Ensaios

A desigualdade e a subversão do Estado de Direito11. Gostaria de agradecer a Denise Dora e a Leslie Bethel por todo o apoio recebido da Fundação Ford, e ao Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, onde me ofereceram um ambiente estimulante para escrever o presente ensaio em 2007, graças à bolsa de Direitos Humanos de Sergio Vieira de Mello. Também gostaria de agradecer a Thomas Pogge por ter autorizado a publicação deste ensaio, escrito previamente para um volume que a UNESCO lhe havia encomendado, e que a Oxford University Press publicará em 2008. Finalmente, desejo agradecer a Michael Ravvin por sua leitura profundamente precisa do presente ensaio e por todas as suas sugestões.

Oscar Vilhena Vieira

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RESUMO

De que maneira a profunda e persistente desigualdade socioeconômica afeta a integridade do Estado de Direito? O principal objetivo deste artigo é procurar entender os efeitos, no sistema jurídico, da polarização entre pobreza e riqueza, especialmente com relação a uma das idéias centrais do Estado de Direito: a noção de que as pessoas devem ser tratadas de maneira imparcial pela lei e por aqueles encarregados de sua implementação. O argumento principal proposto aqui é que a exclusão social e econômica, decorrente de níveis extremos e duradouros de desigualdade, destrói a imparcialidade da lei, causando a invisibilidade dos extremamente pobres, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, aos olhos dos indivíduos e das instituições. Em suma, a desigualdade socioeconômica extrema e persistente corrói a reciprocidade, tanto em seu sentido moral quanto em seu interesse mútuo, o que enfraquece a integridade do Estado de Direito. Esse artigo também será publicado em Thomas Pogge (ed.). A Human Right to be Free from Poverty: Its Role in Politics. Oxford: Oxford University Press, 2008.

Palavras-Chave

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Introdução

De que maneira a profunda e persistente desigualdade socioeconômica afeta a integridade do Estado de Direito? O principal objetivo desse artigo é procurar entender os efeitos, no sistema jurídico, da polarização entre pobreza e riqueza, especialmente com relação a uma das idéias centrais do Estado de Direito: a noção de que as pessoas devem ser tratadas de maneira imparcial pela lei e por aqueles encarregados de sua implementação. O argumento principal proposto aqui é que a exclusão social e econômica, decorrente de níveis extremos e duradouros de desigualdade, destrói a imparcialidade da lei, causando a invisibilidade dos extremamente pobres, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, aos olhos dos indivíduos e das instituições. Em suma, a desigualdade socioeconômica extrema e persistente corrói a reciprocidade, tanto em seu sentido moral quanto como interesse mútuo, o que enfraquece a integridade do Estado de Direito.

Esse artigo está dividido em quarto partes seguidas de algumas conclusões. Na primeira parte, revisarei as concepções substantiva e formalista do Estado de Direito e procurarei entender a razão pela qual esse ideal tem sido quase unanimemente defendido em nosso tempo. O desafio na segunda parte é explicar por que os Estados e as pessoas agiriam em conformidade com os parâmetros do Estado de Direito discutidos na primeira parte. A terceira levará em consideração o impacto da desigualdade extrema e persistente sobre o Estado de Direito. Nesta parte, irei apoiar-me na familiaridade que possuo com a experiência brasileira – e essa não é uma escolha completamente arbitrária. Embora o Brasil ostente um sistema jurídico razoavelmente moderno e um judiciário independente, em conformidade com muita das chamadas virtudes do Estado de Direito, o país possui um histórico maculado no que diz respeito à sua adequação ao Estado de Direito, especialmente na maneira pela qual a lei é implementada. Uma explicação para isso é a desigualdade. Eu espero que a referência ao Brasil não prejudique minha intenção de formular algumas conclusões gerais acerca da relação entre Estado de Direito e desigualdade. A última parte não será pessimista, no entanto. Focarei em como um Estado de Direito, mesmo incompleto, pode ser utilizado e desafiado a fortalecer os invisíveis, humanizar os demonizados e trazer os imunes de volta ao domínio do Direito.

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O conceito de Estado de Direito

A idéia de Estado de Direito tem sido quase unanimemente defendida em nossos dias. Ela tem servido como um ideal extremamente poderoso para aqueles que têm lutado contra o autoritarismo e o totalitarismo nas duas últimas décadas e é considerada por muitos como um dos principais pilares de um regime democrático.1 Para os defensores de direitos humanos, o Estado de Direito é visto como uma ferramenta indispensável para evitar a discriminação e o uso arbitrário da força.2 Ao mesmo tempo, a idéia de Estado de Direito, ao ser renovada pelos libertários como Hayek em meados do século XX, recebeu apoio fervoroso das agências financeiras internacionais e instituições de auxílio ao desenvolvimento jurídico, como um pré-requisito essencial para o estabelecimento de economias de mercado eficientes.3 Do outro lado do espectro político, até mesmo os marxistas, que viam antigamente o Estado de Direito como um mero instrumento superestrutural, voltado à manutenção do poder das elites, começaram a vê-lo como um bem humano incondicional.4 Seria difícil encontrar qualquer outro ideal político louvado por públicos tão diversos. Porém, a questão é: estamos todos defendendo a mesma idéia? Obviamente, estão sendo empregados tanto conceitos diferentes de Estado de Direito, quanto virtudes ou características distintas oriundas de uma concepção mais abstrata do tema.

O conceito clássico de Estado de Direito foi submetido a uma severa reavaliação nas duas primeiras décadas do último século. Pensadores, como Max Weber em Economia y Sociedad5, alertaram-nos acerca do processo de desformalização do Direito como conseqüência das transformações na esfera pública. Os anos que se seguiram após os trabalhos de Weber foram marcados por uma tensa luta política e intelectual sobre a capacidade do Rechtsstaat de se adequar aos novos desafios apresentados pela Constituição social-democrata de Weimar. Essa luta pode ser vista no debate entre conservadores como Carl Schmitt e social-democratas representados por Franz Neumann6. Hayek responde a essas perspectivas céticas sobre o Estado de Direito em seu influente O Caminho da Servidão, de1944.7

Para Hayek, a intervenção estatal na economia e o crescente poder discricionário dos burocratas de estabelecer e buscar objetivos sociais ameaçam a eficiência econômica; como conseqüência das transformações nas funções do Estado, houve um processo de declínio da condição do Direito como instrumento substantivo na proteção da liberdade. A noção de que o Estado não tem apenas a obrigação de tratar os cidadãos de maneira igual perante a lei, mas também o dever de assegurar a justiça substantiva foi acompanhada pelo argumento, proposto por novos teóricos jurídicos, de que o conceito tradicional de Estado de Direito se tornou incompatível com a nova realidade. Diferentes teorias jurídicas como o positivismo, o realismo jurídico ou a jurisprudência de interesses construíram uma versão formal do Direito, liberando o Estado das inerentes limitações impostas por uma concepção substantiva.

