Ensaios

Regimes internacionais de direitos humanos

Alejandro Anaya Muñoz

Uma matriz para sua análise e classificação

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RESUMO

Nesse artigo, Anaya apresenta as principais características do regime internacional de direitos humanos. O autor analisa criticamente a origem e as consequências da sua implementação para o comportamento dos Estados. O texto está dividido em seções que incluem a definição do conceito de regime internacional e sua aplicação na área de direitos humanos. Uma apresentação dos regimes específicos e um diálogo crítico com a matriz de Donnally, a proposta de uma versão modificada que permite a exploração, tanto dos seus graus de institucionalidade, assim como do seus desenvolvimento histórico numa perspectiva comparada.

Palavras-Chave

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Em 1945, a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) incluiu a promoção dos direitos como um dos objetivos centrais da nascente organização internacional. Um ano depois, conforme o mandato estabelecido no artigo 68 dessa Carta,11. “Carta da Organização das Nações Unidas,” Organização das Nações Unidas, 24 de outubro de 1945, acesso em 19 jun. 2017, http://www.un.org/en/charter-united-nations/index.html. Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, San Francisco, Califórnia, Estados Unidos da América. o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) criou sua Comissão de Direitos Humanos (Comissão DH) e alguns anos mais tarde, em 1948, a Assembleia Geral adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).22. “Declaração Universal de Direitos Humanos,” Organização das Nações Unidas, 10 de dezembro de 1948, acesso em 19 jun. 2017, http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/. Mediante Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral. Dessa maneira, nasceu o que, do ponto de vista das Relações Internacionais (RI), chamamos de um regime internacional – entendido como um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões estabelecidos pelos Estados para orientar seu comportamento numa área temática em particular.33. Stephen Krasner, “Structural Causes and Regime Consequences: Regimes as Intervening Variables”, em International Regimes, ed. Stephen D. Krasner (Ithaca: Cornell University Press, 1983): 1-21. A partir de então, o regime internacional dos direitos humanos não deixou de desenvolver-se e consolidar-se como um elemento importante dentro da arquitetura institucional internacional.

Da perspectiva da disciplina de RI,44. Relações Internacionais, com maiúscula, entendidas como a disciplina acadêmica que estuda o fenômeno das relações internacionais, com minúscula. Chris Brown, Understanding International Relations (Londres: MacMillan Press, 1997): 3. podemos fazer duas perguntas fundamentais sobre os regimes internacionais: quais são suas causas e quais suas consequências? Isto é, por que os Estados decidiram estabelecê-los e qual foi seu impacto sobre o comportamento dos Estados? As respostas a estas perguntas são particularmente relevantes em relação à área temática dos direitos humanos, na qual se desenvolveu durante as últimas sete décadas um regime internacional cada vez mais complexo e ativo que, não obstante, não parece ter “dentes” suficientes para influir de maneira significativa no comportamento dos Estados.55. Emilie Hafner-Burton, Making Human Rights a Reality (Princeton: Princeton University Press, 2013). Nessa perspectiva, a pergunta que se coloca neste artigo é: quais são as principais características do regime internacional de direitos humanos e como se ele se desenvolveu ao longo do tempo? Para isso, recupera-se criticamente e “afina-se” um esquema analítico proposto por Jack Donnelly há trinta anos para abordarmos de maneira sistemática a análise do regime internacional dos direitos humanos, em particular, a identificação de seus níveis de institucionalidade.66. Jack Donnelly, “International Human Rights: A Regime Analysis”, International Organization 40, no. 3 (1986): 599-642. Hasenclever, Mayer e Rittberger apontam que os regimes internacionais têm diferentes graus de “institucionalismo”, o que entendem como “a visão de que as instituições (internacionais) importam”. O grau de institucionalismo depende de quão efetivos e resilientes sejam os regimes internacionais, isto é, em que medida alcançam certos objetivos ou cumprem certas funções e o grau em que conseguem manter-se vigentes e robustos diante de desafios exógenos, respectivamente. Andreas Hasenclever, Peter Mayer e Volker Rittberger, Theories of International Regimes (Cambridge: Cambridge University Press, 1997): 2. A noção de “institucionalidade” utilizada neste artigo – entendida como o grau ou a medida em que as instituições internacionais se baseiam em normas internacionais obrigatórias e contemplam órgãos aos quais se delegaram faculdades para a tomada e implementação de decisões – é claramente distinta da de “institucionalismo” proposta por Hasenclever e seus coautores.

Na seção 1, o artigo define o conceito de regime internacional e reflete sobre sua aplicação à área dos direitos humanos. Na seção 2, desagrega-se o regime em uma série de regimes específicos existentes na atualidade. Em seguida, na seção 3, o artigo faz uma apresentação crítica da matriz proposta originalmente por Jack Donnelly, identificando a necessidade de ajustá-la. Na seção 4, utiliza-se essa versão modificada da matriz de Donnelly para realizar um exercício analítico exploratório sobre o desenvolvimento histórico do grau de institucionalidade dos regimes universal, interamericano, europeu e africano de direitos humanos. Por fim, o artigo apresenta suas conclusões, enfatizando a importante variação observada nos níveis de institucionalidade desses regimes, tanto de uma perspectiva comparada entre regimes como ao longo do tempo.

