O autor destaca que o discurso do Estado de Direito liberal patrimonial geralmente desconsidera tradições alternativas. Primeiro não permite qualquer reflexão sobre as concepções de Estado de Direito socialista normativo. Segundo, desconsidera a própria existência de outras tradições de Estado de Direito: por exemplo, a pré-colonial, aquelas moldadas pela revolta contra o Velho Império, ou as contribuições não-miméticas do Poder Judiciário pretensioso de algumas “sociedades em desenvolvimento”.
Nesse contexto, o autor analisa a peculiaridade do Estado de Direito indiano e sustenta que o mesmo oferece revisões das concepções liberais de direitos. O autor acrescenta que o Estado de Direito indiano se ergue normativamente não somente como uma espada contra a dominação do Estado, mas também como um escudo, autorizando uma intervenção estatal “progressista” na sociedade civil. Por fim, são introduzidas algumas tendências atuais na jurisprudência constitucional, destacando-se a liderança da Suprema Corte indiana no desenvolvimento de uma forma extraordinária de jurisdição sob a rubrica de litígio de ação social.
O Estado de Direito (como um conjunto de princípios e doutrinas – doravante EDD) tem uma longa história normativa que o privilegia como uma contribuição inaugural da teoria política liberal euro-americana. O EDD surge de formas variadas, seja como uma noção “estrita” que impõe restrições processuais a formas de poder soberano e conduta governamental, capazes de autorizar práticas políticas holocáusticas,1 seja como uma concepção “abrangente” que envolve as teorias sobre o “bom”, o “certo” e o “justo”.2
O discurso do EDD liberal patrimonial ignora tradições alternativas. Ele não permite nem ao menos uma reflexão mínima sobre as concepções do EDD socialista normativo. Desconsidera a possibilidade de que outras tradições de pensamento do EDD alguma vez tenham existido: por exemplo, a pré-colonial, moldada pela revolta contra o Velho Império, ou as contribuições não-miméticas do Poder Judiciário pretensioso de algumas “sociedades em desenvolvimento”.3
Do mesmo modo, um conjunto de historiadores críticos demonstra que, nos países de origem, tanto a versão “estrita” quanto a “abrangente” foram condizentes, por longos períodos da história, com a exclusão social violenta; as histórias institucionais do EDD na metrópole foram durante muito tempo rubricas da dominação dos homens sobre as mulheres, dos donos dos meios de produção sobre os possuidores da força de trabalho, e da perseguição de minorias religiosas, culturais e civilizacionais. Estudiosos do colonialismo/imperialismo destacam que os valores do EDD foram um assunto totalmente ligado “aos brancos apenas”.4 A celebração entusiasta do EDD como um “bem humano completo” chega ao ponto de reduzir as lutas contra o colonialismo/imperialismo a um desdobramento último na história humana dos valores liberais codificados pelo EDD.5 Até mesmo as histórias insurgentes que geraram um reconhecimento universal do direito humano à autodeterminação e favoreceram os itinerários dos direitos humanos contemporâneos são reconhecidas erroneamente como uma imitação da imaginação histórico-mundial do EDD euro-americano! O fato histórico de que comunidades de resistência e povos em luta não-ocidentais tenham enriquecido as concepções do EDD “abrangente” é simplesmente encoberto pelos mitos persistentes das origens “ocidentais”;6 a promoção do EDD como exportação cultural valiosa mantém a velha contaminação em formas ainda mais agressivas nessa era da globalização contemporânea.
No discurso contemporâneo, no entanto, o EDD torna-se transnacional ou global. Não é mais uma concepção limitada, mas se apresenta agora como uma noção universalizadora/globalizadora. Em parte, o novo “estado de direito global” relaciona-se com as noções emergentes de política social e regulamentação global.7 Mais especificamente, as redes de comércio internacional e os regimes de investimento promovem a idéia de que as constituições nacionais são obstáculos que precisam ser “eliminados” por meio dos discursos modernos do constitucionalismo econômico global.8 Hoje, a guerra contra o “terror” redefine totalmente até mesmo as noções “estritas” do EDD.9 O paradigma da Declaração Universal dos Direitos Humanos é agora confrontado com um novo paradigma de direitos humanos relacionado com o comércio, e simpático ao mercado.10 As instituições financeiras internacionais inerentemente não-democráticas, em especial o Banco Mundial, não as autoridades eleitas nas sociedades “em desenvolvimento”, apresentam-se agora como um novo soberano global que decide como os “pobres” podem ser definidos, como a pobreza pode ser medida, como as “vozes dos pobres” podem ser globalmente registradas e como o alívio da pobreza e as condições para o desenvolvimento sustentado podem convenientemente redefinir a “boa governança”. A preciosa, múltipla e diversificada sociedade civil e os novos movimentos sociais não escapam da dialética Senhor/Escravo; mesmo quando contestam no atacado as novas noções e plataformas do EDD globalizante, acabam por aceitá-las no varejo.
As limitações de espaço impedem uma análise plena e detalhada da novidade do EDD; porém, é apropriado destacar pelo menos alguns fatores cruciais. Primeiro, a atual extensão do EDD para as esferas internacionais do desenvolvimento, da ordem econômica, estratégica e até militar representa uma descontinuidade em relação à Guerra Fria, que era marcada por pelo menos dois paradigmas de EDD em competição violenta: o burguês e o socialista. Hoje, o EDD socialista, uma ordem na qual a propriedade privada dos meios de produção não era considerada o fundamento de uma “boa” sociedade e da liberdade humana, quase desapareceu de vista.11 Segundo, torna-se cada vez mais difícil manter separado o EDD das novas linguagens dos direitos humanos e da política social global. Posso me referir, por exemplo, à volumosa elaboração atual de tratados de direitos humanos pelos organismos da ONU, o esforço para implementar o direito ao desenvolvimento, os Objetivos e Metas de Desenvolvimento do Milênio, que promovem diferentes tipos de normatividade orientada para o EDD globalizante. Terceiro, a fusão entre esses direitos humanos e a política social global acarreta alguns custos. Os assim chamados direitos humanos universais tornam-se instrumentos eminentemente negociáveis na busca de diversas políticas globais. Quarto, até mesmo a assim chamada “globalização judicial” promove uma projeção sem precedentes dos atores judiciais; sua maneira de fazer justiça militante nos níveis nacional, regional e supranacional introduz novos modos de articulação dos valores e padrões do EDD e, ao mesmo tempo, promove o ajuste estrutural do ativismo judicial.