Para superar tal situação de “opressão”, na qual o Estado pode exercer coerção sobre seus cidadãos – através de atos normativos – sem a necessidade de justificar suas ações em uma lei abstrata e geral, seria necessário retornar às origens do Estado de Direito. Para isso, Hayek revisitou a história e formulou uma lista de elementos normativos essenciais do Estado de Direito, visto como instrumento par excellence para assegurar a liberdade. De acordo com essa versão, ele não pode ser comparado ao princípio da legalidade desenvolvido pelo direito administrativo, porque o Estado de Direito representa uma concepção material referente ao que o Direito deveria ser. Essa concepção material o configura como uma doutrina meta legal e um ideal político, que serve à causa da liberdade, e não como uma mera concepção de que a ação governamental deva estar de acordo com as normas. O Estado de Direito deveria ser formado, para Hayek, pelos seguintes elementos: (a) a lei deveria ser geral, abstrata e prospectiva, para que o legislador não pudesse arbitrariamente escolher uma pessoa para ser alvo de sua coerção ou privilégio; (b) a lei deveria ser conhecida e certa, para que os cidadãos pudessem fazer planos – Hayek defende que esse é um dos principais fatores que contribuíram para a prosperidade no Ocidente; (c) a lei deveria ser aplicada de forma equânime a todos os cidadãos e agentes públicos, a fim de que os incentivos para editar leis injustas diminuíssem; (d) deveria haver uma separação entre aqueles que fazem as leis e aqueles com a competência para aplicá-las, sejam juízes ou administradores, para que as normas não fossem feitas com casos particulares em mente; (e) deveria haver a possibilidade de revisão judicial das decisões discricionárias da administração para corrigir eventual má aplicação do Direito; (f) a legislação e a política deveriam ser também separadas e a coerção estatal legitimada apenas pela legislação, para prevenir que ela fosse destinada a satisfazer propósitos individuais; e (g) deveria haver uma carta de direitos não taxativa para proteger a esfera privada.8

Dessa maneira, a concepção de Estado de Direito defendida por Hayek engloba uma visão substantiva do Direito, uma noção estrita da separação de poderes e a existência de direitos liberais que protejam a esfera privada, moldada assim para servir como um instrumento de proteção da propriedade privada e da economia de mercado. O maior problema com essa concepção é que, através dela, o Estado de Direito se torna refém de um ideal político particular.

Em reação a esse e a outros tipos de formulações substantivas do Estado de Direito, como aquela mais direcionada ao aspecto social que resultou do Congresso de Delhi, organizado pela Comissão Internacional de Juristas em 1959, Joseph Raz propõe uma concepção mais formalista, que evitaria a confusão entre diversos objetivos sociais e ideológicos e as virtudes intrínsecas do Estado de Direito. Para ele, “se o Estado de Direito for um Estado governado por boas leis, então explicar a sua natureza é difundir uma filosofia social completa. Porém, dessa maneira, o termo perde qualquer utilidade”.9

Para Raz o Estado de Direito em seu sentido amplo “significa que as pessoas devem obedecer às leis e serem reguladas por elas. Porém, em uma teoria política e jurídica, ele deve ser lido de uma maneira mais estrita, no sentido de que o governo deve ser regulado pelas leis e sujeito a elas”.10 A construção de Raz requer que as leis devam ser entendidas como regras gerais, para que possam efetivamente direcionar ações. Nesse sentido, o Direito não é apenas um fato decorrente do poder, precisa, ao contrário, possuir uma forma particular. Raz, no entanto, não compartilha da idéia defendida por Hayek, segundo a qual apenas normas abstratas e gerais podem constituir um sistema de Estado de Direito. Para Raz, seria impossível governar apenas com normas gerais; qualquer sistema concreto deve ser composto por normas gerais e outras específicas, que em contrapartida devem ser consistentes com as primeiras. Para concretizar o objetivo de um sistema jurídico que possa guiar a ação individual, Raz cria sua própria lista com os princípios do Estado de Direito, de acordo com os quais as leis devem ser prospectivas, acessíveis, claras e relativamente estáveis; a edição de normas específicas deve ser guiada por outras que sejam, por sua vez, acessíveis, claras e gerais.

Porém, essas regras somente farão sentido se houver instituições responsáveis pela sua aplicação consistente, a fim de que o Direito possa se tornar um parâmetro efetivo para guiar a ação individual. A formulação de Raz requer, desse modo, a existência de um judiciário independente, porque, se as normas fundamentam racionalmente as ações e o judiciário é responsável por aplicá-las, seria inútil guiar nossas ações pelas leis se as cortes pudessem levar em consideração outras razões que não as leis ao decidir casos concretos. Pela mesma razão, os princípios do devido processo, como o direito das partes a serem ouvidas e a imparcialidade, devem ser contemplados. O Estado de Direito também requer que as cortes devam ter competência para rever atos de outras esferas do governo, a fim de assegurar a conformidade desses com o Estado de Direito. As cortes devem ser facilmente acessíveis para que não se frustre o Estado de Direito. Por último, os poderes discricionários das instâncias responsáveis pela prevenção criminal devem ser reduzidos no intuito de não se deturpar as leis. Nem o promotor nem a polícia devem ter a discricionariedade para alocar seus recursos destinados ao combate ao crime com base em outros fundamentos que não aqueles estabelecidos legalmente.11

Dentro dessa perspectiva, o Estado de Direito é um conceito formal de acordo com o qual os sistemas jurídicos podem ser mensurados, não a partir de um ponto de vista substantivo, como a justiça ou a liberdade, mas por sua funcionalidade. A principal função do sistema jurídico é servir de guia seguro para a ação humana. Essa é a primeira razão pela qual as concepções formalistas do Estado de Direito, semelhantes à formulada por Raz, recebem amplo apoio de diferentes perspectivas políticas. É extremamente importante para os governos em geral contarem com um eficiente instrumento para guiar o comportamento humano. Contudo, servir de ferramenta para distintas perspectivas políticas não significa que mesmo a concepção formalista de Estado de Direito seja compatível com todos os tipos de regimes políticos. Por favorecer a previsibilidade, a transparência, a generalidade, a imparcialidade e por dar integridade à implementação do Direito, a idéia do Estado de Direito se torna a antítese do poder arbitrário.12 Dessa maneira, as perspectivas políticas distintas que apóiam o Estado de Direito têm em comum uma aversão ao uso arbitrário do poder; essa é uma outra explicação sobre por que o Estado de Direito é defendido por democratas, liberais igualitários, neoliberais e ativistas de direitos humanos. Apesar de suas diferenças, eles são todos a favor de conter a arbitrariedade. Em uma sociedade aberta e pluralista, que ofereça espaço para ideais concorrentes acerca do bem público, a noção de Estado de Direito se torna uma proteção comum contra o poder arbitrário.

Existe, no entanto, uma explicação menos nobre para o apoio amplo ao Estado de Direito que deve ser mencionada. Tendo em vista que o Estado de Direito é um conceito multifacetado, se usarmos cada um de seus elementos constitutivos separadamente, eles serão extremamente valiosos na promoção de valores ou interesses diferentes e muitas vezes concorrentes, como eficiência de mercado, igualdade, dignidade humana e liberdade. Para aqueles que defendem reformas de mercado, a idéia de um sistema jurídico que proporcione previsibilidade e estabilidade é de extrema importância. Para os democratas, a generalidade, a imparcialidade e a transparência são essenciais e, para os defensores de direitos humanos, a igualdade de tratamento e a integridade das instâncias de aplicação da lei são indispensáveis.

Portanto, a leitura parcial desse conceito multifacetado, feita por concepções políticas distintas, também ajuda a entender a atração de público tão amplo pelo Estado de Direito. Assim, quando nós encontramos alguém defendendo o Estado de Direito, precisamos ser cautelosos e verificar se ele não está apenas exaltando uma das virtudes do Estado de Direito. Apenas a virtude que justamente sustenta os objetivos sociais que ele quer promover.

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Conformidade com o Estado de Direito

Um dos problemas fundamentais com as concepções de Estado de Direito acima mencionadas (tanto a substantiva quanto a formal) é que elas não nos ajudam a entender quais são as condições externas (sociais, econômicas e políticas) que favorecem a adesão de um sistema jurídico aos seus ideais; nem a responder por que tanto os agentes públicos quanto os indivíduos obedeceriam à lei. Essa é a razão pela qual Maravall e Przeworski demonstram profundo desapontamento com a espécie de listas formuladas por juristas, como as discutidas acima: são “implausíveis como descrição” e “incompletas como explicação”.13 Dessa maneira, o primeiro desafio que aqui se coloca é buscar compreender quais condições ou mecanismos incentivam a obediência ao Estado de Direito. Por que qualquer governo com controle indisputável sob os meios coercitivos se submeteria ao Estado de Direito? Além disso, por que qualquer um de nós deveria respeitar a lei? Deixe-me começar pela primeira questão.

Por que um governante respeitaria a lei?

