Ensaios

Políticas de segurança pública no Brasil

Ignacio Cano

Tentativas de modernização e democratização versus a guerra contra o crime

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RESUMO

Nos anos 1980 e 1990, a criminalidade violenta no Brasil cresceu consideravelmente e o tema da segurança pública entrou definitivamente na agenda social e política. O cenário atual mostra o fracasso das políticas tradicionais de controle do crime e da violência que, em geral, são reativas, militarizadas e baseadas na repressão. Muitas deficiências podem ser apontadas nesse modelo tradicional: falta de planejamento e de investimentos, formação deficiente, herança autoritária, abusos dos direitos humanos, corrupção institucional, etc. Apesar disso, muitos defensores do paradigma adicional continuam defendendo não só a continuação, mas a intensificação das velhas políticas, cujo defeito, segundo eles, seria justamente a sua timidez. Junto a esse modelo declinante, mas ainda hoje dominante, surgiram no país iniciativas inovadoras em vários níveis, algumas das quais são aqui identificadas e analisadas. Esses exemplos devem servir como insumo para pensar como um novo paradigma de segurança pública democrática pode ser estabelecido no Brasil.

Palavras-Chave

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Introdução

O termo usado normalmente no Brasil para referir-se a este tema é “segurança pública”, em lugar de “segurança cidadã”, mais comum em outros países da região. De fato, a noção de “segurança cidadã” no Brasil está associada a um paradigma particular, mais democrático e comunitário, vinculado à noção de cidadania.

O Brasil, como muitos outros países da região, vive um cenário de crise na segurança pública, com altas taxas de incidência criminal, que cresceram de forma significativa ao longo dos anos 80 e 90. Até os anos 70, o crime era concebido basicamente como um problema de polícia; a esquerda esperava, como em outros países, que o fim da ditadura e a democratização, de alguma forma resolveriam a questão. O tema da criminalidade era concebido como um tema “da direita”, dos defensores da lei e da ordem, e qualquer ênfase na questão já era vista como suspeita. Em conseqüência, não existia sequer a reflexão, nem a proposta dos setores progressistas que se contrapusesse à simples demanda pela ordem por parte dos grupos conservadores.

No entanto, o notável avanço da criminalidade trouxe o tema da segurança pública para a agenda política e social, da qual não sairia nunca mais. O fracasso das políticas tradicionais no controle da criminalidade e da violência abriu espaço para reformas e propostas inovadoras. Inclusive, algumas vozes se levantaram pedindo uma mudança completa de paradigma na segurança pública. A idéia de uma segurança pública mais democrática, com maior atenção à prevenção, o surgimento de novos atores, a noção de polícia comunitária ou, simplesmente, de uma polícia que compatibilizasse eficiência com respeito aos direitos humanos são sintomas do novo período de debate e efervescência.

No Brasil, a segurança pública é fundamentalmente da competência dos estados. Cada um deles tem, por exemplo, suas forças policiais – Polícia Civil e Polícia Militar – e seu Tribunal de Justiça, conforme o modelo federativo. A Polícia Federal, por seu lado, tem porte reduzido – inferior ao de muitas polícias estaduais – e o sistema de justiça criminal federal tem competências limitadas a determinados crimes. Por isso, o papel do poder federal foi, sobretudo incentivar, por meio de financiamentos, intervenções nos estados, que atendam certos requisitos técnicos e políticos.

As prefeituras, por seu lado, têm um papel na área da prevenção, principalmente, embora a expansão das guardas municipais inclua também tarefas de repressão.

A percepção dos cidadãos da crescente insegurança provocou, ao longo dos últimos anos, uma pressão social para que todas as autoridades tomassem medidas no campo da segurança pública, independentemente de suas competências oficiais. Todavia, a difícil situação financeira dos estados impede investimentos significativos, o que tem contribuído para o aumento dos poderes municipal e federal neste campo.

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Políticas federais

Entre os órgãos com que conta o governo federal nesta área, destaca-se a Polícia Federal, com competências de vigilância nas fronteiras e alfândegas e nos crimes federais. Seu efetivo, de apenas alguns milhares de homens em todo o país, impede o cumprimento eficiente de todas as suas funções.

A Secretaria Nacional Anti-Drogas, vinculada à Presidência da República, tradicionalmente dirigida por militares,1  tem atribuições na área de prevenção, que se confundem com as de outros órgãos governamentais.

Dois elementos contribuíram historicamente para limitar o papel federal neste campo. O primeiro foi o temor de provocar suspeita nos governos estaduais sobre uma atitude intervencionista do governo federal que contrariasse o pacto federativo, justamente numa área tão delicada. O segundo foi o receio dos governos federais de se envolverem profundamente em um tema complexo, pois um fracasso poderia ter altos custos políticos.

No entanto, como já foi mencionado, a crise da segurança pública provocou uma demanda social exigindo que os poderes públicos interviessem de maneira mais ativa. No ano 2000, pouco depois do famoso incidente com o ônibus 174 no Rio de Janeiro,2  o governo Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de Segurança Pública. A coincidência de datas não é casual, reflete a tendência dos poderes públicos de formular respostas imediatas a episódios de crises na segurança pública, em vez de optar por uma abordagem planejada em função de indicadores e dados globais.

O Plano Nacional continha uma série de 15 compromissos e 124 ações concretas com as quais o governo federal se comprometia a intervir contra a violência, particularmente a violência urbana. Algumas ações eram exclusivas do poder federal e outras deveriam ser executadas em conjunto com as autoridades estaduais e municipais. Para os críticos, o Plano simplesmente reclassificava muitas ações que já estavam sendo realizadas ou em fase de projeto, vinculando-as nesse momento à área de segurança.

Uma das principais iniciativas foi a criação de um Fundo Nacional de Segurança Pública, com a finalidade de financiar projetos de estados e municípios que cumprissem determinados requisitos – eficiência, transparência, respeito aos direitos humanos – e que o governo federal julgasse prioritários. A idéia que começava a tomar forma era a de que o governo federal poderia induzir políticas públicas reformistas nos estados, através do financiamento seletivo, sem ferir suscetibilidades. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério de Justiça, órgão com uma atuação anteriormente discreta, foi reorganizada e fortalecida para acompanhar e implementar essas novas tarefas.

