Abrangência e limites das ações afirmativas
O artigo reflete sobre diversas ações que se desenvolveram na América Latina com o intuito de garantir a igualdade entre homens e mulheres a partir de diferentes estratégias e ações afirmativas aplicadas em diversos campos (relações trabalhistas, conciliação trabalho-família, seguridade social). A análise se concentra na responsabilidade do Estado em matéria de regulação trabalhista, considerando em especial o princípio jurídico de igualdade de tratamento, bem como o direito à seguridade social. O artigo distingue os conceitos de discriminação e desigualdade, e analisa os pressupostos da igualdade e da diferença de gênero, a base da regulação trabalhista e da seguridade social. A partir disso, são apresentadas propostas de políticas públicas que promovam novos projetos institucionais, especialmente para o sistema de previdência social e de políticas conciliatórias e para o emprego em geral.
Nas duas últimas décadas, a América Latina experimentou processos de transformação dos princípios de organização política, econômica e social. Em primeiro lugar, destaca-se a implementação sustentada de políticas de ajuste estrutural e de reforma do Estado, que – com contornos particulares em cada país – formou um conjunto de políticas e medidas. O claro objetivo foi a reestruturação do Estado a partir de mudanças nas formas tradicionais de funcionamento, no âmbito de uma crescente sub-rogação de suas funções. Essa sub-rogação foi seguida de profundas transformações econômicas internas, com novos agentes econômicos e sociais, e com a implementação de novas formas de proteção e seguridade social.
Um fenômeno que mudou o perfil da agenda social da região foi a entrada da mulher na vida pública, tanto a partir de sua incorporação no mercado de trabalho, como nos visíveis avanços educativos e na incipiente, ainda que escassa, incorporação em termos de participação política. No entanto, não houve, por parte do homem, a mesma assunção de responsabilidade pelas tarefas reprodutivas, historicamente femininas.
Dessa forma, mulheres e homens sofreram a aplicação de políticas de ajuste de diversas maneiras, principalmente na inserção no mercado de trabalho, e sobretudo a partir das mudanças nas formas de contratação, com empregos em tempo parcial, com mobilidade de tarefas e de processos de trabalho, perda de benefícios sociais – antes complementares ao emprego estável –, restrições severas no sistema de políticas sociais, aumento do desemprego e do subemprego. Ainda, todas essas mudanças foram acompanhadas de redução de salários, quando esses existiam.
Paradoxalmente, em situações de vulnerabilidade, e durante os processos de reformas, as mulheres conseguiram o reconhecimento jurídico e a igualdade formal em todos os países da região. A maioria dos Estados ratificou os principais tratados de direitos humanos, com a posterior adequação dos marcos jurídicos nacionais aos instrumentos internacionais. Houve também a implementação de medidas de ações afirmativas, o reconhecimento de direitos reprodutivos, a criação generalizada de mecanismos jurisdicionais para impulsionar políticas eqüitativas. As organizações de mulheres com suas antigas lutas interferiram para instalar uma agenda de gênero, buscando consolidar estratégias e políticas-chaves na promoção da igualdade e estabelecer o debate da cidadania para homens e mulheres.
Por outro lado, como mostra Castel, o discurso da incorporação das mulheres ao mundo do trabalho ocorre precisamente quando o trabalho, como elemento privilegiado na relação social, desvaloriza-se, enquanto o comportamento do mercado é afetado pela presença cada vez mais notável e demandante das mulheres, que exercem pressão sobre ele e cobram eficiência e resultados das políticas.1
Este é o contexto no qual se tornam nítidas as assimetrias próprias do desenvolvimento institucional latino-americano. Em primeiro lugar, a soma de ações promovidas por diversos agentes sociais e políticos gerou um marco de direitos e consensos parapromover a igualdade de gênero. No entanto, os resultados estão longe de ser satisfatórios: a pobreza, a discriminação e a desigualdade persistem e ganham corpo na exclusão social como o grande “fenômeno” nos países da região. Isso significa que houve um incremento na situação de assimetria em matéria de direitos, considerando que a atual fase de desenvolvimento e inserção produtiva gera um inédito contraste entre maior realização de direitos civis e políticos, e retrocessos dramáticos na realização de direitos sociais e econômicos. Ao mesmo tempo, aumentam as situações de insegurança sócio-econômica e de vulnerabilidade social,comimpacto no âmbito do gênero.
