Comparando Brasil, França e Japão
O trabalho de cuidado foi exercido durante muito tempo por mulheres ao interior do espaço doméstico y de forma gratuita. Alguns fatores como o desenvolvimento de profissões relacionadas ao cuidado, a cada vez maior inserção das mulheres no mercado de trabalho remunerado, assim como os fluxos migratórios em um contexto de globalização crescente geraram não só uma nova divisão internacional do trabalho, mas também reconfiguraram o trabalho de cuidado. No artigo, a autora apresenta algumas modalidades da divisão sexual e internacional do trabalho através de um estudo comparado entre Brasil, França e Japão. Para além das diferenças societais, os diferentes atores do cuidado como o Estado, o Mercado e a família, combinam-se, agindo de maneira desigual e assimétrica. O trabalho de cuidado continua sendo realizado maioritariamente por mulheres nos três países, e provavelmente seguirá sendo assim, já que se trata de um trabalho precário, com baixos salários, pouco reconhecido e pouco valorizado. Assim, a autora destaca a importância de levar em consideração as desigualdades de gênero, classe e raça que estão imbricadas no contexto de internacionalização do trabalho de cuidado.
O trabalho de cuidado é exemplar das desigualdades imbricadas de gênero, de classe e de raça, pois os cuidadores são majoritariamente mulheres, pobres, negras, muitas vezes migrantes (provenientes de migração interna ou externa). Por ser “um conjunto de práticas materiais e psicológicas que consiste em trazer respostas concretas às necessidades dos outros”,11. Pascale Molinier, Sandra Laugier e Patricia Paperman, Qu’est-ce que le care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité (Paris: Payot & Rivages, 2009): 17. o trabalho de cuidado de idosos, crianças, doentes, deficientes físicos e mentais foi exercido durante muito tempo por mulheres, no interior do espaço doméstico, na esfera dita “privada”, de forma gratuita e realizado por amor. O desenvolvimento das profissões relacionadas ao cuidado, a mercantilização e a externalização desse trabalho foram consequências, de um lado, do envelhecimento da população e, de outro, da inserção em massa das mulheres no mercado de trabalho. Isso ocorreu em países tão diferentes quanto Brasil, França e Japão. Com a mercantilização, o trabalho feminino de cuidado, gratuito e invisível, torna-se visível e passa, enfim, a ser considerado um trabalho (com seus corolários: formação profissional, salário, promoção, carreira etc.). Torna-se até mesmo um trabalho possível de ser exercido por homens, como nas instituições de longa permanência para idosos no Japão, onde, segundo nossa pesquisa de campo realizada em 2010 e 2011,22. A pesquisa “Teoria e prática do cuidado: Comparação Brasil, França, Japão” foi realizada em 2010 e 2011. Contamos com a participação, no campo brasileiro, de Myrian Matsuo, pesquisadora da FUNDACENTRO - Ministério do Trabalho, São Paulo, e, no campo francês, de Efthymia Makridou, doutoranda em sociologia do laboratório CRESPPA-GTM - Universidade de Paris 8. cerca de 30 a 35% dos care workers são homens.
A heterogeneidade dos perfis dos care workers entrevistados em nosso estudo “Teoria e prática do cuidado: Comparação Brasil, França e Japão” contrasta com o fato de que, nos três países, trata-se de uma profissão pouco valorizada, com salários relativamente baixos e pouco reconhecimento social. Essa igualdade de condições profissionais, a despeito da desigualdade de perfis e trajetórias desses trabalhadores, parece encontrar sua explicação no próprio cerne da atividade de cuidado, realizado tradicional e gratuitamente na esfera doméstica e familiar pelas mulheres. Essa hipótese, que é formulada pelas teóricas do gênero e do care, foi confirmada por nossa pesquisa.33. Foram realizadas 330 entrevistas:
- 235 em estabelecimentos (3 Etablissements d’Hébergement pour les Personnes Agées Dépendantes na França, 3 Instituições de Longa Permanência para Idosos no Brasil e 3 Tokubetsu Yogo Rojin Home no Japão): 10% de homens na França, 3% no Brasil, cerca de 35% no Japão.