De acordo com Holmes, a principal tese de Maquiavel sobre esse assunto é que “os governos devem ser levados a tornar o seu próprio comportamento previsível em busca de cooperação. Os governos tendem a se comportar como se eles fossem ‘limitados’ pela lei, ao invés de usar a imprevisibilidade da lei como uma vara para disciplinar as populações a eles submetidas, […] porque eles possuem objetivos específicos que requerem um alto grau de cooperação voluntária […]”.14 Assim, a lei seria usada com parcimônia pelo governante a fim de obter cooperação por parte de grupos específicos dentro da sociedade, o que ele não teria sem mostrar algum respeito pelos seus interesses. Na medida em que o governante precisar de mais apoio, mais grupos serão incluídos na proteção proporcionada pela lei e, em troca desse apoio, eles se beneficiarão do tratamento previsível do governante.

Liberalismo e democracia, no entanto, requerem a expansão do Estado de Direito para todos. Foi assim, de fato, que o Estado de Direito se desenvolveu desde a Idade Média, através da expansão de privilégios a diferentes grupos. A Magna Carta é talvez o primeiro símbolo desse processo de expansão de direitos legais que culminou na Carta Internacional de Direitos Humanos no século XX e nas cartas de direitos das democracias constitucionais contemporâneas.

A distribuição de direitos, capaz de fortalecer as pessoas, torna-se, assim, o fator chave para obter cooperação. T.H. Marshal, em seu clássico Cidadania, Classe Social e Status (1967)15 proporciona uma clara descrição da evolução da cidadania nos países ocidentais, através do processo de inclusão do povo na proteção proporcionada pela lei. Tem sido através do embate político que novos grupos conseguem obter status jurídico por intermédio dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos, recebendo, como contrapartida por sua cooperação, diferentes níveis de inserção no Estado de Direito. Assim, mesmo que nós não possamos confundir o Estado de Direito com os direitos dos cidadãos, é muito difícil historicamente dissociar o processo de expansão da cidadania da ampliação do Estado de Direito. A generalidade e a aplicação imparcial da lei, como virtudes internas do Estado de Direito, estão diretamente associadas à noção de igualdade perante a lei obtida pela expansão da cidadania.16

Nos regimes democráticos contemporâneos, nos quais a legitimidade/cooperação depende de um alto grau de inclusão, os direitos tendem a ser distribuídos mais generosamente. No entanto, mesmo em um regime democrático, o governo não necessita de cooperação de todos os grupos em termos iguais, o que faz com que não haja incentivo para tratar todos igualmente perante a lei todo o tempo. Mais do que isso, tendo em vista que os grupos possuem recursos sociais, econômicos e políticos desproporcionalmente distribuídos dentro da sociedade, o custo para que eles cooperem também é desproporcional, o que significa dizer que a lei e sua aplicação serão moldadas conforme diferentes camadas de privilégios.

Isso significa que qualquer aproximação com a idéia do Estado de Direito depende não apenas da expansão de direitos no papel, mas também, e talvez de maneira mais crítica, de como esses direitos são consistentemente implementados pelo Estado. Aqui está o paradoxo enfrentado por muitos regimes democráticos com altos níveis de desigualdade social. Embora direitos iguais sejam reconhecidos nos livros, como uma medida simbólica para obter cooperação, os governos não se sentem compelidos a respeitar as obrigações correlatas a esses direitos iguais, nos mesmos termos para todos os membros da sociedade. A partir do momento em que os custos para exigir a implementação dos direitos através do Estado de Direito são desproporcionalmente maiores para alguns membros da sociedade do que para outros, ele se torna um bem parcial, favorecendo essencialmente aqueles que possuem poder e recursos para conseguir vantagens com isso. Em outras palavras, a igualdade formal proporcionada pela linguagem dos direitos não se converte em acesso igualitário ao Estado de Direito ou à aplicação imparcial das leis e dos direitos.17 Dessa maneira, é possível ter direitos, mas não possuir suficientes recursos para exigir a sua implementação. Nesse sentido, é apropriado pensar no Estado de Direito não em termos de sua existência ou inexistência, mas sim em graus de inclusão. O processo democrático pode expandir o Estado de Direito. Porém, mesmo os regimes democráticos em sociedades com extremos níveis de desigualdade, onde as pessoas e os grupos possuem recursos e poder desproporcionais, o Estado de Direito tende a ser menos capaz de proteger os economicamente desfavorecidos e de fazer os poderosos serem responsabilizados perante a lei.

No entanto, o controle do poder estatal e sua submissão à lei não é apenas uma conseqüência de como o poder está socialmente distribuído. Nas sociedades modernas, as instituições são criadas para moldar o comportamento, através de inúmeras formas de incentivo. Instituições também podem ser desenhadas para controlar umas às outras. Conforme notado por Madison: quando a ambição é institucionalmente direcionada para restringir a ambição, a possibilidade de ter o governo sob controle aumenta.18 Os momentos fundacionais se tornam assim muito importantes. Quando poderes sociais concorrentes não são suficientemente fortes para superar uns aos outros, eles tendem a se comprometer com a criação de estruturas políticas dotadas de poderes fragmentados e contrapostos. Os grupos menos favorecidos podem se beneficiar do resultado desses conflitos de elite. Essa é a lógica básica que informa o constitucionalismo moderno.

Contudo, o Estado de Direito tem como objetivo mais do que ter um governo submetido ao controle constitucional e legal. Ele também procura guiar o comportamento individual e a interação social. Dessa forma, também é necessário explorar por que as pessoas se comprometeriam com o Direito. Assim é importante buscar compreender quais são as razões que todos nós levamos em consideração quando obedecemos ao Direito.

Por que as pessoas respeitam a lei?

Razões cognitivas. O primeiro conjunto de razões para que haja o cumprimento individual das leis é certamente cognitivo e diz respeito à capacidade de entendimento dos conceitos jurídicos básicos, como a noção de regras e direitos. Sem essas concepções culturais básicas, nós não podemos pensar na possibilidade de respeitar o Direito. Essa não é uma questão trivial. Em muitas sociedades, a idéia de que as pessoas sejam possuidoras de direitos iguais e de que o Direito deva ser aplicado imparcialmente é, com freqüência, contrária à experiência diária. Privilégios existentes, direitos decorrentes de classe e de hierarquia estão cravados em diferentes sistemas culturais, fazendo com que a experiência da generalidade do Direito não seja observável. Além de entender a função estrutural dos conceitos jurídicos básicos, é importante que as pessoas compreendam as regras fundamentais que governam suas próprias sociedades e suas obrigações e direitos. Nas sociedades com alto grau de concentração de pobreza e de analfabetismo, essa condição quase nunca é satisfeita.19

Razões instrumentais. O segundo conjunto de razões para a obediência ao Estado de Direito está ligado a nossa habilidade de raciocinar instrumentalmente, calcular riscos e potenciais benefícios nas ações que tentamos realizar. As pessoas respeitam as leis e os direitos dos demais para obter recompensas ou escapar de punições. Se utilizarmos uma visão instrumental estrita, o respeito ao Direito é reforçado se o seu descumprimento acarretar claramente um custo para o nosso bolso, liberdade, imagem, estado psíquico ou integridade, e se respeitá-lo for igualmente benéfico pelas mesmas razões. Para ter um valor instrumental, respeitar o Estado de Direito deve beneficiar alguém. Através dessa razão instrumental, os indivíduos buscam maximizar a sua condição social e econômica. Duas razões instrumentais sustentam a discussão nesse contexto – o medo da coerção estatal e a reciprocidade mutuamente vantajosa.

Na medida em que as pessoas temem e esperam punição ou recompensa estatal, elas tendem a respeitar o Estado de Direito. Essa idéia poderia ser chamada de argumento hobbesiano. A coerção estatal pode ser instrumento efetivo para o Estado de Direito em algumas circunstâncias, sendo também uma condição necessária porque certo grau de comportamento anti-social irá sempre existir, sem que possa de outra maneira ser controlado. Desse modo, a impunidade causada pela ineficiência estatal, corrupção ou seletividade colocam em risco a capacidade de ameaça da coerção como um meio de obter obediência. Deve ser levado em consideração também que o Estado, em muitas circunstâncias, deve ser provocado por indivíduos antes de exercer a coerção. As pessoas devem com freqüência preencher reclamações, ingressar com processos judiciais, ou apenas informar à polícia certos fatos ilícitos para que o Estado tome alguma atitude. Dessa maneira, a falta de recursos ou desconfiança das autoridades pode produzir um forte impacto na mobilização do poder estatal, permitindo àqueles que não obedecem à lei agir impunemente.