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1. O conceito de regime internacional e sua aplicação à área temática dos direitos humanos

O conceito de “regime internacional” é um dos mais importantes das RI. Ele nos permite identificar e descrever com maior precisão uma peça-chave das relações internacionais na atualidade. Um regime internacional, de acordo com a já clássica definição “de consenso” criada por Stephen Krasner, é um tipo de instituição internacional formado por um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões adotados e estabelecidos pelos Estados para regular ou moldar sua interação em torno de um área temática particular.77. Krasner define os princípios como “crenças de fato, causalidade e retidão”; as normas como “padrões de comportamento definido em termos de direitos e obrigações”; as regras como “prescrições ou proscrições específicas de ação”, e os procedimentos de tomada de decisões como as “práticas prevalecentes para tomar e implementar decisões coletivas”. Krasner, 1983, 2; ver também Hasenclever, Mayer e Rittberger, 1997, 8-22; cf. Donnelly, 1986, 599-605.

O regime internacional (ou, como veremos em breve, os regimes internacionais) dos direitos humanos se sustenta nos princípios da dignidade, do igual valor e da igualdade em direitos “de todos os membros da família humana”, sem nenhum tipo de distinção “por motivos de raça, sexo, idioma ou religião”, bem como na inalienabilidade, universalidade, interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos.88. “Declaração Universal de Direitos Humanos,” 1948, preâmbulo; “Declaração e Plano de Ação de Viena,” Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena, Áustria, preâmbulo, art. 1.5, 25 de junho de 1993, acesso em 19 jun. 2017, http://www.ohchr.org/Documents/Events/OHCHR20/VDPA_booklet_Spanish.pdf. De uma perspectiva conceitual, e mais ainda de um ponto de vista empírico, as normas e as regras parecem confundir-se entre si. Os distintos artigos da DUDH estabelecem uma série ampla de direitos concretos, cujos titulares são os indivíduos; isso implica necessariamente obrigações para os Estados. Nos termos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), por exemplo, seus Estados Partes comprometem-se “a respeitar e a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos” no Pacto, e para tanto obrigam-se a adotar “as medidas oportunas para ditar as disposições legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para torná-los efetivos”.99. “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,” Alto Comissariado para os Direitos Humanos, resolução 2200 A (XXI), art. 2, 16 de dezembro de 1966, entrada em vigor em 23 de março de 1976, acesso em 19 jun. 2017, http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CCPR.aspx. Serrano e Vázquez afirmam que as “obrigações gerais” dos Estados no que se refere aos direitos humanos são as de respeitar, proteger, garantir e promover os direitos humanos. Sandra Serrano e Luis Daniel Vázquez, Los Derechos en Acción. Obligaciones y Principios de Derechos Humanos (México: FLACSO México, 2013): 58-82. Desse modo, ao delinear direitos e obrigações, os numerosos instrumentos do Direito Internacional dos Direitos Humanos (doravante instrumentos internacionais de direitos humanos) estabelecem uma ampla gama de normas.1010. Principalmente tratados vinculantes e declarações. Para os diferentes tipos de instrumentos internacionais de direitos humanos e as diferenças em seu grau de obrigatoriedade ou nos graus de força vinculante que implicam, ver Daniel O’Donnel, Derecho Internacional de los Derechos Humanos: Normativa, Jurisprudencia y Doctrina de los Sistemas Universal e Interamericano, 2a ed. (México: OACNUDH e TSJDF, 2012): 51-72. Também proscrevem certos comportamentos (como a tortura, o desaparecimento forçado ou as execuções arbitrárias ou extrajudiciais, por exemplo) e estabelecem distintas prescrições de ação (como garantir a existência de um recurso judicial efetivo ou o acesso à saúde). Além de estabelecer as normas do regime, os instrumentos internacionais de direitos humanos definem uma série de regras. Como já observado, as normas e as regras se confundem ou superpõem entre si. Levando isso em conta, por simplicidade conceitual, e buscando maior claridade, podemos utilizar apenas o conceito de normas de uma maneira ampla para nos referirmos tanto aos direitos e obrigações como às proscrições e prescrições de ação (incluindo assim as regras dentro da noção mais ampla de normas internacionais).

Por fim, as cartas fundacionais de diferentes organizações internacionais – como a Carta da ONU ou a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo, bem como os próprios instrumentos internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) ou o PICDP –, estabelecem uma gama mais ou menos ampla de órgãos e procedimentos1111. Por simplicidade de termos e clareza analítica, doravante o artigo utiliza somente o termo “órgão(s)”, no qual se incluem os procedimentos (principalmente, os “procedimentos especiais” do Conselho de Direitos Humanos da ONU, como são as numerosas relatorias especiais, grupos de trabalho e figuras similares). Para uma lista completa e atualizada, ver “Procedimentos do Conselho de Direitos Humanos da ONU,” OHCHR, 27 de setembro de 2016, acesso em 19 jun. 2017, http://www.ohchr.org/SP/HRBodies/SP/Pages/Welcomepage.aspx. para impulsionar a implementação das normas do regime. Em última instância, os órgãos dos regimes internacionais de direitos humanos “tomam decisões”: mediante diferentes mecanismos ou procedimentos concretos de monitoramento e proteção, determinam de modo autoritativo em que medida os Estados cumprem ou violam as normas internacionais com que se comprometeram.1212. Somente no caso dos órgãos propriamente jurisdicionais –p como a Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ou a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos (Corte ADHP) – essas decisões são vinculantes para os Estados. No caso dos outros órgãos do regime internacional, as decisões implicam somente a elaboração de recomendações. Ver Daniel O’Donnell, 2012.