- 95 cuidadoras domiciliares (zaitaku homon kaigo, cuidadoras, aide à domicile pour personnes âgées) nos três países (100% mulheres). (cf. Helena Hirata, Efthymia Makridou e Myrian Matsuo, Le travail du care: comparaisons Brésil, France, Japon - Comunicação no Colloquio Internacional “Théories et pratiques du care: comparaisons internationals“, Université Paris Descartes, 13-14 junho 2013).
Neste artigo, apresentamos diferentes modalidades da divisão sexual e internacional do trabalho do care hoje, evidenciando o lugar central ocupado pelas mulheres nesse contexto. Na primeira parte, referimo-nos às migrações internacionais em um contexto de globalização crescente, com o aumento sensível da categoria das mulheres que imigram sozinhas, sem família, para exercer trabalho doméstico remunerado e trabalho de care, sobretudo em países do Norte.
Na segunda parte, sublinhamos como a divisão racial e étnica do trabalho, com o conjunto de discriminações que ela acarreta, é indissociável da divisão sexual e internacional, e ilustramos com casos específicos encontrados na França, no Japão e no Brasil. Na terceira parte, apresentamos as diferentes configurações societais da organização social do cuidado, a partir do modelo do care diamond,44. Shahra Razavi, The Political and Social Economy of Care in a Development Context. Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options - Paper n° 3 (Genebra: UNRISD, Gender and Development Programme, junho 2007). centrando-nos particularmente sobre os casos do Brasil, da França e do Japão. Os múltiplos atores do cuidado (Estado, mercado, família, organizações não governamentais, organizações sem fins lucrativos, associações, instituições filantrópicas, trabalhadores/as voluntários/as etc.) combinam-se e atuam de maneira bastante desigual e assimétrica em cada contexto societal, mas, em todas as combinações, pode-se afirmar a centralidade do trabalho das mulheres. Por fim, retomaremos os aspectos mais teóricos deste artigo à luz de uma discussão sobre paradigmas dominantes nas ciências sociais que são postos em questão pela perspectiva do care.
Joan Tronto, cientista política norte-americana com grande influência nas pesquisas sobre cuidado na França, cujo trabalho combina perspectivas da ciência política, da economia e da ética, destaca o fato de que os/as trabalhadores/as do cuidado são, frequentemente, proletários, mulheres e migrantes: “Não é apenas o gênero, mas também o pertencimento de classe e de raça que, na nossa cultura, permite identificar quem pratica o cuidado e de que maneira”.55. Joan Tronto, Un monde vulnérable: pour une politique du care - Coll. Textes à l’Appui (Paris: La Découverte, (1993) 2009): 156. Minha pesquisa sobre o trabalho do cuidado mostra que sua expansão está, hoje, estreitamente ligada aos movimentos migratórios internacionais. Não é possível hoje trabalhar o tema do cuidado sem se interessar pelo crescimento das migrações internacionais femininas a partir dos anos 2000. Os fluxos migratórios e a globalização do cuidado e do trabalho reprodutivo desenham os contornos gerais de uma nova divisão internacional do trabalho de serviço (a “cadeia global de afeto e de assistência”).66. Cf. Cristina Carrasco, “La sostenibilidad de la vida humana : un asunto de mujeres ?,” Mientras Tanto, n° 82 (outono-inverno, 2001); Saskia Sassen, “Global Cities and Survival Circuits,” no Global Woman. Nannies, Maids and sex workers in the new economy, ed. Barbara Ehrenreich e Arlie Russell Hochschild (New York: Metropolitan Books, 2003): Introdução.
