação dos rejeitos arenosos que suportava a barragem. Conforme o inquérito, os fatores que levaram ao rompimento foram os seguintes: (i) elevada saturação dos rejeitos arenosos depositados na barragem do Fundão; (ii) falhas no monitoramento contínuo do nível de água e das poropressões junto aos rejeitos; (iii) diversos equipamentos de monitoramento estavam com defeito, não sendo realizadas as leituras adequadas para o laudo de segurança da barragem; elevada taxa de alteamento anual da barragem, em função do grande volume de lama no seu interior, não auferindo em integralidade; (iv) assoreamento do dique 02, que permitiu a infiltração de agua; (v) deficiência no sistema de drenagem da água. Além disso, o plano de ação para emergência em caso de rompimento apresentado aos órgãos de controle ambiental nunca foram colocados em prática.88. Desastre no Vale do Rio Doce, 2016, 55.
Em suma, os pesquisadores têm defendido a relação entre a precarização das atividades de controle e segurança da barragem e a manutenção das taxas de lucratividade da empresa, que implicou na redução de investimentos nos setores. Isso porque o preço do minério de ferro caiu pós 2013, a fim de manter as expectativas de lucratividade as empresas desinvestiram no uso de tecnologias e segurança mais avançadas. Apontando a relação direta entre a responsabilidade das empresas pela atividade de risco da mineração com o desastre causado, além da inércia do Estado no seu papel de fiscalizar o atendimento das condicionantes ambientais.99. Ibid.
No plano da afetação no território após o desastre, há uma tensa relação entre atingidos e empresas. Em um primeiro momento, as empresas tentaram se isentar das responsabilidades, deixando muitas comunidades em situação degradantes por dias, sem acesso à moradia, alimentação, sem informações sobre os familiares. Não houve qualquer tipo de medida preventiva para evitar que a lama chegasse ao mar, em 16 de novembro, nem qualquer tipo de informe e alerta prévia as comunidades. Posteriormente, buscaram inviabilizar a organização dos atingidos em movimentos, associações e comissões para a construção de pleitos coletivos, quando as famílias estavam alojadas em hotéis.
A disputa central do conflito envolve o reconhecimento de quem é atingido, e nesse sentido a empresa realizou compensações de acordo com seus próprios critérios, sem nenhum tipo de publicidade, à margem da eventualidade, sem qualquer consulta ou participação das vítimas. No caso dos cadastros socioeconômicos que reconheciam ou não as famílias, foram completamente abusivos, exigindo em alguns casos mecanismos de carga probatória a pessoas idosas e a vítimas que não tiveram como resgatar nada.
Essa situação fora denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em audiência temática no 158º período extraordinário de sessões, no qual entidades da sociedade civis e atingidas expuseram que o cadastro das famílias era exclusivamente controlado pela Samarco, e quem não fosse cadastrado não tinha acesso à ajuda emergencial.
O controle da gestão dos conflitos por parte das empresas, sem a participação dos atingidos, e com a inércia do Estado brasileiro, compõe um cenário de profunda assimetria nas relações de poder entre empresas e as vítimas, relegando as últimas os riscos e danos de todo o desastre. Fazendo com que o conflito não seja observado sobre a ótica e standards dos direitos humanos, e sim como um problema de retomada da atividade econômica.
Nesse sentido, o “Acordão”1010. “Acordão” é o apelido dado ao Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado entre o Poder Executivo Federal e o estadual, representados pela União, pelos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e pelas respectivas secretarias ou órgãos ambientais e as Samarco, Vale e BHP Billiton. O TTAC estabelece que a recuperação da Bacia do Rio Doce e a reparação aos atingidos se dará por meio de 17 programas socioambientais e 22 programas socioeconômicos. Além disso, o “Acordão” determina que a Samarco deverá pagar 500 milhões de reais em medidas compensatórias destinadas a melhorar a infraestrutura de saneamento das cidades localizadas ao longo do rio Doce. A gestão dos recursos alocados para a reparação de danos e a implementação dos programas ambientais, sociais e econômicos estaria a cargo de uma fundação de direito privado constituída exclusivamente para tal fim, cujos recursos viriam de aportes da Samarco e de suas controladoras. Essa entidade é hoje a Fundação Renova, que executa os programas de recuperação e revitalização apesar de o TTAC haver sido anulado pela justiça federal brasileira. firmado por estados e governos com as empresas em março de 2016 é emblemático da ausência do respeito à centralidade das vítimas na reconstrução de suas vidas, ao não consultar as mesmas sobre a elaboração e negociação do acordo; ao criar uma fundação privada das empresas com a qual as vitimas são obrigadas a negociar diretamente, sem a presença de agentes públicos para mitigar as assimetrias de poderes entre as partes, expondo atingidos a mesas de arbitragem sem assessoria técnica para tanto; a previsão de mecanismos contratuais que blindam o acesso á justiça das vítimas, e a possibilidade de rediscussão do tema em caso de fatos supervenientes, como indícios de contaminação à saúde em longo prazo.
