Este artigo procura avançar a discussão dos novos problemas de segurança interna e externa da América Latina. A primeira parte analisa o conceito de segurança humana e os principais atores a ele associados. Argumentamos que o conceito de segurança humana, para ter utilidade prática, deve ir além de seus componentes normativos e ser reformulado de modo a permitir seu uso como ferramenta operacional e analítica. O estudo da segurança humana precisa ter um foco mais claro na violência armada, levando em conta também as dimensões institucionais e sociais, sob a perspectiva dos diferentes arranjos no quadro dos problemas de segurança internacional. A segunda parte começa com uma curta revisão de problemas de segurança comuns na América Latina – e da nova situação criada pelas políticas antiterroristas implementadas pelos Estados Unidos. Discutimos também algumas das dificuldades enfrentadas para consolidar uma agenda internacional comum para a América Latina. Na seção final, expomos alguns dos principais temas que poderiam ser focalizados pelos pesquisadores, pela sociedade civil e pelos atores políticos na América Latina.
O conceito de segurança humana foi apresentado pela primeira vez em um relatório do PNUD de 1994, embora as bases para sua formulação estivessem há muito presentes no âmbito das Nações Unidas.1 A Carta da ONU, além de diversos documentos posteriores, menciona a soberania nacional como princípio norteador do sistema internacional, bem como a defesa universal dos direitos humanos, a despeito das fronteiras. Em outras palavras, desde sua origem as Nações Unidas reconhecem duas linhas de valores “absolutos” que o sistema internacional deve proteger: a soberania nacional e os direitos humanos individuais.
Atualmente, a defesa do conceito de segurança humana se baseia em particular na nova constelação internacional de atores políticos, posterior à Guerra Fria – em boa parte pelo fato de que hoje a insegurança física é causada mais por conflitos armados internos do que por guerras entre países. Tais conflitos podem ser guerras civis, ou disputas mais indefinidas entre quadrilhas armadas ou grupos terroristas, às vezes com apoio direto ou indireto de Estados pouco comprometidos com os direitos humanos.
O conceito de segurança humana é inovador em sua ênfase no cumprimento das leis de defesa dos direitos humanos individuais. Considera-se esta a principal tarefa da ordem internacional, mesmo contra a vontade dos Estados, mencionados como uma das principais fontes de insegurança individual. Todavia, como veremos, apesar de estar centrada nos indivíduos, a segurança humana não pode ser dissociada dos quadros institucionais, em especial dos Estados sob os quais os direitos humanos são (ou não) implementados.
A ênfase em uma visão que não tem por foco exclusivo a soberania das nações promove novas formas de multilateralismo e confere papel fundamental aos atores não-governamentais – em especial às ONGs.2
Há diversas concepções de segurança humana na esfera internacional. A versão proposta pela Comissão de Segurança Humana, presidida por Sadako Ogasa e Amartya Sen,3 e patrocinada pelo governo japonês, é por demais ampla e imprecisa (“um mundo livre de necessidades e livre de medo”). Buscando incluir no conceito de desenvolvimento humano do PNUD riscos e ameaças à segurança física e ambiental (epidemias, acesso a atendimento médico, pobreza, suprimento de água, crises de desenvolvimento e econômicas, acesso a armas de fogo, violência física e desastres ecológicos), acaba propondo uma visão holística e difusa do que deveria ser uma política nacional ou internacional de segurança ou insegurança.
Concepções de foco mais definido, em especial as apresentadas pelo governo e por pesquisadores do Canadá, atribuem cinco características à segurança humana:4
1. É um conceito holístico que abrange todas as variadas fontes de insegurança individual, incluindo as associadas à pobreza e à violência física.
2. Concentra-se nos direitos humanos dos indivíduos. Na verdade, enfatiza o papel do governo como fonte de insegurança para seus cidadãos.
3. Valoriza a sociedade civil como ator privilegiado, reduzindo assim, de forma implícita, o papel do governo.
4. Procura ter uma perspectiva global.
5. Justifica a intervenção externa da comunidade internacional em países que estejam atravessando crises humanitárias.
O relatório “Uma doutrina de segurança humana para a Europa”, apresentado recentemente ao encarregado das relações internacionais e da segurança comum da União Européia, expõe uma proposta estratégica mais precisa.5 Focaliza conflitos regionais e Estados falidos, postulando “[…] engajamento preventivo e multilateralismo efetivo” (p. 6). No contexto internacional atual, essa atitude é considerada mais adequada que a política tradicional de contenção, para favorecer a transição democrática. Isso se baseia na constatação de que os conflitos entre Estados diminuíram, enquanto ganharam destaque novos perigos, relacionados “[…] à anarquia, ao empobrecimento, a ideologias exclusivistas e ao emprego diário da violência” (p. 7). Assim, as cinco grandes ameaças à Europa são: “[…] terrorismo, proliferação de armas de destruição em massa, conflitos regionais, Estados falidos e crime organizado” (p. 8). As principais fontes atuais de ameaça ao sistema internacional são os Estados autoritários ou falidos, com políticas repressoras, nos quais grupos armados paralelos (promovidos ou não pelo Estado) praticam o terrorismo internacional. O relatório propõe que se crie uma estrutura jurídica bem definida, para intervenções justificadas. Também preconiza operações de campo, desde que se baseiem nos princípios dos direitos humanos, com autoridade política clara, multilateralismo, abordagem de baixo para cima, foco regional, uso de instrumentos legais e emprego adequado da força.