Quinto, as práticas dos direitos humanos e do ativismo social contribuem mais do que nunca para uma rearticulação múltipla das noções acumuladas de EDD. O ativismo dos direitos sociais e humanos precisa contestar o discurso hiperglobalizante do EDD de maneira clara, atingindo as comunidades de investidores estrangeiros diretos, muitas vezes personificadas pelos novos estados soberanos de corporações multinacionais e, de um modo mais geral, por seus parceiros normativos, principalmente as instituições financeiras internacionais e os regimes de auxilio ao desenvolvimento. Ao mesmo tempo, instâncias ativistas historicamente determinadas também se confrontam com a necessidade de revigorar algumas concepções processuais e de EDD “abrangente”.
Sexto, a nova idolatria do EDD, que o apresenta como uma nova forma de bem público global, não é marcada nem perturbada pelas concepções limitadas de EDD, que têm como sua pedra angular a doutrina da separação dos poderes ou diferenciação das funções de governança. Essa doutrina é que promove a crença na governança limitada, um antídoto à tirania representada pela concentração de poderes. É verdade que, como Louis Althusser12 nos lembrava, a doutrina também mascara a “unidade centralizada do poder estatal”. O discurso do EDD limitado, pelo menos, proporcionou plataformas de crítica; o EDD globalizante, desconhecendo tal concepção que possa restringir a “boa governança global”, solapa ainda mais a “racionalidade” das concepções do EDD limitado.13
No novo discurso do EDD está então em jogo uma profunda contradição entre EDD como um discurso globalizante, que celebra várias formas de fundamentalismos do “livre” mercado, e algumas formas novas que buscam “radicalmente” universalizar os fundamentalismos dos direitos humanos. Essa incomensurabilidade define tanto o espaço para a diversidade interpretativa quanto um progresso crescente na mensuração que padroniza, via direitos humanos e marcos de desenvolvimento, novos significados essenciais do EDD.
As noções de EDD sofreram muito com dois aforismos populares: EDD significa “governo de leis, não de homens”; “o Estado de Direito é ambos e, ao mesmo tempo, significa governo da lei e dos homens”. Se “homens” for usado de forma inclusiva, no sentido de “todos os seres humanos”, as frases podem significar secularismo: não é a autoridade divina, mas o poder humano que faz o governo e a lei. Porém, isso coloca uma questão: as constituições e leis baseadas na religião desqualificam de imediato essas sociedades como não sendo de EDD? Em um plano diferente, nas práticas feministas de pensamento, essa forma inclusiva é sempre suspeita. Ela identifica literalmente as duas frases como representando o governo de, por e para os homens. Isso levanta a questão a respeito da feminização do Estado e do direito em uma sociedade pós-patriarcal. Do mesmo modo, a crítica emergente na plataforma dos direitos das pessoas com deficiência traduz “governo” e “homens” como casos de domínio por todos aqueles temporariamente capazes. Isso levanta a questão da indiferença à diferença. Não posso aprofundar esta e outras questões relacionadas por razões de espaço, exceto para dizer que todas as noções de EDD que as ignoram permanecem eticamente fraturadas.
A mensagem do EDD de que aqueles que estão no poder deveriam de algum modo estabelecer e respeitar restrições ao seu próprio poder é certamente importante. Mas a importância dessa exigência sensata não está suficientemente clara. Com certeza, os governantes, bem como os governados, devem ser limitados pela lei (concebida aqui como uma ordem legal vigente, uma ordem de legalidade), independente do privilégio do poder. Mas nunca está suficientemente claro se eles devem fazer isso de modo instrumental (em termos weberianos, com “propósito racional”, até mesmo uma regra conveniente que segue a conduta), ou intrinsecamente (a legalidade como valor e virtude éticos). A obediência instrumentalista negocia as linguagens do EDD de um modo que abre caminho para hierarquias tirânicas e hegemônicas. Seguir os valores do EDD porque eles definem a conduta “boa”, “certa” e “justa” do direito e do Estado é desenvolver uma ética da governança. É nesse estágio que começam as grandes dificuldades, mesmo quando queremos considerar as tarefas do EDD como aquelas que definem o “império da boa lei”.
Elucidar a “boa” lei implica uma “filosofia social completa” que priva a noção de “qualquer função útil”. Como nos lembra com agudeza Joseph Raz:14 “Não temos necessidade de ser convertidos ao Estado de Direito para descobrir que acreditar nele é também acreditar que o bem deveria triunfar”. Mas o “bem” que triunfa, como uma “filosofia social completa”, pode ser – e de fato, foi com freqüência – definido de uma forma que perpetua Estados de Mal Radical; as filosofias sociais completas justificaram e continuam capazes de justificar variedades de exclusão social violenta. Será essa a razão porque os enfoques pós-metafísicos contemporâneos nos convidam a imaginar qualidades de justiça da estrutura básica da sociedade, da economia e da estrutura política, de um modo que tornam ociosas as linguagens do Estado de Direito?15
Em qualquer resposta a esta pergunta, talvez seja útil fazer uma distinção entre o EDD do discurso restritivo e o das linguagens facilitadoras. Enquanto atrelado a linguagens restritivas, plenamente informadas pela lógica e pela linguagem dos direitos humanos contemporâneos, o EDD se refere ao que o poder soberano e a conduta do Estado não podem, afinal, fazer. É agora normativamente bem aceito que os atores estatais não podem, como forma de governança, praticar genocídio, limpeza étnica, apartheid institucionalizado, escravidão e atos similares, bem como estupro e outras formas de agressão às mulheres. Fora disso, as linguagens restritivas do EDD estipulam/legislam as seguintes noções gerais:
1. os poderes estatais devem ser diferenciados; nenhuma autoridade pública deve combinar os papéis de juiz, júri e executor;
2. leis/decretos devem estar no domínio público; isto é, as leis devem ser gerais, públicas e devem ser decisões políticas contestáveis;
3. governar por meio de emergências não-declaradas viola os valores do EDD e é ilegítimo;
4. estados de emergência constitucionalmente declarados não devem constituir práticas indefinidas de governo e o poder judicial não deve autorizar violações sistemáticas, flagrantes, contínuas e maciças dos direitos humanos e das liberdades fundamentais durante os estados de emergência;
5. a delegação dos poderes legislativos ao executivo deve sempre respeitar certos limites à discricionariedade soberana arbitrária;
6. o governo em todos os momentos deve permanecer limitado pelo respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais;
7. os poderes governamentais devem ser exercidos somente dentro do âmbito de intenção e propósito legislativamente definidos;
8. para esses fins, o Estado e o Direito não devem se opor ou anular os poderes da revisão judicial ou se entregar a práticas que afetem adversamente a independência da profissão legal.
Esses “deveres”, longe de constituírem alguma lista fantástica de desejos, definem o terreno das disputas em andamento direcionadas para inibir o poder estatal e a conduta governamental sem freios. A questão não é se esses “deveres” são necessários, mas se eles são suficientes. É aqui que entramos no domínio das linguagens facilitadoras do EDD que deixam em aberto uma ampla variedade de escolhas para o projeto e o detalhamento das estruturas e processos de governança. Essas escolhas dizem respeito ao processo de composição da autoridade política legítima, formas de poder político, obrigações dos governados e dos governantes.