O uso explícito do conceito de “regime internacional” é descritiva e analiticamente útil, mais preciso do que a vaga noção de “sistema” (por exemplo, o “sistema interamericano” de direitos humanos) comumente utilizada pela literatura jurídica ou pelos “praticantes” ou atores diretamente envolvidos na promoção e defesa dos direitos humanos.

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2. Os regimes internacionais de direitos humanos

Até agora, falou-se do “regime internacional de direitos humanos”, no singular. Porém, a realidade empírica é muito ampla e diversificada. Mesmo quando os princípios não variam e as normas são em alguns casos similares, podemos falar da existência de distintos regimes de direitos humanos na prática. Os instrumentos internacionais que contêm as normas de direitos humanos são numerosos e muito diferentes, bem como os órgãos existentes para a tomada de decisões e a implementação. É possível e de fato necessário agrupar as distintas normas e órgãos de tomada de decisões e implementação, de acordo com algum critério de particularidade ou afinidade. Por exemplo, alguns conjuntos de normas e órgãos relacionam-se de maneira explícita com categorias amplas, mas particulares, de direitos (como os direitos civis e políticos, de um lado, ou os econômicos, sociais e culturais, de outro)1313. Esta classificação, não obstante, iria contra o princípio de indivisibilidade., ou com direitos específicos (como a proibição da tortura ou do desaparecimento forçado). Outros conjuntos de normas e órgãos podem ser agrupados em torno dos grupos específicos de sujeitos que procuram proteger (como as mulheres, as crianças, os trabalhadores migratórios ou as pessoas com deficiências).

Não obstante, a maneira mais comum de desagregar e agrupar o complexo regime internacional de direitos humanos é em torno das organizações internacionais (ou intergovernamentais) das quais emanaram ou nas quais se inserem os grupos concretos de normas e órgãos existentes. Nesse sentido, podemos falar do regime da ONU, ou regime universal; do regime do Conselho da Europa (CE) ou europeu; do regime da OEA ou interamericano, ou do regime da União Africana (UA) ou africano (ver Quadro 1).1414. Os regimes universal, europeu, interamericano e africano de direitos humanos são os regimes existentes que contam com um maior grau de institucionalidade. Existem tentativas mais recentes de desenvolvimento de uma estrutura de normas e órgãos de direitos humanos em outros espaços regionais, como o Oriente Médio e o sudeste da Ásia, ou inclusive em “espaços” culturais, como o mundo islâmico. Ver “Terms of Reference of ASEAN Intergovernmental Commission on Human Rights,” ASEAN, 20 de julho de 2009, acesso em 19 jun. 2017, http://hrlibrary.umn.edu/research/Philippines/Terms%20of%20Reference%20for%20the%20ASEAN%20Inter-Governmental%20CHR.pdf; “Statute of the OIC Independent Permanent Human Rights Commission,” Organization of the Islamic Cooperation, OIC/IPCHR/2010/Statute, 30 de junho de 2011, acesso em 19 jun. 2017, http://www.ohchr.org/EN/Issues/Education/Training/Compilation/Pages/7StatuteoftheOICIndependentPermanentHumanRightsCommission(2011).aspx. Por dois motivos, esse critério de classificação é o que seguimos neste artigo. Por um lado, coincide com a prática mais comum, tanto em outras disciplinas (como o Direito) como no mundo dos “praticantes”. Por outro, enfatiza o papel-chave das organizações internacionais não somente na promoção e defesa dos direitos humanos no mundo, como também no desenvolvimento normativo e institucional do sistema internacional; tema particularmente relevante para as RI.1515. Evidentemente, nem todas as correntes teóricas de RI estariam de acordo sobre a importância ou relevância dessa institucionalidade do sistema internacional e, mais concretamente, sobre a área temática dos direitos humanos. Para uma discussão a respeito, ver Hasenclever, Mayer e Rittberger, 1997, e Alejandro Anaya Muñoz, Derechos Humanos en y desde las Relaciones Internacionales (México: CIDE, 2014): 21-35.

Quadro 1. Regimes internacionais de direitos humanos1616. Extraído de Anaya Muñoz, 2014, 66-67.

Regime Organização internacional em que se inscreve Principais instrumentos internacionais Principais órgãos de tomada de decisões e implementação
Regime universal Organização das Nações Unidas (ONU) Carta da ONU Conselho dos Direitos Humanos 1717. Anteriormente Comissão de Direitos Humanos.
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos Comitê de Direitos Humanos
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes Comitê contra a Tortura
Convenção sobre os Direitos da Criança Comitê dos Direitos da Criança
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migratórios e de seus Familiares Comitê de Direitos dos Trabalhadores Migratórios
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência
Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados Comitê contra os Desaparecimentos Forçados
Regime interamericano Organização dos Estados Americanos (OEA) Carta da OEA Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem Corte Interamericana de Direitos Humanos
Convenção Americana sobre Direitos Humanos
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura
Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Protocolo de “San Salvador”
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção de “Belém do Pará”
Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas
Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência
Regime europeu Conselho da Europa Estatuto do Conselho da Europa Comitê de Ministros
Convênio Europeu para a proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (e seus 14 protocolos) Corte Europeia de Direitos Humanos1818. Anteriormente também a Comissão Europeia de Direitos Humanos.
Carta Social Europeia Comitê de Especialistas Independentes e Comitê Governamental
Convênio Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura
Regime africano União Africana Carta Constitutiva da União Africana Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos
Protocolo à Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos
Protocolo à Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos sobre os Direitos das Mulheres na África
Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança
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3. A matriz de Donnelly