O conceito de segurança humana surgiu do empenho em definir uma nova doutrina para o sistema internacional, focalizando os direitos humanos e as questões de desenvolvimento. É resultado direto do término da Guerra Fria e do papel organizador que o discurso dos direitos humanos passou a desempenhar nos fóruns internacionais. As Nações Unidas e os pequenos e médios países desenvolvidos comprometidos com a cooperação internacional (como o Canadá e a Noruega, por exemplo) promoveram essa nova agenda a partir de meados da década de 1990. Mais tarde, houve a adesão do Japão e também de outros países europeus.6
Distintos atores e objetivos têm estado por trás da agenda de segurança humana. Para as Nações Unidas, especialmente sob o comando do secretário-geral Kofi Annan, o objetivo era criar um discurso que libertasse a ONU da submissão à soberania nacional como única fonte de legitimidade para a ação internacional. Para os países desenvolvidos de tamanho médio que não pretendem ressaltar seu poder militar, essa doutrina orientaria as relações internacionais e, especialmente, a cooperação internacional. Os países latino-americanos defendem uma concepção específica de segurança humana (segurança multidimensional, similar à noção de segurança humana, mas sem referência a intervenção humanitária externa), como forma de se contrapor à agenda estadunidense de defesa da segurança. Por outro lado, os países africanos consideram que a noção de segurança humana contribuirá para ampliar sua capacidade de negociar apoio internacional. E a União Européia, como já dissemos, vem usando o conceito para nomear sua nova política externa. Por fim, nos últimos anos, o enfoque na segurança humana foi adotado por várias ONGs e, na América Latina, inclusive, como veremos, até por instituições públicas. Para as ONGs internacionais, a perspectiva de segurança humana consolida sua auto-imagem como guardiãs dos direitos humanos além-fronteiras, enquanto as ONGs nacionais e as instituições governamentais dos paises em desenvolvimento tendem a redirecionar o conceito para temas de segurança interna e de ordem pública.7
Enquanto arcabouço conceitual, a idéia de segurança/insegurança é tão genérica que se pode argumentar, como muitos o fazem, que fomentar a insegurança é da natureza da moderna sociedade capitalista – que certos autores definem como “sociedade de risco”. Na bibliografia das relações internacionais, as maiores críticas ao conceito de segurança humana são as seguintes:8
• Não contém uma visão do poder ou das instituições políticas requeridas para garantir a efetiva implementação dos direitos humanos – que em certas situações inclusive exige o uso do sistema repressivo.
• Dilui os problemas específicos da luta contra a violência física numa agenda que, no final das contas, inclui todas as possíveis fontes de insegurança, confundindo diferentes fatores causais.
• Reduz a capacidade operacional dos agentes, ao incorporar distintos problemas sociais. Em sociedades complexas, as áreas abrangidas pela agenda de segurança humana são distribuídas em diferentes subsistemas, com relativa autonomia operacional e responsabilidades variadas (forças armadas, saúde pública, políticas sociais e políticas ambientais). Enquanto conceito holístico que não é traduzido em termos operacionais analíticos, essa noção de segurança humana não consegue definir prioridades nem distribuir responsabilidades.
• Leva a uma visão estreita e reducionista do Estado (na verdade, a segurança individual sempre esteve presente no Estado moderno) e superestima o papel da sociedade civil. Perde de vista o fato de que a segurança pública e a proteção aos cidadãos não podem ocorrer sem instituições sólidas que garantam a ordem pública e o provimento da justiça.
Na América Latina, a maioria das ONGs de direitos humanos, bem como a comunidade acadêmica, têm se mostrado críticas ao conceito de segurança humana. Para entender essa postura é preciso remontar ao passado recente, quando as ditaduras militares do continente recorreram a uma abrangente doutrina de “segurança nacional” para subordinar vários aspectos da vida social à luta contra o comunismo e à “defesa nacional”. De acordo com essa doutrina, as forças de segurança, inclusive a polícia, ficavam sob controle das forças armadas. No processo de democratização, um importante objetivo consistia em limitar a autonomia e controlar as forças armadas, cuja competência foi se restringindo, nas novas constituições, à defesa do território nacional contra inimigos externos – apartando-as do controle da segurança interna.
Nesse contexto, uma perspectiva de segurança humana é vista como tentativa de voltar a subordinar a vida social à doutrina de “segurança nacional”, transferindo os problemas sociais para a esfera da segurança. (De forma paradoxal, quando se introduziu o conceito de segurança humana, a intenção era, bem ao contrário, expandir a contribuição dos problemas de segurança para pôr em foco suas inter-relações com problemas sociais mais amplos.)
Além disso, o conceito de segurança humana provoca certo mal-estar nos círculos intelectuais e também nas forças armadas, na medida em que foi desenvolvido em oposição a uma visão de relações internacionais baseadas na soberania nacional. A política externa dos países latino-americanos no século 20 estava centrada na valorização da soberania nacional, o que é compreensível diante do latente receio de uma invasão estadunidense. Apesar dessa atitude crítica, acreditamos ser possível continuar a desenvolver o conceito de segurança humana na região. Afinal de contas, é a única base conceitual em que se pode aplicar uma visão multilateral de respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento social nas relações internacionais. No entanto, acreditamos que também é necessário definir um foco de análise mais preciso.