Essa situação reflete uma débil –mas não menos importante- vinculação entre as esferas de cidadania e o verdadeiro alcance do princípio de igualdade de oportunidades e de tratamento. É necessário esclarecer que: o direito em geral e o direito trabalhista em particular revelam a tensão constante entre a regulação do âmbito público e a postura liberal da não-intromissão do Estado no mundo privado, que deve ser livre da intervenção estatal.2
A rigor, e na forma como tentarei desenvolver ao longo deste trabalho, o direito trabalhista surge transpondo a clássica divisão do direito entre público e privado,3 e se coloca entre ambos ao romper a igualdade entre as partes contratantes, estabelecendo que dada a relação de subordinação que caracteriza o vínculo trabalhista, a parte trabalhadora requer proteção especial. Além disso, há neste campo do direito uma dicotomia em que competem dois valores distintos: por um lado se aceita a vigência do princípio de igualdade entre os trabalhadores, por outro se reclama a regulação diferencial para certas condições. Essa dicotomia, que também pode ser considerada uma tensão, ganha especial importância no trabalho feminino, que atravessa os ciclos reprodutivos e as conseqüentes relações sociais, que, por sua vez, implicam assumir as responsabilidades familiares combinadas com as produtivas. Esta relação se agrava de tal forma que acaba por afirmar a diferença para reclamar a igualdade.4
No entanto, este reconhecimento normativo da diferença para garantir direitos destinados a dar efetivas condições de igualdade de oportunidades para as mulheres não considera a divisão sexual do trabalho no lar. Dentro do lar, o trabalhador homem poucas vezes assume uma ativa co-responsabilidade em tarefas reprodutivas, aprofundando, dessa forma, uma divisão entre o público e o privado, sem a suficiente consideração dos antagonismos existentes nos dois âmbitos e relegando à esfera privada as particularidades e diferenças em termos de gênero. Em outros termos, o que é protegido e regulamentado para as mulheres se relaciona com sua responsabilidade sobre o mundo privado, mais do que sobre o continuumprodutivo-reprodutivo como eixo de análise de relações que incluem homens e mulheres, ou sobre a eliminação de discriminações na vida pública.5
Em minha argumentação enfatizo que este reconhecimento de direitos, no campo do direito trabalhista e da seguridade social, nem sempre consistiu em um reconhecimento de direitos próprios das mulheres. Isso significa que, embora tenham sido incorporados normas e princípios que reconhecem a igualdade no emprego, o substrato normativo não inclui a mulher como sujeito de direitos em si. Entende que seus direitos resultam de sua inserção no mercado formalou de seuvínculo com outrotitular de direitos(seu marido ou pai): seus direitos advêm de sua condição de trabalhador assalariado.
Esta consideração da mulher no sistema de seguridade social, como portadora de direitos derivados e não próprios, marca as formas de organização e de desenvolvimento dos sistemas das políticas sociais na América Latina. Sobre sua inserção no mercado de trabalho, a idéia de portadora “derivada” de direitos influencia a maioria das regulações trabalhistas e, sem dúvida, permeia a lógica de funcionamento do mercado de trabalho, entre outras razões, porque nunca contemplou a entrada da mulher no mesmo.
No entanto, essa forma de organização do sistema pode ser revertida a partir de um conjunto de intervenções, tais como as propostas neste trabalho, que contribuam para criar sistemas mais eqüitativos. Ou seja, nos quais o acesso se dê não em função de direitos derivados do trabalho ou de vínculo legal com um trabalhador, mas em função da qualidade de cidadão e cidadã.6
Nesse contexto, este artigo tem o objetivo de analisar a abrangência da consideração da mulher como sujeito de direitos derivados, no âmbito da seguridade social, e o papel das reformas na consolidação da categoria. O trabalho dará especial atenção às reformas previdenciárias e seus efeitos para homens e mulheres.
Para situar o debate, estudaremos, em primeiro lugar, a responsabilidade do Estado em matéria das regulações trabalhistas, considerando especialmente o princípio jurídico de igualdade de tratamento e o direito à seguridade social. Ainda, é preciso distinguir os conceitos de discriminação e desigualdade, e analisar os pressupostos sobre a igualdade e a diferença de gênero na base das regulações trabalhistas e de seguridade social. A partir disso, apresentamos propostas de políticas públicas que, embora não pretendam ser definitivas, buscam explorar novas áreas e enfoques para incorporar – na esfera política e na agenda estatal – a necessidade de novos projetos institucionais que revertam as situações de iniqüidade atualmente vigentes.
O direito trabalhista se caracteriza por ser um ramo autônomo do direito que legitima a intervenção do Estado na relação jurídica existente entre partes independentes. Essa intervenção se justifica pelo reconhecimento da desigualdade pré-existente entre os agentes de uma relação, fundamentalmente pela diferente posição econômica e hierárquica que ocupam: um dos sujeitos, o empregador, dirige o outro sujeito, o trabalhador, que o obedece e executa o serviço a que se comprometeu em troca de um salário. A partir daí se estabelece uma peculiar estrutura jurídica, funcional no modelo capitalista industrial e que regula as relações de tipo individual, entre empregador e trabalhador, e coletivas, entre patrões e sindicatos. Essa incorporação de sujeitos coletivos legitimados para agir é inédita. Autoriza sujeitos grupais a impor regras de contratação para determinados âmbitos da atividade produtiva.