Em meados dos anos 1980, pouco tempo depois de Stephen Krasner ter popularizado o conceito de regime internacional, Jack Donnelly o aplicou de maneira explícita para descrever e analisar o conjunto de normas e órgãos internacionais de direitos humanos que haviam surgido e desenvolvido após a já mencionada inclusão da noção de direitos humanos na Carta da ONU. Dessa maneira, Donnelly não foi somente o primeiro internacionalista a aplicar o conceito de regime internacional à área temática dos direitos humanos, como também o primeiro a propor uma ferramenta analítica concreta para descrever e classificar de maneira sistemática os regimes internacionais de direitos humanos existentes. Para isso, desenvolveu uma matriz formada por dois eixos (ver quadro 2). No eixo vertical, sua matriz se baseia em uma escala de obrigatoriedade jurídica das normas internacionais do regime: a) normas nacionais (ou ausência de normas internacionais); b) diretrizes internacionais; c) normas internacionais com exceções de obrigatoriedade; e d) normas internacionais sem exceções de obrigatoriedade.1919. No âmbito dos instrumentos do DIDH, as diretrizes internacionais são as declarações, princípios, regras mínimas, diretrizes e demais instrumentos que não têm “caráter contratual” (“softlaw”). Esses instrumentos se diferenciam dos tratados, pactos, convênios e protocolos, que têm caráter contratual (“hardlaw”). Ver O’Donnell, 2012, 56. No eixo horizontal, a matriz apresenta uma escala que reflete as funções outorgadas aos órgãos do regime ou, em outras palavras, os distintos níveis de delegação que os Estados lhes concederam: a) decisões nacionais (ou ausência de órgãos internacionais); b) promoção; c) intercâmbio de informação; d) coordenação de políticas; e) monitoramento do comportamento; e f) adoção e imposição de decisões (enforcement). Combinando ambas as dimensões, a matriz se compõe de uma série de células, as quais denotam distintos graus de institucionalidade internacional (ou de “legalização”)2020. Aproximadamente quinze anos depois que Donnelly propôs sua matriz, Kenneth Abbot, Robert O. Keohane Andrew Moravcsik, Anne-Marie Slaughter e Duncan Snidal desenvolveram detalhadamente o conceito de “legalização”, oferecendo uma ferramenta muito útil para explorar de modo sistemático os atributos formais dos regimes internacionais em geral. Mede-se a “legalização” de um regime internacional mediante três eixos ou dimensões particulares: obrigação, precisão e delegação. Kenneth Abbott et al., “The Concept of Legalization”, International Organization 54, no. 3 (2000): 401-19. Desse modo, um regime internacional será mais legalizado na medida em que suas normas sejam mais obrigatórias e precisas e em que seus órgãos tenham maiores atributos para implementar normas e tomar decisões autoritativas., que vão da inexistência de um regime internacional (célula inferior esquerda) à existência de um altamente institucionalizado, em que as normas do regime obrigam todos os Estados e os órgãos internacionais têm a capacidade de tomar decisões e impor ou forçar seu cumprimento (célula superior direita). Com base no eixo horizontal (graus de delegação), Donnelly propôs tipos ideais de regimes internacionais de direitos humanos: declarativo, promocional, de implementação e de cumprimento forçado (enforcement).

Quadro 2. Matriz de Donnelly: Níveis de institucionalidade e tipologia de regimes internacionais de direitos humanos

Decisões nacionais Promoção Intercâmbio de informação Coordenação de políticas Monitoramento internacional Decisões internacionais
Normas internacionais
Normas internacionais (com exceções)
Diretrizes internacionais
Normas nacionais
Regime declarativo Regime promocional Regime promocional/de implementação Regime de implementação Regime de implementação / cumprimento forçado (enforcement) Regime de cumprimento forçado (enforcement)

Fonte: Jack Donnelly, 1986, p. 603.

Na prática, os graus de institucionalidade dos diferentes regimes internacionais de direitos humanos são diferentes entre si, ao mesmo tempo em que todos evoluíram ao longo do tempo. A matriz de Donnelly pode ser de grande utilidade para rastrear e descrever as variações temporais entre regimes e ao longo do tempo. No entanto, não parece refletir de maneira precisa as funções realmente atribuídas aos órgãos dos regimes internacionais de direitos humanos. As funções de intercâmbio de informação e coordenação de políticas entre os Estados não são proeminentes no caso dos órgãos internacionais de direitos humanos, os quais não se baseiam no princípio de reciprocidade entre Estados. Neste artigo, propomos uma adequação da matriz de Donnelly, particularmente nas categorias que formam o eixo horizontal, partindo de uma análise descritiva explícita das principais funções dos órgãos dos regimes internacionais de direitos humanos.