Pode-se considerar que o conceito de segurança humana encerra sentidos distintos, embora não contraditórios. Também são diferentes os atores que o põem em prática, e as formas de fazê-lo. Uma das definições, de fundamento normativo, estabelece um horizonte moral que assegura todos os direitos humanos nas relações internacionais e nas sociedades. Outra perspectiva considera a segurança humana mais como campo semântico do que como uma série de princípios normativos, ou como ferramenta conceitual. Sob esse ponto de vista, a segurança humana é entendida como uma vaga estrutura conceitual que cria uma base comum para o diálogo entre diferentes atores, em busca de uma agenda de segurança internacional que priorize os problemas de desenvolvimento e de implementação dos direitos humanos. Examinaremos aqui uma terceira leitura, que procura transformar a segurança humana em um conceito relevante do ponto de vista operacional e útil como ferramenta analítica para os cientistas sociais. Nessa linha, um conceito de segurança humana operacional e analiticamente pertinente deverá levar em consideração as seguintes questões:
• Focalizar de modo mais preciso a idéia de “insegurança”. No cerne do conceito de segurança humana está a proteção contra a violência armada ou descontrolada que constituem ameaças para: (1) a estabilidade das instituições democráticas da região e (2) a segurança física da população; além disso, (3) são capazes de gerar uma reação da comunidade internacional (por exemplo, no caso de genocídio ou de treinamento de terroristas). Assim, as crises humanitárias relacionadas à fome, às epidemias ou aos desastres naturais ou ecológicos não estão incluídas num conceito mais estrito de segurança humana.
• Referir-se ao quadro institucional e social que pode garantir, ou não, a segurança humana. Com efeito, o quadro institucional está no cerne das diferentes políticas orientadas por uma análise da segurança humana. A maioria dos episódios de intervenção humanitária ou internacional diz respeito a Estados falidos, ou a países que passam por crises humanitárias. Superestimar a capacidade de as ONGs e a sociedade civil em geral resolverem os problemas de segurança é uma atitude irrealista, ineficiente e escapista, que não atende à necessidade de fortalecer as instituições do Estado democrático. Não existe segurança humana individual se o Estado não dispuser de estruturas políticas e administrativas capazes de assegurá-la.
• Estabelecer uma relação entre os problemas de segurança e os de desenvolvimento, mas sem reduzi-los um ao outro. Uma agenda de segurança insensível a questões de desigualdade global e nacional – epidemias, degradação do meio ambiente, frustração das expectativas e pobreza relativa – estará condenada a travar uma guerra contra os sintomas. A agenda de desenvolvimento não pode reduzir as questões de segurança a um epifenômeno – que não requer tratamento específico, investimentos e preparo institucional.
Do ponto de vista latino-americano, a segurança humana deveria:
• Não fundir problemas sociais diferentes – embora eles se inter-relacionem, cada um tem sua própria dinâmica e requer políticas e instituições específicas. Reconhecer as inter-relações de problemas como violência e pobreza não implica uma visão reducionista das questões sociais e/ou de segurança. Conforme as pesquisas sociológicas demonstram, não são necessariamente os setores mais pobres da população urbana que se envolvem em crimes; e a violência armada, uma vez consolidada, tem uma dinâmica até certo ponto autônoma. Muitos problemas arrolados na agenda multidimensional estão associados de modo intrínseco à política interna. Não podemos nos esquecer, por exemplo, de que a pobreza na América Latina é mantida, acima de tudo, por desigualdades sociais, corrupção e políticas sociais ineficientes.
• Desenvolver uma visão que focalize em particular a construção das instituições estatais, incluindo a participação da sociedade civil, mas que tenha por objetivo principal a garantia do funcionamento de um Estado de Direito. A pesquisa e a ação orientadas pela segurança humana deveriam se concentrar na insegurança resultante da violência armada, levando em conta o respeito aos direitos humanos e abrangendo o contexto social que dá origem a essa violência. Assim, a prevenção e a repressão da violência devem atuar sobre suas causas imediatas e também sobre os contextos sociais – especialmente sobre os grupos sociais mais passíveis de se tornar vítimas ou agentes de violência armada e crime, geralmente os jovens dos grandes centros urbanos.
• Focalizar os problemas de segurança sob uma ótica multilateral e multissetorial, permitindo que os diferentes participantes (instituições públicas, ONGs, associações comunitárias e empresariais, entre outros) discutam e proponham novas políticas e abordagens.
• Reconhecer que em situações concretas podem existir tensões entre uma visão universalista dos direitos humanos (ou da defesa da ecologia) e o reconhecimento da soberania como um dos pilares do sistema internacional. Embora os casos extremos possam ser arbitrados por tribunais internacionais, muitas situações têm um caráter tão ambíguo que requerem um espírito aberto e disposição para o diálogo, tendo com ponto de partida o respeito pela soberania nacional. Em nível local, é importante aumentar a interação entre as instituições responsáveis pela defesa nacional e a segurança pública e as ONGs que lutam pelos direitos humanos, caso contrário a desconfiança e a recriminação mútua constituirão um impedimento para o avanço de uma agenda mais democrática.
• Inserir-se no debate global sobre segurança numa perspectiva de geometria variável. Isso significa salientar que os conceitos e agendas globais só têm sentido se reconhecerem as especificidades das condições locais, e apenas são relevantes na medida em que forem úteis para análises comparativas. Além disso, eles deveriam incluir diferentes variações e tipologias, sem tentar constituir simplificações muito abrangentes, no estilo proposto pelos órgãos internacionais e pelo governo dos Estados Unidos. Na América Latina em particular, onde os países não são grandes atores em termos de ajuda militar ou humanitária, nem existem casos de Estados autoritários nem em colapso (exceto o caso do Haiti), o foco da segurança humana deveria priorizar os problemas internos de ordem pública que possam ter conseqüências internacionais. A mesma abordagem de geometria variável deve ser aplicada internamente na América Latina, onde a busca de um denominador comum gerou propostas muito gerais e não-operacionais. Acordos sub-regionais e bilaterais fornecem bases mais realistas para promover uma agenda comum de segurança. Uma agenda de segurança humana deve partir do local para o global, ao contrário da tendência atual de desenvolver conceitos globais e aplicá-los a situações nacionais.