A divisão internacional do trabalho dos migrantes do Sul nas metrópoles do Norte combina-se com a divisão sexual do trabalho, com mulheres nos circuitos inferiores do capital (trabalho informal pouco visível) e os homens nos circuitos mais elevados do capital (fluxos financeiros): “A narrativa dominante sobre a globalização diz respeito às esferas mais elevadas do capital global, e não às inferiores, e à hipermobilidade do capital, mais do que ao capital que permanece no seu lugar”.77. Saskia Sassen, “Global Cities and Survival Circuits,” no Global Woman. Nannies, Maids and sex workers in the new economy, ed. Barbara Ehrenreich e Arlie Russell Hochschild (New York: Metropolitan Books, 2003): 254-274.
A especificidade do trabalho de cuidado é inegável: ele não pode ser deslocalizado, como a produção industrial das multinacionais. O cuidado requer a migração de trabalhadoras (cuidadoras e babás da Ásia, África, América Latina, do Caribe e da Europa Oriental) para os Estados Unidos, o Canadá, a Europa Ocidental e o Japão. Mais recentemente, constata-se a migração Sul-Sul: por exemplo, babás filipinas no Brasil.
Devemos salientar, contudo, que existe o movimento do capital em direção a zonas rentáveis onde haja beneficiários potenciais (idosos dependentes) não deslocalizáveis: grupos internacionais que administram empresas de cuidado para pessoas idosas dependentes criam filiais na Europa e na América Latina.
Uma nova divisão internacional do trabalho é vislumbrada se integramos a dimensão racial/étnica: veja-se, por exemplo, a divisão internacional e étnica do trabalho de confecção das comidas preparadas na Inglaterra pesquisada por Miriam Glucksman.88. Miriam Glucksmann, “Les plats cuisinés et la nouvelle division internationale du travail,” in Le sexe de la mondialisation, Jules Falquet et al. (Paris: Presses de Sciences Po, 2010): 85-98. Da mesma maneira, a comparação entre Brasil, França e Japão no setor de cuidados nos indica o interesse e a importância de integrar a dimensão racial e étnica à divisão internacional para compreender o processo da repartição social do trabalho de cuidado. Na França, mais de 90% dos cuidadores em Paris e em Île de France são migrantes. No Japão, apesar dos acordos de cooperação econômica com Indonésia e Filipinas, há poucas cuidadoras migrantes nos estabelecimentos, dadas as exigências de domínio da língua por parte das autoridades japonesas. Quanto ao Brasil, o movimento de migração internacional no setor de cuidado é ainda muito incipiente, mas há uma migração interna de cuidadoras do Norte e Nordeste para o eixo São Paulo-Rio, por exemplo (assim como ocorre com as trabalhadoras domésticas na China contemporânea).
Nosso corpus de trabalhadores(as) do cuidado domiciliar na região parisiense constitui-se de 39 assalariados(as) de uma associação que faz a intermediação entre famílias de idosos e cuidadoras, as quais são empregadas pela associação.99. Uma especificidade francesa deve ser destacada: 90% do trabalho de cuidado em Paris e na região parisiense é realizado por trabalhadores(as) imigrantes ou filhos(as) de imigrantes nascidos(as) na França. Em outras regiões francesas, o número de imigrantes é pequeno, e os(as) trabalhadores(as) do cuidado são normalmente empregados(as) franceses(as). Essas cuidadoras, entrevistadas na França, têm trajetórias profissionais e pessoais muito fortemente marcadas pelos movimentos migratórios. Do grupo de 39 pessoas, 36 eram imigrantes (34 mulheres imigrantes, dois filhos de imigrantes) e apenas três (7,6%) eram de origem francesa: uma “auxiliar de enfermagem”, uma “enfermeira” e um “cuidador domiciliar”. Dos 39, apenas quatro eram homens (10%).
Observa-se o mesmo fenômeno em instituições: em uma instituição de permanência de idosos dependentes (établissement d’hébergement des personnes âgées dépendantes – EHPAD), de 32 care workers entrevistados, 28 eram imigrantes (23 imigrantes mais cinco filhos de imigrantes); quatro (13%) eram de origem francesa; quatro eram homens (10%).
