Uma história de perseguição criminal, exposicµao da intimidade e violação de direitos no Brasil
Em abril de 2007, uma reportagem denunciou a existência de uma “Clínica de Planejamento Familiar”, que supostamente realizava abortos em Campo Grande (MS). Três dias depois, a polícia invadiu o estabelecimento, apreendeu cerca de 10 mil fichas médicas e violou seu conteúdo, trazendo à tona a intimidade de mulheres que ousaram usufruir da liberdade de tomar decisões e cuidar de suas vidas. O texto apresenta essa história, conhecida como o “caso das dez mil”, para fazer uma reflexão sobre as restrições aos direitos reprodutivos das mulheres, tecendo considerações acerca da coerção decorrente da lei que proíbe a interrupção voluntária da gravidez no país.
O artigo 128 do Código Penal brasileiro, de 1940, permite o aborto apenas em caso de estupro e risco de vida à gestante. Conforme recente decisão do Supremo Tribunal Federal, é consentido em situações de anencefalia fetal.1 Porém, os debates éticos contemporâneos sublinham, sistematicamente, que a decisão sobre o aborto diz respeito ao mais íntimo da mulher, envolvendo dimensões físicas, subjetivas, psicológicas e também existenciais, entre outros aspectos porque gestar e parir se materializam apenas no corpo feminino (CORRÊA; PETCHESKY, 1996; ARDAILLON, 1997; SARMENTO, 2005; TORRES, 2010). Por essa razão, vários autores questionam o emprego da coação e o recurso à lei penal em assuntos como esterilização, aborto e gravidez.
Este artigo pretende mostrar que a criminalização do aborto, baseada na defesa do direito à vida do feto, opõe-se ao princípio constitucional da liberdade, aqui interpretado como o exercício da decisão reprodutiva por parte das mulheres.
Para ilustrar essa oposição, o texto apresenta a história conhecida como o “caso das dez mil”: em 10 de abril de 2007, em Campo Grande (MS), ao fechar uma clínica de planejamento familiar, a polícia violou a privacidade de quase 10 mil mulheres ao confiscar, acessar e tornar públicos seus prontuários médicos.
Quando 9.896 mulheres tiveram sua privacidade violada, seja porque decidiram interromper uma gravidez indesejada ou simplesmente por terem realizado uma consulta na clínica em questão, o episódio suscitou um clima acusatório na arena pública, provocando reflexões sobre as condições em que se dá o acesso ao aborto, a ideologia e os valores que informam o debate sobre o tema no Brasil.
O texto se baseia em pesquisa documental, observações empíricas do Tribunal do Júri e revisão bibliográfica. A próxima seção apresenta a trajetória recente da afirmação dos direitos das mulheres no cenário internacional. Em seguida, o artigo traça um panorama do cenário político, social e econômico de Mato Grosso do Sul, contextualizando o “caso das dez mil”. Posteriormente, descreve os debates do Tribunal do Júri sobre este caso e, por fim, traz considerações sobre os argumentos utilizados no julgamento, com base nas reflexões críticas disponíveis acerca das restrições impostas pela lei criminal aos direitos reprodutivos, em particular no caso do aborto, em termos de violação da privacidade e da igualdade, bem como do desrespeito às mulheres como sujeitos éticos e capazes de decidir sobre suas vidas.
Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirme a igualdade entre os sexos ao garantir que todas as pessoas têm os mesmos direitos e liberdades assegurados, “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (NAÇÕES UNIDAS, 1948, art. 2), o texto ainda se fundamenta na perspectiva genérica do homem (branco, heterossexual, ocidental) como sinônimo de humano (PIOVESAN, 2002).
O processo de internacionalização dos direitos humanos, inaugurado com a Declaração Universal, seria aprimorado no que diz respeito às mulheres, crianças, indígenas e a população negra, na medida em que as especificidades, diversidades e diferenças foram integradas ao discurso dos direitos humanos como fatores de desigualdade e discriminação. Portanto, os direitos humanos são mutáveis, podem e devem ser alterados quando se transformam as sociedades e culturas (PIOVESAN, 2002; 2008; 2010). Em 1979, outro passo fundamental foi a aprovação da Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, que rompeu a fundamentação masculina como paradigma de humanidade que caracterizava a retórica da Declaração Universal de 1948. Momento notável ocorreu em 1993, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, em Viena. O Artigo 18 da Declaração de Viena afirma que os direitos humanos das mulheres e meninas são inalienáveis, princípio incorporado posteriormente a outras convenções e conferências das Nações Unidas (IKAWA; PIOVESAN, 2009; BARSTED, 2002).
Dito de outro modo, na era contemporânea, os direitos humanos não devem ser pensados dissociados dos debates acerca das desigualdades de gênero, capazes de refletir o valor simbólico atribuído culturalmente aos femininos e masculinos que “embasam discriminações e fundamentam relações de poder” (BARSTED, 2001, p. 3). Em busca da equidade, o princípio da igualdade deve considerar as relações de gênero nas diferentes sociedades (BARSTED, 2001).
No campo de intersecção entre direitos humanos e gênero, os direitos reprodutivos têm um sentido crucial, pois envolvem o direito das pessoas de decidirem livremente, e sem quaisquer tipos de coerção ou constrangimentos, sobre ter ou não ter filhos, bem como a quantidade e o intervalo de tempo entre as gestações, dispondo de informação atualizada e métodos contraceptivos eficientes, além de segurança e assistência social, de saúde de qualidade.