Ainda que o “Acordão” esteja, do ponto de vista jurídico, invalidado pela justiça brasileira, o mesmo segue sendo inteiramente implementado pelas empresas e reconhecido pelo governo. Nas regiões a Fundação Renova assumiu o controle integral da gestão das reparações e políticas de mitigação de impactos, trazendo aos territórios inúmeras empresas de consultorias privadas e técnicos que não dispõem do manejo social para lidar com as comunidades, causando ainda mais constrangimento e violência psicológica às famílias atingidas.
O Ministério Público Federal propôs Ação Civil Pública em junho de 2016, estimando os gastos indenizatórios em uma média de 155 bilhões de reais, com sólido embasamento na participação das comunidades. Contudo, em janeiro de 2017 o mesmo Ministério Público firmou um Termo de Acordo Preliminar com as empresas, no qual estas financiariam a realização de estudos de diagnóstico para quantificação da demanda. Todavia, essa proposição não fora discutida e construída com atingidos, que não tiveram a oportunidade de indicar entidades nas quais têm confiança para realização dos estudos. Esse desdobramento foi um alerta para a sociedade civil no que diz respeito às dificuldades de participação efetiva mesmo junto ao principal órgão de defesa dos interesses coletivos e difusos impactados pelo desastre.
Passados quase dois anos do desastre, as famílias atingidas ainda não sabem que direitos e demandas serão atendidos, ainda mais porque não foi construído nenhum plano de reestruturação integral da bacia do Rio Doce. Tampouco há qualquer previsão confiável dos impactos à saúde das famílias com a presença de metais pesados na água, nem qualquer estimativa de quando grupos de pescadores, indígenas, povos e comunidades tradicionais vão ter sua capacidade produtiva e de renda reestabelecida.
Nos espaços decisórios sobre o conflito, ou seja, as inúmeras instâncias de negociação criadas para a problemática, tais como Fundação Renova, Conselho Interfederativo (CIF), Programa de indenização mediada (PIM), audiências públicas, afigura-se ausente a primazia dos direitos humanos dessas comunidades como eixo condutor da resolução do conflito. Diante disso, encontramos a completa ineficácia de todas as medidas que vem sendo tomadas para resolução da problemática, uma vez que desconsiderada a centralidade da vítima na construção de sua reparação, marcada pela ausência de participação ativa. Nesse sentido, as ações de mitigação não atendem às expectativas e necessidades dos atingidos, e tornam-se meras atividades de uma obrigação de fazer incerta, que poderá gerar um empobrecimento e aumento da vulnerabilidade de diversos grupos sociais.
Esse cenário evidencia a falta de capacidade do Estado Brasileiro para assegurar os direitos humanos frente às companhias transnacionais. Ainda que figure no plano de fundo uma legislação ambiental bastante clara sobre a responsabilização a ser adotada pelo ocorrido, os mecanismos de flexibilização do licenciamento ambiental, do controle da fiscalização do cumprimento das medidas, a força relação entre o financiamento destas empresas as candidaturas dos governos e a ausência de mecanismos de acesso á justiça com celeridade para as vítimas compõem a reprodução de uma sistemática que favorece a impunidade corporativa por abusos de direitos humanos.
Em um primeiro momento após o rompimento da barragem, os responsáveis estiveram em um estado de paralisia.1111. Consuelo Dieguez, “A Onda.” Piauí, julho 2016, acesso em 25 junho 2017, http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-onda-de-mariana/. As ações de assistência emergencial humanitária foram em grande parte desempenhadas pela própria sociedade civil, com o apoio e mobilização de pessoas em todo o país que enviaram mantimentos e itens de primeira necessidade. Enquanto que a Samarco se apoiava na tese de que o rompimento fora um evento imprevisível e extraordinário causado por fatores completamente alheios à sua vontade, Vale e BHP Billiton ancoravam-se na tese da personalidade jurídica distinta entre elas e sua subsidiária para afastar a sua própria responsabilização.
Em um segundo momento após o colapso de Fundão, governos e empresas firmaram compromissos de recuperação da Bacia do Rio Doce e reparação às vítimas deixando estas completamente fora da mesa de negociações. Posteriormente anulado pela justiça federal, o acordo assinado entre os estados de MG, ES e o governo federal, de um lado, e a Samarco, Vale e BHP Billiton, de outro, é o maior exemplo de descumprimento do direito básico a um remédio efetivo, nas suas dimensões procedimental e substantiva. Esta, aliás, uma prática descrita pelo Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU como endêmica no Brasil em casos de violações de direitos humanos por empresas.
Diante do quadro de inércia, ou simples recusa, das autoridades governamentais e das empresas privadas em respeitar o princípio da centralidade das vítimas nos processos de remediação e da impossibilidade de se aguardar o desfecho das ações judiciais, restou à sociedade civil e aos atingidos escalar o caso para mecanismos internacionais de proteção da pessoa humana. É no sentido de relatar uma parte do esforço realizado pelas vítimas e pela sociedade civil para dar visibilidade internacional ao caso e, assim, elevar o nível de accountability das instituições domésticas, que se apresentam algumas ações desenvolvidas desde o rompimento da barragem em novembro de 2015.