A violência urbana vem dominando as grandes cidades da América Latina. E cada vez mais se vincula ao tráfico internacional de drogas, ao comércio de armas e à lavagem de dinheiro, atividades que não respeitam fronteiras nacionais e cujo combate requer um esforço multilateral dos países da região. Os focos de guerrilha, primeiro na América Central e agora na Colômbia, deram origem ao problema dos refugiados e geraram tensão nas fronteiras. Embora a presença de grupos terroristas internacionais não seja generalizada, ela tem (ou teve) certa relevância na região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Os conflitos armados entre países não são um tema significativo na América Latina atual, mas o impacto da violência e da política, sob a influência da produção de drogas e do crime organizado (e da guerrilha, na Colômbia), pode gerar conflitos entre países e criar zonas de atrito, como na referida fronteira tríplice, e em particular na região amazônica. Talvez o mais importante seja o risco do advento de um governo que, eleito pela via democrática, caia na esfera da doutrina Bush de “Estados falidos” ou “adeptos do terrorismo”. Assim sendo, as relações entre problemas de segurança internos e externos podem resultar tanto em Estados falidos como na destruição dos esforços de consolidação dos Estados da região.
A América Latina é a região do mundo com a mais baixa incidência de conflitos armados entre países, e a que registra os menores gastos militares em relação ao PNB. Na região, apesar de certas áreas de tensão, as fronteiras estão consolidadas, e praticamente inexistem conflitos religiosos e ódios raciais intensos. Trata-se da única região do mundo em que todos os países aderiram a um tratado contra armas nucleares.
A década de 1990, período que poderíamos chamar de “globalização azul”, foi uma fase de consolidação democrática no continente. A agenda do sistema internacional em geral, e das relações dos Estados Unidos com a América Latina em particular, estava dominada por temas econômicos e pela expectativa de que a globalização, assim como as formas de regulação econômica, gerassem um sistema de governança política internacional baseado no multilateralismo. Com o novo milênio, os ventos mudaram rapidamente de direção. A globalização econômica não trouxe benefícios para boa parte da população dos países latino-americanos nessa nova era de “globalização cinza”.
A administração Bush adotou uma postura mais reservada em sua política externa diante dos acordos institucionais e dos tratados supranacionais. Logo após os eventos de 11 de setembro, os Estados Unidos redefiniram sua posição estratégica, optando por um vigoroso unilateralismo, e sua política externa se concentrou, com exclusividade, na luta contra o “terrorismo”. Na verdade, o termo “terrorismo” passou a ser aplicado, na prática, a todas as organizações consideradas inimigas pelo governo estadunidense, em muitos casos sem o menor vínculo com o terrorismo internacional.9 A luta contra o “terrorismo” e as conseqüentes intervenções dos Estados Unidos tiveram por pretexto a defesa dos direitos humanos. Isso gerou dúvidas nos ativistas internacionalistas quanto ao direito de intervenção externa em nome dos direitos humanos.
O governo Bush reproduziu a mesma polarização, com o conseqüente alinhamento automático à política externa, existente na época do comunismo. O novo cenário internacional e seus desafios não se encaixam na doutrina Bush. Mas também é impossível ignorar as mudanças na ordem internacional provocadas pelos acontecimentos de 11 de setembro, e como a luta contra o terrorismo está mudando as estratégias de segurança internacional. A questão, portanto não é negar o problema, mas participar de forma ativa e autônoma da identificação das ameaças e das diferentes formas de enfrentá-las.
No novo contexto de militarização das relações internacionais, todos esses fatores levaram os Estados Unidos a excluir a América Latina de seu sistema de prioridades. Apesar do empenho do governo dos Estados Unidos em polarizar o mundo em torno desse problema, a luta contra o terrorismo não é entendida como uma questão de prioridade de segurança na região. Na América Latina, o combate ao terrorismo não ocupa o espaço deixado pela luta contra o comunismo, que contava com o apoio da maioria dos grupos dominantes, das classes médias e das forças armadas.
A região tem suas próprias debilidades na arena internacional. Nas últimas décadas, os países latino-americanos não conseguiram desenvolver uma visão compartilhada de seus problemas de segurança, nem uma agenda concreta de atuação. Tanto quanto a Europa ou o Japão, os países da América Latina integram o cenário internacional se beneficiando do esforço de regulação do sistema internacional por parte dos Estados Unidos, que por sua vez impõem suas prioridades e interesses nacionais. Após a luta contra o comunismo, diversos países apresentaram os mais variados pontos de vista e prioridades a propósito da reorganização do sistema institucional interamericano e da definição das prioridades de segurança na região. Mas os Estados Unidos são o único país do continente com uma proposta para a segurança do hemisfério, enquanto os países latino-americanos tendem a privilegiar perspectivas e interesses locais e uma atitude defensiva.
Sem dúvida, a década de 1990 trouxe para a região algumas novidades e avanços, entre eles o reconhecimento da ordem democrática como fator crucial para a manutenção da paz. Outro elemento novo foram os acordos sub-regionais (Mercosul, América Central e o esforço de revitalização da Área Andina), com conseqüências político-institucionais positivas para a consolidação democrática. Ainda assim, o princípio comum da política externa da América Latina continua a girar em torno da não-intervenção, e do esforço para solapar ou limitar a capacidade de os Estados Unidos imporem sua agenda aos países da região.10 Diante da tendência estadunidense de “securitizar” a agenda internacional, os latino-americanos enfatizaram o caráter multidimensional da agenda de segurança do hemisfério, priorizando os problemas relacionados a pobreza, saúde, meio ambiente e desenvolvimento econômico.