Os cuidadores domiciliares imigrantes na França são de origens nacionais diversas: onze vêm da Argélia; um do Marrocos; nove da África Negra (Togo, Senegal, Mali, Camarões); seis do Caribe (Martinica, Guadalupe); um de Reunião;1010. Embora Martinica, Guadalupe e Reunião façam parte da França como departamentos e territórios de ultramar (départements et territoires d’outre-mer, dom) e esses trabalhadores tenham a nacionalidade francesa, na qualidade de trabalhadores eles são considerados imigrantes e “racializados”/discriminados pela cor da pele, pelo sotaque e pela vinda de um território localizado fora da França dita continental. quatro do Haiti; um do Líbano; e um de Portugal.
Os cuidadores em instituição (EHPAD) também são de origens nacionais diversas. Oito do Maghreb (Argélia, Marrocos, Tunísia, 2 filhos de imigrantes); oito da África Negra (Mali, Camarões, Guiné, Zaire, Benim, Gabão, Nigéria, dois filhos de imigrantes desses países); quatro do Caribe (Martinica e Guadalupe), um procedente do Haiti; três de Madagascar; um da Reunião; um das Ilhas Mauricio; um do Líbano; um de Portugal; um da Bélgica; e um filho de imigrantes, cujos pais vieram da Alemanha.
No Brasil, não encontrei nenhum(a) trabalhador(a) que fosse imigrante, nem em instituições, nem entre os que trabalhavam em domicílio, com exceção de uma mulher boliviana cujo estatuto e perfil eram muito atípicos (um em 130, total de entrevistados em domicílio e em instituições). Em compensação, a migração interna é muito grande, com apenas 14% de nosso corpus sendo constituído por trabalhadoras oriundas do Estado de São Paulo, onde exercem sua atividade. Uma das peculiaridades do Brasil advém, portanto, de que as atividades de care, em casa ou em instituições para idosos, são realizadas por brasileiros. Ainda que o trabalho doméstico tenha sido assumido, até o fim do século 19, por escravos africanos e seus descendentes, e muito embora entre o final do século 19 e início do século 20 o Brasil tenha assistido a fluxos significativos de migração da Europa e do Japão para o trabalho agrícola e para a indústria, o setor do emprego doméstico remunerado nutre-se, hoje, de assalariados de nacionalidade brasileira, muitas vezes originários do Nordeste, mas também de Minas Gerais, do Paraná ou de Santa Catarina. São, portanto, migrações internas.
As desigualdades decorrentes das diferenças raciais e étnicas são um ponto a destacar. A discriminação (o racismo) é o corolário desse grande contingente de imigrantes entre os trabalhadores do cuidado na França. Falas e comportamentos racistas foram relatados por muitos dos cuidadores da associação entrevistados. Também as desigualdades de status de emprego conduzem à discriminação. Relataremos a seguir casos encontrados em instituições de cuidado a idosos na França e no Japão.1111. Isso não significa que não haja discriminação racial nas instituições de longa permanência de idosos (ILPI) no Brasil, pois o racismo ordinário é regra também nesse país, embora não apresentemos aqui nenhum “caso” em particular.
Os imigrantes que vêm de países da África do Norte ou da África Negra com um diploma de médico ou de enfermeira, diplomas não reconhecidos na França, são recrutados sistematicamente pelos EHPAD como cuidadores ou auxiliares de enfermagem, profissões que não necessitam geralmente de mais de um ano de formação. A presença de profissionais altamente qualificados no turno noturno, por exemplo, quando a direção e os médicos estão ausentes, é uma vantagem incontestável para o estabelecimento. Em nossa pesquisa, encontramos seis médicos, a metade recrutada como enfermeiros(as) e a outra metade recrutada como auxiliares de enfermagem.