Uma das 124 ações do Plano Nacional era o Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Prevenção à Violência Urbana (PIAPS), criado de fato em 2001, e vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Uma de suas particularidades era não contar com recursos próprios, funcionando como agente articulador de iniciativas de vários ministérios, com competências para prevenir a violência. Dessa forma, constituía um programa intersectorial que pretendia coordenar e maximizar os resultados de várias agências governamentais. Ao mesmo tempo, se propunha a cooperar com os três níveis do poder público – federal, estadual e municipal – e fomentar redes locais. Seu foco principal eram as crianças e os jovens entre zero e vinte e quatro anos.

Em seu primeiro ano, 2001, o PIAPS deu prioridade às regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória e Recife, justamente as que apresentavam maior incidência de violência letal no país. No ano seguinte, foram incorporadas as regiões de Cuiabá, Fortaleza e o Distrito Federal. O programa tentou articular projetos de 16 setores do governo federal, entre ministérios e secretarias, todos com o paradigma da prevenção, por meio da melhoria das condições de vida, o respeito às pessoas e o acesso aos direitos da cidadania. As iniciativas se caracterizavam, em teoria, por sua coordenação com os agentes locais, tanto diretamente com os municípios, ou com as organizações não governamentais e da sociedade civil. O objetivo era estabelecer convênios formais entre o governo central e os governos municipais e estaduais. Os projetos a serem financiados eram escolhidos pelos técnicos do poder federal. No entanto, a concepção e execução dos projetos era de responsabilidade das agências proponentes – municipais ou não governamentais –, que não precisavam seguir critérios técnicos pré-determinados.

A partir de janeiro de 2003, o novo governo abandonou o PIAPS em troca de outros programas na área da segurança.

Quando candidato, o presidente Lula elaborou um Plano Nacional de Segurança Pública e deu visibilidade ao tema durante a campanha eleitoral. Depois da eleição, o governo Lula criou o chamado Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que pretendia articular operacionalmente as intervenções dos estados da federação, incluindo suas respectivas polícias, em cada região do país. Depois de sucessivas crises políticas, o SUSP deixou de receber apoio político e grande parte do plano ficou no papel.

A própria Secretaria Nacional não conseguiu, desde sua criação, corresponder às expectativas geradas. A falta de critérios políticos rígidos em relação aos programas estaduais financiados e os sucessivos cortes de orçamento enfraqueceram consideravelmente seu papel de indutor de políticas nos estados, que deveria ter sido executado através do Fundo. Este ano, por exemplo, o orçamento inicial de aproximadamente US$ 180 milhões, já tão reduzido para as dimensões do país e da tarefa proposta, sofreu dois cortes e chegou a pouco mais de um quarto do orçamento original.

A Polícia Federal dedicou os últimos anos a operações bem planejadas e difundidas para desarticular núcleos do crime organizado de alto nível em vários estados. Um de seus principais êxitos foi a investigação de vários casos de corrupção por membros da própria polícia, o que lhe conferiu uma imagem de polícia menos corrupta que as estaduais. No entanto, os recentes escândalos na Superintendência do Rio de Janeiro ofuscaram essa imagem. A Polícia Federal foi acusada de alguns excessos e, sobretudo, de buscar publicidade durante as ações contra o crime organizado.

O controle de armas foi uma área na qual o poder federal conseguiu avançar, tanto pela adoção da lei de armas de 1997, que transformou em crime o porte ilegal, antes uma mera contravenção, quanto pela promulgação do “Estatuto do Desarmamento” em 2003.

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Políticas estaduais

São os estados os atores principais na área de segurança pública. Cada estado conta com uma Polícia Militar, uma força uniformizada, cuja tarefa é o patrulhamento ostensivo e a manutenção da ordem, e com uma Polícia Civil, que tem como missão, investigar os crimes cometidos. Dessa forma, nenhuma das duas polícias executa o chamado “ciclo completo” de segurança pública, que vai da prevenção à repressão, o que suscita problemas de duplicidade e rivalidade entre ambas.

Em geral, as políticas estaduais de segurança – se é que podem receber este nome sem planejamento, objetivos e avaliação – são basicamente reativas e baseadas na repressão, mais do que na prevenção. Com freqüência, os governos reagem diante dos casos com repercussão pública, particularmente os que se destacam na imprensa, para dar uma resposta de curto prazo. Quando o caso perde visibilidade, as medidas iniciais se desvanecem. A imprensa, neste sentido, desfruta de um grande poder para orientar as medidas dos órgãos públicos. As intervenções raramente são planejadas com base em objetivos específicos.

Entre as deficiências mais comuns na área de segurança pública, podemos destacar:

• falta de investimento suficiente, o que se traduz, entre outras coisas, por baixos salários para os escalões inferiores das polícias. Esses salários obrigam os agentes a trabalharem em outros empregos, geralmente em segurança privada, gerando altos níveis de estresse e a tendência de privatização da segurança pública;

• formação deficiente dos agentes policiais, sobretudo nos níveis hierárquicos inferiores;

• herança autoritária: a polícia era um órgão de proteção do Estado e das elites que o dirigiam contra os cidadãos que representavam um perigo para o status quo, as chamadas “classes perigosas”. A transição do modelo de uma polícia de controle do cidadão para uma polícia de proteção das pessoas é gradual e ainda não foi concluída. Ademais disso, o Estado brasileiro conserva resquícios de sua formação oligárquica, como a prisão especial para as pessoas com formação universitária;

• insistência no modelo da guerra como metáfora e como referência para as operações de segurança pública. Desse modo, o objetivo continua sendo, em muitos casos, o aniquilamento do “inimigo”, freqüentemente sem reparar nos custos sociais. O problema de segurança pública aparece às vezes como uma questão de calibre, como um nó que será desatado quando o poder de fogo das polícias supere o do inimigo. Em conseqüência, a segurança pública se apresenta fortemente militarizada em suas estruturas, doutrinas, formação, estratégia e táticas. As operações de segurança pública em áreas pobres se assemelham a operações de guerra em território inimigo: ocupação, blitz etc.;