O EDD não trata propriamente dessa dimensão. Porém, presumindo-se que o direito universal de voto dos adultos constitui um valor essencial do EDD, ele parece igualmente bem servido tanto por sistemas de voto de “maioria simples” como “proporcional” e “preferencial” e variantes relacionadas. Nenhuma das duas versões estrita e abrangente do EDD oferece quaisquer normas e padrões precisos para a delimitação dos eleitores de uma maneira que evite a representação distorcida pela alteração dos limites do distrito eleitoral a fim de aumentar o número de eleitores simpáticos a um dado partido ou candidato.16 Ademais, o EDD é bastante indiferente à questão do financiamento público das eleições; também não implica o financiamento das campanhas por empresas. As eleições custam muito dinheiro para os líderes e partidos políticos em disputa; qual “regulamentação” pode violar os valores de liberdade de expressão e associação do EDD liberal é uma questão que permanece em aberto. O mesmo acontece com os apelos a formas de “discurso de ódio racial” nas campanhas políticas competitivas. O discurso dominante do EDD também é indiferente à questão das ações afirmativas na representação legislativa, que modificam o direito de disputar eleições de grupos minoritários culturais e civilizacionais e a representação igual de gênero. O discurso do EDD, para o bem ou para o mal, trata insuficientemente da noção de participação, não chega a ponto de receitar meios de mudanças constitucionais como referendos, ou o direito dos eleitores de cassar o mandato de legisladores corruptos ou transviados.
No que diz respeito às estruturas de governança, o EDD é indiferente às escolhas entre formatos constitucionais federalista e unitário, republicano e monárquico, secular e teocrático,flexível e rígido. Também não exclui escolhas em relação ao escopo e ao método de emendar constituições. A composição do poder judiciário e da administração da justiça (métodos de nomeação do judiciário, exercício do cargo e remoção de juízes, de construção de hierarquias judiciais etc.) permanece infinitamente aberta dentro do discurso do EDD.
As celebradas restrições ao poder legislativo não implicam nenhuma obrigação ética de produzir leis, nenhum “direito” público a ter uma legislação destinada às pessoas em desvantagem, sem posses materiais e necessitadas; essas não-decisões cruéis causam impacto sobre o futuro de muitos seres humanos e sobre os direitos humanos. Niklas Luhman nos lembrou pungentemente que a decisão política relativa ao fazer/desfazer/refazer das leis não passa depositivização da arbitrariedade. Porém, essa arbitrariedade é anulada pela globalização disciplinar em que os Estados do Sul têm obrigação compulsória de fazer leis favoráveis às comunidades dos investidores estrangeiros diretos em detrimento daquelas para seus próprios cidadãos; essas obrigações são fomentadas por empresas transnacionais e instituições financeiras internacionais que têm pouca responsabilidade democrática (accountability) e comprometimento com os direitos humanos.
Por fim, sem ser exaustivo, como o EDD pode tratar do Outro? Uma multidão de ilegalidades em massa gera com freqüência formas de compreensão dos cidadãos que acabam por redefinir as interpretações do EDD. Declinadas por noções indeterminadas de “soberania” popular, essas insurgências divergentes significam campos de luta das Multidões contra o Império do Mínimo.17 Que espaço podemos nós – e como podemos “nós” (os “negociantes de símbolos” do EDD) – proporcionar para esses particularismos militantes em nossas narrativas?
Esta lista resumida de ansiedades não se destina a sugerir que dispensamos completamente as linguagens e lógicas do EDD. Antes, ela pede trabalhos sustentados que submetam com muito cuidado as histórias e fronteiras normativas e ideológicas do EDD a um exame rigoroso.
Com essa finalidade, reitero meu sumário de sentença: o EDD é sempre e em todo lugar um campo em que as pessoas lutam para tornar o poder responsável, a governança justa e o Estado ético. Sem dúvida, cada termo romântico/radical usado aqui (responsabilidade, justiça e ética) precisa ser decifrado. A seguir, procuro fazer isso refletindo sobre a teoria e a prática do EDD indiano.
Por necessidade, muitas continuidades históricas colonialmente induzidas marcam a Constituição da Índia.18 Mas a herança colonial relaciona-se mais com os aparatos e as instituições de governo do que com concepções de justiça, direitos e desenvolvimento. Estas, por sua vez, afetam as continuidades com o passado colonial. A peculiaridade do EDD indiano está em propiciar espaço para uma conversa contínua entre quatro noções fundamentais: “direitos”, “desenvolvimento”, “governança” e “justiça”.19 Assim, também oferece revisões das concepções liberais dos direitos, que afetam formas distintivas da vida constitucional do Sul.20
O discurso hegemônico do EDD subestima a pertinência histórico-mundial do constitucionalismo indiano. Na luta por um Novo Império, a imaginação constituinte das assim chamadas “sociedades de transição” permanece amarrada primariamente ao que essas sociedades ex-socialistas podem aprender com a experiência constitucional americana. Desse modo, ficam prejudicadas algumas oportunidades consideráveis de aprendizados semelhantes com a experiência e a imaginação do EDD indiano. A elaboração da constituição pós-socialista tem muito a aprender com a originalidade da forma pós-colonial; porém, e apesar do interesse renovado pelos estudos constitucionais comparativos, parece que a “Nova” Europa tem muito pouco a aprender com o velho Sul Global.
Por ora, considero a seguir brevemente as relações entre essas quatro noções essenciais: governança, direitos, justiça e desenvolvimento.
O Holocausto da Divisão da Índia fornece o momento teatral em que a Constituição indiana foi elaborada. O estabelecimento de marcos para a segurança e a ordem humana coletiva foi considerado um recurso crucial do EDD, do mesmo modo que a construção de um novo EDD global hoje é influenciada pelas duas guerras ao “terror”. A noção de que o alcance radical da autodeterminação deve ser confinado apenas ao fim da ocupação colonial fornece um novo marco para a governança indiana; a integridade e unidade da nova nação redefinem o EDD indiano para autorizar poderes vastos e crescentes de prisão preventiva e manutenção infindável de muitas leis coloniais sobre segurança como ainda aplicáveis.21 Desde seu nascimento, os itinerários do EDD indiano são moldados pela doutrina da razão de Estado e pelas práticas acentuadas de governança militarizada. Não se permite que uma consideração do valor do EDD em geral seja introduzida no combate estatal contra a rebelião armada, cujo objetivo é a secessão da União Indiana. Nisso, a experiência indiana dificilmente é única.