À época da luta contra o comunismo, os aparatos de segurança se tornaram autônomos – em especial as forças armadas, cujas doutrinas de defesa e ordem pública estavam centradas no conceito de “segurança nacional”. Elas se apresentavam como representantes ou defensoras do interesse nacional na luta contra o inimigo interno – o comunismo – e o inimigo externo – os países vizinhos. Com o fim do comunismo, o inimigo histórico desapareceu e os processos de democratização (com governos civis voltados para os problemas internos e sociais) reduziram as tensões entre as nações.11
Nos últimos anos, houve importantes progressos no desenvolvimento da confiança e da colaboração entre forças armadas tradicionalmente rivais (em especial entre Chile e Argentina, ou Brasil e Argentina). No entanto, as forças armadas da América Latina continuam a ser, em larga medida, refratárias aos processos de democratização (no sentido de se abrirem ao debate público e redefinirem sua doutrina, que continua a se basear no conceito de “segurança nacional”). Assim, há um descompasso entre a doutrina militar e o discurso político dominante, que privilegia a democracia e os direitos humanos. Nos países da América Latina, isso se reflete até no reduzido número de centros de pesquisa acadêmica e organizações da sociedade civil que se dedicam a monitorar e dialogar com as forças armadas e a polícia.
A doutrina Bush de “guerra contra o terror” pode ter impacto considerável sobre os sistemas de segurança da América Latina, e a potencial capacidade de galvanizar e polarizar a política latino-americana de forma maniqueísta. Talvez uma das piores conseqüências da atual “doutrina antiterror” seja que muitos políticos e intelectuais latino-americanos podem ganhar respeito e popularidade pelo simples fato de criticarem a posição do governo dos Estados Unidos. Isso lhes permite se furtar à análise e ao combate dos verdadeiros problemas de segurança, incluindo o desenvolvimento de uma doutrina de segurança efetiva, capaz de fazer frente à agenda “antiterror” estadunidense.
Na época da luta contra o comunismo, a política externa dos Estados Unidos contou com um importante apoio de setores sociais e políticos da América Latina, onde o comunismo era visto como inimigo comum. Mas a luta contra o terrorismo não mobiliza o apoio local, uma vez que nenhum grupo social latino-americano dá prioridade a esse embate. Além disso, em particular no Brasil, os Estados Unidos se tornaram a principal fonte de preocupação para as forças armadas, devido a sua presença na Colômbia e ao temor de uma conspiração para internacionalizar a região amazônica. Nesse contexto, o uso de slogans contra os EUA, que talvez seja uma maneira fácil de obter apoio público, pode se tornar uma fonte de tensão internacional.
A fácil retórica contra os Estados Unidos é um dos obstáculos à formulação de uma agenda de segurança para a América Latina. Em alguns casos, como na Colômbia – que muitos latino-americanos consideram “contaminada” pela forte presença estadunidense –, ela diminui a capacidade de analisar e propor uma agenda alternativa, não-reativa. Todavia, há mais questões específicas em jogo.
Por tradição, as relações internacionais não constituíam um campo de pesquisa fundamental para a maioria dos principais cientistas sociais da América Latina. Embora existam importantes grupos de pesquisadores nessa área, eles em geral adotam uma abordagem mais tradicional, direcionada para as relações internacionais e o comércio internacional. Ao mesmo tempo, cientistas sociais e ONGs da América Latina desenvolveram, nas últimas décadas, pesquisas e propostas práticas referentes a problemas de violência e segurança pública, focalizando em particular a violência como um problema interno. É evidente a necessidade de mais pesquisas e discussões, entre os especialistas, sobre as conexões internas/externas entre violência, segurança e relações internacionais.
A partir da década de 1980, houve uma tendência entre os cientistas sociais da região a se concentrar mais em seus próprios países, deixando de lado os estudos comparativos latino-americanos. Isso resultou da derrota da esquerda, que tinha uma perspectiva regional. Reflete também a especificidade das novas realidades democráticas e sua internacionalização, estreitando seus vínculos com instituições universitárias dos países desenvolvidos. A maioria das ONGs com foco concentrado na América Latina não possui uma capacidade sólida para desenvolver pesquisas.
Até agora, os países latino-americanos tentaram se contrapor às doutrinas antiterroristas dos Estados Unidos com um conceito de “segurança muldimensional”, muito próximo ao de segurança humana, exceto por não incluir a idéia de intervenção humanitária. O conceito de segurança multidimensional considera como fontes de insegurança problemas relacionados com tráfico de armas e de drogas, terrorismo, saúde, pobreza, crises econômicas e ambientais, entre outros. Com certeza não se trata de uma proposta para uma doutrina efetiva de política externa, e não se refere à possibilidade de intervenção humanitária. Mas de fato contrabalança a política externa dos Estados Unidos, ao relativizar e diluir sua ênfase na defesa.
Embora nos últimos anos um número cada vez maior de ONGs latino-americanas tenha começado a se preocupar com problemas de segurança, muitas das que trabalham com direitos humanos têm dificuldade em propor uma agenda afirmativa no que diz respeito a essas questões. Isso se deve, em parte, ao fato de que qualquer proposta operacional precisa lidar com o uso efetivo de meios repressivos. Criou-se igualmente uma falsa dicotomia entre eficiência e transparência. A experiência demonstra que a eficiência está relacionada à transparência, mas também que a ênfase na transparência não deve ser dissociada de uma clara compreensão das especificidades operacionais e das necessidades do sistema de segurança.