• no contexto anteriormente mencionado não é de se estranhar a existência de numerosos abusos aos direitos humanos, particularmente os que se referem ao uso da força. Os tiroteios em comunidades pobres produzem um alto índice de mortes, incluindo as vítimas acidentais. As alegações de tortura contra presos e condenados também são freqüentes;

• relações conflitivas com as comunidades pobres, sobretudo em lugares onde o crime organizado é forte. A juventude que vive nesses lugares considera a polícia inimiga e um setor da polícia tem esta mesma visão. As pesquisas mostram que existem muitas comunidades onde os moradores têm mais medo da polícia que dos traficantes de drogas, cujo despotismo é mais previsível;

• numerosos casos de corrupção policial, desde pequenos subornos para não aplicar multas de trânsito até proteção a traficantes. Em muitas ocasiões, o abuso de força está também vinculado aos casos de corrupção (vide o estudo de Mingardi3  sobre a Polícia Civil de São Paulo e o caso recente do massacre da Baixada4  Fluminense em março de 2005).

Não obstante este quadro de deficiências, nos últimos anos se pôde observar iniciativas de reformas modernizadoras. Elas constituem ainda exceções à regra geral, mas representam a possibilidade de uma futura mudança de paradigma na segurança pública brasileira. A lista não é exaustiva, nem pretende apresentar necessariamente uma seleção da maior importância, pois foi feita, basicamente, como exemplificação. Entre as experiências podemos citar:

• experiências de polícia comunitária em vários estados, em geral com resultados positivos, pelo menos em relação à imagem da polícia em suas relações com a comunidade. Não tem havido, contudo, redução significativa das taxas de criminalidade. O elemento mais importante, de fato, é a mudança no relacionamento entre a polícia e a comunidade. De qualquer forma, nenhum estado adotou o modelo de polícia comunitária como modelo geral para a Polícia Militar;

• criação de Ouvidorias de Polícia em vários estados. As Ouvidorias têm como missão receber denúncias de abusos cometidos por policiais, garantindo o anonimato do denunciante, se for necessário. As denúncias são encaminhadas às Corregedorias (Departamentos de Assuntos Internos) para serem investigadas e a Ouvidoria acompanha esta investigação. A instituição publica relatório periódico sobre as denúncias recebidas e funciona como elemento de mobilização e conscientização sobre o assunto. No entanto, a falta de comunicação posterior com os denunciantes e a baixa proporção de casos que resultam em punição para os acusados provocam um considerável grau de insatisfação entre os denunciantes, como mostraram as pesquisas realizadas em três Ouvidorias. O grau de institucionalização é ainda incipiente e o desempenho depende em grande medida da figura do Ouvidor. Não é comum contarem as Ouvidorias com um quadro de funcionários ou orçamentos próprios, e muitas funcionam nos edifícios das Secretarias de Segurança, contrariando sua vocação de manter sigilo;

• uso de técnicas de geo-referenciamento para mapear as áreas e horários de maior incidência criminal, com a finalidade de dirigir o patrulhamento preventivo a esses pontos críticos. De fato, os estudos clássicos que avaliavam o impacto do patrulhamento, como o de Kansas City em 1972, concluíram que o patrulhamento não específico, sem foco espacial ou temporal, não consegue reduzir a criminalidade. A Polícia Militar de Belo Horizonte, entre outras, trabalhou na linha do geo-referenciamento;

• programas-piloto para reduzir a violência letal em áreas marginais com alta incidência de homicídios. Entre eles, podemos citar GPAE no Rio de Janeiro e “Fica Vivo” em Belo Horizonte. Constituem uma certa novidade no país, porque os crimes contra a vida, ao contrário dos crimes contra a propriedade e os seqüestros, nunca foram uma prioridade das políticas de segurança pública brasileira. Isso acontece, entre outras razões, porque as vítimas de homicídios são em sua maioria pessoas das classes mais humildes, sem voz nem influência política comparáveis às classes médias e altas.

O programa GPAE (Grupo de Policiamento em Áreas Especiais) foi aplicado pela primeira vez na favela Pavão-Pavãozinho-Cantagalo em 2000 e, posteriormente, estendido a outras três comunidades pobres da cidade. Substituindo a estratégia tradicional de invasões periódicas com tiroteios, a polícia permanece na comunidade de forma estável, tenta desenvolver uma relação de proximidade com os habitantes locais e prioriza em sua atividade a redução de incidentes armados, não a luta contra o crime em geral. Além disso, a polícia se esforça para ajudar a comunidade a ser incluída em programas sociais, especialmente para a juventude, que possam contribuir à prevenção da violência. Trata-se de uma iniciativa de redução de danos, parcialmente inspirada na experiência Cease Fire de Boston. Seus resultados mostraram que, respeitadas certas condições, é possível reduzir os tiroteios e a insegurança nas comunidades afetadas. Apesar disso, a experiência não foi considerada um novo modelo de polícia para comunidades marginais, mas apenas um caso especial.

O programa ‘Fica Vivo’ foi introduzido em anos recentes numa favela de Belo Horizonte com altos níveis de violência. Combina intervenção policial com programas sociais, sobretudo para a juventude. Os resultados são aparentemente positivos quanto à redução dos homicídios;

