Ensaios

2022 e a odisseia do combate à desinformação no Brasil

Nina Santos

Análise da luta informacional nas eleições de 2022

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RESUMO

A desinformação tem se tornado um problema sério e complexo para as democracias modernas. Por um lado, exige critérios e normas estatais para seu confronto, por outro, exige cuidado em relação à proteção das liberdades e à garantia e promoção de um ambiente digital mais saudável e inclusivo. Esta breve reflexão analisa as eleições brasileiras de 2022 em relação ao enorme desafio de enfrentar a desinformação em um contexto de intensa polarização e ameaças democráticas.

Palavras-Chave

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As eleições de 2022 foram, certamente, um marco para a história da desinformação no Brasil. A campanha eleitoral e as investidas da extrema-direita no uso da desinformação como estratégia política provocaram movimentos importantes, por parte das plataformas digitais, da sociedade civil e do poder público, em busca de formas de combate a esse problema que vem minando democracias pelo mundo. Para entender melhor esse contexto é útil pensar em três diferentes momentos: a preparação do terreno, o aquecimento dos motores e a aceleração que gerou ações emergenciais.

Preparação do terreno

É preciso reconhecer que as eleições de 2018 no Brasil deixaram um legado. Se esse legado não necessariamente permitiu a construção de soluções robustas para o tema da desinformação, pelo menos fez com que, desde o começo, ele estivesse no centro do debate. Exatamente por isso, houve uma preparação de terreno para as eleições. Nesse sentido, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) procurou as plataformas digitais, estabeleceu diálogo constante e firmou parcerias e memorandos de entendimento com Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube, Kwai e Telegram. Ou seja, havia termos acordados – ainda que insuficientes – para o que deveria ser feito durante as eleições.

Esse passo importante pareceu funcionar no começo da campanha política de 2022. Até a semana que precedeu o primeiro turno, predominava uma percepção de que a desinformação estava sob controle, sem grandes impactos, como tinha sido visto em 2018. As 48 horas anteriores ao primeiro turno, no entanto, mostraram que não era bem assim. Houve movimentos rápidos que se aproveitaram de um momento de vácuo comunicacional – quando já não havia horário eleitoral gratuito nem comícios -, da leniência das plataformas e da demora das decisões judiciais. Foi assim que, por exemplo, um vídeo que afirmava que o traficante Marcola teria declarado voto em Lula ficou 16h no ar, entre às 20h30 da véspera do primeiro turno e às 12h30 do dia de votação.11. “TSE manda Bolsonaro e sites apagarem que Marcola vota em Lula: ‘Inverídico’”, UOL, 2 de outubro de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/02/tse-marcola-lula.htm.

Aquecimento dos motores

A passagem para o segundo turno acelerou ainda mais a luta informacional, mudando fortemente a percepção de calmaria. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, chegou a declarar, em reunião com Google, Kwai, Linkedin, Meta, TikTok, Twitch e Twitter, que a situação da desinformação estava um desastre.22. “Moraes fala em desastre de fake news no 2º turno e quer poder de polícia ao TSE”, Exame, 20 de outubro de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://exame.com/brasil/moraes-fala-em-desastre-de-fake-news-no-2o-turno-e-quer-poder-de-policia-ao-tse/. A necessidade de remoção mais rápida de conteúdo em resposta a decisões judiciais era um dos principais pontos levantados pelo ministro.

Nesse ponto, pode-se dizer que os problemas eram de duas ordens. De um lado, as políticas das plataformas eram insuficientes para lidar com diversos aspectos da desinformação – como aqueles ligados especificamente a candidatos e candidatas e aqueles relacionados à sublevação democrática -; de outro, os termos já anunciados e acordados pelas plataformas com o TSE não estavam sendo plenamente cumpridos. Anúncios políticos on-line proibidos no dia da eleição de primeiro turno, permaneceram no ar; conteúdos apontados como problemáticos pela Corte não foram retirados e disseminadores reiterados de desinformação não foram punidos. Essas irregularidades foram apontadas em uma série de relatórios publicados no período. Destacamos especialmente a série de estudos produzidos pelo Netlab, da UFRJ.33. Acessíveis no repositório da universidade: “Conteúdos”, Netlab, 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, http://www.netlab.eco.ufrj.br/publicacoes.

O gráfico a seguir, por exemplo, mostra como quase 40% das postagens consideradas problemáticas na plataforma Meta permaneceram no ar, sem nenhum tipo de rotulagem.

Fonte: Netlab/UFRJ (2022).44. “Conteúdo nocivo: a Meta protege a integridade eleitoral no Brasil?”, Netlab/UFRJ, 7 de outubro de 2022, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://uploads.strikinglycdn.com/files/6d84bff4-bbaa-4073-993f-d4efb2c69b73/Elei%C3%A7%C3%B5es%202022%20-%20Conte%C3%BAdo%20nocivo%20a%20Meta%20protege%20a%20integridade%20eleitoral%20no%20Brasil_Netlab.pdf.

