Face ao acesso cada vez mais difícil aos financiamentos, como sua organização pode se adaptar e construir maior resiliência e solidez financeira
Baseando-se em sua experiência de trabalho com grandes organizações da sociedade civil (OSC), bem como na sua atual função de consultora internacional para o setor para auxiliar OSC a se tornarem financeiramente resilientes, Ellen Sprenger discute as principais tendências que afetam as organizações de direitos das mulheres no Sul global. Ao fazê-lo, ela descreve como essas organizações podem captar recursos de fontes diversas de maneira mais eficaz, como responder à incerteza financeira e como essas organizações podem impactar mais diretamente as estratégias de financiadores.
Embora haja crescente atenção ao avanço dos direitos das mulheres e à justiça de gênero entre os financiadores em nível global, isso nem sempre se traduz em financiamento para organizações de defesa dos direitos das mulheres. Pelo fato de estarem envolvidas em alguns dos mais avançados trabalhos de transformação, essas organizações tendem a desafiar o status quo, e é preciso um tipo especial de financiador para apoiar esse trabalho. Mas há várias outras dinâmicas em jogo.
Ao longo dos últimos dez anos, cerca de 70 países instituíram leis restritivas às organizações da sociedade civil (OSC), e, em um terço dessas nações, foram aprovadas mais restrições ao recebimento de financiamento estrangeiro. O ativismo está sendo criminalizado em um número cada vez maior de países. Isso coloca maior pressão sobre os defensores de direitos humanos e suas necessidades de segurança e de proteção. E, nos chamados países de renda média, os financiadores internacionais reduziram os níveis de financiamento sob o pressuposto de que uma economia em crescimento levará a uma maior igualdade, incluindo a justiça de gênero e os direitos das mulheres, e que os recursos em nível nacional serão suficientes para apoiar esse trabalho. Considero o website da AWID (Associação para os Direitos das Mulheres e o Desenvolvimento) um grande recurso nesse cenário de financiamento em constante mudança, a partir da perspectiva dos direitos humanos das mulheres.
No geral, as organizações de defesa dos direitos das mulheres estão operando em um ambiente de financiamento em que doações externas são cada vez mais difíceis de se obter. Essa alta dependência de um grupo relativamente pequeno de fontes representa um risco significativo. Em resposta, as organizações estão começando a diversificar a renda e a geração de receita em outras fontes além das doações. Há organizações construindo bases de apoio local de doadores individuais na África do Sul, no Brasil, no México e na Índia. E os fundos de mulheres, tais como o Semillas no México e o Elas no Brasil, são verdadeiros pioneiros nesta área. O financiamento coletivo também vem se tornando cada vez mais difundido, bem como as estratégias de engajamento com as empresas. Por exemplo, a recém-criada e importante Win-Win Coalition baseia-se na construção de um envolvimento intersetorial para o avanço dos direitos das mulheres.
Estamos vendo também uma ênfase crescente no desenvolvimento de bens de capital, tais como as reservas organizacionais, imóveis ou terrenos para criar mais estabilidade financeira e outras formas de geração de renda.
Outra tendência é a criação dos chamados modelos híbridos onde há um esbatimento das fronteiras entre “fazer o bem” e “fazer dinheiro”. Isto se reflete em novos termos como “empresa social” e “investimento de impacto”. Embora nem sempre seja possível rentabilizar o trabalho pelos direitos das mulheres, é importante manter a mente aberta. O sucesso neste ambiente requer pensamento estratégico e uma boa dose de criatividade, e eu acredito que seja possível chegar a modelos em que o “social” venha em primeiro lugar e, ao mesmo tempo, fluxos de renda saudáveis sejam gerados. Um número crescente de organizações está estabelecendo uma entidade corporativa junto à sua entidade sem fins lucrativos de origem, para acessar fluxos de receitas comerciais.
Embora as doações de um grupo relativamente pequeno de fundações e governos baseados no Norte Global ainda represente a grande maioria das receitas para as organizações de direitos das mulheres no Sul Global, isso está começando a mudar. Se você quiser construir força financeira de fato, precisa olhar para além das doações.