Em termos gerais, as funções principais que foram atribuídas ou delegadas aos órgãos do regime internacional de direitos humanos são as de promoção, monitoramento e proteção dos direitos humanos. O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Conselho DH), por exemplo, tem a função explícita de “promover o respeito universal pela proteção de todos os direitos humanos” e, para isso, entre outras coisas, “[p]romoverá a educação e a aprendizagem sobre os direitos humanos”2121. “Resolução 60/251,” Assembleia Geral da ONU, A/RES/60/251, 3 de abril de 2006, §2, 5ª, acesso em 19 jun. 2017, http://www2.ohchr.org/spanish/bodies/hrcouncil/docs/A.RES.60.251._Sp.pdf. Ênfase acrescentada.. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por sua vez, recebeu da OEA a incumbência de “promover a observância e a defesa dos direitos humanos”.2222. Carta da Organização dos Estados Americanos,” OEA, 30 de abril de 1948, acesso em 19 jun. 2017, http://www.oas.org/dil/esp/afrodescendientes_manual_formacion_lideres_anexos.pdf. Entrada em vigor: 13 de dezembro de 1951, IX Conferência Internacional Americana, Bogotá, Colômbia, art.106.

Por outro lado, os diferentes órgãos dos regimes internacionais de direitos humanos realizam um trabalho de monitoramento: o acompanhamento sistemático da implementação na prática por parte dos Estados das normas do regime em questão. Por exemplo, a CIDH “[o]bserva a situação geral dos direitos humanos nos Estados Membros e publica informes especiais sobre a situação existente em determinado Estado Membro”, ou “[r]ealiza visitas in loco aos países para analisar em profundidade a situação geral e/ou para investigar uma situação específica.”2323. “Mandatos e Funções da CIDH,” OAS, 24 de agosto de 2016, acesso em 19 jun. 2017, http://www.oas.org/es/cidh/mandato/funciones.asp.

Em termos gerais, os órgãos monitoram e, com base nisso, determinam o quanto os Estados cumprem ou não as normas do regime. O resultado desse exercício é geralmente a elaboração de uma série de recomendações concretas, que, não obstante, não são vinculantes para os Estados.

Alguns dos órgãos dos regimes internacionais de direitos humanos também cumprem funções que se relacionam com a proteção dos direitos humanos. A proteção implica a adoção de medidas de prevenção, mas também o estabelecimento de uma maquinaria institucional para a “exigibilidade”, ou seja, para a busca da verdade, da justiça e da reparação.2424. Serrano e Vázquez, 2013, 64-71. Para isso, as cortes europeia, interamericana e africana de direitos humanos, bem como a CIDH e os órgãos de tratados da ONU têm a faculdade ou competência de receber e considerar queixas, denúncias ou comunicações sobre casos concretos de violações dos direitos humanos por parte de Estados específicos e decidir sobre os méritos ou o fundo das denúncias.2525. Os órgãos de tratados são uma série de comitês de especialistas estabelecidos por cada um dos dez principais tratados ou protocolos facultativos de direitos humanos adotados no seio da ONU. Anaya Muñoz, 2014, 74-78. Dessa maneira, em um esquema jurisdicional (no caso das cortes) ou quase jurisdicional (no caso dos outros órgãos), os órgãos internacionais de direitos humanos examinam e determinam se, no caso particular examinado, o Estado violou ou não os direitos humanos, e adotam uma série de “medidas de reparação”, as quais devem ser implementadas pelo Estado responsável pela violação. Assim, além de monitorar, os órgãos internacionais de direitos humanos protegem os direitos humanos ao oferecerem um marco para a busca da verdade, da justiça e da reparação. Não obstante, as decisões adotadas nesses marcos podem ser vinculantes ou não vinculantes. Somente os órgãos propriamente jurisdicionais – a Corte EDH, a Corte IDH e a Corte ADHP – podem adotar sentenças vinculantes ou juridicamente obrigatórias para os Estados. Os outros órgãos – como a CIDH e os órgãos de tratados da ONU – adotam unicamente recomendações, que não são vinculantes.2626. Anaya Muñoz, 2014, 68-90.

Levando isso em conta, propõe-se no Quadro 3 uma matriz modificada, para analisar o grau de institucionalidade dos regimes internacionais de direitos humanos. De maneira particular, no eixo horizontal, correspondente aos graus de delegação de funções aos órgãos dos regimes internacionais, eliminam-se as colunas relativas ao intercâmbio de informação e a coordenação de políticas. À função de monitoramento acrescenta-se a de proteção mediante decisões não vinculantes (ou proteção “débil”) e a de proteção mediante decisões vinculantes (ou proteção “forte”). Nesse sentido, adapta-se também a tipologia de regimes internacionais que deriva do eixo horizontal da matriz da seguinte maneira: regime declarativo, promocional, de monitoramento, de proteção débil, de proteção forte e de cumprimento forçado (enforcement) (ver Quadro 3 abaixo).