O que a distingue, porém, é a governança/gestão da política da autonomia.22 Em teoria, o Parlamento tem o poder de redesenhar o mapa federal, criar novos estados, diminuir ou aumentar suas fronteiras e até alterar os nomes dos estados sem qualquer deliberação democrática. Contudo, a quase constante criação de novos estados no interior da federação indiana, ao longo de eixos lingüísticos/culturais/de identidade, implica movimentos de multidões de pessoas e uma considerável violência insurgente e estatal. A política da autonomia requer uma compreensão indiana do princípio federativo e de seus pormenores.
Se o princípio federativo privilegia o local no interior do nacional, respeitando a geografia da diferença de um modo que autoriza conhecimentos, culturas, poderes e vozes locais a informar e moldar a governança, os pormenores federais – principalmente a distribuição dos poderes legislativo, executivo e administrativo – buscam negar isso. É verdade que essa distribuição de poderes só pode ser alterada por emendas constitucionais e essas são difíceis de negociar e efetuar na atual era de política de coalizão. Porém, o Parlamento indiano possui uma generosa autoridade residual que lhe dá poder para legislar em matérias não especificadas nas listas estadual e concorrente; ademais, as leis que pode fazer têm, com freqüência, uma autoridade nacional preponderante. Além disso, o Artigo 35 dá especificamente ao Parlamento poderes preponderantes para fazer leis que proíbam as discriminações e “incapacitações” impostas milenarmente aos intocáveis da Índia (Artigo 17) e a escravidão e práticas similares (Artigos 23-24). Baseando-se fortemente na “experiência” do federalismo comparativo daCommonwealth, em especial do Canadá e da Austrália, a Suprema Corte indiana inova constantemente em sua fonte interpretativa para aumentar o papel hegemônico nacional do governo da União.
O federalismo cooperativo característico da Índia está definido e desenvolvido por muitas redes institucionais. A Comissão Nacional de Finanças, definida pela Constituição, constrói a normatividade dos direitos humanos na alocação dos recursos federais aos estados. A Constituição e a lei criam agências nacionais23 em todo o país encarregadas da proteção e promoção dos direitos humanos das minorias “separadas e insulares”. O Tesoureiro e Auditor Geral da Índia, auxiliado pela Comissão Central de Vigilância, pelo menos ajuda a moldar o discurso relativo à corrupção em altos postos. Em geral, a Comissão Eleitoral da Índia tem perseguido a tarefa heróica de alcançar um pouco de integridade no processo eleitoral. O modo como essas e outras agências realizam suas tarefas é tema de um discurso político animado, dentro das práticas do jornalismo investigativo, e do ativismo dos movimentos sociais e dos direitos humanos garantidos constitucionalmente pelo esforço dos Tribunais Superiores Estaduais e da Suprema Corte do país.
Tudo isso permite uma rearticulação contínua do poder popular confrontado com um Estado e uma estrutura política fortemente militarizados, os quais juntos freqüentemente causam um pesado déficit democrático aos processos, instituições e redes de governabilidade. Assim, as intervenções da sociedade civil, acionando cada vez mais o alto poder judicial, levaram a um certo abrandamento dos aspectos antidemocráticos da Constituição indiana em funcionamento.24
Em geral, parece que o princípio federativo se mantém dentro das restrições normativas dos pormenores federais. Em outras palavras, o federalismo indiano contribui para o discurso do EDD não somente facilitando a governança, mas também fortalecendo formas participativas de resistência e autoconfiança por parte dos cidadãos. Essa experiência precisa receber certo grau de dignidade discursiva em nossas discussões sobre constitucionalismo “comparativo”.
As noções do EDD indiano estão profundamente ligadas ao modo como os direitos fundamentais são concebidos. Longe de reiterar as teologias liberal ou libertária dos direitos como um corpus de limitações da soberania do Estado e da conduta governamental, as concepções do EDD indiano também dão poder à ação progressista do Estado. Assim, por exemplo, as seguintes enunciações dos direitos constitucionais autorizam ações políticas e legislativas que manifestamente violam algumas concepções liberais dos direitos:
• o Artigo 17 proíbe as práticas sociais da discriminação com base na “intocabilidade”;
• os Artigos 23-24 consagram “direitos contra a exploração”, proíbem o sistema de trabalho baseado na servidão rural (escravidão e outras formas de trabalho não-livre) e práticas históricas relacionadas de exclusão social violenta;
• os Artigos 14-15 autorizam, sob a bandeira dos direitos fundamentais, o combate estatal contra formas cruéis de patriarcado;
• os Artigos 25-26 configuram de tal modo o secularismo constitucional indiano que dão poder ao Estado para combater totalmente as práticas infratoras dos direitos humanos da tradição religiosa “hindu” dominante;
• os Artigos 27-30 propiciam um escudo para a proteção fecunda dos direitos das minorias religiosas, culturais e lingüísticas.
O EDD indiano não é normativamente concebido apenas como uma espada contra a dominação e a violação pelo Estado e contra normas e práticas históricas da sociedade civil, mas também como um escudo que dá a um regime enciclopédico o poder de intervenção do Estado “progressista” na vida da sociedade civil. Ao fazê-lo, ele implica no simultâneo “fortalecimento” e “re-fortalecimento” do Estado indiano de uma maneira que torna mais complicada a governança, a política e o desenvolvimento constitucional. Nos termos de uma psicologia social do passado, a Constituição inaugura assim a “dissonância cognitiva” de um modo que marca necessariamente seu curso de desenvolvimento um tanto esquizofrênico.
Os documentos de direitos, enunciados em um tempo histórico-mundial semelhante ao da Declaração Universal dos Direitos Humanos, causam ainda mais impacto sobre o desenvolvimento das normas, padrões e até valores internacionais de direitos humanos. Tenho em vista aqui a Parte IV da Constituição que estabelece a distinção entre regimes de direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos, distinção essa que em seguida passou a dominar a linguagem sobre os direitos humanos globais.
Os Princípios Diretivos da Política de Estado considerados fundamentais para moldar as formas de governança – atos de fazer leis e políticas – encarnam assim o código antes desconhecido de obrigações constitucionais do Estado. Muitos mecanismos e arranjos de governança instalados na época de origem e outros subseqüentes articulam maneiras institucionais de avançar com essa missão. Não vou sobrecarregar este texto com uma enumeração detalhada.25
As concepções do EDD indiano abrem ainda um extraordinário espaço para os poderes de revisão judicial – uma nova jóia na coroa indiana pós-colonial, por assim dizer. Os poderes extraordinários de reparar a violação dos direitos fundamentais alcançaram os seguintes resultados, aqui resumidos. Primeiro, uma realização notável no que se refere à jurisprudência de direito administrativo dirigida ao combate e controle do uso de poderes discricionários; segundo, ampla vigilância judicial sobre legislações acusadas de violar os direitos fundamentais ou o princípio e os pormenores do federalismo indiano; terceiro, os enormes feitos da Suprema Corte da Índia ao exercer seus poderes inaugurais e imensos de controle sobre o exercício do poder de emenda constitucional, utilizando-se da doutrina da estrutura básica e das características essenciais da Constituição. Esses poderes são agora rotineiramente exercidos para deixar clara a micro-responsabilidade do exercício dos poderes legislativos, executivo e administrativo sob controle judicial.26
O exercício de obstetrícia judicial para dar à luz aos direitos humanos e à governança limitada não é exclusivo da Índia; o que distingue a história indiana é que os juízes acreditam cada vez mais – e agem conforme essa crença – que os direitos humanos básicos estão mais seguros em sua custódia interpretativa do que com as instituições representativas. Crença e prática se combinam para produzir um tipo peculiar de “fé constitucional” (para tomar emprestada uma expressão fecunda de Sanford Levinson, 1988) que torna ainda mais legítima, de maneira duradoura, a revisão judicial ampla.