Diferentemente de outros ramos do direito, como o direito civil ou o comercial, que protegem a autonomia da vontade das partes e privilegiam a liberdade de contratação; no direito do trabalho se reconhece a necessidade de dar proteção social a quem mantém uma relação de trabalho subordinada ou uma situação econômica e jurídica reconhecidamente desvantajosa com a outra parte. O direito trabalhista não parte da premissa de igualdade entre os co-contratantes. Ao contrário, a igualdade substancial constitui sua meta ou aspiração e, para alcançá-la, dá proteção especial à parte considerada fraca na relação trabalhista.7
Sobre a regulação específica do trabalho das mulheres, é preciso lembrar que as primeiras normas trabalhistas surgiram precisamente para proteger as mulheres e as crianças que se encontravam em especial situação de exploração durante a revolução industrial. Por essa razão, as normas tiveram, em sua origem, a intenção de preservar a mulher das difíceis condições de trabalho existentes, do trabalho noturno, insalubre ou de condições muito penosas. Desse modo, disposições introduzidas principalmente nos acordos protetores da OIT8 levaram em consideração a mulher somente em seu papel de mãe.
Em meados dos anos quarenta, quando os países da América Latina criaram as bases dos Estados de Bem-Estar Social, a mulher continuou sendo tratada como mãe. Tal situação condizia com o formato de um tipo especial de projeto institucional, como os que se desenvolveram na região, especialmente nos países do Cone Sul. Assim, a figura do trabalhador assalariado era masculina. A relação trabalhista “típica” era o emprego regular, de tempo integral, em idade ativa e com raras mudanças na carreira trabalhista. Claramente, as mulheres ficavam em posição de desvantagem, obtendo algumas normas protetoras, mas sem conquistar o princípio da igualdade. Aquilo que juridicamente poderia ser correto, outorgando uma oportunidade de efetiva solidariedade social, teve como resultado um sistema fragmentado e injustamente privilegiado, baseado fundamentalmente nas diferenças verificadas no mercado trabalhista.
Posteriormente, a melhora das condições de trabalho em termos gerais, sem distinção de gênero, fez desaparecer as proteções especiais conquistadas inicialmente de forma exclusiva para mulheres e crianças. A partir dos anos 1950, teve início um lento e progressivo processo de eliminação de normas contrárias a este princípio de igualdade nos ordenamentos jurídicos. Esse processo se desenvolveu de forma heterogênea e com particularidades em cada um dos países, tendo sido acompanhado de ratificação dos acordos da OIT de corte igualitário, proclamando o princípio da igualdade entre ambos os sexos.9
É interessante assinalar que, desde meados dos anos 80, os países latino-americanos, coincidentemente com o restabelecimento de governos democráticos, reformaram suas Constituições e assumiram uma quantidade importante de compromissos com seus cidadãos para garantir a eqüidade e a igualdade de oportunidades em diversos âmbitos da vida social. Assim, comprometeram-se, a partir da ratificação de pactos e tratados internacionais, a garantir a igualdade e a não-discriminação, além do direito ao trabalho.
A rigor, as declarações e tratados internacionais reconhecem o direito ao trabalho, mas com ressalvas a respeito das condições nas quais pode ser efetivado, subordinando-o aos recursos e peculiaridades de cada Estado ou à obrigação do Estado de estabelecer políticas que garantam esse direito. Esse seria o caso do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que estabelece que os Estados-Parte reconhecem o direito a trabalhar, que compreende o direito de toda pessoa ter a oportunidade de ganhar a vida mediante um trabalho escolhido ou aceito livremente. Cada Estado tomará as medidas adequadas para garantir esse direito. As obrigações dos Estados-Partes não se limitam a satisfazer o conteúdo mínimo dos direitos econômicos, sociais e culturais, mas envolvem também a adoção de medidas para satisfazer, progressiva e plenamente, esses direitos, utilizando o máximo de recursos disponíveis.