É difícil para qualquer sociedade, no entanto, arcar com o custo do grau de coerção estatal necessário para assegurar a obediência aos parâmetros legais. Imagine, por exemplo, que a ameaça de uma multa ou prisão fosse a única razão pela qual as pessoas deixariam de ultrapassar o sinal vermelho no semáforo de trânsito. A experiência dos Estados totalitários mostra que conseguir obediência pela constante vigilância é algo extremamente caro e, mesmo se os custos pudessem ser suportados, seria absolutamente indesejado.

As razões instrumentais para obedecer à lei deveriam, assim, ser estendidas para além da estrutura coercitiva do Estado. As pessoas fazem parte de círculos sociais, grupos e comunidades que moldam e determinam suas ações.20 Portanto, a segunda razão instrumental para respeitar a lei é a expectativa de represália ou benefício por parte da comunidade ou círculo social ao qual se pertence ou pelo qual se transita. A fraude no mercado ou no casamento possui sérias conseqüências. A credibilidade é um bem de grande importância em qualquer grupo. Perdê-la, por desrespeitar a lei, pode prejudicar a posição pessoal e diminuir a sua capacidade de entrar em novas relações voluntárias com outros membros daquele círculo social. Essa é a razão pela qual as pessoas comumente agem de acordo com o Direito, mesmo na ausência de autoridade estatal.21

Numa relação mutuamente vantajosa, a regra de ouro é: não faço aos outros o que eu não gostaria que fizessem comigo. Por não ser um princípio moral substantivo, essa regra não afirma nem nega a existência de uma estrutura moral mais profunda. Relações mutuamente vantajosas, no entanto, podem auxiliar na obtenção da obediência à lei, ainda que em termos frágeis. Partindo de uma estrutura de vantagem mútua, em circunstâncias de disparidade de poder, indivíduos têm um incentivo para trapacear: o meu interesse é que todos os outros cooperem e que eu não o faça.22 Pressões amistosas também podem ser problemáticas, porque o meio social pode ser influenciado por uma cultura de desrespeito, ou pior, por uma cultura interna de respeito que desafie o Estado de Direito, como no caso da máfia e de outras formas de crime organizado. Consequentemente, as razões instrumentais representadas pela coerção ou por arranjos de vantagem mútua (auto-interessada) não conseguem explicar totalmente por que as pessoas obedeceriam à lei. Embora importantes, elas são insuficientes como explicação completa da questão.

Razões morais. A moralidade tem sido negligenciada por muitas análises recentes da eficácia do Direito, especialmente por aquelas elaboradas por pensadores jurídicos formalistas ou estudiosos ligados à escolha racional.23 Nesse sentido, o argumento de Lon Fuller de que a reciprocidade moral é um elemento fundamental para a existência de um sistema legal se torna particularmente interessante.24 A implementação do Estado de Direito seria consideravelmente mais fácil naquelas sociedades em que os indivíduos valorizassem os outros e seus direitos, na mesma proporção em que dessem valor a si próprios. Os direitos igualmente distribuídos não são um presente dos céus, mas sim uma construção social; uma decisão feita pela comunidade para valorizar os indivíduos em termos eqüitativos e para fundamentar o exercício do poder nesses direitos básicos.25 Isso significa que as decisões coletivas são apenas válidas se derivarem da vontade de indivíduos autônomos e se eles respeitarem a esfera da dignidade humana delineada por esses mesmos direitos.26

Esse é um sistema governado por regras, no qual cada cidadão recebe o status de sujeito de direito, sendo a ele conferida uma esfera de proteção ao entrar em contato com outros cidadãos e com o Estado, esse último também subordinado ao princípio da reciprocidade. Nesse sentido, a autocontenção, que implica respeito pelos direitos dos outros, é a base fundamental para a generalização de expectativas relacionadas com o estabelecimento do Estado de Direito. Na medida em que essas expectativas de respeito aos direitos de todos são generalizadas, a implementação de um autêntico Estado de Direito também se torna possível.

Pode-se argumentar, no entanto, que a reciprocidade sempre tem uma origem utilitária, ou seja, que o meu respeito pelos outros não surge por eu lhes ter concedido algum valor (reciprocidade kantiana), mas sim pelo fato de que nós firmamos um pacto de não agressão que serve aos nossos interesses (reciprocidade hobbesiana).27 Como eu havia argumentado acima, existe uma diferença entre a reciprocidade moral baseada na noção da dignidade humana e a reciprocidade mutuamente vantajosa, com fundamento no cálculo estratégico. Voltando ao exemplo do semáforo de trânsito, de acordo com a concepção moral de reciprocidade, eu pararia meu carro porque acreditaria firmemente que os outros motoristas ou pedestres têm o mesmo direito que eu possuo de atravessar o cruzamento, portanto, eu tenho a obrigação correlata de parar. Numa comunidade limitada pela reciprocidade moral, baseada em direitos, a lei deveria ser mais fácil de ser implementada. Evidentemente que são inúmeros os empecilhos para se obter ou construir reciprocidade moral, dificuldades essas que são ainda maiores em sociedades modernas e consumistas caracterizadas por disparidades socioeconômicas profundas entre seus membros.

A idéia da moralidade, contudo, poderia ser mais formal, como a articulada por autores contratualistas como Rousseau. Nesse caso, a justificativa moral para o respeito à lei não deriva do fato de que um dado sistema jurídico esteja em harmonia com um conjunto pré-estabelecido de valores imbutidos nos direitos. O respeito à lei é devido ao fato de que os próprios cidadãos, sob um procedimento especial justo, produzem leis reguladoras das relações sociais e da esfera pública. A justiça do procedimento garantiria que a maximização do auto-interesse fosse neutralizada, assim o povo poderia deliberar em termos de bem público, o que criaria uma obrigação moral sobre todos os cidadãos de aceitar esses resultados.28 Se nós seguirmos aqui a teoria de Rousseau acerca do Estado de Direito, não apenas os procedimentos deveriam ser justos, mas também o resultado deveria ser veiculado através de meios específicos que assegurassem a imparcialidade. Ou seja, por meio de leis gerais. Neste sentido é importante enfatizar que a justiça procedimental não está limitada a processos para edição de leis gerais, o que seria aceito por todos os participantes no processo político, mas também trata da maneira pela qual essas leis são implementadas pelo Estado. Novamente seguindo Rousseau, uma das maiores causas do declínio da democracia é a distorção na aplicação de leis gerais feita por magistrados que tendem a defender seus próprios interesses privados em detrimento da vontade geral expressa pela lei.29 Dessa maneira, a justiça da aplicação das leis é tão importante quanto a justiça referente a sua produção. Se a aplicação do direito não for levada a cabo com imparcialidade, de acordo com parâmetros de devido processo apresentados pela própria lei, o Estado de Direito perderá sua autoridade e, conseqüentemente, o povo não o verá como uma diretriz aceitável para a sua ação.30

Para resumir o argumento aqui elaborado, a obediência individual à lei é sustentada por três conjuntos principais de razões: cognitiva, instrumental e moral. Conforme tentei argumentar, todas essas razões são importantes para explicar por que os indivíduos (cidadãos e agentes públicos) agem em conformidade com o Estado de Direito, mesmo que o peso de cada razão varie de acordo com a natureza da ação, os atores envolvidos e as circunstâncias ou os círculos sociais nos quais as ações ocorrem. Para o propósito deste artigo, a maior questão a ser levantada é como a desigualdade econômica e social afeta negativamente todos esses mecanismos.