Sendo criativas! Quando o governo federal da Índia restringiu as regras que regem o acesso ao financiamento estrangeiro, a Fundação Manas viu a oportunidade de iniciar uma parceria público-privada que está fazendo de Nova Déli um lugar mais seguro para as mulheres. Em parceria com o governo municipal de Nova Déli e parceiros corporativos, foram capazes de treinar mais de 200.000 motoristas de auto-rickshaws e motoristas de táxi para a prevenção de assédio sexual e violência contra as mulheres.
O governo municipal de Nova Déli fez dessa formação uma exigência para os motoristas que desejam manter suas licenças, enquanto parceiros corporativos oferecem o financiamento necessário por meio dos seus programas de Responsabilidade Social Corporativa. As partes envolvidas estão aprendendo umas com as outras, e há conversas sobre a expansão do programa para outras áreas urbanas.
Se, por um lado, a mobilização de recursos não é fácil – sendo às vezes francamente frustrante – não é proveitoso enquadrar a relação com os financiadores como “nós” versus “eles”. A realidade é muito mais matizada. Muitos/as líderes de organizações de direitos das mulheres fazem parte do conselho de fundações ou são consultados/as sobre questões de estratégia, e muitos/as pessoas que trabalham em agências de fomento têm suas raízes nos movimentos de direitos das mulheres. Uma transformação real acontece quando líderes das organizações e financiadores se reúnem em torno de um propósito comum e descobrem a melhor forma de canalizar recursos financeiros e poder em prol dos direitos e da justiça.
Um grande exemplo de organização que vem influenciando as políticas e decisões de doadores é a Associação para os Direitos das Mulheres e o Desenvolvimento (AWID). Dando destaque ao pequeno volume de financiamento destinado às organizações e movimentos de defesa dos direitos das mulheres e desenvolvendo estratégias de engajamento com aliados dentro de instituições de financiamento, a AWID foi capaz, na minha estimativa, de alavancar perto de U$ 250 milhões em financiamento para essas organizações ao longo dos últimos dez anos.
Ainda que relacionamentos fortes e mutuamente vantajosos e transformacionais entre organizações da sociedade civil e financiadores nem sempre sejam possíveis, quando eles se materializam, há um fortalecimento do ecossistema mais amplo de avanço dos direitos e da justiça, que pode atingir metas poderosas que estariam fora do alcance de uma única entidade.
Meu envolvimento com movimentos sociais data da minha adolescência na Holanda – mas eu era impaciente e sempre senti que não estávamos progredindo rápido o suficiente. Depois de completar meu mestrado em estudos do desenvolvimento e passar sete anos na Oxfam-Novib, estava ansiosa para saber o que os movimentos sociais poderiam aprender com a ênfase colocada pelo setor empresarial em “fazer as coisas acontecerem”. Então, fiz um mestrado em administração de empresas. Em uma classe com duas mulheres e 50 homens, e eu era a única do setor “sem fins lucrativos”. Me sentia como uma agente secreta e adorava isso.
Na época, no início dos anos 2000, muitas organizações de direitos das mulheres estavam tentando entender melhor as questões relacionadas ao dinheiro. Onde estava o dinheiro, e como poderíamos acessar um maior volume de recursos? Quando me tornei diretora executiva da Mama Cash, uma fundação feminista baseada em Amsterdam para a promoção dos direitos das mulheres em todo o mundo, eu percorri por conta própria a acentuada curva de aprendizagem sobre mobilização de recursos. Aprendi muito com meus colegas estadunidenses, cuja maneira de se relacionar com dinheiro e abordagem para captação de recursos são bastante diferentes da usada por meus pares na Europa. Eles/as me ajudaram a ver o dinheiro não como um meio para um fim, mas como parte integrante e criativa da realização dos direitos e da justiça. Meu foco transferiu-se da captação de recursos para o estabelecimento de relações com doadores e financiadores em torno dos propósitos, paixões e intercâmbio de ideias compartilhadas, conexões e informações.
Aprendi a ver o quão valiosa sou para eles, como fonte de informação, inspiração e conexões. Essa mudança de paradigmas fez com que a captação de recursos se tornasse algo muito menos assustador e intimidador e muito mais interessante. E muito mais bem-sucedida.