O primeiro instrumento internacional que aborda a discriminação, especificamente, é a CEDAW, que considera como discriminação:
Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo, que tenha por objeto ou por resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício da mulher, independentemente de seu estado civil, sobre a base da igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e as liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou em qualquer outra esfera.10
Ao longo do texto, promove-se a criação de medidas de ação afirmativa para aumentar as oportunidades de participação econômica, social, cultural, civil e política das mulheres. Quanto ao emprego feminino, a CEDAW considera não só a demanda de emprego, os processos de seleção, os critérios de remuneração, a seguridade social, a proteção da saúde e da maternidade, como também a oferta e a ampliação da autonomia das trabalhadoras vinculadas à escolha do trabalho ou profissão e à formação profissional.11 Também se prevê o direito das mulheres aos benefícios familiares com independência de seu estado civil12 e se explicita que os direitos das trabalhadoras devem ser protegidos de potenciais discriminações originadas pelo casamento e/ou maternidade. Estabelece claramente que os Estados devem tomar medidas adequadas para proibir e sancionar este tipo de práticas discriminatórias, além de proteção da maternidade por meio de licenças pagas e prevenção da execução de trabalhos que prejudiquem a trabalhadora durante a gravidez. Ainda, deve-se dar o benefício de serviços de cuidado infantil e outras medidas que permitam combinar as responsabilidades trabalhistas e familiares dos pais.13
Este processo de incorporação de princípios igualitários, pela via constitucional ou de tratados e convênios internacionais, foi acompanhado em muitos casos pela implementação de um plano de igualdade de oportunidades; a pedido mesmo dos organismos, que podem contar com projetos estaduais ou locais, de proteção à mulher em cada um dos países da região.
No entanto, apesar do avanço na afirmação do princípio da igualdade, na maioria dos países da região, a partir da década de noventa, surgem medidas de flexibilização trabalhista, acompanhadas por severas restrições na rede de seguridade no trabalho e das instituições sociais.14 Essa flexibilização se deveu também à aplicação de políticas de ajuste estrutural de cunho neoliberal, que entre outras medidas, produziram profundas transformações econômicas e, ainda, reformas tributárias.
Em conseqüência, ocorre atualmente na região uma particular situação de assimetria entre ordenamentos constitucionais. Há ampla consideração de igualdade de oportunidades, um importante avanço em planos nacionais de igualdade, mas também a ausência de mecanismos efetivos que contribuam para sua concretização no âmbito da consolidação da participação da mulher nos mercados de trabalho urbanos.15
Nesse novo contexto, o fato da mulher ser considerada e protegida como “mãe” não é um problema. Ao contrário, à luz dessas políticas que precarizam o emprego, o problema é precisamente o fato de ser ou querer ser mãe. Ou seja, a maternidade, no quadro da flexibilização trabalhista, passa a ser uma fonte de desvantagem para as mulheres. Assim, a contratação de mulheres é desestimulada em função do aumento do custo trabalhista;16 não há oferta de serviços reprodutivos e, em casos de precariedade absoluta, a trabalhadora é penalizada quando “transgride” a norma e engravida. A maternidade deixa de ser uma função social, protegida pelo Estado, e passa a ser uma questão individual que, agravada pela negação dos serviços sociais estatais, na maior parte dos países latino-americanos, torna ainda mais complexa a situação das mulheres trabalhadoras. No caso das trabalhadoras informais, que não têm proteção alguma, é mais grave o problema: fica ao arbítrio da “boa vontade”, no melhor dos casos, de seus empregadores.
Ou seja, a situação atual na América Latina se caracteriza também pela persistência da cultura onde a responsabilidade do cuidado do lar e dos filhos recai principalmente sobre as mulheres, e não sobre os casais. Na maioria dos países da região, a norma é enfocar nas licenças para cuidado infantil, nos subsídios para maternidade e na disponibilidade de creches. Muito embora seja um problema cultural, é muito significativo que o Estado o reforce por meio da legislação e das políticas, e destine às mulheres uma dupla função, no mesmo ato em que regula as relações entre trabalhador e empregador.
É precisamente no âmbito das políticas de conciliação entre tarefas produtivas e a criação dos filhos (trabalho reprodutivo), que devem concentrar-se ações afirmativas nas regulações trabalhistas, a fim de promover um verdadeiro avanço no princípio da igualdade. Retomaremos este aspecto nas propostas de políticas.
A seguridade, como objetivo de política estatal, busca proteger o indivíduo dos riscos materiais e das inseguranças materiais individuais típicas relacionadas a doenças, à incapacidade para o trabalho ou à dificuldade de encontrar trabalho devido à perda de habilidades, à falta de recursos para a maternidade ou à criação dos filhos, à necessidade de garantir recursos na aposentadoria ou diante da perda do arrimo de família. Estas situações, denominadas contingências, não devem ser resolvidas pela caridade pública ou formas de mutualismo ou cooperação, mas por meio de acordos coletivos. Em outros termos, a seguridade social se traduz na ação estatal baseada na legislação formal, garantida por direitos sociais e pela intervenção técnico-administrativa do aparelho estatal.17
Em suas origens, o direito da seguridade social se diferenciava do direito do trabalho, por não considerar o trabalhador assalariado como sujeito à proteção enquanto tal, mas por buscar proteger a integridade da pessoa. Com o desenvolvimento do sistema, e a partir de mecanismos criados para a efetiva percepção do benefício, foram abrangidos os trabalhadores dependentes e, em alguns casos, seu grupo familiar, embora, em geral, o beneficiado tenha sido o trabalhador dependente e não seu titular. Para os não-assalariados, a cobertura ficou reduzida a certas e determinadas contingências, ainda que, na maioria dos casos, a proteção seja conseqüência de adesão voluntária. Ou seja, o princípio da universalidade não foi suficientemente desenvolvido, permanecendo como condição indispensável preencher certos requisitos para ter acesso ao benefício, entre os quais ser um trabalhador assalariado.