Na seção seguinte, argumentarei que a desigualdade mitiga a compreensão e o conhecimento de conceitos jurídicos básicos; ela subverte a aplicação das leis e o uso da coerção; e por fim atua contrariamente às construções de reciprocidade, tanto em termos morais, quanto em termos de mútua vantagem. Tendo em mente essas três pré-condições para o Estado de Direito, tentarei demonstrar que o sistema jurídico brasileiro, que em grande medida está em conformidade com os elementos que transformam um sistema jurídico em um Estado de Direito, não viabiliza a imparcialidade ou mesmo a congruência. Por intermédio do caso brasileiro, tentarei mostrar que um nível mínimo de igualdade social e econômica entre os indivíduos é crucial para estabelecer as relações de reciprocidade e para a existência de um sistema de Estado de Direito.

04

Desigualdade e Estado de Direito

Em 1988, o Brasil promulgou uma nova Constituição, depois de mais de duas décadas de um regime autoritário. Em reação à experiência do governo arbitrário e a um passado de injustiça e desigualdades sociais, a nova Constituição foi tecida sob os princípios do devido processo legal, da democracia e dos direitos humanos. Sua carta de direitos garante direitos civis, políticos, sociais e econômicos, incluindo os direitos de grupos vulneráveis como os indígenas, os idosos e as crianças. Esses direitos recebem uma proteção especial e não podem ser abolidos nem por intermédio de emendas constitucionais. O Brasil é hoje parte das principais convenções internacionais de direitos humanos, e essas têm um efeito direto sobre o sistema jurídico brasileiro. Portanto, todas as garantias substantivas e procedimentos da Carta Internacional de Direitos Humanos são parte do sistema jurídico brasileiro.

De acordo com a Constituição Brasileira, a lei é o único instrumento que pode impor obrigações jurídicas sobre os indivíduos, sendo que por lei se entendem aqueles atos normativos editados pelo Congresso, processual e substantivamente, em conformidade com a Constituição. Toda pessoa é “igual perante a lei”, sem qualquer distinção. As leis devem ser prospectivas, entrando em vigor apenas depois de sua publicação; as leis retroativas são admitidas apenas quando beneficiarem os indivíduos. Não existem leis secretas. No caso de emergência, o presidente pode editar medidas provisórias que têm que ser aprovadas pelo Congresso para se tornarem leis, dentro de um prazo de sessenta dias, caso contrário elas perderão a eficácia desde sua edição. Em suma, embora muitas leis brasileiras não passem pelo teste de generalidade de Hayek, já que muitas delas possuem um propósito específico e individualizado, assim como muitas leis editadas em qualquer sociedade pós-liberal, elas certamente seriam compatíveis com a formulação de Raz sobre o conceito de lei, no qual regras particulares são admissíveis se forem consistentes com as regras gerais. Também penso que as leis brasileiras, em geral, podem ser consideradas inteligíveis, não contraditórias e razoavelmente estáveis.

No que diz respeito às instituições responsáveis pela aplicação da lei, o sistema jurídico brasileiro poderia também ser considerado formalmente de acordo com os requisitos propostos por Raz. A constituição engloba um sistema de separação de poderes, diferenciando entre os responsáveis pela criação e por aqueles encarregados da aplicação das leis. Como em muitos sistemas contemporâneos a separação de poderes não é tão rígida como a proposta no modelo de Montesquieu; o executivo possui poderes de regulação e de decidir administrativamente em certas áreas. O judiciário possui um poder extenso de revisão da legislação e de atos administrativos que estejam em conflito com a Constituição. O legislativo tem mais poder do que simplesmente editar leis gerais e abstratas; pode controlar o executivo e investigar más práticas. Porém, certamente, essa noção de separação de poderes flexível não é mais maleável do que as concepções admitidas em muitas outras democracias.

Embora, no papel, as instituições pareçam estar em conformidade com o modelo de Estado de Direito de Raz, o sistema jurídico brasileiro sofre de uma séria incongruência entre as leis editadas e o comportamento dos indivíduos e dos agentes públicos.

Há hoje uma consciência crescente de que a lei – e os direitos – ainda desempenham um papel menor na determinação do comportamento individual e oficial. De acordo com o Relatório do Latinobarômetro 2005, há uma grande desconfiança na capacidade do Estado de implementar sua legislação imparcialmente e, de maneira ainda mais problemática, apenas 21% dos brasileiros afirmam respeitar as leis.31 De acordo com Guillermo O’Donnell, a maioria de países da América Latina não foi capaz de consolidar sistemas de Estado de Direito depois da transição para a democracia. Ele defende que a desigualdade extrema na região é um dos maiores empecilhos para uma implementação mais imparcial do Estado de Direito. O Brasil, como um dos mais desiguais países do continente, pode ser caracterizado como um sistema de não-Estado de Direito em lugar de um sistema onde haja o domínio da lei.32

A democratização e a liberalização não foram suficientes para superar os obstáculos que firmemente se opõem à implementação do Estado de Direito no Brasil. A falha em melhorar significativamente a distribuição de recursos e reorganizar o tecido social altamente hierarquizado tem impedido que o Direito exerça seu papel como razão para a ação de diversos setores da sociedade brasileira. O Brasil é a 8ª maior economia no mundo, segundo a revisão recente dos números do Produto Interno Bruto brasileiro. No entanto, detém um dos piores registros de distribuição de riqueza (0,584 índice de Gini). De acordo com o IPEA, um instituto de pesquisa ligado ao Ministério do Planejamento, 49 milhões de pessoas são pobres no Brasil e 18,7 milhões estão em condição de extrema pobreza. Na última década, o 1% mais rico da população possuiu a mesma riqueza que os 50% mais pobres. Esses, entre muitos outros indicadores de desigualdade bruta dentro da sociedade brasileira, têm um efeito forte sobre a atuação das instituições responsáveis pela aplicação da lei no país. Assim como em muitos países com essas características, o Estado brasileiro é comumente cortês com os poderosos, insensível com os excluídos e cruel com aqueles que desafiam a estabilidade social baseada na hierarquia e na desigualdade.

Invisibilidade, demonização e imunidade

O argumento central proposto aqui é que a exclusão social e econômica, oriunda de níveis extremos e persistentes de desigualdade, causa a invisibilidade daqueles submetidos à pobreza extrema, a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, minando a imparcialidade da lei. Em síntese, a desigualdade profunda e duradoura gera a erosão da integridade do Estado de Direito. A lei e os direitos sob essas circunstâncias podem, com freqüência, ser vistos como uma farsa, como uma questão de poder, para que aqueles que estão entre os mais afortunados possam negociar os termos de suas relações com os excluídos.

Invisibilidade significa aqui que o sofrimento humano de certos segmentos da sociedade não causa uma reação moral ou política por parte dos mais privilegiados e não desperta uma resposta adequada por parte dos agentes públicos. A perda de vidas humanas ou a ofensa à dignidade dos economicamente menos favorecidos, embora relatada e amplamente conhecida, é invisível no sentido de que não resulta em uma reação política e jurídica que gere uma mudança social.

Além da miséria em si e todas as conseqüências deploráveis na figura de violações de direitos, uma das expressões mais dramáticas da invisibilidade no Brasil é representada pelos altos índices de homicídios que vitimizam predominantemente as populações mais carentes. Segundo o que a Organização Mundial da Saúde demonstrou em seu último relatório sobre violência, a América Latina possui o pior registro de índices de homicídio no planeta. O Brasil, um dos países mais violentos da região, acumulou mais de 800.000 mortes por homicídio doloso nas últimas duas décadas.33 Mais pessoas se tornam vítimas de homicídio a cada ano no Brasil do que na Guerra do Iraque.34 É importante dizer que uma ampla maioria dos mortos é economicamente desfavorecida, pouco instruída, jovem, masculina, negra e residente na periferia social brasileira.35 Como cuidadosamente demonstrado por Fajnzylber, Lederman and Loayza,36 há uma forte relação causal entre a desigualdade e os índices de crimes violentos.

