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Limar a pedra, lavar a bandeira

Bruno Oliveira

Anotações sobre a arruína e disputa de monumentos

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RESUMO

Como disputar as determinações dos monumentos, tornar instáveis os pedestais e criar outras gramáticas, restituindo sentidos e agências para a memória coletiva? Este texto apresenta algumas reflexões sobre a disputa das representações do poder, sobretudo a partir da perspectiva da emancipação de políticas, identidades e lutas por direitos humanos que têm sido desmanteladas e cinicamente acomodadas pela retórica de governos facínoras em franco crescimento no Sul Global na última década.

Palavras-Chave

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Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande.
Elas podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo,
mas elas nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína
. 11. Audre Lorde, The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House (London: Penguin Classics, 2017): 19.

Introdução

“É uma investida contra a civilização”, afirmou Victor Brecheret Filho em entrevista22. Adriana Farias, “Filho de Brecheret vê ligação entre pichação e último debate eleitoral.” Veja, 30 de setembro de 2016, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://vejasp.abril.com.br/cidades/filho-de-brecheret-ve-ligacao-entre-pichacao-e-debate-eleitoral/. concedida no dia 30 de setembro de 2016, por ocasião da intervenção ocorrida na madrugada anterior sobre o “Monumento às Bandeiras”, escultura desenhada por seu pai, Victor Brecheret, em 1920, e erguida para as celebrações do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo em 1953. De autoria não identificada, a ação envolveu cobrir o monumento de granito com tinta látex rosa, amarela e turquesa e foi veiculada nos meios de comunicação no debate entre os candidatos à prefeitura da cidade de São Paulo, televisionado na noite anterior à realização das eleições municipais. Na ocasião também foram alvo de ações o “Borba Gato”, de Júlio Guerra, erguido em 1963, e o edifício da Secretaria Estadual da Educação, inaugurado em 1894 como sede da Escola Normal Caetano de Campos.

De lambança à barbárie, a intervenção foi recebida com ultraje pela população e pelos órgãos responsáveis pela manutenção do patrimônio. A limpeza do “Monumento às Bandeiras”, após a intervenção ocorrida às vésperas das eleições em 2016, demorou cerca de 10 dias e foi realizada com um produto químico específico para granito e, em seguida, com jatos d’água.

Em declaração à imprensa,33. Juliana Diógenes, “Dois monumentos e prédio da secretaria de Educação amanhecem pichados.” Estadão, 20 de junho de 2020, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,monumento-as-bandeiras-e-estatua-do-borba-gato-amanhecem-pichados,10000079134. a então diretora do Departamento do Patrimônio Histórico, órgão da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, ressaltou o dano que tais ações geram à escultura, tendo em vista que o processo de limpeza envolve, também, risco à obra, que vai perdendo camadas a cada limpeza: “Estou indignada e chateada. É uma tristeza ver o nosso patrimônio danificado. Nós vamos limpando e o monumento vai se danificando. Daqui a pouco não vai ter mais pedra”.

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Monumentos, poder e colonialidade

Na concepção de sistema-mundo descrita por Aníbal Quijano e Immanuel Wallerstein44. Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”, in: Edgardo Lander (Comp.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas (Buenos Aires: CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2000). como a configuração de um padrão histórico de poder que compreende as relações sociais e políticas como frutos de uma articulação de redes de domínio fragmentadas e conflituosas, podemos compreender a estruturação fundamental da história no contexto latino-americano a partir da complementaridade dialética das dinâmicas entre colonizadores e colonizados.55. Aníbal Quijano e Immanuel Wallerstein, “Americanity as a Concept or the Americas in the Modern World-System,” International Social Science Journal 134 (November, 1992). Desta noção moderno/colonial advém a constituição de uma série de relações e instituições de domínio e exploração que se estendem desde a Idade Média europeia até a atualidade.

Os monumentos, as bandeiras, o estado e suas insígnias são registros fundamentais dos ideais de projeto de futuro e progresso para o processo moderno/colonial. Podemos associar a consolidação dessas imagens à sedimentação de marcos de subjetividade e memória coletiva, orientada a uma percepção de um mundo total, linear e hegemônico. E aqui é importante frisar que a colonialidade do poder, termo cunhado por Aníbal Quijano,66. (BALLESTRIN, 2003:99). Luciana Ballestrin, “América Latina e o giro decolonial,” Revista Brasileira Ciência Política no. 11 (2013): 99, acesso em 14 de setembro de 2021, https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/DxkN3kQ3XdYYPbwwXH55jhv/?lang=pt. compreende processos de reprodução de lógicas de opressão, domínio e exploração que extrapolam a esfera do poder político-econômico, versando também sobre a colonização do imaginário. Assim, memória e monumentos, em especial no contexto latino-americano, foram constituídos por processos de violências epistemológicas continuadas e permanentes.