No entanto, Corrêa e Petchesky (1996) lembram que mulheres e homens não têm as mesmas prerrogativas no campo da reprodução, porque são as mulheres que engravidam e são elas as maiores responsáveis pelo cuidado e pela educação dos filhos – na maioria dos casos, sem nenhum tipo de apoio dos pais.
Se tomarmos o problema da contracepção como ilustração, o princípio da igualdade exigiria que, na medida em que os métodos contraceptivos trazem riscos e benefícios, estes riscos e benefícios fossem distribuídos em uma base justa entre homens e mulheres, assim como entre as mulheres. Isso sugeriria uma política populacional que enfatizasse a responsabilidade masculina na esfera do controle da fecundidade e a pesquisa científica sobre métodos contraceptivos masculinos eficientes (Pies/Sd). Entretanto, esta política poderia também entrar em conflito com o direito básico da mulher de controlar sua própria fecundidade e a necessidade que muitas mulheres sentem de preservar este controle, às vezes em segredo e sem “igual divisão” dos riscos.
(CORRÊA; PETCHESKY, 1996).
Para as autoras, os direitos sexuais e reprodutivos devem considerar tanto as relações de poder na esfera privada quanto os recursos disponíveis às mulheres para as decisões nessa esfera. Desse modo, a possibilidade de exercer os direitos reprodutivos depende das condições sociais, culturais, econômicas, de gênero, classe, raça, etnia e geração, e não pode prescindir de políticas públicas que assegurem acesso à informação e aos serviços. As autoras sinalizam, portanto, que os direitos sexuais e reprodutivos não dizem respeito, exclusivamente, às “liberdades particulares” ou “escolhas individuais”, mas também implicam outras dimensões, como o direito à integridade corporal, a autoestima, o acesso à educação e à renda e o respeito à capacidade das mulheres de tomar decisões éticas sobre suas vidas. Corrêa e Petchesky (1996) consideram, assim, que os direitos sexuais e reprodutivos são também direitos sociais.
Contudo, o ônus da gravidez indesejada recai sobre as mulheres, em que pese a participação dos homens na reprodução biológica. Em todo o mundo morrem, anualmente, milhares de mulheres vítimas de causas relacionadas com o aborto. No Brasil, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, anualmente, 1,4 milhão de mulheres recorre ao aborto inseguro, e que uma em cada mil perde a vida (COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE, 2010). Adicionalmente, há severos impactos na saúde, trajetória de vida e dignidade, pois estão sempre sujeitas à criminalização. Em relatório apresentado no ano de 2011, o Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Saúde afirma que as medidas que criminalizam o aborto constituem “forma injustificável de coerção sancionada pelo Estado e uma violação do direito à saúde” (NAÇÕES UNIDAS, 2011, p. 7).
Conforme a pesquisa Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros (2008), entre 2001 e 2006 houve 781 casos de aborto na justiça, com um baixo número de processos envolvendo aborto inseguro se comparado à interrupção por anencefalia, violência sexual e risco de vida à gestante, mas com a forte presença da criminalização ou tentativa de criminalização do aborto clandestino (GONÇALVES; LAPA, 2010). Tal realidade não mudou significativamente nos últimos anos, ainda existem mulheres sendo processadas judicialmente por terem abortado. Entre elas se incluem pelo menos parte das quase dez mil mulheres de Campo Grande (MS) estigmatizadas por um episódio que pode ser, alegoricamente, associado aos procedimentos inquisitoriais de “caça às bruxas”. Esses procedimentos culminaram com o julgamento, pelo Tribunal do Júri, de quatro funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar, em 8 de abril de 2010.
Mato Grosso do Sul está situado no Centro-Oeste brasileiro e tem no agronegócio o principal pilar de sustentação econômica. Campo Grande, capital do estado, tem população estimada em 832.352 mil pessoas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2013). Associado à vocação agropecuária e, a partir da última década, à produção de álcool por usinas de cana-de-açúcar, a região é marcada por contrastes e intensas desigualdades. Abriga a segunda maior população indígena do país, além de diversos assentamentos rurais e comunidades quilombolas,2 muitos dos quais se encontram em situação de pobreza. A concentração de renda é acentuada, e os setores tradicionais e conservadores têm grande influência e representação nos parlamentos, no Executivo e Judiciário. Tanto a cultura política quanto a vida social exibem fortes traços patriarcais e androcêntricos.
A presença de grupos religiosos dogmáticos no campo político sempre existiu, mas se intensificou a partir dos anos 2000, quando o Governo Estadual instituiu um novo sistema de apresentação de emendas parlamentares ao orçamento. Por esse sistema, os 24 deputados estaduais podem destinar recursos para atender demandas específicas de suas bases eleitorais. Tais verbas podem contemplar, inclusive, projetos ligados ao assistencialismo religioso, como a construção ou reforma de salões paroquiais; atividades dos grupos de apoio a alcoolistas; assistência a famílias sem-teto, gestantes e migrantes; oferecimento de cursos profissionalizantes; o trabalho das pastorais (como as da Criança, da Terra, do Índio, da Mulher) e as instituições sociais evangélicas. Com a destinação de recursos públicos, criou-se um terreno fértil para a cooptação eleitoral da população beneficiada por esse conjunto de ações.3
A vinculação de autoridades públicas aos grupos religiosos se reflete na influência de posições dogmáticas e antifeministas sobre as leis e políticas. Exemplo disso foi a apreciação, em 2005, pela Assembleia Legislativa, de um projeto de lei que proibia a distribuição e o comércio da “pílula do dia seguinte”, anticoncepcional de emergência. A iniciativa provocou um intenso debate público, mobilizado pelo movimento de mulheres, resultando no arquivamento da proposta.