É possível dizer que a estratégia internacional adotada pelas organizações e movimentos tinha dois objetivos primordiais. Primeiro, visava tirar os atores locais responsáveis pela tragédia da “zona de conforto”, buscando-se assim reduzir a assimetria entre as partes, sobretudo entre as vítimas e as empresas envolvidas. Estas últimas têm, na prática, como visto, exercido considerável poder sobre o desenho e implementação das medidas de recuperação dos danos ambientais e socioeconômicos, em um quadro de conhecido abandono da mediação de conflitos pelo Estado em projetos de extrativismo ou, mais amplamente, de desenvolvimento econômico.
O outro objetivo foi o de despertar a atenção de observadores externos para o custo humano da tragédia. Aos olhos de muitos, o rompimento de Fundão foi visto muito mais como um desastre ambiental do que um caso paradigmático de violação de direitos humanos por empresas. Se é certo que a devastação ambiental causada pela onda de rejeitos causou danos irreversíveis à Bacia do Rio Doce, também são enormes os prejuízos causados às comunidades tradicionais que dependiam da água do rio para sua subsistência e para toda a população de milhões de moradores das cidades banhadas pelo Rio Doce, exposta à presença de metais pesados e outros danos à saúde.
A avaliação sobre quais mecanismos internacionais seriam acionados levou em consideração uma série de fatores, entre eles a probabilidade de êxito na obtenção de pronunciamentos públicos contundentes de condenação às falhas nos processos de atendimento emergencial e remediação às vítimas e de constrangimento público dos atores públicos e privados envolvidos.
Decidiu-se pela utilização do sistema regional e pelo sistema internacional de proteção de direitos humanos. No primeiro deles, optou-se pelo pedido de uma audiência pública à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que veio a ser realizada no seu 158º período de sessões em Santiago, no Chile, em junho de 2016. A audiência teve por objeto as violações de direitos humanos decorrentes do modelo de exploração minerário no Brasil. As organizações da sociedade civil apresentaram casos emblemáticos que evidenciam os impactos ambientais e socioeconômicos da exploração minerária no Brasil. Entre eles, o caso de Piquiá de Baixo, no Maranhão, onde há contaminação do ar, da água e do solo pela extração de ferro-gusa e carvão, e o Projeto Minas-Rio, em Conceição do Mato Dentro, em que houve fragmentação do licenciamento ambiental em três processos separados, o da mina, o do mineroduto e o do porto do Açu. Essa prática, segundo as organizações, tinha o deliberado propósito de mascarar os impactos cumulativos de todo o complexo, se tomado como um conjunto de peças que se encaixam par viabilizar um empreendimento econômico com alto potencial de degradação ambiental e violações de direitos.
O documento enviado à CIDH1212. “Ref: Solicitação de Audiência Temática - Afetações aos Direitos Humanos devido à Mineração no Brasil,” Conectas, 27 maio 2016, acesso em 25 junho 2017, http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/informe_audie%CC%82ncia-minerac%CC%A7a%CC%83o%20revisado.pdf. relatava o processo de criação de dependência econômica e social da mineração sobre comunidades e economias locais. Isto se dá pela centralização das atividades (produtos e serviços) no atendimento das demandas diretas e indiretas para o funcionamento da exploração minerária. Em pouco tempo, as cidades e vilas onde se encontram instaladas as empresas mineradoras tornam-se reféns dessa atividade econômica, naturalizando a dependência e considerando um privilégio contar com os recursos provenientes da arrecadação pela presença deste setor no território, esquecendo-se que a inexistência de outras fontes de arrecadação é, na verdade, efeito da presença das mineradoras. Isso caracteriza a relação de dependência da economia local e os padrões de empobrecimento das regiões de extração mineral.1313. Ibid, 5. Já no que diz respeito à dependência das comunidades das áreas de mineração com relação a este setor econômico, o documento destaca que a condição de pobreza e desigualdade social são os principais facilitadores da ação das empresas, pois sob tais condições há uma tendência à população aceitar mais facilmente os impactos negativos da atividade minerária.1414. Ver: Andréa Zhouri e Klemens Laschefski, “Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: Um Novo Campo de Investigação,” in Desenvolvimento e Conflitos Ambientais, orgs. Andréa Zhouri e Klemens Laschefski (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010): 11-34.
A respeito do apoio político e econômico do Estado para a atividade minerária, o documento lista políticas de incentivos financeiras, fiscais e tributárias, além da flexibilização do marco do licenciamento ambiental e da legislação socioambiental. Segundo o documento enviado à CIDH,1515. Ibid, 2.