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Documentos-monumentos

Para refletir sobre a disputa de um monumento, é preciso antes uma breve digressão para reconhecer no surgimento da prática de edificação de tais obras como se configuram como dispositivos da colonialidade do poder nos seus territórios de inserção. Nesse sentido, devemos assimilá-los como imagens que performam aspectos memoriais e educativos nas cidades. Entendemos que todo monumento possui intrinsecamente e mutuamente elementos da civilização e da barbárie.77. Walter Benjamin, Passagens (São Paulo/Belo Horizonte: Imprensa Oficial/Ed. UFMG, 2006). Os monumentos são, por isso, elementos de transmissão, alegorias de uma noção triunfante de continuidade e evolução histórica, “despojos que têm por função confirmar, ilustrar e validar a superioridade dos poderosos”.88. Michael Löwy, “A contrapelo” - A concepção dialética da cultura nas teses de Walter Benjamin (1940)”, Lutas Sociais no. 25/26 (2º sem. de 2010 e 1º sem. de 2011): p. 22 Ao compreender os documentos-monumentos como imagens deste díptico cultura-barbárie moderno/colonial, podemos passar à questão dos propósitos de sua constituição.

Podemos apreender nas origens europeias dos monumentos como conhecemos hoje,99. Outros sentidos e práticas similares aos monumentos debatidos aqui foram e são desenvolvidos por diversos povos, em tempos e territórios diferentes. a partir de Georges Didi-Huberman,1010. Georges Didi-Huberman, “Devolver uma imagem,” In: Emmanuel Alloa (org.), Pensar a Imagem (São Paulo: Autêntica, 2015). uma percepção das imagens como uma espécie de bem comum: o uso do termo imago e sua aproximação com as ideias de posse e restituição evocam uma “função de transmissão genealógica e honorífica” das imagens produzidas por máscaras mortuárias.1111. Ibid., 205. Data deste momento a aparição de monumentos (do latim monumentum: recordação, edifício ou mesmo túmulo), inicialmente atribuídos a indivíduos e memórias fúnebres particulares, muito vinculados à essa noção de imagem. Também na idade antiga europeia surge uma outra categoria de monumentos que se configura como um anúncio de poder, um dispositivo simbólico de domínio, como fruto de interesses de grupos ou associações, usualmente de caráter comemorativo e testemunhal, evocando passados e perpetuando recordações (voluntária ou involuntariamente). As duas classes de monumentos, no entanto, partilham a orientação pela sobrevivência estratégica de memórias da modernidade e, sobretudo, imagens da civilização – e barbárie.

De forma geral, monumentos, museus, galerias e espaços culturais, seus acervos, suas exposições e seus documentos constituintes e associados, assim como universidades e seus edifícios, e a disciplina própria da história das imagens (da arte, por extensão), podem ser compreendidos como parte fundamental de um conjunto de instituições que se ocupam da estruturação e manutenção de memórias e representações sociais estáveis e homogêneas. O domínio das narrativas e imagens de um dado território, cultura e sociedade, em especial no Sul Global, foi (e ainda é) fundamental para a organização dos estados modernos.1212. Benedict Anderson, Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2008): 30. Tais instituições e disciplinas ocupam posições contraditórias e complexas, e, nesse sentido, torna-se essencial compreender a maneira como se articulam e operam, tendo em vista que “são importantes porque ainda mantêm uma posição simbólica aparentemente sustentada pela cultura democrática, cujo cerne é, de fato, a própria noção de cidadania”.1313. Maria Angélica Melendi, Estratégias da arte em uma era de catástrofes (Belo Horizonte: Cobogó, 2017): 20.