Sintetizando, os sujeitos protegidos seriam todos os compreendidos no campo de aplicação do sistema, resultando potenciais credores dos benefícios estabelecidos, efetivados a partir da contingência, desde que reunissem as condições exigidas (idade, doença). Estes requisitos podem referir-se à objetivação da contingência, por exemplo, determinado grau de invalidez, ou ao cumprimento de preceitos legais, como ser casado, ou ter vínculo com a previdência, antiguidade neste vínculo ou o recolhimento do mínimo de contribuições. Claramente não se trata de um sistema de acesso incondicional para o cidadão.
O Estado cumpre um duplo papel no sistema: por um lado reconhece o direito à seguridade social de todos os habitantes, legislando e regulamentando neste sentido. Por outro, assume a responsabilidade de dar benefícios diretamente ou por terceiros aos beneficiários. Esta consideração está na origem e construção dos principais Estados de Bem-Estar latino-americanos. No entanto, os mesmos tiveram diferentes graus de estruturação, o que resultou em sistemas fragmentados, com coberturas inadequadas e problemas de gestão e financiamento.
De fato, as coberturas são pagas, em geral, por meio dos seguros sociais, que se baseiam em impostos sobre o salário e não em um sistema de seguridade social mais amplo, como ocorre nos países escandinavos. Para que os benefícios sejam efetivados, é necessário que cada trabalhador e seu empregador sustentem o sistema, pois do contrário o mesmo não opera. Isso significa que só há direito à medida da contribuição. Esta é a base do sistema contributivo.
O tema não nos remete unicamente a uma precisão jurídico-normativa, mas determina as formas de distribuição de oportunidades para os distintos membros da sociedade. Ou seja, quem tem acesso a um emprego formal, consegue todos os benefícios e direitos, não só resultantes de sua condição de trabalhador, mas que também usufrua a plena cidadania, ao contrário de quem não tem acesso. Na distribuição de oportunidades, as mulheres são históricas perdedoras, entre outros motivos, pela falta de reconhecimento do trabalho reprodutivo e por sua baixa inserção nos espaços públicos.18
Se da forma como foi desenvolvido, o emprego assalariado é fonte de outros direitos e um dos elementos constitutivos da cidadania na América Latina, o trabalho surge como um direito que, pelo princípio da igualdade, deve ser acessível a todos os cidadãos. Pela mesma razão, o direito à seguridade social não deveria ser garantido a todos os cidadãos, independentemente de sua condição de trabalhador e de contribuinte?
Estas questões suscitam numerosos dilemas sobre a responsabilidade do Estado como garantidor da seguridade social, tanto na cobertura de riscos e contingências, como na promoção de condições básicas para o desenvolvimento de uma existência autônoma, princípio fundamental da igualdade e eqüidade.
Como conseqüência, sendo o emprego remunerado o mecanismo principal da entrada de recursos, e um mecanismo de inserção social e pessoal, no sentido mais amplo, a observação da situação das pessoas no mercado de trabalho é um ponto de partida razoável para a abordagem de distintas expressões dos problemas sociais e situações de discriminação atualmente vigentes. É papel do Estado garantir essa inserção.
Para ilustrar esta situação, o trabalho feminino mostra as seguintes situações: por um lado, o emprego remunerado é para a mulher o eixo de sua realização pessoal e o exercício de sua autonomia. Além disso, tem um caráter de emancipação dos padrões culturais e familiares tradicionais, constitui fonte de receita que dá segurança e implica novos formatos familiares, e ainda funciona como prevenção contra a violência doméstica. Por outro lado, há grande quantidade de mulheres que não se realiza em trabalhos “produtivos”, entre outras razões, porque precisamente o mercado não as absorve e não poderá absorvê-las. Ou ainda porque o desemprego involuntário e a “desqualificação” trabalhista aumentam quando as pessoas assumem postos de menor qualificação que seu oficio usual ou se existe algum mecanismo de discriminação por gênero. Finalmente, há também o trabalho “reprodutivo” ou trabalho doméstico, não-remunerado e realizado fundamentalmente por mulheres reconhecidas como “socialmente úteis”.