O Estado brasileiro desempenhou um papel crucial neste cenário. A opção pela priorização da exportação de matérias primas refletiu-se na centralidade que teve o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no financiamento a estes empreendimentos e também à infraestrutura indispensável a esta atividade; a isenção de impostos que as mineradoras; o marco normativo do licenciamento ambiental que tem sido flexibilizado nos últimos anos; bem como a precarização e sucateio dos órgãos licenciadores e fiscalizadores da atividade minerária.
No âmbito da ONU, a primeira medida tomada foi o acionamento de mecanismos de proteção do Conselho de Direitos Humanos (CDH) do órgão intergovernamental. O CDH é o principal órgão de direitos humanos das Nações Unidas, com sede em Genebra, na Suíça. Ele é composto por 47 Estados-membros, eleitos pela Assembleia-Geral para um mandato de três anos, por critérios de representação e distribuição geográfica. Para auxiliar o Conselho em sua missão fortalecer a proteção e promoção dos direitos humanos e enfrentar questões concretas sobre violações de direitos, o órgão nomeia especialistas independentes para emitir recomendações e aconselhar os Estados, sob uma perspectiva temática ou por país. Tais especialistas, também conhecidos por Procedimentos Especiais, podem realizar visitas oficiais aos países-membros e enviar “comunicações” aos Estados (em alguns casos, também às empresas) questionando sobre ações tomadas no âmbito de denúncias concretas de violações de direitos humanos. Atualmente, há um total de 43 especialistas temáticos e 13 com mandato relativo a um país.
O primeiro Procedimento Especial acionado foi a Relatoria sobre Resíduos Tóxicos, cujo titular do mandato era o turco Baskut Tuncak. Representantes da sociedade civil informaram à relatoria a ausência de informações confiáveis sobre a composição da “lama tóxica” que se criou após o rompimento da barragem e a ausência de medidas emergenciais. O Relator sobre resíduos tóxicos enviou, em conjunto com outros cinco Procedimentos Especiais, um comunicado ao governo brasileiro menos de dez dias após o desastre. Na comunicação – que por regras da própria ONU é transmitida em caráter confidencial e apenas divulgada após certo período1616. Tais comunicações são tornadas públicas após um período de tempo, quando o próprio Conselho de Direitos Humanos prepara um relatório compilado com todos os comunicados enviados pelos Procedimentos Especiais, bem como são disponibilizadas (quando há) as respostas enviadas pelos governos. A disponibilização dos comunicados ocorre entre uma a duas sessões após o envio pelas relatorias. A divulgação da resposta dos Estados depende da ação destes em atender aos questionamentos dos mecanismos. – os especialistas demonstraram preocupação com a saúde, a segurança e o bem-estar das pessoas atingidas pela onda de lama e aquelas expostas aos resíduos tóxicos nela contidos. Os especialistas solicitaram ao Estado brasileiro informações sobre os compostos químicos e os metais pesados presentes nos rejeitos vazados de Fundão. O Estado brasileiro também foi questionado sobre os planos para assegurar o direito das vítimas e das comunidades afetadas a um remédio efetivo.
No dia seguinte ao envio do comunicado reservado, as relatorias de Resíduos Tóxicos e a de Direitos Humanos e Meio Ambiente emitiram uma nota pública condenando a “postura defensiva” e a insuficiência das medidas de contenção de danos tomadas pelas empresas e pelo Estado brasileiro. Em um cenário de ausência absoluta de informações confiáveis por parte do Poder Público e das empresas, os especialistas lembraram que, sob os padrões internacionais de direitos humanos, “o Estado tem a obrigação de gerar, avaliar, atualizar e disseminar informação sobre o impacto ao meio ambiente e substâncias e resíduos perigosos, e as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos, incluindo conduzindo devida diligência em direitos humanos”.1717. “Brazilian Mine Disaster: ‘This Is Not the Time for Defensive Posturing’– UN Rights Experts,” 2015.
Um segundo pronunciamento público veio da Relatoria sobre o Direito Humano à Água Potável e Saneamento.1818. “Brazil Mine Disaster: UN Human Rights Expert Calls for Urgent Access to Safe Drinking Water,” OHCHR, 8 dezembro 2015, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/en/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=16855&LangID=E. A nota de imprensa, divulgada pouco após o primeiro mês do desastre, chamou a atenção para a distribuição desorganizada e insuficiente de água engarrafada nos pontos de distribuição localizados nas cidades em que houve corte de distribuição em razão da contaminação do Rio Doce. O Relator, o brasileiro Léo Heller, conclamou as autoridades a disseminar informações claras à população e a monitorar a qualidade da água do rio e a tratada, que abastece as casas nas áreas afetadas.