• avanços no tratamento da informação policial, através da informatização, racionalização e arquivo de denúncias e dados de inteligência. Nas polícias civis da grande maioria dos estados, a falta de um sistema eficiente de informações e de um programa informatizado e centralizado para coleta de denúncias limita a circulação da informação. Os dados de inteligência, por exemplo, costumam “pertencer” ao policial que os obtém e, ao mudar de distrito, leva consigo as informações. No caso do estado do Rio de Janeiro, o programa Delegacia Legal, implantado no final dos anos 90 pelo governo do estado, modificou substancialmente o modo de operação dos policiais. Além de melhora na infra-estrutura e nas instalações –como a construção de delegacias modernas, com aspecto de escritórios e com espaços abertos que dificultam, por exemplo, locais fechados onde poderiam acontecer abusos e torturas, e além da supressão da carceragem no interior das delegacias, a iniciativa se propôs a alterar o trabalho cotidiano de investigação para torná-lo mais eficiente. A atenção inicial aos denunciantes passou a ser dada por bolsistas universitários, melhorando o tratamento recebido pela população, e liberando, supostamente, os policiais para que se concentrassem em sua missão investigadora. As denúncias passaram a ser registradas no sistema informático centralizado, o que trouxe várias vantagens consideráveis. A informação circula com maior rapidez e pode ser acessada instantaneamente, facilitando a produção dos dados criminais. Os agentes não podem eliminar um registro depois de criado. Antes, a possibilidade de eliminação facilitava a corrupção. Quando um agente é transferido para outra unidade, toda a informação permanece na unidade de origem. O sistema integrado facilita enormemente a fiscalização do Departamento de Assuntos Internos, que tem acesso aos registros em tempo real sobre a qualidade do trabalho de cada policial. Essa conduta, somada ao fato de que o sistema informatizado não funciona se as informações não forem cadastradas de forma correta, melhorou substancialmente a qualidade dos dados processados. As resistências institucionais e a dificuldade de alterar algumas rotinas negativas, como os turnos de trabalho de 24 horas, limitaram o impacto do projeto, mas não resta dúvida de que a introdução do projeto foi um divisor de águas, quando se analisa o desempenho da Polícia Civil fluminense;

• tentativas de integrar a atuação das polícias militar e civil. A separação entre as duas polícias está estabelecida na Constituição de 1988, razão pela qual não é possível, por enquanto,5  unir as duas polícias. Em função disso, alguns estados tomaram medidas para integrar na prática o trabalho das duas corporações. O estado do Pará, por exemplo, criou uma academia conjunta para as duas polícias, sem no entanto, unificá-las, de forma que a convivência entre elas pudesse desde o princípio da formação ajudar a superar desconfianças e divergências.

Outros estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, instituíram áreas de segurança conjunta para as duas polícias, obrigando, dessa forma, que as jurisdições geográficas das duas instituições – batalhões da Polícia Militar e delegacias da Polícia Civil – coincidissem, pela primeira vez, na tentativa de promover um trabalho conjunto. Até o momento o grau de acerto dessa iniciativa é bastante modesto.

04

Políticas Municipais

Introdução

O poder local surge como um ator de crescente importância. Embora a grande maioria das competências de segurança pertença ao âmbito estadual, a pressão popular e a melhor situação econômica de alguns municípios em relação aos estados têm favorecido a intervenção local.6

Os municípios tendem a envolver-se em geral em programas de prevenção, tanto por sua vocação natural, como porque não costumam contar com aparato de repressão tradicional, como policiais, prisões etc. A lenta mudança de paradigma da segurança pública oscila entre um esforço maior na prevenção e o uso exclusivo da repressão. Apesar das vantagens de uma abordagem preventiva, os programas de prevenção costumam ser complexos e freqüentemente só apresentam resultados a médio ou longo prazo.

Durante os últimos 15 anos, os municípios executaram cada vez mais intervenções de segurança pública, às vezes como resultado de iniciativas de outras esferas públicas – como foi o caso do PIAPS, anteriormente citado, mas na maior parte das vezes como resultado de iniciativas próprias. Neste caso, os municípios buscam fundos em outras instâncias, o que não altera o fato de ter sido uma iniciativa local.

Em algumas ocasiões, a decisão de lançar um programa municipal é deflagrada por algum episódio de violência de maior repercussão no município. Os tipos de intervenções variam. Por exemplo, a criação ou expansão de uma guarda municipal, o estabelecimento de alarmes ou câmaras em pontos-chave da cidade, ou implementação de projetos sociais. Embora essas intervenções incluam em alguns casos componentes de repressão ao crime, a grande maioria das iniciativas diz respeito à prevenção.

Diversos municípios do interior do estado de São Paulo, médios ou grandes, com recursos disponíveis e uma administração local com razoável competência técnica, lançaram iniciativas deste tipo. Observa-se que quando municípios vizinhos realizam planos de prevenção, aumenta a probabilidade de que outros sigam o mesmo caminho. O Fundo Nacional de Segurança Pública do Brasil é um recurso que o Governo Federal destina a financiar alguns projetos estaduais de segurança pública e, de forma secundária, projetos municipais. Embora o Fundo focalize a segurança dos estados, muitos projetos municipais solicitaram financiamento ao Ministério.

Na realidade, embora os projetos que nascem nos municípios apresentem um quadro fragmentado, a situação pode ser considerada mais favorável que a dos grandes planos nacionais de segurança. Isto ocorre porque os planos nacionais estão sujeitos a vai-e-vem, atrasos ou paradas e podem entrar em colapso ou perder a força rapidamente quando mudam as condições políticas. De fato, a maioria dos programas demonstra uma preocupante falta de continuidade. Já o surgimento de iniciativas locais espontâneas pode ter melhores perspectivas de continuidade geral, apesar das incertezas que marcam os projetos em cada município. As iniciativas de alguns municípios, particularmente os pequenos, podem sofrer deficiências técnicas e não chegar a ter o grau de homogeneidade e articulação que tem um programa nacional bem aplicado. No entanto, os programas nacionais não costumam atingir a universalidade e a capilaridade com que são concebidos e sofrem riscos permanentes de interrupção.