A discriminação por gênero, seja no mercado de trabalho remunerado ou em relação às tarefas domésticas, é, na realidade, uma das muitas formas de um problema mais complexo: os modos de inserção social e as formas como se mantém a coesão em sociedades profundamente desiguais. Não se deve desconhecer que a disponibilidade do emprego – formal ou informal – ou a possibilidade de ingresso nas atuais sociedades reguladas pelo mercado são elementos essenciais para o desempenho e as escolhas das pessoas e, obviamente, também para a satisfação de suas necessidades. Claramente a pobreza restringe a liberdade e reduz o desempenho ou as “habilidades” de cada indivíduo. Da mesma forma, a remuneração mais baixa dada às mulheres pela mesma tarefa cumprida pelos homens, por discriminação, reduz a possibilidade de realização das mulheres, ao mesmo tempo em que desvaloriza seu trabalho.
A ausência da abordagem de políticas públicas, do ponto de vista de gênero, explica em parte o comportamento do mercado de trabalho feminino. O primeiro indicador disso é que a inserção feminina foi majoritariamente precária e em tarefas de baixa qualificação no mercado informal e, por conseguinte, sem cobertura da seguridade social. Um traço talvez menos visível, ou pelo menos mais difícil de quantificar, mas de significativa importância, foi a perda de qualidade dos empregos existentes. Como resposta aos desequilíbrios manifestados no mercado de trabalho remunerado, criou-se um discurso nas esferas oficiais, avalizado porexperts de organizações multilaterais de crédito, que mostra que as dificuldades para a entrada no mercado de trabalho se concentram na forma como as pessoas oferecem sua força de trabalho. Responsabilizando, portanto, os próprios interessados por sua situação e trajetória trabalhista.19
Isso significa que quando as mulheres se tornaram participantes regulares do mercado de trabalho, era evidente a falta de seguridade social para elas. Sua chegada se deu em um contexto de grandes restrições a um mercado de trabalho informal e precário, com notórias perdas da cobertura dos sistemas de seguridade social.
Desta forma, as políticas públicas nos últimos vinte anos na maioria dos países da região consideram a mulher como titular de direitos derivados de outros direitos, mas nunca como titular de direitos próprios.20 Assim, as estratégias políticas adotadas se preocuparam em aperfeiçoar os métodos para detectar e classificar as carências das mulheres, o acesso à formação profissional, os supostos custos trabalhistas mais elevados e indicadores de absenteísmo associados à maternidade, entre outros. As estratégias não partiram do pressuposto da existência de uma estrutura de poder diferenciada, que gera relações assimétricas. Neste sentido, não se considerou o impacto das políticas econômicas e sociais sobre as mulheres. Ao contrário, legitimou-se um “véu de ignorância” em termos da não-neutralidade da macroeconomia em matéria de gênero.
Então, qual seria a responsabilidade do Estado em relação às garantias de emprego e seguridade social? Existe um componente que se relaciona fundamentalmente com a justiça distributiva e aborda a divisão de gênero do trabalho entre trabalho “produtivo” remunerado e trabalho doméstico “reprodutivo” não-remunerado, realizado fundamentalmente por mulheres e que se reflete nas regulações trabalhistas. Por outro lado, esse componente também estrutura a divisão nos empregos remunerados, discriminando entre os trabalhos mais bem pagos, mais qualificados, relacionados basicamente à indústria, dominados por homens e os trabalhos pior remunerados, de baixa qualificação e produtividade relacionados aos serviços, ocupações “tipicamente” femininas. Este quadro ocorre com a retirada do Estado de suas funções sociais, que exige que os lares e, em especial, as mulheres, assumam maiores responsabilidades na satisfação das necessidades básicas e nas tarefas de reprodução social.
Retomando o eixo central da questão, a situação apontada implicará que o sistema de seguridade social intervenha para colocá-lo em condições de acesso à mobilidade e à rotatividade dos empregos, protegendo antes do desemprego definitivo, na cobertura de todo o ciclo ativo do indivíduo, ocupando-se também de sua capacitação? O que o Estado deveria assegurar: o emprego ou a vaga?
Assim, chega-se a um argumento reiterado em torno dos limites da seguridade social, não devido à capacidade estatal de assegurar a mesma, mas pelas dificuldades do financiamento. Tal como foi apontado, os marcos normativos e numerosas convenções internacionais garantem o direito à seguridade social; na realidade as restrições ocorrem pelos gastos públicos. Aqui é necessário fazer uma digressão: as reformas setoriais em toda América Latina foram caríssimas, e os países destinaram extraordinários recursos, na maioria dos casos, por endividamento externo, para outorgar menos benefícios, com menos qualidade e a um custo maior. Ou seja, há fundos para as reformas, não há fundos para o pagamento dos benefícios.
Portanto, surge uma nova questão: será possível implementar nos países da região uma dinâmica política interna onde as decisões sobre o gasto público social resultem de processos políticos democráticos e a valoração final da função do Estado seja diretamente dependente das necessidades e preferências dos cidadãos?