Quando incluímos outros índices de criminalidade e o fato de que muitas regiões carentes em grandes cidades são controladas pelo crime organizado, com a complacência dos agentes públicos, estes números nos transmitem a mensagem de que a lei não é capaz de servir como uma razão para a ação em muitos meios. E, principalmente, que as restrições legais, como as apresentadas pelo sistema jurídico penal, são insuficientes para proteger grupos vulneráveis dentro da sociedade. Níveis obscenos de impunidade, além de permitir perdas de vidas humanas entre os mais pobres, por não receberem uma resposta apropriada por parte do sistema jurídico, reforçam a idéia perversa de que essas vidas não possuem valor. O círculo vicioso de altos níveis de criminalidade violenta e a impunidade tornam brutais as relações interpessoais e reduzem a nossa capacidade de compaixão e solidariedade.

Porém, se a invisibilidade pode ser aceita em sociedades tradicionais, ela se torna um problema muito preocupante num regime democrático e num contexto consumista. Para muitos que não experimentaram a sensação de serem tratados com igual consideração e respeito por aqueles responsáveis por aplicar a lei e pela sociedade em geral, não existe razão alguma para que ajam em conformidade com o Direito. Em outras palavras, para aqueles criados como invisíveis em sociedades não tradicionais, há ainda menos razões morais ou instrumentais para respeitar as leis. A conseqüência é que, ao desafiar a invisibilidade através de meios violentos, os indivíduos começam a ser vistos como uma classe perigosa, à qual nenhuma proteção legal deve ser dada.

Demonização, portanto, é o processo pelo qual a sociedade desconstrói a imagem humana de seus inimigos, que a partir desse momento não merecem ser incluídos sobre o domínio do Direito. Seguindo uma frase famosa de Grahan Greene, eles se tornam parte de uma “classe torturável”. Qualquer esforço para eliminar ou causar danos aos demonizados é socialmente legitimado e juridicamente imune.

Para compreender a demonização, nós voltamos nossa atenção às violações maciças de direitos humanos. O uso arbitrário da força pelos agentes públicos ou outros grupos armados, com a cumplicidade oficial, contra pessoas demonizadas – como suspeitos, criminosos comuns, presos e mesmo membros de movimentos sociais – é registrada todos os anos por organizações de direitos humanos locais e internacionais. A base de dados de impressa do Centro de Estados da Violência da Universidade de São Paulo registrou mais de seis mil casos de uso arbitrário e mortal da força por policiais brasileiros de 1980 a 2000. Cada um desses casos resultou em pelo menos uma morte.37

De acordo com o Relatório 2006 da Human Rights Watch, “a violência policial – incluindo o uso excessivo da força, execuções extrajudiciais, tortura e outras formas de maus tratos – persiste como um dos problemas mais incontroláveis de direitos humanos no Brasil”.38 Em 2006, a polícia, apenas no estado do Rio de Janeiro, matou mais de mil pessoas.

A tortura permanece uma prática comum tanto nas investigações policiais, quanto nos métodos disciplinares usados no sistema prisional e em unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei. Conforme demonstrado pelo antigo Relator Especial sobre Tortura das Nações Unidas, Sr. Nigel Rodley:

A tortura e outros maus tratos similares estão distribuídos em uma base esparsa e sistemática na maioria das regiões do país visitadas pelo Relator Especial […]. Isso não ocorre a todas as pessoas ou em todos os lugares; acontece principalmente aos economicamente desfavorecidos, criminosos comuns negros envolvidos em crimes pequenos ou em tráfico de drogas de baixa escala […]. As condições de detenção em muitos lugares são, conforme francamente informado pelas próprias autoridades, subumanas […]. O Relator Especial se sente compelido a comentar que se sentiu, em muitas unidades de detenção, e especialmente nas delegacias policiais que ele visitou, sensorialmente agredido de forma insuportável. O problema não foi amenizado pelo fato das autoridades estarem frequentemente conscientes das condições que ele iria descobrir e de o terem advertido acerca delas. Ele poderia apenas se simpatizar com a posição comum que ouviu daqueles que estavam agrupados como rebanhos no sentido de que “eles nos tratam como animais e esperam que nós nos comportemos como seres humanos quando sairmos”.39

Rodley conseguiu nessa sentença captar a essência da demonização. Seres humanos tratados como animais não têm razão para agir de maneira lícita. A demonização, além de ser uma violação à lei em si, cria uma espiral autônoma de violência e de comportamento brutal de uma parcela dos indivíduos uns contra os outros e ajuda a explicar não apenas os índices de homicídio alarmantes, mas também a crueldade extrema de algumas manifestações de criminalidade.

A imunidade perante a lei, para aqueles que ocupam uma posição extremamente privilegiada na sociedade, é a terceira conseqüência da desigualdade profunda que resta ser mencionada aqui. Numa sociedade altamente hierarquizada e desigual, os ricos e poderosos ou aqueles agindo em nome deles se vêem como seres acima da lei e imunes às obrigações correlatas aos direitos das demais pessoas. A idéia de imunidade pode ser entendida focando-se na impunidade dos violadores de direitos humanos ou daqueles envolvidos em corrupção, poderosos ou economicamente favorecidos.

A impunidade dos violadores de direitos humanos é endêmica no Brasil, conforme relatado por grandes organizações de direitos humanos e também reconhecido pelas autoridades federais. Casos como Vigário Geral (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado de Carajás (1996) e Castelinho (2002) ou a reação da polícia aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital)40 em 2006 resultou em centenas de vítimas de execuções extrajudiciais, sem maior esforço para responsabilizar os agentes públicos. Porém, talvez, o caso de impunidade mais notório com relação a uma violação extrema de direitos humanos seja o inocentamento do Coronel Ubiratan Guimarães, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2005. Ubiratan Guimarães foi o responsável pela operação policial que resultou na morte de cento e onze presos, conseqüência de rebelião em uma prisão em 1992. Depois de treze anos ninguém foi responsabilizado pelo “Massacre do Carandiru”. O Governador do Estado e o Secretário de Segurança Pública da época não foram nem ao menos investigados por seu envolvimento no incidente, mandando um claro sinal de que as pessoas demonizadas não estão protegidas pela lei.

A imunidade é também um exemplo seguido pelos envolvidos em corrupção. Apesar de o Brasil ter recebido uma nota geral moderada no Índice Global de Honestidade (Global Integrity Index), publicado todo ano pela Transparência Internacional – ocupando a posição sessenta e dois entre os países analisados – o desafio ainda não superado da aplicação imparcial das leis não pode ser ignorado. Nas duas últimas décadas, tem havido dezenas de escândalos envolvendo políticos, empresários e membros do judiciário. A enorme maioria deles acaba em impunidade para todos os envolvidos. Nos últimos dez anos, dos vinte e seis casos de corrupção envolvendo membros da Câmara dos Deputados que chegaram à Suprema Corte, nenhum foi considerado culpado. Nesse exato momento, a maioria dos ministros da Suprema Corte declarou inconstitucional a lei de anticorrupção que permitia políticos e outros agentes públicos serem investigados por juízes de primeira instância.41 Se essa decisão for mantida pelo Plenário da Corte, estima-se que mais de catorze mil processos judiciais contra agentes públicos por todo o país serão sumariamente extintos, ampliando a percepção de que a lei não se aplica aos poderosos da mesma maneira que é aplicada contra aqueles destituídos de direitos.42

A distribuição desproporcional de recursos entre os indivíduos e grupos dentro da sociedade subverte as instituições, incluindo o trabalho das instâncias responsáveis pela aplicação da lei. Uma análise do censo penitenciário brasileiro mostra que apenas os economicamente desfavorecidos e pouco instruídos são selecionados pelo sistema penal brasileiro para serem encarcerados. Essa é a conclusão de Glaeser, Scheinkman and Shleifer, depois de uma análise econométrica do impacto da desigualdade nas instituições judiciárias: “a desigualdade […] permite que os riscos subvertam as instituições políticas, regulatórias e jurídicas da sociedade em seu próprio benefício. Se a pessoa for suficientemente mais rica do que outra e as cortes forem corruptíveis, então o sistema jurídico irá favorecer o lado economicamente mais fortalecido e não o mais justo. Da mesma maneira, se as instituições políticas e de regulação puderem ser influenciadas pela riqueza e pela influência, então elas favorecerão o que já está estabelecido, não o mais eficiente”.43 Conforme demonstrado pela experiência do Advogado Geral da União no Brasil “a corrupção é conseqüência direta da concentração perversa de riqueza no Brasil”.44 A conclusão é que a impunidade, embora seja um fenômeno generalizado no Brasil, é mais acentuado entre os privilegiados.