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Ações emergenciais

Esse cenário fez com que o TSE decidisse tomar medidas emergenciais. Concentrou poderes em si, permitindo que o tribunal agisse de ofício contra a desinformação, além de ampliar a proibição de anúncios on-line para 48h antes e 24h depois do pleito e ampliar as decisões de retirada de conteúdo para cópias idênticas do conteúdo original. Passado o processo eleitoral, ações como essas certamente merecem longa discussão. A concentração de poderes em um só órgão – no caso, o TSE – foi importante como ação imediata, mas pode não ser a melhor opção a longo prazo. A complexidade do tema exige pesos e contrapesos para garantir pontos de vista diferentes e possivelmente conflituosos. Além disso, a desinformação não se resume ao período eleitoral. Como fica este embate em um momento em que o TSE deixa de estar no centro das ações jurídicas? Esses e outros pontos precisam ser debatidos para encontrar caminhos os mais democráticos possíveis para lidar com as decisões sobre o que vale ou não no debate público. Durante a campanha, no entanto, essas ações se mostraram importantes e efetivas para combater o cenário de desinformação que se intensificava. Em um pleito tão disputado quanto esse, teria sido uma tragédia se a desinformação fosse responsável por mudar o resultado do pleito com base não no desejo dos eleitores e eleitoras, mas na criação de uma falsa noção de realidade.

O por vir

É importante dizer, no entanto, que precisar o impacto da desinformação sobre a decisão de voto ainda permanece um desafio. Ainda que a observação de padrões de comunicação possa funcionar como indicativo, é uma correlação difícil de se estabelecer. Essa dificuldade vem, inclusive, do fato de que o ambiente digital muda profundamente a forma de fazer campanha política, e isso vai muito além da desinformação. As formas de se comunicar, de criar fatos políticos, de mobilizar eleitores e de influenciar a pauta são outras e isso ainda causa estranhamento em um país acostumado com uma campanha centrada na televisão. Não é à toa que um ator político como André Janones tenha ganhado atenção no campo da esquerda justamente por conseguir entender e se apropriar dessa lógica da comunicação. A pergunta que fica é: quais são de fato os parâmetros que devem guiar a comunicação política digital para que ela sirva para produzir mais, e não menos, democracia?

Certamente as eleições de 2022 nos deixaram algumas pistas. Primeiro, o modelo de autorregulação das plataformas digitais não funciona sozinho. Ele precisa de parâmetros nacionais a serem respeitados e de mecanismos de transparência, fiscalização e accountability. Segundo, a falta de parâmetros legais, construídos coletivamente e frutos de ampla discussão social, deixa nas mãos do Judiciário decisões emergenciais e ações rápidas que podem gerar controvérsias. Terceiro, uma sociedade civil ativa e capacitada para lidar com questões digitais é absolutamente essencial para garantir a fiscalização e a pressão social para o avanço contínuo dos parâmetros. Quarto, o papel do jornalismo sério na produção de informação de qualidade e na produção de confiança nas instituições é outro pilar essencial desse combate.

Com o novo governo que inicia agora e a trégua na ameaça anti-democrática que pairava sobre o Brasil, fica o desafio de construir caminhos para a consolidação de um espaço digital saudável, plural e democrático, garantindo direitos e coibindo usos desse espaço para falsear a realidade. Isso implica, certamente, que as questões de gênero e raça precisam ser tratadas como estruturais e transversais aos debates sobre o digital. Mais do que nunca o mundo digital é mais uma vertente muito real das nossas vidas, o que significa que desigualdades históricas da nossa sociedade permeiam o mundo digital e precisam ser tratados como tais.

Além disso, o novo governo deu a entender que vai privilegiar a questão da desinformação e do debate sobre regras para o ambiente digital.55. Liz Nóbrega, “Em discurso de posse, ministro da Secom fala sobre combate à desinformação e liberdade de imprensa.” *desinformante, 4 de janeiro de 2023, acesso em 4 de janeiro de 2023, https://desinformante.com.br/pimenta-posse-ministro-secom/. Isso aponta para uma intensificação do debate sobre regulação de plataformas digitais, o que certamente exigirá uma mobilização grande de quem pesquisa e trabalha com esse tema. A linha fina que separa, de um lado, o combate às fake news, ao discurso de ódio e à desinformação de forma mais ampla e, de outro, a proteção de direitos como o da liberdade de expressão e o da privacidade não é fácil de ser estabelecida, mas tornou-se essencial para qualquer sociedade verdadeiramente democrática.

Por fim, acredito que seja estratégico recentrar o debate: a desinformação é parte essencial, mas parcial do problema. No fundo, o debate que tentamos pautar cotidianamente é aquele de como construir um ambiente digital mais saudável e inclusivo; como construir estruturas e formas de apropriação do digital que nos permitam aprofundar e aprimorar os mecanismos democráticos.

Nina Santos - Brasil

Nina Santos é coordenadora geral do *desinformante, diretora do Aláfia Lab e pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e no Centre d’Analyse et de Recherche Interdisciplinaires sur les Médias (Université Panthéon-Assas). Autora de Social media logics: Visibility and mediation in the 2013 Brazilian protests (Palgrave Macmillan, 2022). Foi pesquisadora visitante no Center for Advanced Internet Research (CAIS - Alemanha, 2020) e no grupo Social Movements in the Global Age, na Université de Louvain-la-Neuve (SMAG - Bélgica, 2018).

Recebido em Dezembro de 2022

Original em português.