M., cuidador noturno recrutado como auxiliar de enfermagem em um EHPAD, tinha 33 anos e veio de Guiné em 2004. Sua formação de médico no país de origem levou-o a fazer estágios no Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa em Medicina (INSERM, na sigla em francês) e um mestrado em saúde pública em Paris, com uma especialização em medicina tropical. Seu salário mensal líquido era de 1.500 euros, às vezes um pouco mais quando fazia horas extras. Segundo ele, há pessoas idosas que recusam que ele cuide delas, por ele ser negro, dizendo “Me deixe em paz”. Ele conseguiu seu emprego pela Agência Nacional para o Emprego (ANPE, na sigla em francês) e seu projeto é regressar ao seu país no futuro para exercer a profissão de médico.
Discursos racistas da parte dos beneficiários de cuidado foram mencionados por muitos dos cuidadores domiciliares. Particularmente tocante é o discurso de um cuidador do sexo masculino de 45 anos, de origem estrangeira, sistematizando várias falas de pessoas idosas em um EHPAD. Ele exprime sofrimento e revolta contra o racismo das pessoas idosas que residiam em uma instituição francesa pública e que lhe diziam: “O que você esta fazendo no meu país? Quando é que você vai embora?”. Ele conta também o caso de uma pessoa idosa que disse a um cuidador negro nascido na França: “Vá embora para o seu país”, ou ainda o caso de uma mulher idosa que procurou uma estagiária branca para lhe dar conselhos: “Não faça esse trabalho, deixe-o para os outros”. Aquela mesma que escondia sua caixa de bombons para oferecê-los somente às cuidadoras brancas.
A coexistência em uma mesma instituição de trabalhadores de status regular e de trabalhadores não regulares (haken, rinji ou part-timer) conduz a práticas discriminatórias em relação a estes últimos, sobretudo em termos de salários e de benefícios. Assim, pudemos entrevistar trabalhadores não regulares no Japão que tinham um salário muito baixo comparado ao de seus homólogos com status regular, sobretudo porque eles não se beneficiavam – a não ser de maneira muito simbólica – do “bônus”, parte variável do salário, mas de suma importância nas empresas japonesas (o equivalente, nos estabelecimentos japoneses estudados nessa pesquisa, de 4 a 5 vezes o salário mensal, duas vezes por ano).
F., cuidador (helper) do sexo masculino, de 28 anos, trabalhando em um estabelecimento japonês acolhendo idosos dependentes, tinha um diploma universitário em economia, mais seis meses de formação no trabalho de cuidado, mas sendo ringi, trabalhador não regular, sem os direitos dos trabalhadores com status de emprego permanente, percebia um salário mensal de 120.000 yens, mais baixo que os salários femininos, que são tradicionalmente inferiores nas empresas japonesas comparados com os salários masculinos. Ele mencionava sua situação de emprego, a falta de efetivos, a intensificação do trabalho e os problemas das relações humanas no seio do estabelecimento para manifestar sua intenção de procurar um outro emprego.
A grande maioria das cuidadoras entrevistadas tanto em instituições de longa permanência de idosos quanto entre as cuidadoras em domicílio, eram negras ou pardas e evocaram situações de racismo, tanto em termos de violência verbal quanto de comportamentos racistas. A essas formas de racismo se acrescentam as situações de discriminação salarial por meio do não reconhecimento de suas qualificações. O número de enfermeiros(as) e de auxiliares de enfermagem que são recrutados e remunerados como “cuidadores(as)” é muito significativo no Brasil. A qualificação desses profissionais não é reconhecida. Podemos encontrar situações similares também na França e no Japão. Trata-se de uma prática de gestão para diminuir os custos salariais. Tenta-se obter, nas instituições de longa permanência de idosos, assalariados competentes e bem formados para o trabalho de “cuidador”. Sendo a formação para esse ofício muito precária no Brasil, os estabelecimentos preferem recrutar auxiliares ou técnicos de enfermagem com o segundo grau completo e mais um ou dois anos de formação para cuidar das pessoas idosas, oferecendo-lhes um salário de cuidador(a).