Percebe-se nesse sentido que os objetivos da seguridade social sucumbem às possibilidades de financiamento, sendo este o argumento central para impedir modificações nas reformas já operadas. Ou seja, são estabelecidos permanentemente “tetos” e limites ao financiamento dos sistemas de seguridade social, ou especificamente reduções nos níveis destinados ao gasto público social em matéria de benefícios. No entanto, pouco se diz, por exemplo, do custo fiscal da transição de um sistema previdenciário a outro.21
Isso significa que não se pode estabelecer causalidades simples que reduzam os problemas de vulnerabilidade social à paralisação econômica, tampouco se pode prescindir do crescimento econômico se o objetivo é reduzir a vulnerabilidade. Até aqui se discorreu sobre a responsabilidade do Estado de garantir a seguridade social. Ewald aponta: “a responsabilidade social é a forma moderna da política”.22 NaAmérica Latina, observa-se como se transformou na não-política ou na falta de responsabilidade do Estado com os compromissos assumidos, deixando vigorar a nova hegemonia do mercado.
É interessante ouvir a argumentação que formula Folbre, quando mostra que uma forma de enfrentar este desafio é não pensar que os mercados são intrinsecamente maus, para reconhecer “a quem pertence o quê”, nem tampouco fomentar a supervalorização que fazem os economistas dessa abstração chamada “o mercado”. Mas sim destacar que a mulher tem um legado de responsabilidades na provisão de cuidados maternais que deveria fazê-la desconfiar do princípio de “cada um por si”.23 Em outros termos, é importante retomar a análise da clássica trilogia: Estado, mercado e família, para ver que papéis e responsabilidades cabem a cada um deles neste novo cenário.
A seguridade social e o emprego em condições plenas são questões não resolvidas para as mulheres na América Latina. Embora o contexto de crescimento da informalidade trabalhista na região tenha se transformado em um fenômeno freqüente para os homens, existe ainda uma inércia institucional que os beneficia, e eles não só têm mais possibilidades de acesso, como contam ainda com certa cultura de seguridade social que lhes permite incorporar-se ou valorizar seu conteúdo de proteção. Para as mulheres, particularmente as de menos recursos, a cobertura nas contingências é um ideal inacessível, enquanto a urgência é cotidiana.
Por essa razão, é importante destacar a necessidade de mudar o eixo da intervenção, continuando com a premissa de que é necessário conseguir uma maior incorporação e participação dos cidadãos e cidadãs no mercado de trabalho, considerando os limites. Ou seja, pensar e propor políticas que não continuem baseadas na ilusão de criar novas vagas, em mercados de trabalho deprimidos como os latino-americanos, mas sim pensar a seguridade social como um novo vetor de integração social.
Novamente, trata-se de propor formas de consolidar redes de seguridade social e não sistemas de proteção social. É necessário precisar conceitualmente os limites no uso do termo “proteção social” quevem substituindo há pouco tempo o termo seguridade social, um claro retrocesso. O termo “seguridade social” significava um amplo pacote de previdência, com um papel forte do Estado não só na provisão, mas também na regulação e financiamento. A idéia de proteção social significa um modelo muito mais restrito e marca a mudança de uma atividade estatal ampla para uma atividade em que as pessoas, as famílias e as comunidades desempenhem um papel mais ativo e assumam maiores responsabilidades.
Da mesma forma, as primeiras instituições que reformaram o sistema de seguridade social foram precisamente as que contemplavam maiores possibilidades de serem “oferecidas” à administração privada, como é o caso do sistema previdenciário. As características centrais das reformas, com impactos diferenciais, podem ser resumidas da seguinte maneira:24
• mediante a privatização da administração dos seguros sociais (pensões, seguros de saúde) se fortalece a relação de acesso à instituição no mercado de trabalho;
• o desmantelamento das instituições de caráter social elimina as redes “incondicionais” de proteção e reduz sua cobertura efetiva, tanto vertical como horizontal;
• assim, se transfere grande parte da responsabilidade da cobertura frente às contingências sociais aos próprios cidadãos, o que depende em grande medida de sua capacidade de gerar receita própria;
• ocorre uma maior seleção e fragmentação dos programas, que são criados em função das características específicas de distintos grupos identificados como público-alvo;
• as mulheres, os jovens e os idosos são os mais prejudicados nessa situação. A única “solução” é ser “beneficiário” de um programa de assistência focalizada;
• esta fragmentação promove uma maior divisão social, nos quais perdem espaço as instituições cujos fins se justificam em “interesses generalizáveis” e avançam as que representam “interesses particulares”;
• o novo cenário modifica a natureza dos conflitos e o papel dos atores políticos. Antes se tratava de pressionar para adquirir os benefícios em expansão, enquanto agora se luta pelo sentido da seletividade;
• no aspecto normativo, deixam de existir os espaços que requerem tutela pública e atores coletivos, transferindo a responsabilidade total aos indivíduos, diretamente responsáveis pela sua situação;
• paralelamente, diminuem as instituições de fiscalização e de revisão do funcionamento dos novos sistemas, aumentando consideravelmente a falta de proteção dos cidadãos.