A erosão da autoridade da lei

Como a experiência brasileira demonstra, índices elevados de desigualdade econômica e social que segregam os economicamente desfavorecidos de um lado e os favorecidos de outro criam um obstáculo sério à integridade do Estado de Direito. Por instigar disparidades maciças de poder dentro da sociedade, a desigualdade coloca os mais carentes em uma posição desvantajosa, na qual eles são socialmente marginalizados aos olhos daqueles em melhor condição, bem como aos olhos dos agentes públicos, que são atraídos pelos interesses daqueles que possuem mais poder dentro da sociedade. Isso cria uma sociedade hierarquizada, onde os indivíduos de nível inferior não conseguem atingir um patamar real de completa cidadania e não são totalmente reconhecidos como detentores de direitos (mesmo que eles o sejam formalmente). A discriminação, nesse sentido, tende a arruinar os laços de reciprocidade dentro da comunidade, afrouxando o sentimento de dever moral dos mais poderosos para com os excluídos. Uma vez que eles não são mais vistos como sujeitos dignos de valor, não demora muito para que se retire deles o conjunto de direitos de cuja proteção os outros cidadãos desfrutam. Dessa maneira, torna-se difícil promover a reciprocidade em uma sociedade onde grandes hierarquias e desigualdades entre os indivíduos existem. Consequentemente, a lei dificilmente será efetiva como um instrumento de organização e pacificação social.

A mesma racionalidade pode ser aplicada ao impacto da reciprocidade auto-interessada na construção de uma ordem social pacífica. Se os interesses recíprocos dos agentes nas relações de troca, que tornam possível a produção e a circulação de riqueza dentro de uma comunidade, não forem satisfeitos; os agentes menos privilegiados dificilmente terão razões para agir conforme as regras do jogo que sistematicamente prejudicam seus interesses. De outro lado, os mais privilegiados sentem que não há nenhum constrangimento social à maximização de seus interesses. Essa situação elimina incentivos nos dois pólos para obedecer às leis e respeitar os direitos dentro de uma esfera de relações interpessoais.

Privados de status econômico e social, os indivíduos invisíveis começam a se socializar de uma maneira que os conduz a ocupar uma posição de inferioridade em relação aos indivíduos imunes e a aceitar a arbitrariedade por parte das autoridades públicas. Eles não mais esperam que seus direitos sejam respeitados pelos outros ou pelas instituições com responsabilidade em aplicar as leis. Aqueles que reagem a essa posição degradante se tornam uma ameaça e são tratados como inimigos. Ao mesmo tempo, os indivíduos imunes não se consideram compelidos a respeitar aqueles que vêem como inferiores ou inimigos. O mesmo se aplica às autoridades cooptadas. Nesse caso, um grande número de pessoas está abaixo da lei enquanto um grupo de privilegiados está acima do controle estatal. Dessa maneira, o Estado, que supostamente seria o responsável pela utilização dos mecanismos formais de controle social, em conformidade com a lei e pelos seus meios coercitivos, começa a reproduzir parâmetros socialmente generalizados. O resultado é que o Estado se torna negligente com os invisíveis, violento e arbitrário com os moralmente excluídos e dócil e amigável com os privilegiados que estão posicionados acima da lei. Assim, mesmo que se tenha um sistema jurídico adequado às diversas “máximas” relacionadas com a formalidade do Direito, a ausência de um mínimo de igualdade social e econômica inibe a reciprocidade, através da subversão do Estado de Direito.

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Conclusão

A conclusão de que a desigualdade profunda e persistente corta os laços sociais, causando invisibilidade, demonização e imunidade e prejudicando o respeito aos parâmetros do Estado de Direito não deve significar que a idéia do Estado de Direito seja inútil nesses meios sociais. Em regimes democráticos, como o Brasil e muitos outros países em desenvolvimento, as constituições tendem a ser reativas a um passado de autoritarismo e de grandes injustiças sociais, na busca de legitimação (para obter cooperação). Novas constituições normalmente trazem uma carta de direitos generosa que reconhece direitos civis, políticos e também uma gama extensa de direitos sociais. Elas também reconhecem os principais elementos institucionais do Estado de Direito e da democracia representativa. Mais do isso, essas constituições pós-autoritárias criam novas instituições, como o ombudsmen, as defensorias públicas, as comissões de direitos humanos e o ministério público para monitorar o respeito ao Estado de Direito e proteger os direitos constitucionais dos grupos e indivíduos vulneráveis.

A reconfiguração dos sistemas jurídicos no mundo em desenvolvimento tem sido também uma conseqüência das pressões da sociedade civil. Arquitetadas durante a luta contra o governo arbitrário e fortalecidas durante a democratização, as organizações da sociedade civil são atores centrais para denunciar abusos, tornar os governos mais responsáveis e propor políticas alternativas que aliviem os principais problemas sociais. Apenas como exemplo, o número de organizações sem fins lucrativos no Brasil mais do que dobrou nas últimas décadas. Das duzentos e setenta mil organizações da sociedade civil legalmente constituídas no país, quase um quinto tem se dedicado ao “desenvolvimento e proteção de direitos”.45 Dessa maneira, a questão seria como esses novos atores estão usando seu poder institucional e social para desafiar os sistemas formais de Estado de Direito a se tornarem mais imparciais, superando sua incapacidade de aplicar a lei em termos iguais a todos os cidadãos.

Seria ingênuo atribuir aos sistemas jurídicos a capacidade de produzir a sua própria eficácia, mas seria igualmente equivocado desconsiderar as potencialidades dos novos atores de promover mudanças sociais através do emprego de estratégias legais. Mesmo um sistema jurídico frágil pode prover mecanismos que, se usados a tempo, aumentarão a imparcialidade e o igual reconhecimento de sujeitos de direitos. As leis de interesse público, a mobilização (advocacy) em direitos humanos, a litigância estratégica, os escritórios pro bono e defensorias públicas podem mobilizar os recursos jurídicos em favor dos interesses menos beneficiados ou contra aqueles interesses hiper-representados. Esse movimento de dentro do sistema jurídico para fortalecer os fracos, proteger os demonizados e desestabilizar privilégios incrustados não deve ser visto, contudo, como uma nova panacéia, mas apenas como uma parcela de um esforço maior de construção de sociedades mais recíprocas, nas quais o Estado de Direito tenha melhores condições de florescer. Essa alternativa é baseada no pressuposto de que o sistema jurídico ocupa uma posição intermediária especial entre a política e a sociedade. Por ser um produto das relações sociais e das decisões políticas, os sistemas jurídicos também são um vetor dessas relações e decisões. A lei não deve apenas refletir a distribuição de poder dentro da sociedade. Os sistemas jurídicos modernos são constituídos por privilégios aos mais poderosos, mas também são construídos através de regras e procedimentos justos que buscam obter legitimidade e cooperação.

Dessa maneira, a questão para aqueles agentes sociais e institucionais preocupados com a desigualdade a partir de uma perspectiva do Estado de Direito é como mobilizar a “moralidade inerente ao Direito”, conforme posto por Fuller, para reduzir a invisibilidade, a demonização e a imunidade. Como o sistema jurídico melhora a posição daqueles que estão abaixo da lei, quebra o conforto daqueles que estão acima da lei e recupera a lealdade daqueles que estão em conflito com a lei?