Os múltiplos atores do cuidado na sociedade – Estado (estruturas centrais e locais), mercado, família, organizações não governamentais (ONG), organizações sem fins lucrativos, associações, instituições filantrópicas, trabalhadores voluntário e comunidade – combinam-se de formas diferentes e de maneira bastante desigual e assimétrica em cada contexto societal para assegurar a organização social do cuidado.1212. Helena Hirata e Nadya Araujo Guimarães (orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (São Paulo: Atlas, 2002). As múltiplas configurações do que alguns denominam care diamond (o “diamante do care”: Estado, mercado, família, comunidade [ou voluntariado, setor sem fins lucrativos])1313. Razavi, The Political and Social Economy of Care in a Development Context, 20-3; Emiko Ochiai, Changing care diamonds in Europe and Asia: Is Europe becoming Asia? - Conferência Inaugural, Center for French-Japanese Advanced Studies in Paris, EHESS, 13 abr. 2015. são visíveis na nossa comparação entre Brasil, França e Japão.
No caso da França, as políticas públicas têm um papel central no cuidado com as pessoas idosas, com um grande número de dispositivos. A alocação personalizada de autonomia (allocation personnalisée d’autonomie, APA)1414. A alocação personalizada de autonomia, criada em 2002, é o principal instrumento de política pública no que se refere às pessoas de mais de 60 anos na França em situação de perda de autonomia. Essa situação é avaliada segundo uma classificação de níveis de dependência que vai de 1 a 6; as pessoas classificadas em nível 5 e 6 são consideradas autônomas e sem possibilidade de usufruir desse benefício. A alocação é concedida a todos com 60 anos ou mais independentemente do nível de recursos, mas o montante da alocação é maior ou menor dependendo dele. Essa alocação serve para pagar despesas para o idoso permanecer no domicílio ou para pagar uma parte das despesas para ser hospedado numa instituição de longa permanência de idosos dependentes. A alocação é concedida pelo Conselho Departamental na França, e um familiar - filho(a), irmão(a) que ajude no domicílio pode ser beneficiado. Os cônjuges são excluídos desse benefício. reforça o papel dos poderes locais (Conselhos Regionais). O setor associativo e as ONGs estão igualmente muito presentes na provisão do care a essa categoria de indivíduos. Eles estão estruturados para realizar uma verdadeira mediação entre os beneficiários do cuidado e os diferentes atores provedores. O voluntariado/a filantropia são também estruturados e ativos há ao menos vinte anos. Quanto ao mercado, constata-se o desenvolvimento de um mercado de trabalho informal, de um lado, e, de outro, o desenvolvimento de estruturas com licença do governo no nível das empresas privadas.
Os membros da família que cuidam de familiares idosos podem também se beneficiar da APA. Segundo pesquisas recentes,1515. Florence Weber, Loïc Trabut e Solène Billaud (dir.), Le Salaire de la confiance. L’aide à domicile aujourd’hui (Paris: Éditions rue d’Ulm, 2014). 16% dos membros da família recebem baixos salários para cuidar dos membros idosos da família em domicílio. Esse tipo de medida não tem equivalente no Japão ou no Brasil. Os membros da família fornecem, nesses dois últimos países, trabalho de cuidado não remunerado.
No caso japonês, o cuidado com as pessoas idosas é atribuído à família e, em particular, às mulheres no interior das famílias. Assim, o cuidado informal não remunerado tem um papel central naquele país.
O setor público também tem sido muito ativo nesses últimos anos, sobretudo desde o “reconhecimento institucional do cuidado”1616. Ruri Ito, “Immigration et travail de care dans une société vieillissante: le cas du Japon,” in Le sexe de la mondialisation, Jules Falquet et al. (Paris: Presses de Sciences Politiques, 2010): 139. com a promulgação do Long-Term Care Insurance (LTCI, na sigla em inglês) em 2000. O LTCI é financiado por um imposto obrigatório de todos os residentes no Japão de 40 anos ou mais (inclusive os residentes estrangeiros). Em caso de necessidade de cuidado, um residente paga 10% dos custos e o governo local paga os 90% restantes.