Naquele mesmo ano, a Câmara Municipal da capital negou a concessão do certificado de utilidade pública que vinha sendo pleiteado pela Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul. Essa recusa, reiterada em 2007, foi precedida por uma audiência pública na Primeira Igreja Batista, repleta de parlamentares, pastores e fiéis que professaram discursivos enviesados, crenças religiosas, moralistas e homofóbicas, criando uma atmosfera negativa e constrangedora para a população homossexual e transexual da cidade. Em 2009, os vereadores aprovaram um projeto de lei de restrição à exposição de propagandas, capas de revistas e outdoors com pessoas seminuas, manequins de lingerie nas vitrines, produtos de sexshops, etc. Conhecido como Lei Anti-Pornografia, o projeto foi vetado pelo prefeito. No ano seguinte, um projeto aprovado pelos vereadores proibiu o uso das chamadas “pulseirinhas do sexo”4 nas escolas públicas e privadas do município. Proposta similar estendeu a proibição para todo o estado.
Em 2011, os vereadores promoveram um levante contra a instalação de máquinas de disponibilização de preservativos nos órgãos municipais, escolas públicas e privadas, contrariando a recomendação do programa “Saúde e Prevenção nas Escolas”, do Ministério da Educação.
Foi nesse cenário que eclodiu o caso das mulheres criminalizadas por aborto. O episódio foi deflagrado em 10 de abril de 2007, quando uma reportagem realizada com câmera escondida foi exibida pela maior emissora de TV da região, denunciando a Clínica de Planejamento Familiar pela prática do aborto.5 A Polícia Civil da capital iniciou as investigações no dia seguinte, e já no dia 12 representantes da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida Contra o Aborto do Congresso Nacional se reuniram com o Procurador-Geral de Justiça do MS cobrando a instauração de um processo contra a proprietária da clínica, a anestesiologista Neide Mota Machado (IPAS, 2008; CAMPOS, 2008). No dia 13 de abril, agentes da polícia, de posse de um mandado de busca e apreensão, fecharam o estabelecimento sem a presença da proprietária, e confiscaram materiais como instrumentos cirúrgicos, remédios e seringas. Também foram confiscados os prontuários médicos de 9.896 mulheres que haviam passado pela clínica desde o início do seu funcionamento, há aproximadamente 20 anos (CAMPOS, 2008; IPAS, 2008).
Três meses depois, o Ministério Público Estadual denunciou Neide Mota e mais oito funcionários de sua clínica pelo crime de aborto, que teria sido realizado em 25 mulheres (IPAS, 2008).6 As 9.896 fichas médicas recolhidas foram incluídas nos autos como prova para os indiciamentos. Para que o crime não prescrevesse, o Ministério Público apresentou denúncia contra todas as mulheres (CAMPOS, 2008; IPAS, 2008), cujo número equivalia ao de mulheres que ocupavam as prisões em Campo Grande. Os processos foram estruturados com base nas fichas que continham exames de ultrassonografia, testes de gravidez positivos e formulários assinados por mulheres autorizando os procedimentos médicos, independentemente do tipo de atendimento realizado, excluindo os casos de prescrição do suposto crime (IPAS, 2008 e GALLI; CAMPOS, 2008; 2011). Esses critérios resultaram na acusação contra 1.500 mulheres pelo crime de aborto (CAMPOS, 2011).
Ademais, as primeiras mulheres indiciadas compareciam à delegacia sem conhecer o motivo da intimação sendo interrogadas sem receber informações sobre seus direitos, como o de permanecerem em silêncio, de serem acompanhadas por advogado ou defensor público, numa flagrante violação do direito à ampla defesa e descumprimento das garantias judiciais (GALLI; CAMPOS, 2010). Foi oferecida a algumas delas a suspensão do processo, desde que aceitassem colaborar com as investigações e sob uma série de condições.7 Somente cinco homens foram processados nessa fase (IPAS, 2008) e estima-se que menos de dez tenham sido indiciados.
Durante três meses, os processos (contendo nomes, acusação, endereços, etc.) ficaram disponíveis para consulta no website do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ/MS). A página atraiu grande curiosidade pública acerca da identidade das mulheres que haviam praticado abortos e representou uma violação do direito constitucional à intimidade e privacidade (IPAS, 2008). Com base na Lei 9.099/95 – que prevê a aplicação de penas alternativas –, muitas mulheres tiveram como punição o pagamento de multa, a prestação de serviços comunitários ou a doação de cestas básicas, de acordo com opção individual em consonância com a situação financeira. Mulheres pobres optaram pela prestação de serviços e foram condenadas a realizar trabalhos em creches e escolas, para que vissem as crianças e se arrependessem do ato que praticaram, segundo declaração do juiz à imprensa (IPAS, 2008).