Advogados e juízes não podem fazer muito para mudar a sociedade, na verdade eles estão normalmente interessados em reforçar o status quo. Porém, eles podem ter algum impacto quando desafiados por outros atores sociais. Como mostra a experiência recente de muitos países extremamente desiguais como Índia, África do Sul, Brasil e Colômbia, a comunidade jurídica em geral e as cortes em particular podem, em algumas circunstâncias, responder às demandas dos menos favorecidos economicamente quando eles pleiteiam reparações através do sistema jurídico.46 Assim, qualquer esforço para utilizar as leis para melhorar o próprio Estado de Direito pressupõe que haja por trás uma mobilização social e política. Devido a algumas características formais igualitárias do Estado de Direito, discutidas acima, os interesses que seriam sufocados em uma arena puramente política podem conseguir algum status em um meio-ambiente mais influenciado pelo Direito. Embora as instituições jurídicas também sejam extremamente vulneráveis à subversão dos poderosos, elas podem eventualmente produzir curto-circuitos nos sistemas políticos. Ao traduzir uma demanda social em uma demanda jurídica nos deslocamos de um ambiente de competição por puro poder para um processo no qual as decisões devem ser justificadas em termos jurídicos. A necessidade de justificativa legal reduz o espaço de pura discricionariedade. Nessas circunstâncias, o sistema jurídico pode dar visibilidade pública, na forma de reconhecimento de direitos àqueles que são desconsiderados pelo sistema político e pela própria sociedade. Na mesma direção, a generalidade da lei, a transparência ou a congruência reivindicada pela idéia de Estado de Direito pode pôr os privilegiados em uma armadilha, fazendo com que eles retornem ao domínio do Direito.

No entanto, é importante enfatizar novamente que esse tipo de ativismo social jurídico deve ser visto apenas como parte de uma gama muito maior de iniciativas destinadas a construir uma sociedade onde todos possam ser tratados com igual consideração e respeito.

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Notas

1.G. O´Donnell, “Why the Rule of Law Matters”, Journal of Democracy, vol. 15, n. 4, 2004, pp. 32-46.

2. O. V. Vieira, “A violação sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do Estado de Direito no Brasil” in: Celso Campilongo (org.), Direito, cidadania e justiça, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

3. T. Carothers, Promoting the Rule of Law Abroad in Search of Knowledge, Washington D.C., Carbegie Endowment for International Peace, 2006, pp. 3-13.

4. E. P. Thompson, Senhores e Caçadores, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 357.

5 M. Weber, Economia y Sociedad, 2nd ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1984, pp. 603-620.

6. R. M. Unger, O Direito na Sociedade Moderna: contribuição à crítica da Teoria Social, São Paulo, Civilização Brasileira, 1979, pp. 225-228.

7. F. A. Hayek, O Caminho da Servidão, São Paulo, Instituto Liberal, 1990.

8. F. A. Hayek, O Caminho da Servidão, São Paulo, Instituto Liberal, 1990, pp. 87-97.

9. J. Raz, The Authority of Law: essays on law and morality, New York, Clarendon Press, 1979, p. 211.

10. Ibid., p. 212.

11. Ibid., pp. 216-217.

12. Ibid., p. 220.

13. J. M. Maravall & A. Przeworski (org), Democracy and the Rule of Law, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 1.

14. S. Holmes, “Lineages of the Rule of Law”, in J.M. Maravall & A. Przeworski, Democracy and the Rule of Law, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 20.

15. T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.

16. R. Bendix, Nation-Building and Citizenship, Los Angeles, University of California Press, 1964, p. 92.

17. Agradeço a Persio Arida por essa observação.

18. A. Hamilton, J. Madison & J. Jay, The federalist papers, New York, Bantam Books, 1988, ch. 51.

19. Com relação a isso, é importante destacar que o grau de conhecimento sobre a constituição política na América do Sul é muito baixo; apenas 30% dos latino-americanos sabem alguma coisa ou muito sobre a sua Carta Magna e apenas 34% conhecem os seus deveres e obrigações, Latinobarometro, 2005, p. 14.

20. D. J. Galligan, Law in Modern Society, Oxford, Oxford University Press, 2007, pp 310-326.

21. R. C. Ellickson, Order Without Law: how neighbors settle disputes, Harvard, Harvard University Press, 1991, pp. 281-283.

22. B. Barry, Justice as Impartiality, Oxford, Oxford University Press, 1991, p. 51.

23. G. Becker, “Crime and Punishment: An Economic Approach”, Journal of Political Economy, v. 76, 1968, pp. 169-217.

24. L. L. Fuller, The Morality of Freedom, 2nd ed., New Haven, Yale University Press, 1969, pp. 21-25.

25. J. Habermas, Between Facts and Norms: contributions to a discourse theory of law and democracy, Cambridge, The MIT Press, 1996, p. 119.

26. Ibid., p. 82.

27. H. Reiss, Kant: political writings, 2nd edn., Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

28. J. J. Rousseau, The Social Contract, London, Willian Benton, 1955, pp. 339-340.

29. Ibid., p. 418.

30. Tom Tyler, Why people obey the Law, Yale University Press, 1990.

31. Latinobarometro, 2005. p.17.

32. G. O´Donnell, “Poliarquias e a (In)efetividade da Lei na América Latina”, Novos Estudos, Cebrap, 51, 1998, pp. 37-57..

33. IBGE 2005.

34. United Nations estimates that 34,000 Iraqis lost their lives in 2006 against 46,000 in Brazil.

35. S. Adorno, N. Cardia & F. Poleto, “Homicídio e violação de direitos humanos em São Paulo”, Estudos Avançados, vol. 17, n. 47, 2003, p. 60.

36. P. Fajnzylber, D. Lederman & N. Loayza, “Inequality and Violent Crime”, Journal of Law and Economics, vol. XLV, 2002, pp. 1-40.

37. S. Adorno, N. Cardia & F. Poleto, 2003, op. cit., p. 49.

38. Human Rights Watch, Word Report, 2007, p. 185.

39. Nigel Rodley, disponível em: <www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/b573b69cf6c3da28c1256a2b00498ded/$FILE/g0112323.doc>, acessado em 23 de Abril de 2007.

40. O PCC é uma organização criminosa brasileira (Nota do Editor).

41. Caso interposto pelo antigo Presidente Fernando Henrique Cardoso, através da Reclamação 2138.

42. No Brasil, mais de 50% da população não concorda que a justiça seja feita, mesmo levando muito tempo. Latinobarometro, 2005, 25.

43. E. Glaeser, J. Sheinkman & A. Shleifer, “The Injustice of Inequality”, National Bureau of economic Research, 9150, 2002, p. 3.

44. Carvalho, cited by Carlos Tautz, Reporter’s Notebook: Brazil, Transparency International, 2006.

45. IPEA 2005, p. 35

46. R. Gargarella (org.), Courts and Social Transformation in New Democracies: an institutional voice for the poor?, Hampshire, Ashgate Publishing Limited, 2006.

Oscar Vilhena Vieira

Oscar Vilhena Vieira é Diretor da FGV Direito SP, onde leciona nas áreas de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito e Desenvolvimento. Possui Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988), Mestrado em Direito pela Universidade de Columbia, Nova York (1995), Mestrado e Doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1991-1998) e Pós-doutorado pelo Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford (2007). Foi Diretor Executivo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Crime (ILANUD), assim como fundador e Diretor da organização Conectas Direitos Humanos. É editor da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos. Além disso, é membro de diversos conselhos de organizações da sociedade civil, entre os quais Instituto Pro Bono e Open Society Foundations. Possui diversos artigos e livros publicados na área de direitos humanos e direito constitucional. Entre eles, podem ser citados: “Direitos Fundamentais: uma Leitura da Jurisprudência do STF” (2006), “Supremo Tribunal Federal - Jurisprudência Política” (2002) e “A Constituição e sua Reserva de Justiça” (1999).

E-mail: oscar.vilhena@fgv.br

Original em inglês. Traduzido por Thiago de Souza Amparo.