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4. Níveis de institucionalidade dos regimes internacionais de direitos humanos existentes

Que “tipo” de regime internacional constituem os regimes internacionais de direitos humanos atualmente existentes?2727. Uma maneira diferente de abordarmos esta pregunta é sugerida por Hasenclever e seus coautores, os quais propõem abordagens diferentes para conceituar os regimes internacionais ou distintas visões ontológicas sobre eles: a abordagem behaviorista, a cognitiva e a formal. A behaviorista entende os regimes internacionais como uma série de práticas relacionadas com um grupo de regras ou convenções específicas. Por sua vez, a cognitiva enfatiza os significados intersubjetivos e os entendimentos compartilhados. Finalmente, a postura formalista insiste em verificar a existência formal de normas explícitas acordadas pelos Estados. Hasenclever, Mayer e Rittberger, 1997, 14-7. Qual é o seu nível de institucionalidade? Eles evoluíram ao longo do tempo? Nesta seção, abordam-se estas perguntas para os regimes universal, interamericano, europeu e africano, aplicando-se a versão modificada da matriz de Donnelly.

Em 1948, havia uma situação de ausência total de um regime internacional de direitos humanos (ver o Quadro 3).2828. A descrição da evolução histórica dos distintos regimes internacionais de direitos humanos e de suas funções é tirada de Anaya Muñoz, 2014, 68-90. Com a criação da Comissão DH e a adoção da DUDH, surgiu o regime universal, em um primeiro momento como um incipiente regime declarativo e promocional, baseado unicamente em diretrizes internacionais (a DUDH) e em órgãos internacionais com uma limitada faculdade de promoção (RU1 no Quadro 3). Por outro lado, com a adoção da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH), nasceu o regime interamericano, regime de tipo declarativo, baseado somente em diretrizes internacionais e ainda carente de um órgão internacional ao qual tivessem sido delegadas faculdades (RIA1 no Quadro 3).3030. Há quem diga que, com o tempo, a DUDH e a DADDH (ou ao menos alguns de seus artigos) se converteram em costume internacional e, portanto, adquiriram um estatuto de normas vinculantes. Por simplicidade na análise e, sobretudo, pela dificuldade que implicaria identificar um momento preciso no tempo em que tenham ocorrido essas mudanças, essa transformação não é tomada ou incorporada de maneira explícita na análise que segue. Pouco tempo depois, com a entrada em vigor do Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (CEDHLF) em 1953 e o estabelecimento da Comissão Europeia de Direitos Humanos (Comissão EDH) e, sobretudo, da Corte EDH, instalou-se na Europa Ocidental um regime de proteção forte, baseado não em diretrizes internacionais, mas em normas internacionais (o CEDHLF) e dotado de um órgão que podia tomar decisões vinculantes. Mas o regime tinha então seus limites na obrigatoriedade de suas normas, pois a assinatura e ratificação do CEDHLF não era obrigatória para todos os Estados membros do CE (RE1 no Quadro 3). Em suma, na primeira década após a Segunda Guerra Mundial, os regimes universal e interamericano apresentavam um desenvolvimento ainda incipiente, sendo apenas regimes declarativos e promocionais, enquanto que, desde o início, o regime europeu se adiantou claramente, assumindo já um grau importante de institucionalidade como regime de proteção forte.

O regime universal começou a desenvolver-se mais a partir do final da década de 1960 e, sobretudo, início da de 1970, quando a Comissão DH decidiu começar a envolver-se e monitorar situações de violações dos direitos humanos em países concretos.3030. Durante suas primeiras duas décadas de existência, em plena Guerra Fria, a Comissão DH decidiu explicitamente não se envolver no monitoramento da situação de direitos humanos em países concretos (e, portanto, não assumir posturas críticas a respeito). Anaya Muñoz, 2014, 68-70. Desde o primeiro momento, esse componente do regime universal baseou-se em normas internacionais sem exceções, ou seja, o fundamento normativo para o estabelecimento e a atuação da Comissão DH foi a própria Carta da ONU, de tal modo que suas funções de monitoramento eram em princípio aplicáveis a qualquer Estado membro dessa organização internacional. No entanto, na prática, a Comissão DH foi afetada por uma forte dinâmica de politização, exercendo seu trabalho de monitoramento de maneira seletiva, com frequência seguindo duplos padrões. Esses problemas afetaram de maneira decisiva sua legitimidade, o que propiciou eventualmente seu desaparecimento e a criação do Conselho DH. Desse modo, seus níveis de institucionalidade eram maiores “na teoria” do que na prática, já que realmente a Comissão DH aplicava exceções ao buscar implementar as normas internacionais e ao exercer suas funções de monitoramento. Por esse motivo, é mais exato situar esse componente e momento do regime universal no nível de normas internacionais com exceções no eixo vertical da matriz de classificação (RU2 no Quadro 3).

Por outro lado, com a entrada em vigor em 1969 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e, sobretudo, do PIDCP e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) em 1976, o regime universal continuou a se desenvolver e fortalecer com a adoção de uma ampla gama de tratados específicos de direitos humanos e o estabelecimento de seus correspondentes órgãos de implementação (ver Quadro 1). Órgãos de tratados como o Comitê de Direitos Humanos ou o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (encarregados de monitorar a implementação do PIDCP e do PIDESC, respectivamente) começaram a receber e revisar informes periódicos dos Estados desde pelo menos o final dos anos 1970, mas somente no início da década de 1990 começaram a elaborar “informes de observações finais” realmente críticos, um trabalho de monitoramento significativo na prática (RU3a no Quadro 3). Por outro lado, alguns dos órgãos de tratados foram dotados da função de receber e considerar comunicações relativas a casos concretos de violações dos direitos humanos. As primeiras decisões sobre este tipo de comunicações foram tomadas pelo Comitê de Direitos Humanos perto do final da década de 1970 (RU3b no Quadro 3). O componente do regime universal baseado nos órgãos de tratados, não obstante, sustentou-se em normas internacionais com exceções, pois tanto a assinatura e ratificação dos tratados como o reconhecimento da competência dos órgãos de tratados para receber comunicações sobre casos concretos são voluntários para os Estados membros da ONU. De qualquer modo, no final da década de 1970, por meio dos órgãos de tratados, surgiu e se desenvolveu um regime de monitoramento e um de proteção débil (RU3a e RU3b no Quadro 3), complementando assim o componente do regime baseado na Comissão DH. Desse modo, o regime universal dos direitos humanos não só cresceu em “tamanho” como se desenvolveu de maneira importante, aumentando seu grau de institucionalidade.