Embora 1.500 mulheres tenham sido indiciadas, não é exagero afirmar que todas as quase 10 mil mulheres tiveram seus direitos violados, na medida em que nem o sigilo médico nem sua privacidade foram respeitados. Os prontuários médicos foram apropriados e manuseados pelos policiais, promotores e outras autoridades sem o acompanhamento de um perito, o que configura violação do direito à confidencialidade médica, assegurado pela legislação brasileira (IPAS, 2008 e GALLI; CAMPOS, 2008; 2011).
Pode-se dizer ainda que, mesmo antes dessa violação da privacidade e do sigilo por efeito da lei penal e dos procedimentos inaceitáveis de investigação, os direitos reprodutivos dessas mulheres também foram desrespeitados. Um dossiê produzido pelo Ipas Brasil e Grupo Curumim revela que as políticas de planejamento familiar e de saúde materna são frágeis e limitadas neste estado (COSTA et. al., 2010). O estudo aponta falhas no Programa de Planejamento Familiar da capital “referentes à qualidade do atendimento médico, à manutenção do estoque de medicamentos e consequentemente da continuidade da oferta dos métodos contraceptivos” (COSTA et. al., 2010, p. 31). Além disso, até o ano de 2008 não existia no MS serviço de abortamento legal para casos de estupro e gravidez de risco à vida da gestante.
No processo de investigação e denúncia do “caso das dez mil”, os desembargadores do TJ/MS decidiram por unanimidade submeter a um júri popular a dona da Clínica de Planejamento Familiar – Neide Mota Machado – e quatro de suas funcionárias. Meses antes do julgamento, porém, na tarde do dia 29 de novembro de 2009, Neide foi encontrada morta dentro do carro, numa estrada erma, perto da chácara onde morava. No automóvel, foram encontradas duas seringas, um frasco de cloridrato de lidocaína e um bilhete com frases que remetem à morte: “que não houvesse pânico, nem trauma, nem dor”. Dias antes, Neide havia registrado em cartório o desejo de ser cremada, levando a polícia a suspeitar de suicídio (MANIR, 2009).
A morte misteriosa provocou o alarde. Segundo matéria publicada em jornal local, a médica deixara no ar muitas interrogações, pois havia gravado em CD informações sobre os procedimentos médicos com nomes de meninas e adolescentes menores de 15 anos e de cerca de dez mil homens envolvidos nos casos de aborto, incluindo autoridades e pessoas renomadas na sociedade (Boca do Povo, 2009). Após investigação, as autoridades concluíram que a médica havia cometido suicídio, mas para muitos sua morte não foi completamente explicada. Como lembrou Arilha, secretária executiva da Comissão de Cidadania Reprodutiva (organização que atua na defesa dos direitos reprodutivos), Neide seria levada a júri popular dali a poucos meses: “[…] talvez chegasse a usar de sua tribuna para falar, uma vez mais. Falar da hipocrisia nacional quando se trata de direitos reprodutivos, que a uns e umas tudo permite, e a outras, cala, mente e mata” (ARILHA, 2009).
Cerca de três anos após o fechamento da Clínica de Planejamento Familiar, quatro ex-funcionárias do estabelecimento foram julgadas pelos crimes de aborto e formação de quadrilha.
O julgamento das quatro ex-funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar, iniciado em 8 de abril de 2010, durou dois dias. Apesar de toda a repercussão do caso, pouco mais de 30 pessoas ocupavam a sala destinada ao julgamento: amigos e familiares das rés, alguns estudantes, operadores do Direito e apenas cinco feministas da cidade. Não houve qualquer tipo de manifestação pública na frente do Fórum, mas jornalistas de diversas emissoras de TV, jornais impressos e sites de notícias cobriam o evento.
A síntese da acusação apontou as duas primeiras reportagens exibidas na TV como o estopim da investigação criminal. Na primeira matéria, um repórter e uma produtora apresentaram-se na clínica como um casal interessado em fazer um aborto. Usando uma câmera escondida, eles foram informados sobre os preços do procedimento. Na segunda reportagem, que não utilizou o recurso da câmera oculta, Neide Mota admitiu ao jornalista Honório Jacometto que fazia abortamentos, a pedido das clientes. As rés foram acusadas de envolvimento em 26 abortos realizados pela Clínica de Planejamento Familiar em vinte e cinco mulheres,8 arroladas como testemunhas de acusação. Durante a fase interrogatória, as enfermeiras explicaram seu trabalho na clínica. Duas delas afirmaram que a clínica só realizava procedimentos de retirada de aborto retido, de quistos, curetagem e colocação do Dispositivo Intra-Uterino (DIU), sendo frequentada por pessoas de todas as classes, inclusive indicadas por outros médicos.
A psicóloga disse que sua função era fazer a triagem das pacientes, quando indagava sobre os motivos que levavam aquelas mulheres a optar pela interrupção da gestação, falava dos métodos contraceptivos, explicava os procedimentos e mostrava alternativas ao aborto. Ela ressaltou que seu papel não era de convencimento, e que a interrupção era uma decisão que cabia às mulheres grávidas.