Uma característica extraordinária do constitucionalismo que informa o EDD indiano é representada pela questão da justiça dos direitos. Elaborei recentemente essa idéia com certo grau de preocupação,27 sugerindo ainda que a problemática da justiça dos direitos pode não ser captada pelas concepções do desenvolvimento indiano, ou pela ordem social constitucionalmente imaginada/desejada. No momento de elaborar a Constituição, colocaram-se pelos menos três tipos de questões relacionadas com a justiça dos direitos. Primeiro, se a promoção e a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais implicam uma deferência máxima à propriedade plena dos meios de produção como o verdadeiro alicerce da liberdade. Como pode a redistribuição social “justa” alguma vez ocorrer? Segundo, como a deferência total aos direitos comunitários pode ser reconciliada com os direitos individuais das pessoas que desejam pertencer a uma comunidade, mas que também protestam contra a violação de direitos individuais dentro de uma estrutura coletiva que permite privilégios? Terceiro, até onde devem ir os direitos diferenciados de grupos que privilegiam programas de ação afirmativa, não apenas por estender esses programas a cotas na educação e no emprego, mas também a reservas legislativas para castas e tribos intocáveis, como maneira de corrigir os erros milenares do passado?
Essas três questões definem também as concepções constitucionais de “desenvolvimento”. Se levássemos totalmente a sério o Preâmbulo e os Princípios Diretivos da Política de Estado, desenvolvimento significaria o fluxo desproporcional dos recursos do Estado e da sociedade capaz de aumentar os benefícios reais para as massas pobres indianas, que Babasaheb Ambedkar descreveu de forma luminosa e pungente como atisudras da Índia, o proletariado econômico e social. Muito antes que as noções de governança e desenvolvimento baseadas no direito ao desenvolvimento chegassem à cena do EDD global, a Constituição indiana já havia codificado essa compreensão. De qualquer modo, o problema da “justiça dos direitos” tem sido recorrente na experiência indiana e ofereço abaixo algumas reflexões.
A Suprema Corte da Índia é um fórum com uma vasta jurisdição geral sem paralelo. Não é uma corte constitucional, embora boa parte de sua atividade se relacione com questões que dizem respeito ao cumprimento dos direitos fundamentais. O direito estabelecido pela Corte é declarado vinculativo e deve ser seguido por todos os tribunais do país e por implicação necessária, por todos os cidadãos e atores estatais. Além disso, não somente todas as autoridades estatais estão obrigadas a ajudar na aplicação das decisões judiciais da Suprema Corte, como ela tem o poder de fazer “justiça completa”, um reservatório incrível de poder judiciário pleno que tem sido utilizado amplamente nas duas últimas décadas. A revogação pelo Legislativo de decisões da Suprema Corte ocorre, mas é incomum; porém, um dispositivo extraordinário chamado 9º Apêndice tem sido invocado desde a adoção da Constituição para imunizar do vírus da revisão judicial as disposições nela colocadas, mesmo quando ex facie as leis nela inscritas violem os direitos fundamentais. Em decisão recente, a Suprema Corte assumiu poderes de controle constitucional sobre a validade de leis assim imunizadas.
Nos primeiros anos, a Corte assumiu a posição de que, embora os Princípios Diretivos estabeleçam um dever “superior” de observância na elaboração das leis e das políticas, sua não submissão explícita aos tribunais significava que as provisões sobre direitos estavam acima desses Princípios. Isso gerou um intenso conflito entre o Parlamento e a Corte, resultando numa avalanche de emendas constitucionais. No processo, gerou-se muita discussão, principalmente sobre um judiciário “conservador” que parecia frustrar um Parlamento “progressista” comprometido com a reforma agrária e a redistribuição, levando a nomeações tendenciosas para a Corte, ao estilo indiano.28
Ao longo do tempo, desenvolveram-se dois tipos de respostas judiciais. Primeiro, a Suprema Corte começou a usar os Princípios Diretivos como uma técnica de interpretação constitucional, favorecendo um estilo interpretativo que promovia, em vez de frustrar, esses Princípios. Essa justiciabilidade “indireta” tem contribuído muito para a frutificação da versão substantiva / “abrangente” do EDD indiano. Segundo, em sua encarnação mais ativa desde os anos 80, a Corte começou a traduzir alguns Princípios Diretivos em direitos. O exemplo mais crucial disso talvez seja a insistência judicial de que o Princípio, que prescreve a educação livre e compulsória para os jovens entre 6-14 anos, representa um direito fundamental.29 A Corte criou uma emenda constitucional consagrando esse direito como um aspecto integral dos direitos à vida e à liberdade do Artigo 21.
Ao mesmo tempo, com a adoção da Constituição, os juízes da Suprema Corte indiana buscaram erguer cercas e limites ao poder da legislação delegada (processo pelo qual o poder executivo efetivamente legisla). Eles aceitaram esse poder, mas com uma advertência significativa: o poder do governo de fazer leis não deveria usurpar a função legislativa da enunciação de políticas públicas, acompanhada das sanções prescritivas. Assim passou a haver uma “explosão de leis administrativas”, em que os juízes não invalidaram especificamente a legislação delegada, mas sim policiaram vigorosamente seu desempenho. O executivo pode fazer leis que obriguem; mas as cortes assumiram o papel de interrogar e até invalidar exercícios específicos de elaboração de leis. Desenvolveu-se uma espantosa variedade de técnicas judiciais para a revisão dos atos administrativos.
Os juízes afirmaram o poder de revisão judicial sobre a constitucionalidade dos desempenhos legislativos. Leis que transgrediam os direitos fundamentais ou o princípio federativo e seus pormenores ativavam a “essência” do poder de revisão judicial. Sempre que possível, a Suprema Corte buscava evitar a invalidação de leis; ela adotou o repertório padrão de “examinar” o escopo e as intenções previstas por lei de modo a evitar conflito e com recurso à doutrina judicial peculiar da “construção harmoniosa”. Mas quando necessário, leis promulgadas foram declaradas constitucionalmente nulas e inválidas. Mesmo quando ressuscitadas pela reafirmação legislativa, foram submetidas novamente ao crivo judicial. Os exemplos de invalidação judicial de leis superam em muito, em número e amplitude, a experiência da revisão judicial no Norte.