Como, então, restituir sentidos emancipatórios aos monumentos? Trata-se sobretudo de um exercício de encontrar, na instabilidade de suas determinações, a possibilidade de manuseio e criação de uma outra gramática sentidos e agências – e que não parta da ideia de completude ou mesmo de devolução de algum privilégio e direito privado a alguém ou algum grupo social. Esta devolução de sentido não pressupõe uma apropriação ou posse, reproduzindo a estrutura de domínio, mas um questionamento necessário de seus ordenamentos. Nos referimos precisamente a reafirmar a instabilidade das estratégias de domínio e hegemonia no poder, profanando o poder e suas representações, e devolvendo a possibilidade de uso e agência coletiva a quem lhe é de direito. Reconfigurando a memória e renunciando a rigidez narrativa, arrancando “[…] dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem”.1414. Giorgio Agamben, Profanações (São Paulo: Boitempo, 2007): 79, apud Didi-Huberman, “Devolver uma imagem,” 2015.

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Restituição (1)

Inaugurado oficialmente em março de 1970, o Paço das Artes1515. Em dezembro de 2018 foi anunciada uma nova sede, inaugurada em 2020. A cessão do Casarão Nhonhô Magalhães, no bairro de Higienópolis, foi feita em acordo entre a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e o Shopping Higienópolis, entidade privada dona do casarão. “Em 2019 Paço das Artes terá nova sede,” Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 12 de dezembro de 2018, acesso em 31 de dezembro de 2022, http://www.cultura.sp.gov.br/em-2019-paco-das-artes-tera-nova-sede/. teve durante muitos anos uma sede localizada nas imediações da Universidade de São Paulo. O edifício, de propriedade do Instituto Butantan, foi requisitado ao final de 2015 para dar lugar a laboratórios e a uma fábrica de vacinas contra a dengue, epidemia que teve pico alarmante naquele ano.

Na ocasião do encerramento das atividades no edifício do Paço das Artes foi promovido um último evento no local, além de uma apresentação do bloco Ilú Obá De Min,1616. O Ilú Obá De Min é um bloco de Afoxé, composto apenas por mulheres, fundado na cidade de São Paulo em 2004. com a realização de uma intervenção da artista mineira Néle Azevedo.

Desenvolvido inicialmente como fruto de sua dissertação de mestrado em Artes Visuais em 2001 no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, a série de intervenções “Monumento Mínimo”, de Néle Azevedo,1717. Imagens da intervenção podem ser acessadas na Galeria de peças artísticas da Revista Sur. caracteriza-se por uma ação efêmera que subverte as noções fundacionais dos monumentos: é um registro de memória, um documento pequeno, temporário, itinerante e de corpos anônimos – em oposição à solidez grandiosa da pedra e dos heróis da história, encontrados nos grandes monumentos públicos. De acordo com a própria artista,1818. “Monumento Mínimo,” Néle Azevedo, (s.d.), acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.neleazevedo.com.br/monumento-minimo. até 2004 as intervenções se constituíam de uma ou duas esculturas em gelo que eram colocadas em diferentes locais das cidades e derreteriam e desapareceriam com o tempo. A partir de 2005, Azevedo passa a concentrar em um mesmo local, deliberadamente escolhido no espaço urbano, pequenos corpos anônimos em gelo, que também desaparecem com o tempo. Ela conta com a colaboração de voluntárias e voluntários para a confecção das esculturas em gelo a partir de moldes já produzidos.

O documento gerado pela intervenção de Néle Azevedo se detém à experiência dos participantes e espectadores e, por conseguinte, a registros audiovisuais da ação. O ato que propõe não alude aos grandes heróis da história moderno/colonial ocidental, como aponta a convocatória de voluntárias e voluntários para a realização da intervenção em março de 2016:

Em uma ação de poucos minutos, os cânones oficiais do monumento são invertidos: no lugar do herói, o anônimo; no lugar da solidez da pedra, o processo efêmero do gelo; no lugar da escala grandiosa do monumento, a escala mínima dos corpos perecíveis. […] Ele perde a sua condição estática para ganhar fluidez no deslocamento urbano e na mudança de estado da água. Concentram-se em pequenas esculturas de homens pequenos, os homens comuns.1919. Ibid.