A promotoria iniciou sua exposição no tribunal exibindo o vídeo com a gravação da reportagem de TV em que Neide Mota confirmou a realização de abortos. Na entrevista, ela realçou os riscos acarretados à saúde pelo aborto sem assistência médica adequada, disse que a proibição não impedia a prática e que, portanto, seria melhor legislar a favor. Uma das maiores preocupações do promotor Douglas Oldegardo Cavalheiro dos Santos era “o desvio indutivo do processo dessa polêmica” (SANTOS, 2010, informação verbal), pois, segundo afirmou, não se tratava de ser a favor ou contra o aborto: a discussão do júri deveria ser pautada pela lei, ainda que as ONGs tivessem ameaçado denunciar o caso internacionalmente. Sublinhou que as atividades da Clínica configuravam claramente uma violação do direito à vida, pois em nenhum lugar do mundo, mesmo onde o aborto é legal, o procedimento é feito logo na primeira vez em que a mulher recebe atendimento.
A argumentação da promotoria destacou os efeitos nefastos do aborto sobre a integridade psicológica da mulher e apontou os interesses financeiros, o caráter mercantilista e de segregação social que caracterizavam as atividades da Clínica. O promotor denunciou que na clínica havia medicamentos vencidos, remédios veterinários utilizados para “porca abortar”9 e uma “máquina nojenta de sugar” (SANTOS, 2010, informação verbal), que ele exibiu no tribunal. Nenhum movimento feminista seria favorável ao que acontecia ali, declarou.
Apenas dois advogados de defesa se manifestaram durante o julgamento. Um deles, responsável pela defesa da psicóloga, exibiu a gravação da primeira reportagem de TV sobre o caso, feita com câmera escondida. Nessa matéria, sua cliente aparece orientando o suposto casal que buscava o serviço de aborto. O advogado chamou a atenção para o caráter ilegal da gravação da TV Morena, afiliada da Rede Globo, e sublinhou a hipocrisia da sociedade em relação ao aborto.
Além de contestar as provas apresentadas para demonstrar a prática de abortos na clínica, esse advogado conduziu os jurados a uma reflexão sobre os motivos que levaram um contingente tão grande de mulheres a optar pela interrupção da gravidez. Após dois dias de julgamento, o júri decidiu condenar as ex-funcionárias da Clínica, que receberam penas de prisão em regime semiaberto. Rosângela de Almeida recebeu a condenação de sete anos; Simone, de seis anos e quatro meses; Maria Nelma, de quatro anos; e Libertina, de um ano e três meses. Posteriormente, a defesa recorreu contra a sentença condenatória, os recursos foram analisados e em outubro de 2010 as funcionárias da clínica tiveram suas penas reduzidas pelo TJ/MS: Rosângela teve a pena encurtada para um ano; Simone, para dois anos; Maria Nelma, para dois anos; e Libertina, para dez meses.
Como observado anteriormente, a cultura política e a dinâmica social de Mato Grosso do Sul se caracterizam por conservadorismo, traços patriarcais, coronelismo e crescente influência do dogmatismo religioso sobre a política. Existe evidente troca de benefícios políticos entre o Estado e as instituições e lideranças religiosas que infringem abertamente os princípios do Estado laico. As elites locais e a lógica dominante dos jogos de poder tendem a perpetuar padrões que impedem a plena igualdade entre homens e mulheres, o respeito às diferenças e aos direitos sexuais e reprodutivos.
Neste contexto, pode-se aplicar a análise de Mujica (2011), para quem as mudanças em curso desde os anos 1980, nos Estados oligárquicos da América Latina, combinadas com modelos neoliberais de governabilidade, impeliram os grupos conservadores a deslocarem seus argumentos, pautados na tradição-família-religião, para a “defesa da vida” no sentido amplo. A defesa da vida é um princípio valorizado pelas democracias contemporâneas, considerado imprescindível para o exercício dos Direitos Humanos. No entanto, o uso instrumental da defesa da vida pelos grupos religiosos abre inúmeras possibilidades para manipulação ideológica e intervenção nos debates políticos, legislativos e jurídicos no campo dos direitos reprodutivos.
O conceito de vida articulado por esses grupos não é o mesmo que se identifica na gramática dos direitos humanos. Sua argumentação enfatiza a sacralização da vida como emanação de Deus, o que conferiria à Igreja a responsabilidade plena de “legislar” sobre esse domínio e, portanto, sobre todas as condutas sociais que dizem respeito à reprodução e preservação da vida biológica. Isso implica esforço permanente desses grupos para influenciar leis e políticas, penetrar o discurso dos direitos humanos e o aparato estatal “introduzindo, de ‘contrabando’, um discurso conservador de exclusão do diferente e do que chamam de ‘anormal’” (MUJICA, 2011, p. 341).
O caso “das dez mil” é, sem dúvida, uma ilustração de como, no Brasil – e particularmente no Mato Grosso do Sul -, as forças religiosas conservadoras têm lançado mão de estratagemas de várias ordens, inclusive jurídicos, para restringir as premissas de liberdade e colonizar a sexualidade e a reprodução a partir de normas dogmáticas. O julgamento descrito neste texto torna evidente como o recurso à lei penal favorece essa “colonização”. Quanto ao aborto inseguro, é preciso considerar ainda os problemas observados nos serviços públicos de saúde, pois o acesso aos anticoncepcionais, como em outros locais do país, continua restrito às mulheres mais pobres. A renda e a posição social condicionam o acesso a consultas ginecológicas regulares e meios anticoncepcionais, assim como o aborto em condições seguras.