Além disso, os juízes da Suprema Corte indiana assumiram o poder impressionante de submeter as emendas constitucionais ao rigoroso escrutínio judicial. Eles efetuaram essa inovação audaciosa por meio da doutrina da Estrutura Básica da Constituição, elaborada judicialmente, que definiu no discurso jurídico e judicial as “características essenciais” da Constituição. Eles proclamaram que “Estado de Direito”, “Igualdade”, “Direitos Fundamentais”, “Secularismo”, “Federalismo”, “Democracia” e “Revisão Judicial” eram as características essenciais da Estrutura Básica, que o poder de emendar jamais pode transgredir legalmente.
Inicialmente articulada como uma doutrina judicial que estabelecia os limites do poder de emendar, o regime de limitação da Estrutura Básica espalhou-se para outras formas de exercício dos poderes constitucionais e até legislativos. Os inexprimíveis meios judiciais também marcam uma nova e ousada concepção: o “poder constituinte” (o poder de refazer e desfazer a Constituição) é compartilhado conjuntamente com a Suprema Corte, ao ponto de ela declarar que certas emendas são constitucionalmente inválidas.
Essa produção judicial e jurídica (por que os juízes empreenderam a tarefa de proteger a constituição de si mesma!) penetrou depois na jurisprudência do Paquistão, de Bangladesh e do Nepal. O discurso do EDD comparativo passa até agora totalmente por essa difusão.
Para concluir esta narrativa, as cortes de apelação, sob a liderança da Suprema Corte, inventaram uma forma extraordinária de jurisdição sob a rubrica de litígio de ação social (LAS), ainda chamado erroneamente de “litígio de interesse público”. Dito em termos sumários, o LAS foi acompanhado dos seguintes resultados assombrosos:
• uma democratização radical da doutrina do locus standi; qualquer cidadão pode agora recorrer aos tribunais para acusar a violação dos direitos humanos por outros cidadãos;
• a “des-advocacia” do litígio constitucional, no sentido de que são admitidos os peticionários em pessoa, com todo o seu estilo forense caótico de argumentação;
• o estabelecimento de novos estilos de investigação dos fatos via comissões de inquérito sócio-legais para auxiliar na resolução judicial;
• a geração de uma nova cultura judicial; a jurisdição do LAS não é concebida como uma questão entre adversários, mas como um empreendimento colaborativo entre cidadãos, tribunais e um Executivo desobediente;
• a invenção de uma jurisdição contínua através da qual os tribunais continuam a promover uma restauração mínima dos direitos humanos nas práticas de governo;
• a moldagem de novas formas de enunciação judicial dos direitos humanos, uma questão complexa em que especialmente a Suprema Corte traz de volta à vida direitos deliberadamente excluídos pelos elaboradores da constituição (como o direito a um pronto julgamento), cria alguns direitos suplementares aos enunciados no texto constitucional (como o direito ao sustento, à privacidade, à educação e alfabetização, saúde e meio ambiente), reescrevendo a constituição por meio da invenção de novos direitos (como o direito à informação, a imunidade das práticas de governança corrupta, direitos ao secularismo constitucional, o direito à indenização, reabilitação e reassentamento para populações invadidas).
Essa nova disposição judicial, ou Dispositivo, teve sua cota de elogios, bem como de críticas. O elogio registra o aparecimento da própria Suprema Corte como parte integrante do novo movimento social que aspira a redemocratizar o Estado e o governo indianos. A crítica assume duas formas principais. Primeiro, os agentes e gestores da governança gritam “usurpação judicial”. Essa reclamação não procede porque, na realidade, o LAS assume muitos trabalhos e funções que cada vez mais os atores políticos do regime de coalizão simplesmente não conseguem administrar; em outras palavras, a Suprema Corte assume as tarefas de governança nacional, de outro modo, apropriadamente atribuídas à governança democrática. Segundo, os litigantes do LAS freqüentemente desapontados ficam furiosos quando ele não cumpre suas promessas. O excesso de expectativa é tremendo, não respeitando os limites de capacidade, oportunidade e potencial do poder judiciário como um braço do governo nacional. Assim, a Suprema Corte vacila e falha em enfrentar, para não citar nas hipóteses em que ela repara, as políticas controversas relativas ao modo como o Judiciário pode:
• declarar que enormes projetos de irrigação são totalmente agressivos aos direitos humanos;
• impedir a legitimação constitucional das atuais políticas de privatização e desregulamentação alegando serem antidesenvolvimentistas e violadoras dos direitos humanos;
• traduzir, com total honestidade constitucional, o lema atual: “Os direitos das mulheres são direitos humanos”, com a deferência devida aos pluralismos religiosos e sociais;
• promover, através da voz judicial, “a cultura composta” da Índia (Artigo 51-A) na moldagem das concepções do EDD de direitos, justiça, desenvolvimento e governança;
• fomentar e promover a participação na governança como o marco da concepção constitucional do EDD indiano. Como eles podem enfrentar “melhor” o argumento contra a concretização da igualdade de oportunidade e de acesso para as pessoas milenarmente desfavorecidas, concretização essa implementada através de cotas na educação e no emprego em instituições educacionais administradas/subsidiadas pelo Estado e em postos de trabalho estaduais e federais. 30
Está além dos limites deste ensaio oferecer um sentido até mesmo pobre da violência e da violação incrustadas na história do Estado de Direito na Índia. Não somente os pobres foram forçados a agir desonestamente para mal sobreviver, como as dimensões “jurispatas” (para lembrar uma expressão de Robert Cover)31 do EDD indiano existente criaram continuamente novas formas de privá-los de direitos. Essas histórias de exclusão social violenta podem ser contadas de várias maneiras. Recentemente narrei a institucionalização da “cultura do estupro” no contexto da violência e violação de 2002 no Gujarat.32
Mas é para a literatura mais do que para o direito que devemos nos voltar para perceber todo o horror da traição do Estado de Direito indiano. Bashai Tudu, de Mahasweta Devi, fala-nos sobre as ambigüidades constitutivas das práticas do governo e da resistência militarizada do “estado de direito” na Índia contemporânea. A Fine Balance, de Rohintoon Mistry, instrui sobre a miséria constitucional dos intocáveis presos na rede cada vez maior da governança “constitucional”. Esses dois clássicos literários paradigmáticos nos convidam a seguir um modo de estudo peculiarmente indiano que interliga direito e literatura, fora do qual é quase impossível captar as atrocidades vividas na prática do EDD indiano.