Depois de deixar a Mama Cash, iniciei a Spring Strategies para apoiar as organizações na conquista de metas ambiciosas. O nosso trabalho direcionado à resiliência financeira logo se tornou o nosso programa de crescimento mais rápido. Resiliência financeira é um grande problema que tira o sono de muitos/as líderes de organizações sociais.
Nós usamos o termo resiliência para enfatizar a importância de ser proativo e dinâmico em se tratando do cenário de financiamento. Uma vez que esse cenário se encontra em constante mudança e, em muitos locais, está próximo da ruptura, é importante pensar e planejar com antecedência. Considere os governos que restringem a capacidade das organizações de se beneficiarem de doações estrangeiras e a maneira com que a ajuda emergencial tem se atrelado cada vez mais ao comércio. Acreditamos que quem for capaz de encontrar inspiração nesta ruptura será capaz de transformar contextos externos desafiadores em oportunidades reais. E é emocionante ver como as organizações em nível mundial estão respondendo a este desafio por meio da criação de novos modelos de financiamento.
Em primeiro lugar, é importante repensar a relação com os financiadores. Se nos sentimos intimidados ou em desvantagem numa reunião, talvez não sejamos capazes de pedir o que é realmente necessário ou de reagir quando um financiador faz um pedido que nos desfavorece. O resultado final é que as organizações acabam obtendo financiamento para projetos (em vez de financiamento institucional) e têm de lutar para permanecer fiéis à sua missão. Em nosso trabalho com resiliência financeira, mergulhamos fundo em como desenvolver compromissos mais mútuos e transformadores, com espaço real para a exploração de possibilidades, a partilha e a co-criação. É fundamental repensar a maneira como você estrutura a relação com seus financiadores.
Em segundo lugar, precisamos acabar com o “mito dos custos operacionais”. Muitos financiadores acreditam que a diminuição dos custos operacionais seja o melhor cenário, como se as organizações fossem capazes de enfrentar enormes desafios, como violações dos direitos humanos e mudanças climáticas, sem uma infraestrutura organizacional forte, que inclui bons salários, excelente tecnologia, comunicação persuasiva, sistemas financeiros fortes e espaços de trabalho inspiradores. É importante educar os financiadores e negociar subsídios que tornem as organizações mais fortes, em vez de mais fracas. Na Spring Strategies incentivamos as pessoas a usarem o termo “apoio à missão principal”, em vez de “custos operacionais”, a fim de enfatizarmos que estes custos não são um adicional, e sim algo essencial para o sucesso e a capacidade da organização de gerar impacto.
Em terceiro lugar, a diversificação das fontes de financiamento pode ajudar as organizações a enfrentar rupturas. Ainda que as doações estrangeiras continuem a desempenhar um papel importante no financiamento das organizações de direitos das mulheres globalmente, é fundamental olharmos para além deste tipo de financiamento. A inovação é vital, especialmente onde as organizações estão se posicionando para o capital de investimento ou para doações de investimento de impacto ou estão construindo uma base de apoio individual.
Em quarto lugar, as relações são fundamentais. E isso é importante para de fato compreender o financiador e as suas prioridades. Muitos grupos não reservam tempo para entender com quem estão se comunicando e apresentam a mesma proposta-padrão a diferentes financiadores.
Tente abordar o processo de construção de relações em etapas. Comece com um telefonema ou um encontro – se estiver tentando construir um novo relacionamento, faça uma ligação para pessoas de sua rede de contatos pedindo que o/a apresente a um financiador, – e use a oportunidade para explorar e descobrir seus interesses. Explique em termos claros e convincentes por que você faz o trabalho que faz. Seja receptivo às perguntas. Este processo de conhecer um ao outro permite que ambas as partes aprendam coisas novas que podem impactar e fortalecer o trabalho. E, depois dessa reunião, envie um breve resumo do que vocês discutiram e acordaram, esclarecendo parâmetros, antes de sentar para escrever a proposta.
Finalmente, escreva propostas de financiamento de uma forma clara e convincente; inclua uma nota explicativa com um breve resumo. Isto torna mais fácil para os financiadores entenderem o seu trabalho, o que por sua vez aumenta as chances de uma decisão favorável.