Como já foi sugerido, a Comissão DH da ONU foi substituída pelo Conselho DH em 2006. O novo órgão global de direitos humanos manteve as faculdades de monitoramento de sua antecessora, diversificando, porém, de maneira inovadora os mecanismos utilizados para isso, concretamente mediante o projeto e criação de seu Exame Periódico Universal (EPU). Por meio desse novo mecanismo de monitoramento, o Conselho DH realiza um exercício público de avaliação (baseado em um “diálogo construtivo”) da situação de direitos humanos em todos os países membros da ONU. Desse modo, a partir do estabelecimento do Conselho DH e particularmente do início da aplicação do EPU, o regime universal desenvolveu um pouco mais seus níveis de institucionalidade, ao basear-se na prática em uma norma internacional sem exceções (RU4 no Quadro 3). No Quadro 3, será possível notar como o regime internacional de direitos humanos da ONU avançou bastante desde seu nascimento em 1946 até hoje.

Quadro 3. Matriz modificada. Níveis de institucionalidade e tipologia de regimes internacionais de direitos humanos

Obrigação / Delegação Decisões nacionais Promoção Monitoramento Proteção (decisões internacionais não vinculantes) Proteção (decisões internacionais vinculantes) Enforcement / Decisões internacionais de cumprimento forçado
Normas internacionais (sem exceções) RU4 (2006 em diante)
RIA3 (1965-1967 em diante)
RIA3 (1965-1967 em diante) RE2 (1994-1998 em diante)
Normas internacionais (com exceções) RU2 e RU3a (anos 1990 em diante)
RAf1 (1986 em diante)
RU3b (anos 1970 em diante)
RAf1 (1986 em diante)
RE1 (1953/1959 a 1994)
RIA4 (1979 em diante)
RAf2 (2004 em diante)
Diretrizes internacionais RIA1 (1948) RU1 (1946/1948 a início dos anos 1970) RIA2 (1959 a 1965-1967)
Normas nacionais Ausência de regime (Pré-1946)
Regime declarativo Regime promocional Regime de monitoramento Regime de proteção débil Regime de proteção forte Regime de cumprimento forçado (enforcement)

Fonte: Elaboração própria.

A evolução do regime interamericano foi ativada em 1959, com a criação da CIDH. A partir de então, mediante a elaboração de pesquisas sobre a situação dos direitos humanos na região, passou de um regime promocional a um de monitoramento, embora continuasse baseando-se unicamente em diretrizes internacionais (RIA2 no Quadro 3). Pouco tempo depois, a institucionalidade do regime se fortaleceu, graças a uma série de reformas na estrutura normativa e institucional da OEA. Em 1965, após uma reforma de seu estatuto, a CIDH recebeu um mandato de proteção, por meio da função de receber e considerar queixas individuais sobre casos concretos de violação de (alguns) direitos humanos por parte de qualquer membro da OEA. Por outro lado, em 1967 a OEA reformou sua Carta através do Protocolo de Buenos Aires, incluindo de maneira formal a CIDH entre os órgãos principais da Organização, e deu-lhe de maneira formal o mandato de monitorar e proteger os direitos humanos. Assim, o regime interamericano de direitos humanos se fortaleceu de maneira importante, adquirindo a faculdade de proteção (débil, ao emitir somente recomendações não vinculantes) e ao passar a fundamentar-se numa norma internacional sem exceções (para os membros da OEA), como é a Carta da própria Organização Regional (RIA3 no Quadro 3). O passo seguinte no desenvolvimento institucional do regime interamericano de direitos humanos foi dado com a adoção em 1969 e a entrada em vigor em 1978 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), a qual criou a Corte IDH, que entrou em funcionamento apenas um ano depois, em 1979. Com a Corte IDH, o regime interamericano se tornou um regime de proteção forte (isto é, com capacidade de tomar decisões vinculantes para os Estados), embora baseado em normas internacionais com exceções, pois a ratificação da CADH e o reconhecimento da jurisdição da Corte IDH são voluntários para os Estados membros da OEA (RIA4 no Quadro 3).