Como na França, o mercado assiste os beneficiários do cuidado sob forma de empresas parapúblicas ou empresas privadas que têm a autorização do governo para operar nesse setor. Importantes fluxos financeiros também existem entre o setor público e o mercado, por um lado, e as ONGs, por outro.
Programas mais recentes como o Acordo de Parceria Econômica (APEJI), assinado em 2007, tentam introduzir a mão de obra de imigrantes no setor do cuidado. Segundo Ito,1717. Ito, “Immigration et travail de care dans une société vieillissante”, 141. em 2004, “13,6% dos idosos recebem cuidados nas instituições de longa permanência de idosos, 75% são cuidados pelos membros de sua família. Entre os cuidadores familiares, 75% são do sexo feminino: esposas, filhas, cunhadas, noras”.
No caso brasileiro, são as redes sociais (redes familiares, redes de vizinhança, redes sociais mais amplas) que são centrais na provisão do cuidado. A família é ainda o lugar predominante do cuidado, que é da responsabilidade de seus membros, sobretudo das mulheres, mas também das empregadas domésticas e das diaristas que são recrutadas para as tarefas domésticas, mas também são levadas a cuidar das pessoas idosas e das crianças da família. O mercado é, assim, um provedor de cuidados sobretudo pela oferta de serviços dessas empregadas domésticas, mas também pelas empresas e agências de home care. O Estado, apesar dos esforços sistemáticos, sobretudo a partir dos anos de 1990, ainda não dispõe de um programa eficaz e bem dotado financeiramente de cuidado de pessoas idosas. Também no setor de cuidados com crianças ainda há muito a construir em termos de equipamentos coletivos (creches, escolinhas, estruturas coletivas), fundamentais para que as mulheres possam trabalhar fora de casa.
Uma primeira pista de reflexão diz respeito à teoria do care e à crítica que se pode fazer a partir dela aos paradigmas dominantes: o paradigma de uma hierarquia em que a razão e a cognição seriam instâncias superiores às emoções e aos afetos; e o paradigma da disciplinaridade que erige a sociologia como disciplina enquanto instância privilegiada de análise, rebaixando a interdisciplinaridade como discutível e a ser menosprezada. Sobre a relação entre razão e sentimentos, indivíduo e coletivo, social e moral, a fluidez das fronteiras entre os afetos, o amor, a emoção, de um lado, e o cognitivo, a técnica, as práticas materiais no trabalho do cuidado, de outro, põe em questão um dos paradigmas da sociologia geral, que diz respeito à hierarquização e à interiorização da emoção e dos sentimentos em relação à razão e à cognição.1818. Patricia Paperman, Care et sentiments (Paris: PUF, Coll, 2013): 24-5.
Outra pista de reflexão diz respeito à interdisciplinaridade. O enfoque resolutamente interdisciplinar das teorias do care (sociologia, psicologia, ciência política, filosofia etc.) interroga um dos grandes paradigmas da sociologia geral, a disciplinaridade (e a desconfiança quanto aos enfoques interdisciplinares ou pluridisciplinares). São as sociólogas do gênero, situadas na periferia da disciplina, nas suas “margens” (expressão de Crenshaw) que puderam avançar na elaboração de enfoques resolutamente inter e pluridisciplinares.
Uma segunda pista de reflexão diz respeito à questão da centralidade do trabalho das mulheres. A análise do trabalho do care confirma a ideia da centralidade do trabalho das mulheres, tanto nas instituições quanto em domicílio, tanto realizado gratuitamente quanto a título de atividade remunerada.