Estes documentos-monumentos mínimos, realizados em uma inversão de perspectiva, não apenas compreendem a mutualidade da cultura-barbárie, como apreendem este lugar e fazem dele uma entrelinha permanente. No limite de tornar-se uma sentença de damnatio memoriae,2020. Damnatio memoriae é a sentença de “condenação da memória” aplicada pelo senado da República romana que tinha como castigo o apagamento de todas aparições e registros públicos de existência de determinada pessoa para que fosse esquecida pelas futuras gerações. a intervenção de Azevedo restitui os restos à esfera pública, realizando um gesto análogo às montagens do cineasta alemão Harun Farocki, na leitura de Didi-Huberman: “[t]oma nas instituições o que elas não querem mostrar – o rebotalho, o refugo, as imagens esquecidas ou censuradas – para retorná-las a quem de direito, quer dizer, ao ‘público’, à comunidade, aos cidadãos”.2121. Didi-Huberman, “Devolver uma imagem,” 2015.

No evento de encerramento das atividades do Paço das Artes, o “Monumento Mínimo” (e a própria apresentação do bloco Ilú Obá De Min) conforma um monumento ao apagamento, o do ciclo de um espaço público. A ação de Azevedo tomou a escadaria do edifício e foi realizada a partir das 14h do dia 16 de março de 2016. A ação realizada com 1000 esculturas de gelo, que durou apenas alguns minutos por conta do sol escaldante, foi acompanhada pelo público como um ritual, um gesto que a própria artista qualificou como político/estético.

Documentação da repercussão midiática da obra “Monumento Mínimo”. Arquivos cedidos pela artista Néle Azevedo.

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Restituição (2)

Fundador e líder do partido “Cambio 90”, o engenheiro e matemático nipo-peruano Alberto Kenya Fujimori venceu a sua primeira eleição presidencial no Peru em 1990 com o lema “Honradez, Tecnología, Trabajo”. O candidato, até então pouco conhecido, venceria também a eleição seguinte, após uma ampla crise constitucional no país e um autogolpe com apoio das Forças Armadas, envolvendo uma nova Constituinte, a dissolução do Congresso, a tomada de meios de comunicação, a perseguição de pessoas e grupos opositores e sistemáticas violações de direitos humanos.

Com índices expressivos de aprovação até meados de seu segundo mandato, seria apenas no final da década que se romperiam o silêncio, o medo e mesmo os discursos amplamente disseminados de apatia à política. Diversas das mobilizações sociais, a partir de 1996, foram pautadas justamente pelo exercício de imaginação de outras formas da esfera pública. Não seriam apenas uma ou outras manifestações, atos ou levantes que elaborariam uma noção partilhada de sociedade democrática: é na continuidade e vigília permanente que se forjam outras consciências coletivas e públicas.

O imaginário público foi estabelecido como campo de batalha crucial dos movimentos sociais peruanos, sobretudo no último ano da longa ditadura fujimorista. Disputar os símbolos nacionais contribuiu com um processo libertador individual e coletivo da cidadania peruana – para além das noções de nação e estado estabelecidas. O disparador crítico para o acirramento das manifestações seria, para além dos sucessivos escândalos de corrupção e das perseguições políticas, a fraude da terceira reeleição de Fujimori em abril de 2000.

A primeira performance que inaugura a articulação do Colectivo Sociedad Civil, grupo formado por artistas peruanas e peruanos que terá uma atuação marcante durante todo o ano de 2000, aconteceu justamente ao final do primeiro turno das eleições nacionais: munidos de velas, crucifixos e tecidos pretos, um grande grupo de artistas se propôs a realizar uma longa e formal cerimônia fúnebre do governo de Fujimori na frente da Oficina Nacional de Procesos Electorales (ONPE). As imagens do protesto acabaram circulando por grandes veículos de imprensa locais e internacionais, o que estimulou a continuidade de ações e o desenvolvimento da linguagem do grupo.

A partir deste momento, as pessoas integrantes do Colectivo, em colaboração com outros grupos e movimentos, passam a desenvolver estratégias públicas de mobilização e transformação deste imaginário nacional. Entre as ações performáticas de grande impacto que se inauguram às vésperas do segundo turno das eleições de 2000 está a “Lava la bandera”,2222. Imagens da intervenção podem ser acessadas na Galeria de peças artísticas da Revista Sur. um ritual coletivo e colaborativo de limpeza simbólica e afetiva da bandeira nacional. Nas semanas que se seguiram aos primeiros rituais da limpeza pátria em praça pública, em maio de 2000, foram registradas diversas reelaborações do gesto de forma autônoma, independente e igualmente política em outras praças públicas em cidades peruanas e estrangeiras.