Ainda no mês seguinte ao do desastre, o Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos incluiu as cidades de Mariana e Belo Horizonte no roteiro de sua visita oficial a Brasil, a primeira a um país da América Latina. A visita do Grupo à região se deu após um pedido formal de dezenas de organizações da sociedade civil brasileira, uma vez que esta não estava contemplada na agenda original do GT. Em Mariana, o GT da ONU se reuniu com a Samarco, com autoridades públicas e com os atingidos. Em audiência pública com representantes dos distritos mais afetados – Bento Rodrigues, Paracatu, Barra Longa e Gesteira – os dois membros do GT presentes, Dante Pesce e Pavel Sulyandzigaque, ouviram dos moradores depoimentos que reiteravam as denúncias anteriormente enviadas à ONU. Entre elas, a história de um morador de Barra Longa que, ao ter notícias do rompimento da barragem, teria indagado aos funcionários da Samarco sobre as chances de que a lama chegasse à sua cidade, ao que ouviu da empresa que não haveria possibilidade de ela ir tão longe. Infelizmente, poucas horas depois, a lama chegou às casas de maneira avassaladora, não deixando tempo para que as pessoas pudessem salvar seus pertences pessoais.
Em seu relatório oficial sobre a missão ao país1919. “Report of the Working Group on the Issue of Human Rights and Transnational Corporations and Other Business Enterprises on its Mission to Brazil,” OHCHR, A/HRC/32/45/Add.1, 12 maio 2016, acesso em 25 junho 2017, http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/32/45/Add.1#sthash.c18zU8Vc.dpuf., apresentado ao CDH da ONU em junho de 2016, o GT de Empresas e Direitos Humanos lamentou a ausência de um plano de contingência e a falta de alerta às comunidades além de Bento Rodrigues. O Grupo concluiu que, dada a escala do desastre, as autoridades federais poderiam ter feito um trabalho melhor logo após o rompimento. O GT enfatizou a necessidade de restaurar a confiança pela melhoria dos processos de consulta e pela garantia do acesso a informações e serviços essenciais, além de haver recomendado a criação de canais de escuta para que comunidades e funcionários pudessem expressar livremente suas opiniões sem o medo de sofrer represálias.
A segunda fase de interação entre a sociedade civil e o sistema ONU se deu logo após a assinatura do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) – o “Acordão” entre o Poder Público federal e estadual e as três empresas, que foi homologado pela justiça federal em maio de 2016. Imediatamente após a homologação pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, situado em Brasília – DF, oito entidades da sociedade civil enviaram um apelo urgente a quatro relatorias especiais da ONU2020. Relatoria sobre Resíduos Tóxicos, Relatoria sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, Relatoria sobre Povos Indígenas e Relatoria sobre Direito à Água e Saneamento. e ao presidente do GT sobre Empresas e Direitos Humanos. No documento, as entidades qualificaram o acordo como “ilegítimo e ilegal”, e consideraram que ele agrava as violações dos direitos humanos causadas pelo rompimento da barragem. Após o apelo urgente, o Ministro do Meio Ambiente do Brasil, Sarney Filho, afirmou publicamente que iria propor uma revisão do acordo para garantir que as empresas façam mais para levar em consideração as demandas das vítimas.
Segundo o apelo, o acordo tinha por objetivo limitar o dever do Estado brasileiro de proteger os direitos humanos dos cidadãos em seu território contra violações cometidas por empresas. Um dos itens vistos como mais problemático era a cláusula preambular que listava como um dos propósitos do instrumento terminar todos os processos judiciais relacionados ao desastre, além do dispositivo que explicitamente elidia a responsabilidade das três empresas pelas consequências adversas do colapso da barragem.
Em julho de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu uma liminar suspendendo a homologação do acordo. O STJ considerou que a falta de consulta com os povos afetados na definição dos termos do acordo o tornava ilegal e ilegítimo. O tribunal entendeu que a extensão dos danos causados pela catástrofe merecia um debate mais amplo sobre a solução negociada do conflito. Segundo a decisão, as autoridades públicas e as empresas deveriam ter conduzido audiências públicas com a participação de cidadãos, sociedade civil, comunidade científica e outras entidades que representam interesses locais, como as autoridades municipais. 2121. “Reclamação N° 31.935 - MG (2016/0167729-7). Rel. Min. Diva Malerbi,” STJ, 30 junho 2016, acesso em 25 junho 2017, https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/356533966/andamento-do-processo-n-2016-0167729-7-reclamacao-01-07-2016-do-stj.
A suspensão do acordo foi elogiada por especialistas de direitos humanos da ONU que acompanham o caso.2222. As relatorias que assinaram a nota de elogio à suspensão ao acordo foram: Água e Saneamento, Resíduos Tóxicos, Povos Indígenas e Empresas e Direitos Humanos. Disponível em: “Brazilian Mine Disaster – UN Experts Call for a Timely Resolution After the Settlement Suspension,” OHCHR, 5 julho 2016, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=20242&LangID=E. Em nova nota pública, foram tecidas duras críticas ao acordo. Constatando algo que já havia sido amplamente criticado pela sociedade civil, pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e pelo Poder Judiciário, os mecanismos da ONU notaram que “os poderes executivos e as empresas parecem ter, com sua pressa, ignorado os direitos das vítimas à informação, participação e a uma reparação efetiva, bem como a entregar garantias de prestação de contas”. Os especialistas mostraram-se particularmente preocupados com a governança institucional criada pelo acordo e com a exclusão das comunidades afetadas das instâncias decisórias. Sobre isso, assim se manifestaram:
Se estabelecido, a empresa mineira teria o poder de decidir sobre as indenizações a serem entregues para as populações afetadas sem possibilidade nenhuma de que essas decisões fossem questionadas ou recorridas. Além disso, o acordo não projetava mecanismos suficientes para garantir a participação de todas as comunidades afetadas na implementação da fundação.2323. Ibid.