Ou seja, as condições sociais levam um grande contingente de mulheres a decidir interromper a gravidez. Esse foi um aspecto enfatizado durante o tribunal do júri pelo advogado de defesa da psicóloga que trabalhava na Clínica de Planejamento Familiar em Campo Grande:
O que eu gostaria de perguntar é: por que essas mulheres foram levadas a fazer aborto? A pessoa não tem como criar ou o pai não quis assumir o filho? Foi forçada pelo namorado ou pelo marido ou pelo noivo? Quantas pessoas nós sabemos que foram obrigadas a entregar o seu filho porque não tiveram condição de criar? Estou dizendo alguma mentira aqui? Essas crianças de rua em Campo Grande… Não é o fato de ser a favor ou contra o aborto, não! É preciso ver o íntimo de cada um. Como eu posso entrar no coração de uma pessoa que é terna, que ninguém conhece? Como eu posso? Campo Grande tem em torno de 800 mil pessoas. Essas 10 mil mulheres… Dá 5% da população, ao longo desses 20 e tantos anos. Isso estava na sala da Dra. Neide, era documento médico, estava na sala dela.
(SIUFI, 2010, informação verbal).
As indagações do advogado enfatizam também outro ponto crucial: o respeito à privacidade das mulheres que optam pelo aborto. O dilema de levar adiante uma gestação indesejada ou interrompê-la diante das particularidades da história de vida das mulheres é um assunto de foro íntimo, indevassável. Vale lembrar, o direito à privacidade é uma premissa da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 5°, inciso X, afirma: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988, art. 5°, inciso X). Segundo Sarmento (2006), o princípio da autodeterminação reprodutiva é imprescindível para preservar a dignidade da pessoa humana, pois envolve questões da intimidade do indivíduo na escolha do melhor para sua vida, sem interferências de terceiros.
Cada cidadã e cidadão é um agente autônomo capaz de tomar decisões com base em valores, ideologias, crenças e razões pessoais, situações específicas de vida e planos traçados para o futuro, utilizando-se da liberdade como guia. No entanto, na medida em que mulheres e homens são diferentemente afetados pelo impacto da reprodução sobre o organismo, obrigar as mulheres a uma gravidez indesejada viola a integridade, fere a dignidade e reduz seus corpos a meros instrumentos de reprodução. Isso cria a necessidade de garantias legais que protejam a individualidade e a decisão das mulheres. A lei penal restritiva, porém, incide como um castigo sobre as mulheres. No “caso das dez mil”, por exemplo, apenas cinco homens foram indiciados. Chamar a atenção para essa disparidade não significa apelar para uma nova caça, dessa vez “aos bruxos”. Não propomos um uso seletivo da lei penal, nem pretendemos simplesmente defender a punição para os homens, mas apenas evidenciar a desigualdade de gênero no tratamento jurídico da questão do aborto. Como lembra Ventura (2006), há uma desproporcionalidade brutal no controle do Estado sobre a vida reprodutiva das mulheres. A questão está diretamente ligada à assimetria de poder entre os gêneros que prevalece na sociedade.
O desprezo pelas mulheres que recusam dar seguimento à gestação indesejada e o comportamento irresponsável de muitos homens diante da paternidade são aspectos tolerados socialmente (DOMIGUES, 2008). Apesar de existirem leis sobre a responsabilidade do pai,
Ao homem é facultada a escolha entre formar uma família, prover o sustento da família sem nem ao menos construir um vínculo afetivo com ela, ou apenas abandonar suas parceiras, sem sequer tomar conhecimento do produto de sua relação sexual.
(DOMINGUES, 2008, p. 94).
Soma-se a isso a dificuldade de muitas mulheres para enfrentar a resistência masculina ao uso de preservativos.
Para o juiz Torres (2010), o sistema penal apresenta características fortemente androcêntricas e cujo discurso de proteção à vida esconde o caráter político do controle da sexualidade feminina, perpetuando preconceitos e desigualdades. Ou seja: a criminalização do aborto é mantida na legislação penal (grosso modo, redigida por homens) com o objetivo de policiar o sexo das mulheres. Ademais, a restrição legal da interrupção voluntária da gravidez no país afronta o direito à igualdade, estabelecido no Artigo 5°, inciso I, da Carta Magna, pois induz a discriminações tanto entre as classes sociais – uma vez que as consequências do aborto inseguro atingem mais intensamente as mulheres em situação de pobreza –, quanto entre os gêneros – já que impõe um ônus maior às mulheres do que aos homens (SARMENTO, 2006; VENTURA, 2006). Em síntese, o proibicionismo tem contribuído para a morte seletiva de mulheres, apenas mulheres, sobretudo as mais pobres.
Zaffaroni (2011) denuncia o caráter arbitrário e altamente seletivo do poder punitivo, um modelo de imposição vertical de poder avesso à solução de conflitos, característico de sociedades altamente hierarquizadas. Para o jurista, o modelo punitivo é radicalmente excludente e ineficaz, além de não solucionar, impede ou dificulta a combinação com outros modelos, como o reparador, o terapêutico e o conciliatório, que resolvem as situações de outra maneira. Na lógica punitiva, a pessoa lesionada não tem o poder de participar, de decidir sobre a resolução do conflito, mas deve obrigatoriamente se declarar vítima por força impositiva. Além disso, essa lógica tende a reduzir o poder jurídico a formas de coerção direta, ao exercício do policiamento extensivo, que guarda um componente latente e irracional de vingança. Seu conteúdo pode variar segundo o “inimigo que está na mira”, mas, para o poder punitivo, nada deve representar um empecilho à tarefa de salvaguardar a ordem moral.