Foi somente na década de 1980 que, no seio da Organização para a Unidade Africana (OUA, hoje União Africana, UA), surgiu o regime africano de direitos humanos, graças à entrada em vigor da Convenção Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) em 1986 e à criação da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (Comissão ADHP) um ano depois. A Comissão ADHP recebeu um mandato claro de monitoramento, mediante a função de realização de investigações sobre situações de violações massivas dos direitos humanos e a consequente elaboração de informes e formulação de recomendações, bem como a consideração de informes periódicos dos Estados e o recebimento de comunicações sobre casos concretos de violação dos direitos humanos. Assim, surgiu na África um regime de monitoramento e de proteção débil (pois as resoluções da Comissão ADHP sobre casos concretos não são vinculantes), baseado em normas internacionais com exceções (a CADHP) (RAf1 no Quadro 3). Mais recentemente, em 2004, entrou em vigor o Primeiro Protocolo à CADHP, mediante o qual se criou a Corte ADHP, com capacidade para tomar decisões vinculantes com respeito a casos concretos, fazendo o regime africano evoluir para um regime de proteção forte, ainda baseado em normas internacionais com exceções, pois tanto a ratificação da CADHP como o reconhecimento da jurisdição da Corte ADHP são opcionais para os Estados membros da UA (RAf2 no Quadro 3).

Como já foi indicado, a mais densa ou elevada institucionalidade dos regimes internacionais de direitos humanos encontra-se no regime europeu. Desde 1994, ficou explícito (mediante uma resolução da Assembleia Parlamentar do CE) que todo membro do CE devia fazer parte do CEDHLF.3131. “Resolução 1031 (1994),” Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, 14 de abril de 1994, acesso em 19 jun. 2017, http://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-DocDetails-EN.asp?FileID=16442&lang=EN. Por outro lado, em 1998, mediante o Protocolo No. 11 ao CEDHLF, os membros do CE optaram por eliminar a Comissão EDH e fortalecer a Corte EDH, tornando-a um órgão permanente. Desse modo, institucionalizou-se ainda mais o regime de proteção forte que estava em vigor na Europa havia décadas, ao fazer com que se baseasse em normas internacionais sem exceções (RE2 no Quadro 3). Hoje, o regime europeu situa-se assim na célula mais próxima possível do canto superior direito da matriz, a qual representa o nível mais alto de institucionalidade realmente possível, pois não devemos esperar (ao menos, não no futuro previsível) que os órgãos internacionais de direitos humanos adquiram faculdades de impor pela força suas decisões.

05

Conclusões

Este artigo aplicou o conceito de regime internacional, característico das RI, ao denso arcabouço institucional internacional desenvolvido em torno dos direitos humanos. Demonstrou-se desse modo sua utilidade e precisão descritiva. De maneira mais destacada, o artigo retomou uma ferramenta analítico-descritiva proposta por Jack Donnelly há mais de três décadas, a qual tem sido em grande medida subutilizada pela literatura de RI (e certamente de outras disciplinas) sobre direitos humanos. Mais ainda, o artigo ajustou a matriz – e sua resultante tipologia de regimes internacionais – com base em uma análise empírica explícita das faculdades delegadas aos órgãos internacionais de direitos humanos, melhorando assim sua precisão e, portanto, sua utilidade como ferramenta analítico-descritiva.

Ao aplicar a matriz modificada aos principais regimes internacionais de direitos humanos existentes, o artigo demonstra a clara variação em seus níveis de institucionalidade, tanto entre os distintos regimes como ao longo do tempo. Neste último sentido, a matriz visibiliza tanto uma importante evolução histórica dos regimes internacionais de direitos humanos quanto seu nível atual de institucionalidade.

Esta conclusão nos apresenta de maneira inevitável uma pergunta de corte explicativo: esse desenvolvimento nos níveis de institucionalidade implicou um incremento similar nos níveis de cumprimento das normas do regime? Em outras palavras, uma institucionalidade maior implica melhores perspectivas em termos de vigência dos direitos humanos na prática? A literatura existente sugere fortemente que não. Como bem sabemos, apesar do desenvolvimento institucional dos regimes internacionais de direitos humanos e de sua aceitação formal por parte da maioria dos Estados, os indicadores agregados de respeito (ou antes, de violação) dos direitos humanos pouco se modificaram ao longo do tempo.3232. Beth Simmons, Mobilizing for Human Rights. International Law in Domestic Politics, (Cambridge e Nova York: Cambridge University Press, 2000); Todd Landman, Protecting Human Rights. A Comparative Study (Washington, DC: Georgetown University Press, 2005); Hafner-Burton, 2013. A análise apresentada na seção anterior demonstra que os regimes internacionais de direitos humanos não contam com a faculdade de forçar o cumprimento de suas normas ou das decisões de seus órgãos. Em outras palavras, não “têm dentes”. É esta a resposta ao paradoxo da falta de cumprimento apontada linhas acima? Ou há outros mecanismos transnacionais – como a pressão por parte de ativistas, a condicionalidade econômica ou comercial, ou a imposição pela força por parte das potências – ou nacionais – como o litígio e a mobilização social – que poderiam aumentar a eficiência do regime? Obviamente, estas são perguntas que fogem ao escopo deste artigo e que, portanto, deverão ser enfrentadas em projetos futuros de pesquisa.

Alejandro Anaya Muñoz - México

Alejandro Anaya é Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Essex, Inglaterra; Professor pesquisador da Divisão de Estudos Internacionais do Centro de Investigação e Docência Econômicas (CIDE). Também é colaborador da Incubadora do Programa de Política de Drogas (IPPD).

Recebido em Outubro de 2016.

Original em Espanhol. Traduzido por Karen Lang.