É interessante a capacidade de articulação dos municípios entre si para enfrentar o problema. Entre as vantagens desta opção, estão as economias de escala relativas ao investimento técnico, sobretudo em municípios pequenos. O planejamento, a supervisão e a avaliação dos programas poderiam ser realizados por uma única equipe técnica contratada para esse fim por todos os municípios de uma determinada região. Há também vantagens metodológicas, quando se trata de um único programa aplicado em um conjunto de municípios. Por exemplo, poder contar com uma amostra maior, dispor de alguns locais como grupos de controle e outros como grupo experimental etc. Outro ponto que reforça a importância da articulação intermunicipal é o deslocamento criminal. Quando um crime é reprimido com maior intensidade em um determinado lugar, é comum que os criminosos se transfiram para outros lugares, mudem a forma de delito ou ataquem outro tipo de pessoas. Por isso, qualquer avaliação de uma intervenção local contra a criminalidade, deve levar em conta a possibilidade de que o crime aumente em áreas vizinhas. Foi o que ocorreu, por exemplo, na implantação da “lei seca” em Diadema, município da Grande São Paulo, que será analisada mais adiante. Tal medida ajudou a reduzir os incidentes violentos em Diadema, ao mesmo tempo em que aumentavam nas regiões vizinhas. Esta avaliação só foi possível pelo cruzamento de dados de vários municípios, e levou os administradores à conclusão de que parte dos habitantes de Diadema passou a freqüentar as cidades próximas em busca da diversão que já não havia na sua. As vantagens de uma intervenção intermunicipal são mais evidentes nas regiões metropolitanas, onde a problemática é comum e a circulação de vítimas e de infratores é intensa.

Um exemplo de tentativa de coordenação intermunicipal é a criação do Fórum Metropolitano de Segurança Pública na área metropolitana de São Paulo. O fórum reúne secretários de segurança municipais, ou equivalentes, junto a representantes do governo estadual, para o planejamento de iniciativas conjuntas e a troca de experiências e informações.

Arquitetura institucional nos municípios

Como a competência central da segurança pública sempre foi dos estados, não havia estruturas municipais de segurança. À medida que os municípios chamaram para si essa responsabilidade, acabaram criando uma instância, em geral uma secretaria, com a missão de coordenar todos os programas relevantes. Em alguns casos, particularmente no estado de São Paulo, são secretarias municipais de segurança pública. Em outros casos, adotam nomes diferentes ou antigas secretarias passam a ter novas incumbências.

Entre os municípios nos quais antigas secretarias foram reestruturadas, para assumir novas competências, destaca-se Vitória, capital do Espírito Santo. Diadema, na Grande São Paulo, é um dos municípios que criou novos órgãos para tratar da segurança pública.

Vitória é o centro de uma região metropolitana densamente povoada e castigada, há muitos anos, por uma das mais altas taxas de homicídios do País. Ainda, o estado de Espírito Santo foi tradicionalmente considerado um dos lugares onde o crime organizado mais se enraizou, afetando setores significativos dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a ponto de suscitar pedidos de intervenção federal. Paradoxalmente, ao lado de índices tão negativos, Vitória também se destaca pelos esforços da prefeitura, durante várias administrações, para reduzir o crime e a insegurança. Em 1994 foi criada a Secretaria Municipal de Cidadania, para prestar serviços à população de menores recursos e tornar mais acessíveis os direitos para os segmentos mais vulneráveis. Em 1997 criou-se, na secretaria, um núcleo de segurança pública. Pouco depois, a secretaria foi reestruturada e passou a chamar-se Secretaria Municipal de Cidadania e Segurança Pública.

A secretaria tem como principais funções a coordenação dos projetos e a articulação com as polícias, com as ONGs e com a sociedade civil em geral. Também administra a obtenção de financiamentos por parte do governo federal.

O Centro Integrado de Cidadania (CIC), construído em um edifício cedido pela Universidade Federal de Espírito Santo, oferece serviços de promoção de direitos e acesso à justiça para os mais desfavorecidos. O CIC é coordenado pela secretaria e recebeu financiamento do governo federal, por meio do PIAPS.

No caso de Diadema, São Paulo, o município estruturou uma Secretaria de Segurança Pública, ex-nihilo, para tratar da questão. Diadema foi durante a década de 90 um dos municípios mais violentos da área metropolitana de São Paulo e, por extensão, do Brasil e da América Latina. Quando a nova administração municipal iniciou seu mandato em 2001, criou uma secretaria especialmente para cuidar do assunto. Suas funções eram definir as diretrizes de atuação da Guarda Municipal e sua coordenação com as polícias estaduais no desenvolvimento de programas conjuntos de prevenção criminal.

05

Participação da sociedade

Muitos projetos municipais se propõem a fomentar a participação da comunidade e da sociedade civil no processo de formulação e implementação dos projetos.

Vitória decidiu intervir ativamente na área da violência, ao mesmo tempo em que criou o Conselho Municipal para formular um plano estratégico para a cidade. A violência era apenas um dos temas a serem tratados. O Conselho reuniu 350 componentes de diversos órgãos do poder público e representantes da sociedade civil que participaram da elaboração do plano. Numa segunda etapa, foram criados o Conselho de Segurança Municipal e os Conselhos Municipais Regionais de Segurança Pública.

O Conselho de Segurança Municipal está formado pelo Secretário Municipal de Segurança, os presidentes dos Conselhos Regionais de Segurança e um representante da Câmara Municipal. Além disso, têm assento representantes do poder estadual, como o chefe do departamento da Polícia Judiciária de Vitória, o comandante do 1º Batalhão da Polícia Militar e um representante do Ministério Público estadual, um representante da Associação Comercial, um membro da Federação de Indústrias do Estado do Espírito Santo, o presidente do Conselho Popular de Vitória e um representante da Ordem dos Advogados.

Os Conselhos Municipais Regionais de Segurança Pública foram constituídos de acordo com as regiões administrativas da cidade: um para cada uma das sete regiões. Contam com representantes das polícias Civil e Militar, membros das comunidades e um agente da prefeitura. Seu objetivo é formular propostas de intervenção e aproximar o poder público – particularmente as polícias – das comunidades beneficiárias.

O município do Recife, capital do estado de Pernambuco, outra das cidades com maior taxa de homicídios do país, também elaborou uma estratégia de mobilização social. Foram criados dois órgãos: o Conselho Municipal de Direitos Humanos e o Comitê de Promoção de Direitos Humanos e de Prevenção à Violência. A visão dos responsáveis políticos é de que segurança pública e direitos humanos são objetivos que devem ser buscados simultaneamente.