Os efeitos do poder coercitivo derivado da lei penal puderam ser observados em diversos momentos, durante o julgamento das funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar. Isso ocorreu, por exemplo, quando o magistrado negou o pedido da defesa de que a escolta das mulheres no banco das rés fosse dispensada:
Com relação à escolta, as acusadas, apesar de serem mulheres… Enfim, a tradição é manter a escolta. O tratamento que elas terão será igual ao de outras que aqui estiveram. Eu apenas pedi que viesse também policial feminina. Vamos pedir que os policiais fiquem um pouco afastadas por que [as rés] não são perigosas. Mas, de qualquer forma, a escolta tem que ter para que não sejamos surpreendidos por situações imprevisíveis; então a policial ficará.
(SANTOS, 2010, informação verbal).
Outro aspecto a ser sublinhado, diz respeito à ineficácia da lei penal, apontada por Zaffaroni (2011). A criminalização não impede que milhares de mulheres driblem a lei e realizem abortos inseguros, seja com uso de medicamentos, seja buscando clínicas clandestinas. O proibicionismo da lei criminal gera, portanto, dor, sofrimento, medo e até a morte de muitas mulheres. A legislação punitiva reforça estigmas, tornando o exercício do direito de decidir sobre suas vidas um ato abominável.
Não se trata de fazer uma apologia do aborto, nem de defender a interrupção da gestação como um método anticonceptivo. A questão também não se resume à necessidade de garantir a liberdade das mulheres sobre seu próprio corpo. Sob o ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, a decisão sobre o aborto implica tanto parâmetros éticos quanto mecanismos que possibilitem o exercício emancipatório dos indivíduos, no âmbito sexual, e da capacidade reprodutiva com plena autonomia e dignidade (PIMENTEL apud TORRES, 2010). Tal avaliação requer um tratamento não absolutista do direito do embrião à vida. É pertinente recordar que o ordenamento jurídico de muitas democracias contemporâneas permite a interrupção voluntária da gravidez sem deixar de garantir a defesa da vida, inclusive da vida intrauterina. Por mais profundas que possam ser as divisões provocadas pela diversidade de pensamento, pluralidade de crenças e divergência entre orientações ideológicas (características das sociedades democráticas), há sempre um viés humanitário, que confere valor intrínseco à vida humana. Esse traço comum deve ser ressaltado, como afirma o professor Dworkin: “o que compartilhamos é mais fundamental do que nossas divergências sobre sua melhor interpretação” (DWORKIN, 2009, p. 99).
A liberdade religiosa e a de consciência são princípios defendidos pela Constituição Federal, mas o Estado brasileiro é laico. Isso significa que o país não pode legislar nem construir políticas irrestritas com base em crenças morais ou religiosas (BRASIL, 1988, artigo 19, inciso I). É preciso considerar ainda que o direito à vida não é um valor absoluto, como mostram os sistemas legais que avalizam a imputabilidade do homicídio em legítima defesa (LOREA, 2006; VENTURA, 2006). O embrião tem a potencialidade da vida, mas não é uma pessoa; portanto, sua proteção jurídica não pode ser equivalente àquela facultada à pessoa humana. Existe um conflito entre os direitos da mulher e a proteção do embrião que pode ser resolvido por critérios de razoabilidade, passíveis de minimizar o sacrifício dos bens envolvidos e atender de forma pragmática o preceito da dignidade da pessoa humana (VENTURA, 2006). No plano jurídico e político, foi estabelecido um consenso internacional no que diz respeito aos dilemas entre a proteção da vida embrionária e o direito a interromper a gravidez (VENTURA, 2006). Nessa equação, o nível de proteção do embrião aumenta conforme seu estágio de desenvolvimento e suas possibilidades de sobrevivência fora do útero.
Porém, o que não se admite é que a proteção ao nascituro fira de forma desproporcional os direitos fundamentais das mulheres, ou seja, as legislações e decisões buscam um ponto de equilíbrio entre direitos da mulher gestante e os interesses do Estado na proteção dos nascituros.
(VENTURA, 2006, p. 186).
Muitas dessas legislações garantem a livre opção da interrupção da gestação não somente em situações de risco à saúde física, violência sexual e feto com anomalia incurável, mas também quando as mulheres passam por sofrimento emocional diante da gravidez, em decorrência de problemas econômicos, sociais e familiares, recomendando à existência de orientações à gestante e a busca de alternativas antes do abortamento. Essas experiências mostram a necessidade de ponderação entre o direito à vida do feto e os direitos das mulheres. Na impossibilidade de harmonizá-los, é preciso admitir a prevalência de apenas um direito, com base no contexto e na delicada relação estabelecida entre a gestante e o nascituro (SARMENTO, 2006; TORRES, 2010). Esse entendimento de razoabilidade de direitos parece orientar a ética profissional da psicóloga que trabalhava na Clínica, conforme seu depoimento ao tribunal do júri: “O que estava em jogo não era a minha vida, era a vida delas […] o que elas escolheriam para a vida delas” (SOUZA, 2010, informação verbal). Impor às mulheres a obrigação de levar adiante a gravidez indesejada implica coerção, agride a integridade física, mental, psicológica e intervém no campo dos desejos e projetos de existência. A reprodução não deve ser considerada como destino, martírio ou fardo, nem ser fonte de dor ou sofrimento. A lei criminal, portanto, viola o exercício da liberdade e a autodeterminação.