As atividades em homenagem às vítimas e à memória do primeiro ano do desastre envolveram ações locais articuladas com o advocacy internacional. No âmbito local, o Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB) organizou a Marcha dos Atingidos, que saiu da foz do Rio Doce, no Espírito Santo, e chegou a Bento Rodrigues exatamente no dia 05 de novembro de 2016, um ano após o rompimento da barragem. Bento Rodrigues foi o distrito mais devastado pela força da onda de rejeitos, e sua reconstrução está prevista apenas para o ano de 2019.
Em nível internacional, foram realizadas diversas ações, a começar pela denúncia sobre o desastre no Fórum Social Mundial, em agosto de 2016, em Montreal, no Canadá.
Seguindo uma estratégia já utilizada pelo Movimento dos Atingidos pela Vale, houve a participação de atingidos em uma reunião de acionistas da BHP Billiton, em outubro de 2016. O MAB entregou à empresa e a seus acionistas as quatro principais reivindicações das famílias atingidas em toda a bacia: (i) não construção do dique S4 em Bento Rodrigues e remoção da lama depositada na beira do rio; (ii) reconhecimento de todas as famílias atingidas; (iii) reestruturação do acordo e da fundação para que haja participação dos atingidos nas decisões; e (iv) agilidade nas ações de reparação, principalmente na construção das casas, cuidados de saúde e da volta das atividades produtivas da população agricultora.2424. “Em Londres, Atingidos Participam de Assembleia de Acionistas da BHP Billiton,” Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), 21 outubro 2016, acesso em 25 junho 2017, http://www.mabnacional.org.br/noticia/em-londres-atingidos-participam-assembleia-acionistas-da-bhp-billiton.
No âmbito da ONU, com base em informações atualizadas sobre o andamento insatisfatório dos processos de reparação, cinco Procedimentos Especiais2525. Relatoria sobre Defensores de Direitos Humanos, Relatoria sobre Povos Indígenas, Relatoria sobre o Direito à Água e Saneamento, Relatoria sobre o Direito à Saúde e o GT de Empresas e Direitos Humanos. emitiram um comunicado público criticando as medidas adotadas pelo Estado e pelas empresas como sendo “insuficientes para lidar com as massivas dimensões dos custos humanos e ambientais decorrentes desse colapso”.2626. “Especialistas em Direitos Humanos da ONU Apelam para Ação Urgente no Aniversário do Colapso Devastador de Barragem no Brasil,” 2016. De acordo com os especialistas, após um ano, o saldo da tragédia é a falta de acesso seguro à água para consumo humano, a poluição dos rios, a incerteza sobre o destino das comunidades forçadas a deixar suas casas. Para eles, as seis milhões de pessoas afetadas tinham seus direitos humanos respeitados.
O primeiro ano do desastre também foi alvo de uma ação durante o 5º Fórum das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos, o evento mais importante sobre o tema no mundo, que reúne cerca de 2 mil representantes de governos, empresas e sociedade civil no Palácio das Nações, em Genebra. Para relembrar o desastre, a Conectas realizou uma ação de advocacy no Fórum, distribuindo panfletos com informações básicas sobre o desastre, tais como número de vítimas, valor econômico estimado dos prejuízos e número de pessoas direta ou indiretamente atingidas. Percebeu-se que muitos dos participantes ainda não tinham noção precisa da escala da tragédia e de sua posição como maior desastre do tipo na história da mineração.
Ainda na esteira dos eventos do primeiro ano, foi lançada uma plataforma on-line – “Rio Doce Vivo” –, em que qualquer pessoa pode enviar relatórios, estudos, documentos técnicos, fotos, vídeos, casos legais e outros dados públicos que possam ajudar pessoas e organizações interessadas em (re)construir uma memória viva e monitorar a responsabilidade das empresas e organizações cujos atos e omissões causaram a tragédia do Rio Doce.2727. O acervo pode ser acessado em: Rio Doce Vivo, acesso em 25 junho 2017, http://riodocevivo.omeka.net/.
O rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP Billiton no Rio Doce já nasceu como um caso emblemático de irresponsabilidade social empresarial e de violação a direitos humanos por empresas. Uma das principais lições extraídas do episódio é que, mesmo em casos de graves violações de direitos humanos e de impactos ambientais, a responsabilização dos perpetradores depende de uma articulação extremamente coordenada entre as comunidades atingidas, a sociedade civil organizada, os órgãos de imprensa (sobretudo as agências de jornalismo investigativo) e os órgãos de defesa dos direitos e interesses coletivos (no caso brasileiro, as defensorias públicas e o Ministério Público estadual e federal).