A repetição semanal do ritual de limpeza das bandeiras pátrias com água, sabão e bacias vermelhas ao longo do ano, produziu uma imagem de resgate da identidade nacional sequestrada pela ditadura fujimorista. Estes símbolos do poder submetidos ao gesto cotidiano de lavagem, pendurados em grandes varais esticados em praças públicas, secando ao vento, logo ganhariam variações, incorporando uniformes militares e togas. A repetição do gesto e a incorporação popular em um sentido comum e corriqueiro do protesto, de forma coletiva e cotidiana, também torna evidente a importância de uma longa restituição de identidades cidadãs sequestradas, em suas esferas individuais e coletivas. Um dos membros fundadores do Colectivo resume o procedimento de ritualização do país:

Pero tan sorprendente eficacia política se funda sobre una autoridad moral previa, un capital simbólico acumulado desde la energía sacrificial de miles de lavados rituales. La matriz de identificación colectiva aquí actuante es religiosa tanto como patriótica. Una religiosidad doméstica, cotidiana, propia, casi irreverentemente pop en su informalidad litúrgica, pero no menos sublime por ello. Pues es desde su accesibilidad e inmediatez que Lava la bandera ritualiza al país. (Dios se mueve entre los cacharros. Y los jabones). De allí tal vez su capacidad de inscripción en un registro mnemónico distinto, en la memoria emocional de una ciudadanía en construcción.2323. Gustavo Buntinx, “Lava la bandera: el Colectivo Sociedad Civil y el derrocamiento cultural de la dictadura en el Perú” (manuscrito), 9.

Ao final daquele ano, com o acúmulo de denúncias de corrupção e violações de direitos humanos, Fujimori se refugiou no Japão, onde ficou até sua captura no Chile em 2005. Ainda em 2000, o Colectivo Sociedad Civil convocou um ato de encerramento daquele ciclo de limpeza e cura. Com a mudança de governo, as bandeiras já estariam limpas: a convocatória era para celebração, e para que as bandeiras fossem então passadas e dobradas, entregues aos novos governantes e guardadas para que pudessem ser mantidas e cuidadas, até que sejam necessárias outras limpezas para a manutenção da democracia.

Documentação da repercussão midiática das ações do Colectivo Sociedad Civil. Arquivos cedidos pela artista Claudia Coca.

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Conclusão

O temor da diretora do Departamento do Patrimônio Histórico de que a escultura de Brecheret, em São Paulo, seja limada ao chão até que não haja mais pedra, a causa dos seus recorrentes restauros, remonta de forma invertida e acidental os gestos artísticos/políticos do “Monumento Mínimo”, de Néle Azevedo, e do “Lava la Bandera”, do Colectivo Sociedad Civil.

O polimento recorrente da pedra indica um caminho possível para a compreensão do exercício ritualístico e permanente de reapropriação da democracia. Assim, a disputa das representações do poder – e a politização destas imagens – pode contribuir para a reivindicação de políticas emancipatórias, identidades e lutas por direitos humanos que têm sido desmanteladas e cinicamente acomodadas pela retórica de governos facínoras em franco crescimento no Sul Global.

Interessa, aqui, imaginar que o surgimento de outra sociedade, outro acordo democrático, talvez só seja possível a partir de uma repetição incessante desta arruína dos documentos-monumentos monolíticos e impenetráveis que estruturam as cidades, a política, a memória: seja por meio da reconstrução coletiva dos monumentos temporários, seja pela limpeza pública das bandeiras nacionais ou mesmo de forma mais radical, provocando o polimento recorrente de documentos-monumentos.

A imagem desta arruína gradual do monumento em suas limpezas sucessivas performa, neste sentido, um ritual funerário continuado, a longo prazo, e de restituição da agência às vencidas e aos vencidos, estruturando-se outro pacto social em uma redução infinitesimal permanente e gradual da grande história moderno/colonial dos grandes heróis. Sempre igual, mas um pouco diferente.

Bruno Oliveira - Brasil

Bruno Oliveira é educador e artista visual. Doutorando em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos (UNILA/PR), especialista em Artes Plásticas e Contemporaneidade (UEMG/MG) e graduado em Ciência da Computação (FUMEC/MG). É pesquisador do MALOCA - Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul da UNILA, com investigações sobre expressões visuais latino-americanas. É educador e artista visual no Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), um ateliê de artes visuais e cidadania na Zona Sul de São Paulo, e pesquisador do Acervo Bajubá, projeto comunitário de registro de memórias das comunidades LGBT+ brasileiras.

Recebido em Outubro de 2022.

Original em português.