A organização social do cuidado atribui um papel central à mulher e à família nos três países estudados.1919. Essa situação não é exclusiva dos três países estudados, como mostra a pesquisa realizada na Bélgica por Florence Degavre e Marthe Nyssens, “L’innovation sociale dans les services d’aide à domicile. Les apports d’une lecture polanyienne et féministe,” Revue Française de Socio-Economie, 2 (2008): 79-98. A despeito das diferenças societais entre esses lugares, o trabalho de cuidado é realizado majoritariamente por mulheres, e provavelmente continuará sendo, dado que se trata de um trabalho precário, com baixos salários, mal remunerado, pouco reconhecido e pouco valorizado. O cuidado em domicílio, dada a necessidade de realização simultânea do trabalho doméstico e de cuidados, é realizado principalmente por, no caso da Europa, mulheres migrantes e muitas vezes sem documentos; no Brasil, por empregadas domésticas ou diaristas sem vínculos empregatícios formais; e, no Japão, também majoritariamente por mulheres, embora nas instituições de longa permanência de idosos haja cerca de 35% de cuidadores do sexo masculino.
Uma terceira pista de reflexão diz respeito às desigualdades raciais e de classe, que, juntamente com as desigualdades de gênero, acabam por desenhar a figura da cuidadora de pessoas idosas, qualquer que seja o país estudado. Para refletir sobre as relações de raça, de classe e de gênero enquanto relações de poder consubstanciais, a teoria da interseccionalidade2020. Cf. dossiê sobre gênero e interseccionalidade apresentado por Nadya Araujo Guimarães e Helena Hirata, “Dossiê Trabalho e Gênero,” Tempo Social 26, n° 1 (jan./jun. 2014). pode ser um poderoso instrumento analítico. A interdependência das relações de raça, de gênero e de classe enquanto relações de poder e a não hierarquização dessas três dimensões são características essenciais do paradigma interseccional. A interseccionalidade pode ser considerada um instrumento de conhecimento e ao mesmo tempo um instrumento de ação política. O reconhecimento dos limites de um enfoque a partir do gênero, que não leva em conta nem o pertencimento a uma classe social ou raça, é um ponto de partida crítico de uma perspectiva que não considera a opressão imbricada das diferentes relações sociais.
Uma última pista de reflexão diz respeito às formas de superação da atual divisão sexual no trabalho de cuidado, salientando o papel, nesse processo de superação, das políticas públicas e dos movimentos feministas. Nas sociedades contemporâneas, as mobilizações das militantes feministas por uma repartição igualitária do trabalho doméstico e de cuidado e as políticas sociais e familiares de alguns Estados por uma maior igualdade entre mulheres e homens têm apontado para as vias possíveis de uma superação da atual divisão sexual do trabalho. Certamente não haverá uma maior igualdade profissional entre homens e mulheres enquanto permanecer a assimetria na realização do trabalho doméstico e de cuidados, que continua sendo considerada responsabilidade exclusiva das mulheres. É inegável a importância da discussão teórica em torno de “desgenerizar” o care2121. Cf. Tronto, Un monde vulnerable, 156. para pensar uma nova divisão sexual do trabalho de cuidado, em que homens e mulheres sejam responsáveis pela atenção às pessoas dependentes. O cuidado com os seres dependentes – crianças, idosos, deficientes físicos e mentais, doentes etc. – deve ser tarefa de todos os seres humanos, sem distinção de sexo, na medida em que todos são vulneráveis em algum momento de suas vidas.2222. Joan Tronto, Un monde vulnérable: pour une politique du care - Coll. Textes à l’Appui (Paris: La Découverte, (1993) 2009); Pascale Molinier, Sandra Laugier e Patricia Paperman, Qu’est-ce que le care? Souci des autres, sensibilité, responsabilité (Paris: Payot & Rivages, 2009).
As pesquisas sobre o cuidado podem contribuir para que essa definição da vulnerabilidade seja mais difundida na sociedade como um todo, questionando a segregação sexual atual do trabalho de cuidado.