O Conselho Municipal de Direitos Humanos é um órgão que conta com oito membros da prefeitura e oito da sociedade civil. Sua função teórica é receber denúncias sobre violações dos direitos humanos e articular políticas públicas de defesa desses direitos, mas não chegou a cumprir suas funções de forma satisfatória.

O Comitê de Direitos Humanos e Prevenção da Violência é um órgão composto por membros de diversas secretarias municipais, sem participação da sociedade civil. Sua missão não é executar projetos, competência das respectivas secretarias, mas coordenar de forma efetiva os esforços municipais. Duas iniciativas relevantes que surgiram do Comitê foram a composição de um fórum que serve de espaço para debates e a realização de mapas da violência mostrando os riscos em cada zona da cidade.

Em geral, a mobilização e a participação social podem trazer vários efeitos benéficos:

• efeitos sobre a concepção, gestão e acompanhamento dos programas, quanto à sua descentralização, democratização etc.;

• o impacto preventivo que o crescimento das redes sociais e a melhora nas relações comunitárias podem implicar com relação ao temor e à violência, seja de forma indireta, ao reduzir o temor e estimular a ocupação dos espaços públicos, ou de forma direta, ao promover a resolução pacífica dos conflitos cotidianos;

• uma mudança na percepção social da violência, que interiorize o novo paradigma da prevenção;

Da mesma forma, a participação enfrenta diversos obstáculos. Em primeiro lugar, o risco mais evidente é que essa participação seja usada de forma retórica, mas não aplicada na prática, especialmente quando é um requisito imposto de cima para baixo.

No estado de Rio de Janeiro, o governo estadual determinou a criação de Conselhos Municipais de Segurança como uma das condições para financiar projetos municipais de segurança pública. Poucas foram as prefeituras que criaram conselhos. O município de São Gonçalo, na Região Metropolitana de Rio de Janeiro, inaugurou seu conselho em 2004, mas com um impacto muito limitado. O candidato que se apresentava representando a sociedade não tinha suficiente respaldo e diversas autoridades não levaram a sério a instituição.

Em segundo lugar, a mobilização é muito difícil em certas comunidades. Infelizmente, as que mais poderiam beneficiar-se da participação e intervenção são em geral as mais relutantes em participar. Dessa forma, nas comunidades com um alto nível de violência, as redes sociais costumam deteriorar-se e os moradores não confiam uns nos outros.

Em terceiro lugar, a mobilização popular é às vezes intensa em certos momentos de crise ou em função de objetivos específicos a serem alcançados, mas tende a diminuir a médio prazo ou quando já não existem mais metas muito claras, como a obtenção de um posto policial ou de recursos para um determinado projeto.

Em quarto lugar, a composição dos órgãos que representam a sociedade e a representatividade de seus membros são questões que estão longe de serem resolvidas. Um dos riscos mais claros é o de reduzir a participação popular aos setores de maior influência e grau de organização. Por exemplo, a hegemonia dos comerciantes nos conselhos populares é relativamente comum.

Em quinto lugar, há numerosos casos de utilização dos órgãos de participação por parte dos agentes do Estado como um meio de obter recursos da comunidade. Este é o caso de financiamento de custos de manutenção de polícias estaduais por comerciantes locais, representados nos conselhos.

Por último, cada processo aberto de participação, particularmente os que têm o perfil de assembléia, possui uma dinâmica própria e seu resultado final é imprevisível: podem surgir problemas inesperados.

Um exemplo ocorreu no Conselho Municipal Regional de Maruípe, em Vitória. As reuniões do conselho eram tradicionalmente abertas à participação. No entanto, os participantes começaram a sentir-se intimidados, quando surgiu a informação de que um criminoso procurado pela polícia tinha estado presente na reunião em que foram discutidas as estratégias para capturá-lo. Independentemente de que tal fato tenha ocorrido ou não, o sentimento de insegurança que se instalou nas reuniões levou à proibição da presença de qualquer pessoa que não fosse membro efetivo do Conselho. Esta limitação suscitou um grande debate. Na opinião de alguns, os Conselhos são órgãos abertos por definição e fechá-los significa negar seus princípios. A proibição da presença de pessoas que não são membros efetivos implicaria uma mudança para um órgão representativo e não- participativo, contrariando seu propósito original.

Vitória representa um caso de triste paradoxo. Os Conselhos Municipais Regionais da cidade, que eram um exemplo de participação social, foram dissolvidos quando o poder público percebeu que vários conselheiros tornaram-se candidatos dos partidos de oposição nas eleições municipais, justamente pela visibilidade pessoal que haviam conseguido como membros dos conselhos.

Tipos de programas preventivos existentes

Os tipos de projetos de prevenção contemplados são de três grupos: situacionais, sociais e policiais. É comum um programa abranger mais de um dos três ao mesmo tempo.

Os programas de prevenção situacional pretendem reduzir as oportunidades de ocorrência de crimes ou atos de violência em determinados locais, atuando diretamente sobre eles. A meta é a modificação do meio social para torná-lo menos susceptível à ocorrência de delitos. Por trás deste modelo está a teoria das oportunidades, que ressalta a importância não de mudar o agressor potencial, mas de tentar reduzir as oportunidades para que transgrida. O contra-argumento tradicional é que se um agressor potencial não encontra condições favoráveis em um local, buscará outro, mas poderá continuar cometendo delitos. No entanto, é inegável que a diminuição de oportunidades em vários lugares acabará reduzindo o volume total de delitos, pois nem todos poderão “transferir-se” a outro lugar com facilidade. Ainda, alguns crimes são cometidos por impulsos de momento – brigas de rua, por exemplo –, de tal maneira que estão associados a um determinado contexto e não surgiriam necessariamente em um contexto diferente.

A forma mais simples de intervir nesta linha é, por exemplo, melhorar a iluminação urbana, o que aumenta a visibilidade, reduz a sensação de perigo e pode acabar diminuindo também o risco de um ataque ou assalto. A recuperação de espaços públicos degradados – matagais, por exemplo – para que não gerem insegurança é uma estratégia observada em várias intervenções.