Durante o julgamento do “caso das dez mil”, a Promotoria afirmou que o aborto é uma tragédia para a integridade psicológica da mulher, pois haveria “305 milhões de novas células quando o organismo engravida… Pode ocorrer depressão química, instintos suicidas, nos casos de abortos… É obrigatório interrogar a mulher para saber se ela está realmente apta e decidida a abortar com segurança” (SANTOS, 2010, informação verbal). No entanto, documento formulado pelo Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde ressalta que as leis penais proibitivas em relação ao aborto ferem a dignidade humana, princípio fundamental ao exercício dos direitos humanos, já que afetam negativamente a saúde física e emocional das mulheres, entre outras razões, pela exposição ao risco da criminalização (NAÇÕES UNIDAS, 2011). De acordo com o relatório, quando se utiliza a legislação penal para regular e coibir condutas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva, o Estado impõe sua força, submetendo e anulando o desejo do indivíduo, o que representa a interferência na intimidade e uma séria violação do direito à saúde sexual e reprodutiva. Desse modo, “a promulgação e a manutenção de leis que penalizam o aborto pode constituir uma violação da obrigação dos Estados de respeitar, proteger e fazer efetivo o direito a saúde” (NAÇÕES UNIDAS, 2011, p. 9). Vale ressaltar que o direito à saúde está gravado no Artigo 6° da Constituição Federal. O documento produzido pelo Relator Especial da ONU também reprova o uso da legislação como meio de intervir em convicções individuais e dissuadir as pessoas a não se evadirem da norma castigando o exercício de condutas tidas como “proibidas”.
A utilização do sistema penal para controlar e regular comportamentos, valores e criminalizar escolhas e concepções morais atenta contra o Estado Democrático de Direito. Recorde-se que milhares de mulheres optam anualmente pelo aborto, no país e no mundo. O caráter discriminatório e coercitivo da lei penal ficou evidente no “caso das dez mil”, quando uma vez mais a lógica inquisitorial violou a privacidade das mulheres, submetendo-as ao castigo e à penalização cultivados pelo poder punitivo. A restrição da liberdade feminina no âmbito da sexualidade e da reprodução, especialmente em relação ao aborto, evidencia que a decisão no campo da autodeterminação reprodutiva e o exercício da liberdade como premissa constitucional, questões invioláveis da autonomia de legislar sobre sua própria história e futuro, ainda não são uma realidade garantida às mulheres no Mato Grosso do Sul e em todo o Brasil. Isso implica o desafio de fomentar sistematicamente a discussão dos direitos humanos, incluídos os direitos sexuais e reprodutivos, no sentido de ampliar e aprofundar a democracia nas instituições e na sociedade.
1. Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizou uma petição de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) alegando que a proibição da antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo representa uma afronta à dignidade da mãe. No dia 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal aprovou a antecipação do parto em casos de anencefalia.
2. Quilombos são assentamentos fundados no Brasil por escravos que fugiram antes da abolição da escravidão. Hoje na sua maioria são habitados por descendentes dos escravos.
3. Para Figueiredo e Limongi (2002) as emendas parlamentares ao orçamento federal buscam atender interesses específicos dos eleitores e a expectativa dos políticos “de que esses benefícios venham a ser convertidos em votos” (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2002, p. 304). No Mato Grosso do Sul, essa política foi implantada no ano 2000, a partir do acordo entre o Governo do Estado e a Assembleia Legislativa que permitiu aos deputados indicarem a destinação de recursos do Fundo de Investimentos Sociais – FIS (MATO GROSSO DO SUL, 2000). Em 2012, cada deputado tinha o direito de indicar até R$800 mil em benefícios.
4. Nessa brincadeira as meninas usam pulseiras de silicone coloridas no braço e um garoto tenta arrebentar um dos adereços, cujas cores podem representar desde um abraço até o sexo. Em algumas regiões do país, meninas que usavam as pulseiras foram estupradas. Depois disso, muitos municípios proibiram o adorno reforçando a ideia de que as mulheres com saias curtas, decotes e eventualmente pulseiras, provocam a própria violência sofrida (CALLIGARIS, 2010).
5. A reportagem feita pelos jornalistas Ana Raquel Copetti e Wiliam Souza foi veiculada em horário nobre no MS TV, telejornal local produzido pela TV Morena, emissora afiliada à Rede Globo, maior empresa televisiva do país.
6. Inicialmente foram denunciados oito funcionários da Clínica de Planejamento Familiar, mas quatro foram dispensados. As outras quatro trabalhadoras do estabelecimento, juntamente com a Dra. Neide, foram condenadas a julgamento por um júri popular.
7. Ao longo do caso foram oferecidos três tratamentos processuais distintos: a suspensão do processo mediante a aplicação de penas alternativas, a suspensão do processo mediante o cumprimento de certos requisitos e a prescrição da pena para os abortos realizados há mais de oito anos.
8. Uma das testemunhas de acusação realizou dois abortos na clínica.
9. O promotor referia-se ao medicamente Cytotec. Em alguns momentos de sua exposição, pôde-se observar o uso da palavra “crianças”, em vez de “fetos”.
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