Eles também fazem a afirmação vital (com a notável série de Estudos Subalternos indianos) de que as patologias da governança são de fato modos de normalização de governança usados como meio de controlar (para evocar uma expressão favorita de Hannah Arendt) pessoas “sem direitos”. Os atributos “jurispatas” do Estado de Direito indiano em funcionamento podem ser mais bem descritos em termos de reprodução social dessa falta de direitos. O ativismo judicial indiano começa a fazer e marcar uma modesta reversão.
A história indiana pelo menos estabelece a importância para teoria e prática do Estado de Direito contemporâneo. O momento é propício para a construção de narrativas multiculturais (apesar das reservas justificadas que esse termo evoca) do Estado de Direito precisamente porque tem sido apregoado que a “história” acabou agora e que não restam no horizonte “alternativas” significativas ao capitalismo global.
A busca autêntica pelo renascimento do Estado de Direito apenas começou seu percurso histórico mundial. As comunidades epistemológicas do EDD têm escolhas a fazer. Nossos discursos sobre o EDD podem abortar ou ajudar o nascimento de novas concepções, agora lutando para encontrar uma voz nos muitos espaços das lutas populares contra o capitalismo global e que anunciem alternativas a ele.
Creio que precisamos, no fim das contas, colocar-nos de novo sob a tutela de Michael Oakeshott.33 Ele lembra que longe de ser um “produto acabado” da história da humanidade, o discurso do Estado de Direito “é uma composição individual, uma unidade de particularidade e generalidade, em que cada componente é o que é em virtude do que contribui para o delineamento do todo”. Essa virtude do “todo” não pode mais legitimar a narrativa euro-americana. Ao contrário, permanece em aberto a tarefa de re-privilegiar outras maneiras de contar as histórias do EDD como uma forma de empreendimento participativo de miríades de vozes “subalternas”.
1. G. Agamben, Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life, Stanford, Stanford University Press, 1995. Ver também G. Aderni, “Legal Intimations: Michael Oakeshott and the Rule of Law”,Wisconsin Law Review, 1993, p. 838; U. Baxi, “The Gujarat Catastrophe: Notes on Reading Politics as Democidal Rape Culture”, in Kalpana Kababiran (ed.), The Violence of Normal Times: Essays on Women’s Lived Realities, Nova Delhi, Women Unlimited em associação com Kali for Women, 2005, pp. 332-384; U. Baxi “Postcolonial Legality”, in Henry Schwartz e Sangeeta Roy (eds.), A Companion to Postcolonial Studies, Oxford, Blackwell, 2001, pp. 540-555; B. Fine,Democracy and the Rule of Law: Liberal Ideals and Marxist Critiques, Londres, Pluto Press, 1984; M. Galanter, Competing Equalities, Delhi, Oxford, 1984; M. Hidyatuallah, The Fifth and Sixth Schedules of the Constitution of India, Gauhati, Ashok Publishing House, 1979; C. Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty, Cambridge, The MIT Press, trad. George Schwab, 1985; A. Sen, Development as Freedom, Oxford, Oxford University Press, 1999; e J. Stone, The Social Dimensions of Law and Justice, Sydney, Maitland, 1966, pp. 797-99.
2. Ver, para essa distinção elaborada de várias formas, L. Fuller, Morality of Law, New Haven, Yale University Press, 1964; N. McCormick, “Natural Law and the Separation of Law and Morals”, in Robert P. George (ed.), Natural Law Theory: Contemporary Essays, Oxford, Clarendon Press, 1992, pp. 105- 133; J. Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Oxford Clarendon Press, 1980; e G. Q. Walker, The Rule of Law: Foundation of Constitutional Democracy, Melbourne University Press, 1988.
3. Um valioso começo comparativo é feito por um grupo de estudiosos: ver R. Peernbohm,Asian Discourses on the Rule of Law: Theories and Implementation of Rule of Law in Twelve Asian Countries, France and U.S., Londres, London and Routledge, 2004.
4. Ver R. Young, Postcolonialism: An Introduction, Oxford, Blackwell, 2001; e U. Baxi, “The Colonialist Heritage”, in PierreLegrand e Roderick Munday (eds.),Comparative Legal Studies: Traditions and Transitions, Cambridge University Press, 2003, pp. 6-58. Ver também os materiais citados nessas obras.
5. E. P. Thompson, Whigs and Hunters: The Origins of Black Act, London, Allen Lane, 1975.
6. U. Baxi, The Future of Human Rights, Delhi, Oxford University Press, 2ª ed., 2006.
7. Apresentada de forma diferente, por exemplo em Braithwaite e Dathos (2000), Chibundo (1999) e B. S. Chimni, “Cooption and Resistance: Two Faces of Global Administrative Law”, New York Journal of International Law and Politics, vol.37, nº. 4/Verão 5, 2005, pp.799-827.
8. Ver Gill (2000) and Schneiderman (2000).
9. Ver U. Baxi, “The War on Terror and the ‘War of Terror’, Nomadic Multitudes, Aggressive Incumbents & the ‘New International Law’”, Osgoode Hall Law Journal, v. 43, nº 1 & 2, 2005, pp.1-36. Ver também M. L. Satterthwaite, “Rendered Meaningless: Extraordinary Rendition and the Rule of Law”, New York University Public Law and Legal Theory Working Papers, Paper 43, 2006; Idem, “Torture by Proxy: International and Domestic Law Applicable to ‘Extraordinary Rendition’”, Nova York, ABCBY e NYU School of Law, 2004.
10. U. Baxi, The Future of Human Rights, Delhi, Oxford University Press, 2ª ed., 2006.
11. Mas ver R. Peernbohm, “Let One Hundred Flowers Bloom, One Hundred School Contend: Debating Rule of Law in China”, Michigan Journal of International Law, v. 23, 2002, p. 471.
12. L. Althusser, Montesquieu, Rousseau, Marx: Politics and History, Londres, Verso, trad. Ben Brewster, 1982.
13. Com efeito, a separação dos poderes dá ao executivo a discrição soberana nas esferas do planejamento macro e micro do desenvolvimento, produção de armas (inclusive de armas de destruição em massa), decisões de travar muitos tipos de guerra (encoberta ou aberta), ou de administração da violência insurgente. Não surpreende, embora infelizmente, que nosso discurso do EDD acabe mais ou menos onde começa o Estado militarizado (o Estado “secreto”, para evocar E. P. Thompson, Writing by the Candlelight, Londres, The Merlin Press, 1989).
14. J. Raz, “The Rule of Law and its Virtue”, Law Quarterly Review, v. 93, 1977, p. 208.
15. J. Rawls, The Law of Peoples, Cambridge, Harvard University Press, 1999; Idem, Political Liberalism, Nova York, Columbia University Press, 1993. Ver também J. Habermas, Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy, Cambridge, The MIT Press, trad. William Rehg, 1996.