É clássico o exemplo de prevenção situacional com a instalação de câmeras em pontos de grande circulação da cidade ou em pontos de alto risco. As câmeras são conectadas a um centro de supervisão, normalmente dirigido pela polícia, e permitem uma resposta rápida quando é cometido um crime. Um número significativo de municípios do estado de São Paulo optou pela instalação de câmeras, com um centro integrador de vigilância, em geral sob a responsabilidade da Guarda Municipal, que aciona a polícia em caso de necessidade.

Os programas de prevenção social são intervenções que procuram mudar as condições de vida de pessoas com alto risco de desenvolver comportamentos agressivos ou delitivos, no intuito de diminuir esse risco. São os programas de prevenção por antonomásia: os mais comuns, os que recebem mais recursos e os que sempre estiveram mais próximos ao cotidiano das prefeituras. Normalmente, existem três níveis de prevenção social:

• prevenção primária, dirigida à população em geral, como os programas de atenção universal;

• prevenção secundária, destinada aos grupos em risco de sofrer ou cometer atos violentos;

• prevenção terciária, cuja meta é aliviar a situação das vítimas da violência ou ajudar a reinserção social dos autores.

As prefeituras agem mais, tradicionalmente, na prevenção primária, que é muito ampla. No entanto, sua capacidade de conseguir resultados depende muito de sua habilidade para dirigir seus recursos aos grupos de mais alto risco.

É comum que os programas de prevenção social demorem para apresentar resultados, pois se baseiam na mudança das condições de vida ou das relações entre as pessoas. Todavia, quando conseguem atingir o alvo desejado, seu impacto pode ser mais intenso e mais prolongado que o dos programas situacionais.

A filosofia de diferentes programas de intervenção social enfatiza conceitos diversos, como direitos humanos, cidadania, melhoria das condições materiais de vida e outros. Isso dá a cada programa um perfil diferente, mesmo que a abordagem geral seja a mesma.

Alguns exemplos comuns de prevenção social são os seguintes:

• projetos educativos, para aumentar a escolaridade dos jovens e evitar a evasão escolar, aumentando assim suas opções profissionais e pessoais;

• projetos de formação profissional para os jovens, com a mesma finalidade;

• projetos de formação cidadã – com diversos subtemas específicos – para jovens de áreas de risco, de maneira que passem a ser uma liderança positiva em suas comunidades e se transformem em agentes catalisadores contra a violência;

• projetos culturais e recreativos dirigidos à juventude. Um exemplo são as atividades culturais organizadas nas escolas depois das aulas. Em ocasiões, as atividades recreativas são realizadas em locais e horários de alto risco de violência. Desta forma, são feitas as prevenções social e situacional simultaneamente. Com estes programas, pretende-se estimular a auto-estima das crianças e oferecer-lhes uma forma construtiva de empregar seu tempo;

• projetos de saúde, especialmente para os mais jovens;

• projetos de apoio jurídico e administrativo à população não-habituada a lidar com os mecanismos do Estado formal;

• projetos de assistência social ou de trabalho comunitário com membros de grupos de jovens, para desestimular a violência;

• campanhas de educação pública com temas como a violência doméstica ou a solução de conflitos através de mediações;

• centros de apoio a vítimas da violência (violência doméstica etc.).

Em muitas prefeituras, os programas de prevenção da violência constituem, na realidade, uma reconceitualização terminológica de velhos projetos assistenciais de larga tradição. Esta reconceitualização pode estimular a abordagem e a reflexão de como integrar na prática o funcionamento dos diversos projetos.

Em Recife, por exemplo, o programa Bolsa-Escola concede subsídio às mães de famílias pobres para que mantenham seus filhos na escola. Trata-se do programa principal da administração municipal, que repassa valores econômicos muito superiores ao de seu homônimo federal. Como parte da reflexão sobre a prevenção da violência, o programa agora mantém como um de seus critérios de seleção, além da renda, o benefício a mulheres de presos com filhos em idade escolar.

Em Vitória, o programa “Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano” forma jovens na prevenção de enfermidades, proteção ao meio-ambiente ou cidadania. Um dos critérios de seleção do programa é incorporar jovens que tenham sido condenados por cometer delitos. Ainda, funciona integradamente com o programa Terra, de prevenção à deterioração ambiental, pois os mesmos jovens formados pelo programa são os que conscientizam suas comunidades no trabalho de preservação dos manguezais.

Os programas de prevenção policial constituem iniciativas em que o poder local atua através de uma força policial para que esta, por meio do patrulhamento das ruas, da atuação da polícia comunitária ou de outro mecanismo, ajude a reduzir a incidência criminal. Estes programas dependem, obviamente, da capacidade de articulação das forças policiais do município. Uma opção é a cooperação com as polícias estaduais, mas são muitas as resistências a um efetivo controle municipal, nas áreas política, administrativa e cultural. De fato, as experiências de polícia comunitária – o paradigma mais notório de prevenção policial nestes casos – são quase sempre iniciativa das autoridades estaduais de segurança pública.

Outra opção mais comum é a participação da Guarda Municipal, para os municípios que a possuem. O perfil e o tamanho da Guarda Municipal são uma questão central no debate sobre segurança pública municipal no país. O papel constitucional previsto para a mesma é a vigilância de edifícios públicos, parques e monumentos. No entanto, na prática, a diversidade de situações é bastante grande. Muitos municípios não têm ainda uma Guarda Urbana e outros a criaram recentemente. Vitória, por exemplo, que desde os anos 80 realiza iniciativas de prevenção, não tinha uma Guarda até 2004. Em outros casos, as Guardas foram reformadas e expandidas. Algumas, particularmente em São Paulo, usam armas de fogo,7  o que aumenta o risco para os agentes e pode diminuir seu potencial de trabalho comunitário. Se as Guardas se transformam em polícias comuns, perde-se o diferencial na segurança pública. Os casos no Brasil oscilam entre Guardas que aspiram ser polícias militares e Guardas que se dedicam apenas à vigilância de edifícios públicos, escolas e parques, ou à organização do trânsito.