Diante dessa realidade, surge a seguinte questão: no contexto atual, será necessário, ou mesmo possível, tentar apresentar uma agenda latino-americana proativa, que busque enfrentar os problemas de segurança regional, e aumentar a autonomia da região no cenário internacional? Acredito que a resposta a ambas as partes da questão é “sim”. O princípio de não-intervenção e de oposição à agenda dos EUA não basta para enfrentar os desafios existentes. Em primeiro lugar, embora até certo ponto seja possível procurar neutralizar a agenda estadunidense, ela não pode ser totalmente controlada. Dado o peso político, militar e econômico do país, ela só pode ser confrontada por outra agenda que permita negociações efetivas. Isso quer dizer que o multilateralismo, em nível regional, só pode ser construído a partir de uma agenda que leve em conta e negocie os problemas (mesmo sem concordar com o diagnóstico ou as soluções) levantados pela política externa dos Estados Unidos. Para a maioria dos países da região, os problemas mais relevantes de segurança são: a realidade das novas formas de crime organizado e terrorismo, que diluem a distinção entre o espaço interno e externo; o surgimento de zonas fronteiriças problemáticas no que diz respeito a drogas, criminalidade, guerrilhas e terrorismo; e o estabelecimento de espaços territoriais, inclusive em áreas urbanas, sobre os quais o Estado perdeu o controle efetivo. Tais questões exigem novos arranjos bilaterais, sub-regionais e regionais, e estratégias que definam um novo papel para as forças armadas e para o sistema hemisférico de segurança.
Pesquisas aplicadas e uma agenda prática deverão enfrentar os problemas a seguir:
A América Latina precisa enfrentar as novas ameaças internas e externas com uma estratégia que fortaleça as instituições democráticas em geral, e o sistema de implementação das leis em particular. Precisamos aprofundar a discussão sobre soberania nacional, reconhecendo que a posição tradicional, baseada numa perspectiva estreita de soberania, já não é viável (e provavelmente nunca foi). Há um consenso crescente quanto ao fato de que os problemas de segurança no mundo de hoje vão além dos limites das fronteiras nacionais e da capacidade individual de os Estados enfrentarem as ameaças à segurança. Com efeito, nos últimos anos, os países da América Latina desenvolveram uma atitude “intervencionista” quando se trata de preservar as instituições democráticas. Sua tendência geral de pretender preservar a “soberania” é uma atitude legítima, baseada no desejo de criar mecanismos que possam repelir intervenções estadunidenses indesejadas. O desafio agora é propor uma agenda de segurança coletiva que desenvolva mecanismos para compartilhar os sistemas de inteligência e os sistemas operacionais entre os Estados, em particular – mas não exclusivamente – nas regiões de fronteira, mantendo ao mesmo tempo o respeito pela soberania nacional.
Novas formas de violência organizada, que diluem as fronteiras entre defesa nacional e segurança pública interna, exigem a redefinição do papel das forças armadas e da polícia, e a crescente cooperação entre ambas. Essa necessidade enfrenta diversas dificuldades. As intervenções militares do período anterior, ainda muito presentes na memória das elites políticas, em particular nos países do Cone Sul, criam uma compreensível preocupação com a autonomia das forças armadas, e uma tendência a querer delimitar seu âmbito de atuação a problemas externos, à margem das questões internas. A experiência histórica do período de luta contra o comunismo também indica que, quando se envolvem diretamente em questões de segurança interna, as forças armadas buscam subordinar as forças policiais e sua cadeia de comando. (Mesmo hoje, a organização hierárquica da principal força policial do Brasil – a polícia militar – segue padrões militares, tendo como mais alto posto a patente de coronel, dependendo assim das forças armadas.) Há ainda uma legítima preocupação em evitar que as forças armadas sejam pervertidas e corrompidas pelos consideráveis recursos financeiros do crime organizado.
Apesar disso, há uma demanda crescente pela integração das forças armadas com a polícia, pois a interligação dos problemas internos e externos cria nas fronteiras zonas cruciais na ação contra o crime organizado – e algumas áreas fronteiriças são “colonizadas” por grupos marginais. Que mudanças são necessárias na doutrina e no comando das forças armadas para que se incorporem aos esforços de reprimir novas formas de violência sem se sobrepor às forças de segurança pública? E como é possível, ao mesmo tempo, intensificar o controle público das forças armadas para que elas não ultrapassem as fronteiras políticas? Será possível integrar a polícia e seus serviços de inteligência com o aparato das forças armadas, preservando a autonomia de ambas? Como desenvolver ações de cooperação regional e sub-regional entre a polícia e as forças armadas? Como garantir mecanismos de controle das fronteiras compartilhados entre Estados? Como lidar com a questão das regiões “problemáticas”, sem invadir a soberania nacional de cada país? Como adaptar e multiplicar as melhores realizações e experiências da região – a reconstrução das forças de segurança da América Central após os conflitos; a reforma da polícia em cidades latino-americanas, como Bogotá e Cidade do México; e projetos com grupos de risco similares aos desenvolvidos nas favelas pela ONG Viva Rio, no Brasil? Estas questões prementes vão exigir esforços conjuntos e reações coordenadas por parte dos países latino-americanos, à luz das novas tendências em matéria de segurança descritas até aqui.