16. Ver J. Morgan Kouseer, Colorblind Injustice: Minority Voting Rights and the Undoing of the Second Reconstruction, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1999.
17. Chamo a atenção para fenômenos tão diversos quanto Maio de 1968, os protestos universitários nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã, manifestações de massa contra a Rodada do Uruguai e a OMC, a Praça da Paz Celestial, as lutas contra os regimes de apartheid nos Estados Unidos e na África do Sul, contra perversões da legalidade socialista na Europa Central e Oriental e, mais recentemente, os protestos contra a invasão do Iraque e as várias revoluções de “veludo” e “laranja”. Para noções adequadamente amorfas de “multidões”, ver A. Negri, Insurgencies: Constituent Power and the Modern State, Minnesota, University of Minnesota Press, trad. um tanto dessemelhante, verais recentemente, os protestos contra a invass etu os, ou o diretioem servido por sistemas de vMuarizia Boscagli, 1999; A. Negri & M. Hardt, Empire, Cambridge, Harvard University Press, 2000; e num gênero um tanto dessemelhante, ver P. Virno, A Grammar of Multitude For An Analysis of Contemporary Forms of Life, Los Angeles e Nova York, SEMIOTEXT{E}, trad. Isabella Bertoletti, James Cascaito, Andréa Casson, 2004.
18. G. Austin, The Indian Constitution: The Cornerstone of Nation, Delhi, Oxford University Press, 1964; Idem, Working a Democratic Constitution — The Indian Experience, Delhi, Oxford University Press, 1999, pp. 540-555. U. Baxi, “The Colonialist Heritage”, in PierreLegrand e Roderick Munday (eds.),Comparative Legal Studies: Traditions and Transitions, Cambridge University Press, 2003, pp. 6-58.
19. Jawaharlal Nehru captou essa relação ao insistir que o “império da lei” (estado de direito) não deveria ser divorciado do “império da vida”.
20. O constitucionalismo indiano tem uma influência normativa no constitucionalismo pós-colonial, ilustrada de forma mais notável e recente pela Constituição pós-apartheid da África do Sul. Porém, os hábitos euro-americanos são tão arraigados que o discurso dominante, até mesmo comparativo, representa a forma indiana e outras formas de constitucionalismo do Sul como meramente miméticas.
21. A Suprema Corte indiana construiu assim um magnífico edifício de jurisprudência sobre detenção preventiva sujeitando os atos de detenção a um escrutínio rigoroso, ao mesmo tempo em que sustenta a constitucionalidade legislativa de tais medidas. Mas ver U. K. Singh,The State, Democracy, and Anti-terror Laws In India, New Delhi, Sage, 2007.
22. Ver, para perspectivas mais recentes, R. Samaddar, The Politics of Autonomy, Nova Delhi, Sage, 2005.
23. Tais como, por exemplo, o Conselho Interestadual de Desenvolvimento, a Comissão de Planejamento, a Comissão de Direitos Humanos, as Comissões de Minorias e Mulheres, a Comissão de Castas e Tribos Intocáveis, a Comissão Central de Vigilância e a Comissão do Direito Indiano.
24. Por exemplo, o poder extraordinário de impor o Domínio do Presidente, suspendendo ou dissolvendo legislativos/governos estaduais, outrora exercido com liberalidade, foi agora atenuado até quase desaparecer por várias decisões da Suprema Corte. O poder de declarar e administrar os estados sob emergência constitucional, em situações de rebelião armada e de agressão externa que resultem em ampla suspensão dos direitos humanos, segundo a Parte 111 da Constituição, tem sido posto constantemente sob escrutínio judicial, e emendas constitucionais voltadas para os direitos humanos.
25. A referência aqui é a uma variedade de Diretivas que reforçam as estruturas de governança – estruturas tais como a Comissão para as Castas e Tribos Intocáveis, a Comissão de Planejamento, a Comissão de Finanças, a Comissão Eleitoral e algumas instituições recentes de direitos humanos, como a Comissão Nacional de Direitos Humanos e a Comissão Nacional para as Mulheres, algumas duplicadas nos governos estaduais. Embora se diga explicitamente que não podem ser submetidas aos tribunais, as Diretivas lançam um dever “supremo” de observância na elaboração de leis e políticas. Graças a isso, os tribunais indianos usaram as Diretivas como uma tecnologia de interpretação constitucional: eles favoreceram interpretações que promovem, em vez de frustrar as Diretivas. Essa capacidade “indireta” de ser submetido a tribunais contribuiu muito para a frutificação da versão “grossa”/ substantiva do EDD indiano.
26. Não sobrecarrego este artigo com referências e fontes que testemunham essa realização. Os leitores interessados podem consultar tratados sobre o direito constitucional e administrativo indiano, em especial os escritos por Durga Das Basu, H. M. Seervai, M.P. Jain, S.N. Jain, S.P. Sathe, I.P. Massey, Rajiv Dhavan, entre outros.
27. U. Baxi, “Justice of Human Rights in Indian Constitutionalism: Preliminary Notes”, in Thomas Pantham e V. R. Mehta (eds.), Modern Indian Political Thought, Delhi, Sage Publications, 2006, pp. 263-284.
28. Ver S. P. Sathe, Judicial Activism in India, Delhi, Oxford University Press, 2002; U. Baxi, The Indian Supreme Court and Politics Lucknow, Delhi, Eastern Book Company, 1980; e Idem,Courage, Craft, and Contention: The Indian Supreme Court in mid-Eighties Bombaim, N. M. Tripathi, 1985.
29. C. Raj Kumar, “International Human Right Perspective on the Right to Education: Integration of Human Rights and Human Development in the Indian Constitution”, 12 Tulane International and Comparative Law 237, 2004.
30. As várias emendas constitucionais que estabelecem reserva de lugares para mulheres nos legislativos estaduais e federais ainda não se materializaram. Suas histórias legislativas contemporâneas cheias de altos e baixos permanecem enredadas, em aspectos socialmente significativos, na questão das “reservas dentro das reservas”. A questão é se esse projeto deveria ser estratificado de forma a permitir/capacitar as mulheres dupla/multiplamente oprimidas pelo Estado e pela sociedade civil, por meio de provisões para uma cota de representação para as mulheres que pertencem às “subclasses”.
31. “Jurispathic” (original) significa: uma atuação judicial que destrua uma norma produzida pela comunidade.
32. U. Baxi, “The War on Terror and the ‘War of Terror’, Nomadic Multitudes, Aggressive Incumbents & the ‘New International Law’”, Osgoode Hall Law Journal, v. 43, nºs 1& 2, 2005, pp. 1-36.
33. M. Oakeshott, On Human Conduct, Oxford, Oxford University Press, 1975, pp. 1-31.