Um bom exemplo de programa de prevenção policial é a aplicação da chamada “Lei Seca” em Diadema. Como já foi explicado, este município apresentava altíssimas taxas de homicídios nos anos 1990, que a transformaram em símbolo de violência no país. Um estudo sobre os homicídios mostrou que 60% deles ocorriam em bares ou em áreas próximas durante a noite. O município estabeleceu em 2002 o fechamento dos bares a partir das 23 horas. Alguns locais contam com licença especial para funcionar depois deste horário, sempre que respeitem determinados requisitos: ambiente fechado, serviço próprio de segurança e não ter registro de casos de violência em passado recente. Esta exigência faz dos donos de bares agentes ativos da prevenção da violência.

Com uma intervenção cuidadosamente planejada para conseguir o apoio do Ministério Público e dos tribunais, patrulhas noturnas da Guarda Municipal e da Polícia Militar vigiam o cumprimento da lei. Qualquer bar notificado três vezes por não cumprir a norma perde a licença. O dono pode optar por outra atividade comercial se quiser. O fechamento dos bares é feito durante o dia, para não criar conflitos desnecessários com os clientes à noite.

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Avaliação dos projetos

Tanto os programas federais como os estaduais e municipais necessitam de uma avaliação de resultados que aponte caminhos e suscite apoio público e político para as iniciativas bem sucedidas. No entanto, é desoladora a situação. Os programas não contam com avaliações de impacto que mostrem se alcançaram os resultados propostos.

Existem alguns relatórios de avaliação que costumam fazer referência somente às avaliações de implementação – atividades realizadas, número de beneficiários etc. – ou constituem auditorias para verificação de gastos. Em ambos os casos, é desprezada a questão central do impacto. Ademais disso, não raramente, tais relatórios se concentram em medir a participação e a mobilização popular, que são variáveis intermediárias. Não refletem a evolução do que os programas consideravam seu objetivo principal: a redução do crime e do medo.

A tradicional deficiência de dados neste campo não contribui para a realização de uma avaliação rigorosa. De fato, muitos planos municipais incluem como meta a melhora da produção e o acesso às informações de segurança pública. Muito poucos mostram resultados satisfatórios.

Os “relatórios de avaliação” costumam ser elaborados pelos próprios técnicos que conduzem os projetos, razão pela qual tendem a ser auto-elogiosos ou ter como líquido e certo que os efeitos procurados aparecerão quando as atividades sejam realizadas. Raramente a avaliação é feita por uma agência independente, tecnicamente capaz e neutra em relação ao programa.

Uma avaliação de qualidade deveria ser planejada junto com a intervenção, para que fossem destinados recursos, programadas atividades de avaliação e, sobretudo, realizado um trabalho anterior à intervenção, para que se pudesse fazer uma comparação para registrar as mudanças ocorridas. A avaliação de impacto é metodologicamente complexa. A forma ideal de realizá-la requer um grupo experimental e outro de controle, pessoal qualificado e dados precisos. Não pode ser realizada se não se conhece a situação prévia à intervenção, cujo impacto se deseja medir. O ideal é que toda avaliação de um projeto de certo porte seja feita, ao menos em parte, por instituições independentes, cujo trabalho não esteja diretamente vinculado a seu resultado.

As avaliações na área de segurança pública e de prevenção são particularmente difíceis,8  em função de diversos fenômenos (migração do crime de uma área para outra, multiplicidade de dimensões, efeitos a médio e longo prazo etc.). No entanto, são de extrema importância para garantir a continuidade dos programas e para que se possa alocar os recursos de forma eficiente. A maioria dos programas sofre de descontinuidade e transcorre em períodos curtos, o que dificulta a avaliação. Também é verdade, contudo, que sem avaliações que revelem efeitos claros será difícil conseguir financiamentos a longo prazo para esses projetos.

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Notas

1. Neste sentido, seguia a tendência americana de militarizar o combate às drogas.

2. Nesse episódio, a polícia cercou o assaltante que estava dentro de um ônibus urbano e os passageiros foram feitos reféns. Depois de horas de tensão transmitidas ao vivo pela televisão, a polícia abortou a negociação e tentou matar o delinqüente. A falha no disparo da polícia provocou a morte de um refém. O assaltante foi preso e asfixiado até a morte dentro de um carro da polícia.

3. G. Mingardi, Tiras, Gansos e Trutas. Segurança Pública e Polícia Civil em São Paulo (1983-1990), Porto Alegre, Corag., 2000.

4. Nesse massacre, policiais militares assassinaram aleatoriamente 29 pessoas, aparentemente para desestabilizar o comandante de seu batalhão, que estava introduzindo medidas moralizadoras e de controle. CESEC/ FASE / JUSTIÇA GLOBAL/ Laboratório de Análise da Violência / UERJ/ SOS QUEIMADOS/ VIVA RIO Impunidade na Baixada Fluminense. No Prelo.

5. Existe um projeto de lei que propõe a “desconstitucionalização” do modelo policial, ou seja, retirar a menção existente na Constituição, para que cada estado escolha o modelo que lhe pareça melhor.

6. J.T. Sento-Sé (org.), Prevenção da Violência: O papel das cidades, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

7. Essa questão não-contemplada na legislação foi legitimada a posteriori pelo Estatuto do Desarmamento de 2003, para municípios de um certo tamanho.

8. WORLD BANK Department of Finance, Private Sector and Infrastructure, Latin American Region, Prevenção Comunitária do Crime e da Violência em Áreas Urbanas da América Latina:Um Guia de Recursos para Municípios, 2003.

Ignacio Cano

Formação e Doutorado em Sociologia na Universidad Complutense de Madri, com a especialidade de Psicologia Social. Pós-doutorado pelas Universidades de Surrey (Reino Unido), Michigan e Arizona (EUA) com ênfase em metodologia de pesquisa e avaliação de programas sociais. Trabalha na área de violência e direitos humanos desde 1991 em vários países da América Latina. Desde agosto de 2000 é Professor concursado de Metodologia de Pesquisa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É membro do Laboratório de Análise da Violência da mesma universidade, onde desenvolve pesquisas na área de violência, segurança pública e direitos humanos.

Original em espanhol. Traduzido por Maria Lucia Marques.