Visto que a agenda de pesquisa latino-americana sobre relações internacionais e problemas e políticas de segurança é, em grande medida, defensiva, diferentes agentes (entre os quais cientistas sociais, ONGs e governos) tendem a evitar discutir os conceitos que informam o atual debate internacional sustentado não apenas pelos Estados Unidos, mas também por organizações européias e internacionais.
Faz-se necessário um debate local para aprofundar as concepções regionais a respeito das drogas e do terrorismo. A atual doutrina de segurança dos Estados Unidos – que não distingue terrorismo de qualquer ato “antiamericano”, incluindo produção e tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, violência de grupos políticos e de guerrilhas – confunde e mistura problemas variados, que na verdade exigem soluções específicas. Diferentes tipos de violência ocorrem em diferentes circunstânciassociais e exigem soluções distintas. Embora reconheçamos que alguns grupos políticos ou criminosos podem se vincular a redes terroristas internacionais, isso não significa que devam ser enfrentados com o mesmo aparato operacional.
Na América Latina, a maioria dos problemas de violência capazes de desestabilizar as instituições do Estado se vincula ao comércio de drogas – que proporciona os recursos econômicos em escala relevante. O tráfico de drogas está no centro das conexões de segurança interna e externa, com potencial de desestabilizar a segurança do continente. As soluções devem se reportar tanto ao contexto social, como a uma agenda ativa de reforma da segurança pública e reforma do judiciário.
Precisamos substituir o conceito de terrorismo do governo dos Estados Unidos por uma tipologia mais precisa e útil das formas de violência e suas fontes – sem negar, quando for o caso, as potenciais conexões com o terrorismo internacional. O próprio estudo das várias formas de violência exige mais pesquisa. A idéia de que a violência (e mesmo o terrorismo) está relacionada à extrema pobreza é errada, tanto do ponto de vista moral como empírico. Muitas pessoas e organizações bem-intencionadas estabelecem a relação entre violência e pobreza como forma de justificar mais investimento social. Mas isso estigmatiza os pobres e não se fundamenta em fatos empíricos: um recente estudo do movimento Viva Rio12 sobre a violência armada, em âmbito nacional, indica que os setores mais pobres da sociedade não são os mais envolvidos em atividades criminosas violentas. É natural que ambientes de carência e exclusão social criem frustração e, com isso, uma base social para o recrutamento para o crime e o envolvimento com ele. Todavia, é indispensável realizar mais pesquisas empíricas para identificar os grupos específicos sob maior risco de engajamento com a violência armada e desenvolver políticas que aumentem suas chances de inserção social.
A questão dos “Estados falidos”, conceito que se tornou comum na arena internacional, não foi até agora objeto de ampla discussão entre os cientistas sociais latino-americanos, que tendem a reagir (às vezes, de forma exaltada) a essa idéia, temendo que abra caminho para a intervenção estrangeira. Utilizam como principal argumento a demonstração histórica de que quase todos os Estados latino-americanos, apesar das crises e insurreições, estão solidamente estabelecidos. Por bem-fundamentado que seja, esse argumento não garante resultados futuros, nem enfrenta a questão de que a deterioração do sistema institucional em alguns países pode gerar situações políticas passíveis de desencadear reações (talvez até superdimensionadas) dos próprios Estados Unidos, desestabilizando nações e criando Estados falidos.
O problema dos Estados falidos, ou em colapso, não pode ser dissociado dos problemas de desenvolvimento e das políticas econômicas.13 Ao mesmo tempo, resulta de conseqüências mais complexas da globalização: democratização das expectativas, novas identidades coletivas e esfacelamento dos sistemas tradicionais de poder e autoridade.
Uma das fontes da estabilidade dos Estados latino-americanos é a relativa estabilidade das identidades nacionais e a ausência de conflitos religiosos e de separatismo étnico. No entanto, este último fator talvez não permaneça como regra em alguns países andinos, nos quais as reivindicações étnicas se mesclam por vezes a interesses da produção de drogas, embora não se reduzam a isso, e possam levar a situações de fragmentação nacional. Por sua vez, a democratização cultural e política – com a derrocada dos laços clientelistas, a urbanização, a individualização e o progresso dos valores igualitários – diminuíram a tolerância para com a corrupção dos governos, produzindo paradoxalmente uma crescente desconfiança das instituições democráticas e a abertura para líderes populistas.
Os pesquisadores latino-americanos poderiam contribuir com mais nuances para o conceito de “Estados falidos”, não focalizando apenas os processos pelos quais os Estados começam a decair, mas procurando localizar onde e como eles encontram recursos para manter sua estabilidade. No nível da pesquisa social, a América Latina tem uma sólida tradição de análise da construção do Estado nacional levando em consideração contextos institucionais e sociais, e evitando, assim, a excessiva simplificação da análise dos contextos internos, tão comum na literatura sobre as relações internacionais.
Houve um período, há alguns anos, em que os organismos internacionais apoiavam ativamente a reforma dos sistemas judiciários latino-americanos. Na época, desenvolveu-se um bom volume de pesquisas sobre o assunto. A “moda” parece ter passado, e o progresso nesse campo começou a perder impulso. Muitos desses estudos não incorporaram a análise do funcionamento das forças de segurança e das complexas relações entre o sistema de segurança, o judiciário e a desigualdade social, que alimentam um circulo vicioso. Balanços periódicos das diversas experiências latino-americanas de reforma da polícia e do judiciário poderão contribuir para assegurar um sistema jurídico efetivo e eficaz, direcionado para a garantia dos direitos humanos e a consolidação do regime democrático.