Ficou mais uma vez evidenciada a fragilidade dos mecanismos de mercado e das ferramentas de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) como indutores de um comportamento respeitoso aos direitos humanos pelas empresas. No mercado em que atua, a Samarco era considerada como um “benchmark” pelos seus então “altos padrões” de RSC.2828. Álvaro Almeida, “O Caso Samarco e o Desmoronamento da Responsabilidade Social Corporativa.” IstoÉ Dinheiro, 9 novembro 2015, acesso em 25 junho 2017, http://www.istoedinheiro.com.br/blogs-e-colunas/post/20151109/caso-samarco-desmoronamento-responsabilidade-social-corporativa/7737.
Mesmo ferramentas mais sofisticadas de “benchmarking” de empresas com relação às políticas e práticas corporativas de respeito aos direitos humanos não foram capazes de penalizar adequadamente as empresas pelo desastre do Rio Doce. O Corporate Human Rights Benchmark, uma iniciativa multissetorial liderada por organizações respeitadas como o Business and Human Rights Resource Centre, exibiu em seus primeiros resultados, em 2017, a BHP Billiton no grupo das empresas que mais pontuaram no ranking. Esse resultado mostra que as metodologias de rankings, índices e benchmarks de mensuração de desempenho empresarial em relação aos direitos humanos ainda padece de certa insensibilidade frente ao sofrimento das vítimas. Contraria o bom senso e a razoabilidade a posição da BHP Billiton como “top performer” em direitos humanos, entre quase cem empresas globais, mesmo diante das mais claras evidências de que os processos de reparação das violações e recuperação da Bacia do Rio Doce encontram-se muito aquém do exigido pelos standards internacionais. No limite, essas ferramentas prestam um desserviço ao esforço das vítimas e seus representantes em promover a accountability do Estado e das empresas.
Diante desse quadro de inércia estatal combinada com a inabilidade das ferramentas de RSC (e de empresas e direitos humanos) em induzir as empresas perpetradoras a observarem os padrões internacionais sobre o direito a uma remediação efetiva, as declarações dos mecanismos internacionais de direitos humanos deram visibilidade internacional para um caso que de outra forma teria talvez permanecido como um acontecimento local. A atenção internacional provocou uma queda das ações da BHP Billiton, garantindo assim a atenção e o escrutínio por parte de atores privados e internacionais.
Mais importante, as declarações dos mecanismos internacionais foram cruciais para criar contra-narrativas sobre as causas da tragédia e as responsabilidades dos entes públicos e das empresas privadas. No imediato pós-rompimento, elas mudaram o foco do debate, que deixou de se concentrar sobre a ocorrência ou não de um abalo sísmico para colocar em primeiro plano a ausência de informações confiáveis e a insegurança da população da bacia do Rio Doce. Foi também por meio das comunicações trocadas entre os mecanismos internacionais, o Estado brasileiro e as empresas que se estabeleceu uma das únicas linhas de reporte e prestação de contas, dada a fragilidade dos processos de diálogo domésticos e falta de confiança por parte dos atingidos.
Passados quase dois anos, a sociedade civil tem recorrido à tragédia do Rio Doce para alertar a população sobre os riscos do enfraquecimento do marco do licenciamento ambiental no Brasil. Lamentavelmente, ao contrário do que se esperava, o marco socioambiental brasileiro e os órgãos de fiscalização de barragens não foram fortalecidos, conforme notou o GT da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos em seu relatório sobre a visita ao país. Está em curso, na verdade, um ataque aos direitos de comunidades tradicionais e ao direito ambiental no país, conforme denunciado por três especialistas independentes do CDH e uma relatoria da CIDH em comunicado conjunto divulgado em 8 de junho de 2017.2929. “Indigenous and Environmental Rights Under Attack in Brazil, UN and Inter-American Experts Warn,” OHCHR, 8 junho 2017, acesso em 25 junho 2017, http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=21704&LangID=E. Segundo os especialistas, as propostas de enfraquecimento do marco legal estão sendo empunhadas “por membros do grupo de lobby ‘ruralista’, uma coalizão que representa as associações de produtores rurais”.
O meme #FábricadeMarianas, que tem sido utilizado em campanhas contra a aprovação de uma nova lei geral do licenciamento ambiental no Brasil com graves retrocessos em relação ao regime atual, alude à possibilidade concreta de que as mudanças pretendidas por grupos de interesse no Legislativo e no Executivo resultem em novos desastres.3030. Ver: “ISA e Mais 250 Organizações, Redes e Pesquisadores Condenam ‘Fábrica de Marianas’,” Instituto Socioambiental, 13 dezembro 2016, acesso em 25 junho 2017, https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/isa-e-mais-250-organizacoes-redes-e-pesquisadores-condenam-fabrica-de-marianas.