Na última década, a diplomacia latino-americana fez importantes conquistas, em especial na América Central. Contudo, ainda são poucos os centros de pesquisa e as ONGs dedicados ao tema de mediação de conflitos e sua aplicação sobre problemas de segurança pública. O mesmo acontece com os sistemas de monitoramento capazes de relacionar conflitos internos e violência com seu impacto nas instituições democráticas, e seus efeitos em nível internacional. Será preciso superar a tradição, ainda presente nas ciências sociais – e de maneira esmagadora nas ONGs –, de confundir análise com denúncia de práticas abusivas, e entendimento analítico com posicionamento normativo.
A reforma do setor de segurança precisará se apoiar com firmeza no debate público e nas propostas da sociedade civil. Mas deve-se também reconhecer que a sociedade civil não está acima de qualquer crítica. Muitas de suas instituições têm mostrado uma atitude defensiva baseada na afirmação de princípios abstratos; ao mesmo tempo, adotam uma atitude de oposição e confronto a medidas de governos legitimamente constituídos, sem oferecer propostas alternativas e soluções práticas. Dessa forma, não somente se indispõem em relação aos órgãos governamentais, como se distanciam das expectativas da maioria da população, que se sente insegura e espera propostas práticas. As ONGs não podem simplesmente denunciar as práticas do Estado; elas devem procurar colaborar com os governos na democratização das instituições públicas e do setor de segurança, por meio do diálogo e de parcerias.
Há algumas questões-chave para aqueles que trabalham com segurança humana na região. Como criar um diálogo entre o governo e a sociedade civil em torno das questões de segurança? Como expandir a quantidade e a qualidade do trabalho das organizações não-governamentais no sentido de reduzir a violência e reformar os setores de segurança? Como divulgar as experiências e promover intercâmbios, criando um fórum de organizações regionais atuando no mesmo campo?
As questões fronteiriças e as regiões problemáticas integram outro campo carente de sólidas pesquisas. O contrabando de armas não pode ser dissociado daquele que é feito em pequena escala (principalmente na região de tríplice fronteira, onde a cada dia milhares de pessoas contrabandeiam mercadorias, do Paraguai para o Brasil e para a Argentina), configurando o principal fator de corrupção dos funcionários aduaneiros. Alguns autores acreditam que certas regiões, em particular a Amazônia, se tornaram espaços privilegiados para o tráfico de armas e drogas, bem como para a ação de grupos armados. A preocupação legítima com a soberania do Estado – de modo especial do Brasil em relação à Amazônia – cria barreiras para o desenvolvimento de estratégias de segurança coletiva e mecanismos multilaterais. Serão necessários mais esforços para aperfeiçoar o controle alfandegário e aprofundar o diálogo de pesquisadores e ONGs dedicados a questões de segurança, regiões fronteiriças e direitos humanos com a polícia e as forças armadas.
1. Sobre a história do conceito de segurança humana, ver Charles Philippe David & Jean-François Rioux, “Le concept de Securité Humaine”, in Jean-François Rioux (ed.), La Sécurité Humaine (Paris: L´Harmattan, 2001).
2. Sobre as novas formas de multilateralismo, ver o excelente artigo de Shepard Forman, New Coalitions for Global Governance: The Changing Dynamics of Multilateralism (Center of International Cooperation, 2004).
3. Disponível em http://www.humansecurity-chs.org/finalreport/index.html. Acesso em 21 out. 2005.
4. Para uma apresentação atualizada do conceito canadense de segurança humana e seu papel em relações exteriores, ver: Ernie Regehr & Peter Whelan, Reshaping the Security Envelope: Defense Policy in a Human Security Context (Ploughshares Working Papers, 4-4, 2004). Mais informações sobre segurança humana em geral, e a concepção canadense em particular, em www.humansecuritygateway.com. Acesso em 21 out. 2005.
5. Relatório do grupo de estudos sobre as potencialidades de segurança da Europa, apresentado ao alto representante para Política Comum e Segurança, Javier Solana (Barcelona, 15 set. 2004). Embora com foco mais preciso, o relatório não deixa claro o que se deveria incluir no conceito de insegurança. Na página 8 há uma referência a alimentação, habitação e saúde como possíveis candidatos à inclusão na definição de segurança humana, embora se afirme que “têm status legal menos elevado”.
6. Um grupo heterogêneo de países – Áustria, Canadá, Chile, Eslovênia, Grécia, Holanda, Mali, Noruega, Suíça e Tailândia (e a África do Sul como membro observador) – formou em 2000 a Human Security Network, que até hoje não teve grande impacto no cenário internacional.
7. Por exemplo, o site da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Brasil, http://www.segurancahumana.org.br/home.htm. Acesso em 21 out. 2005.
8. Mais contribuições ao tema podem ser encontradas em J.-F. Rioux, op. cit.
9. Na exposição “Os traficantes de drogas, os terroristas e você”, recentemente organizada em Nova York pelo museu DEA (Drug Enforcement Administration), o conceito de terrorismo é tão amplo que inclui até o assassinato de um oficial estadunidense por um guerrilheiro, em 1969. O material exibido incluía cartazes contra o tabagismo…
10. A Resolução da Conferência de Segurança do Hemisfério (27 e 28 out. 2003) no México, reflete claramente esses impasses.
11. Hoje persistem apenas alguns casos de “animosidade” histórica (por exemplo entre o Chile e a Bolívia), mas na prática está excluída a hipótese de guerra.
12. Ver www.vivario.org.br. Acesso em 2 nov. 2005.
13. Ver, sobre o assunto, Susan L. Woodward, “The State Failure Agenda: From Sovereignty to Development”, ms., 2004.