Entre as principais ameaças ao licenciamento no Brasil estão os substitutivos ao PL 3.729/2004, que tramita em regime de urgência no Congresso Nacional e visa estabelecer uma nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental no Brasil. Caso venha a ser aprovado na sua atual redação, o projeto criaria uma série de isenções ao licenciamento mesmo para atividades potencialmente degradantes, incluindo-se aí a pesquisa mineral e a expansão de rodovias. O projeto também elimina o aspecto locacional do licenciamento, retirando-se assim critérios geográficos, territoriais e humanos que influenciam no processo de licenciamento. Assim, um projeto como o de exploração mineral e depósito de rejeitos, como era o da Samarco em Mariana, localizado próximo a uma comunidade, teria o mesmo processo de licenciamento de outro localizado em um lugar que ofereça menor risco ao meio ambiente, à saúde e à vida humana. Ao invés de padronizar os procedimentos e as etapas do licenciamento, o projeto abriria, ainda, margem para uma “guerra ambiental” entre os estados da federação, ao dispor que estes terão amplos poderes para baixar regras e regulamentos individuais para suas próprias jurisdições.
O cenário de enfraquecimento da legislação socioambiental no Brasil apenas reflete a força de alguns poucos segmentos organizados que se beneficiam do desmonte do poder fiscalizatório e sancionatório do Estado para levar a cabo atividades de alto risco sem as devidas precauções e para cometer violações sem ser cobrados por suas respectivas responsabilidades. Fica claro que, para além desses grupos restritos, tais medidas não trazem quaisquer benefícios – apenas geram insegurança jurídica, potencializam o risco de ocorrência de novos desastres como o de Mariana e violam princípios insculpidos em tratados internacionais, como o do não-retrocesso, o da precaução e o da efetiva e integral remediação por violações a direitos humanos.
A história da bacia do Rio Doce perpassa a contraditória e acidental história da colonização e da emancipação do Brasil. São mais de 300 anos de mineração na região, que representaram uma profunda degradação ambiental; a ruptura com modos de produção e reprodução tradicionais na região; o aprofundamento da dependência das comunidades com elementos externos para garantir a sua sobrevivência; a perda sistemática de sua autonomia e soberania; a extração de riquezas da região para exportação, sem gerar desenvolvimento local. São séculos de exploração e opressão, marcados pela classificação étnico/racial que determina papeis e lugares específicos para a existência social e cotidiana de representatividade.
Os conflitos socioambientais representam a disputa de interesses entre particulares e coletividades sobre o uso do território e a relação entre a produção e a natureza. Em regra, a solução que se apresenta a problemática é a institucionalização da questão como ambiental e, portanto, um problema de políticas públicas de estado, os quais buscam soluções pragmáticas para os conflitos através da régua da razão administrativa, ou seja, entre o politicamente aceitável e o economicamente viável.
Essa situação se agudiza quando a Estado-Nação vê relativizado o controle do território, sua soberania, pela entrada de atores sociais que estão além das territorialidades de seu próprio domínio, como as empresas transnacionais, dificultando os mecanismos de imposição de condutas às mesmas.3131. Ver: Gabriela Scotto, “Estados Nacionais, Conflitos Ambientais e Mineração na América Latina,” in Seminário de Pesquisa do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2011). Assim, Estados assumem o papel de estimular a promoção de mais investimentos nas regiões, através de fornecimento de incentivos fiscais, flexibilização da legislação ambiental, redução do papel de fiscalização, e possível precarização dos órgãos de controle. E para as comunidades, apresentam mecanismos débeis de mitigação e compensação de impactos, não assegurando direito à informação e participação no processo decisório sobre os empreendimentos em seus territórios.
O rompimento da barragem de rejeitos de mineração do Fundão é um exemplo emblemático do encontro entre o passado, presente e futuro da mineração no Brasil, à medida que nos remete a um modelo de produção de riquezas secular na região, que resultou em um desastre tecnológico de proporções ainda não dimensionadas, e nos projeta para refletir sobre o futuro de mais outras milhares de barragens de rejeitos no país.
Não obstante toda a complexidade jurídica que circunda o caso do Rio Doce, percebe-se que este caminha para um esgotamento das vias internas de garantia de justiça às comunidades atingidas. Estas só têm alguns direitos reconhecidos por meio de um intenso processo de luta, do qual a presença de atores e mobilização internacional tem sido fundamental para assegurar que suas vozes sejam ouvidas pelos tomadores de decisão. Nos espaços institucionalizados, essas vozes ainda se fazem ausentes.
Ainda há muito o que ser feito para que se compreenda inteiramente como as empresas responsáveis operam na reconstrução da região, as causas que levaram ao rompimento, os impactos gerados e a participação dos atingidos no processo. Da mesma maneira, faz-se fundamental entender este caso também pelo que ele representa em termos de formação e consolidação de alianças, de criação de redes de solidariedade e de apoio mútuo entre a sociedade civil e os mecanismos internacionais de proteção da dignidade da pessoa humana.
Por aquilo que ele tem de duro e de singelo, o caso do Rio Doce traz lições valiosas sobre como evitar e superar as injustiças geradas pela mineração no Brasil e no mundo.