A saída promovida pelas reformas previdenciárias que sustentaram o compromisso individual, a partir da idéia de “capitalização individual”, como solução às contingências, e também à ineficiência estatal, mostrou a falta de desenvolvimento de estruturas do sistema social. Isso agravou os problemas dos antigos sistemas, ao mesmo tempo em que promoveu a iniqüidade dos variados sistemas e da sociedade em seu conjunto. Situações similares ocorreram em relação à cobertura de saúde, em que o sistema de cobertura familiar foi modificado, na maioria dos países, de forma restritiva.
A situação fica mais complexa quando a ela se soma a existência dos direitos derivados, e não próprios. A instabilidade e a vulnerabilidade deixam de ser circunstanciais, tornando-se centrais. Assim como a informalidade no mercado de trabalho se transforma aceleradamente, na regra das novas inserções, determinando uma grande instabilidade na base das carreiras profissionais, a cobertura das contingências sociais tem a mesma sorte. Esta realidade é tão profunda que as próprias instituições ganharam perfis contingentes, com lógicas complexas e inacessíveis aos cidadãos.
Neste aspecto, as mulheres perdem de novo, já que cultural e institucionalmente sua relação com a seguridade social sempre foi desigual. Também ocorre uma variável importante que se refere às novas contingências: não há cobertura e não se discute o assunto. Existem contingências específicas de gênero que não foram incorporadas pelas reformas.
A legislação previdenciária expõe a falta de promoção de oportunidades no acesso ao sistema, na ampliação de cobertura, no aumento da cotação, na diminuição dos riscos e na equiparação do cálculo atuarial. Esta falta de promoção difere consideravelmente entre homens e mulheres e se traduz, definitivamente, em condições de desigualdade. Uma vez mais, a principal discriminação é a desigualdade de oportunidades por gênero no mercado de trabalho e a não-consideração do trabalho reprodutivo.
Nos diversos estudos realizados sobre as reformas previdenciárias,25 comprova-se que as condições de aquisição do direito previdenciário nas legislações reformadas obedecem a um padrão que, em termos gerais, é comum a todas elas. No entanto, em cada uma se observam normativas particulares que manifestam a neutralidade em termos de gênero. As mulheres são discriminadas de forma direta, quando não são consideradas cidadãs portadoras de direitos. No melhor dos casos, são consideradas trabalhadoras. Um número importante de mulheres recebe o tratamento de esposa-dependente, dona-de-casa, mãe. Ao mesmo tempo, atribui-se uma valoração quase pejorativa ao trabalho doméstico, considerando as mulheres que se dedicam exclusivamente ao lar, como “cargas” e “beneficiárias” da pensão do marido. Este benefício não cabe às mulheres economicamente ativas, mesmo quando se dedicam ao trabalho doméstico. O trabalho remunerado e a economia da mulher parecem não ter nenhum valor. No Chile, por exemplo, o viúvo não recebe pensões. Outro tratamento desigual se dá na aposentadoria, cinco anos menor para a mulher, em função da maior expectativa de vida. Como resultado, num sistema de capitalização individual, as mulheres recebem aposentadorias inferiores.26
Os novos sistemas previdenciários reproduzem a discriminação ocupacional e salarial que afeta as mulheres. Este é um ponto muito importante, já que geralmente se argumenta que não se podem atribuir ao sistema previdenciário problemas intrínsecos ao mercado de trabalho. Embora esta afirmação seja correta, numerosos estudos dão conta da presença de discriminações e problemas inerentes ao sistema previdenciário e que reproduzem as iniqüidades do mercado de trabalho. A reforma não levou em conta, por exemplo, o fato de que o emprego estável já não é mais a regra, ao contrário, impera a flexibilidade trabalhista, salarial e de jornada de trabalho. Também não considerou as mudanças nos próprios sistemas produtivos.27
Nenhuma mudança será possível sem que exista um compromisso político que se proponha a operacionalizar o princípio ético-político da eqüidade de gênero. Eqüidade que não implica somente melhora nas condições de trabalho e de cobertura de contingências sociais para mulheres, mas que requer precisamente um compromisso que interpele os atuais sistemas de distribuição de oportunidades e – por que não? – de capacidades de mulheres e homens.
Em outros termos, não se requer apenas mudanças técnicas nas reformas já realizadas. O que se quer é um novo consenso político que abranja os princípios que estão em jogo em matéria de inclusão social. A inclusão só será conseguida à medida que se considere uma seguridade social ampla e não só reduzida ao sistema previdenciário. Por essa razão, a centralidade do modelo econômico no qual se inserem os sistemas de seguridade social é indiscutível e determinante de qualquer tipo de opção política que se tome.
É necessário introduzir na esfera política dos países da América Latina o debate sobre quem deve garantir a seguridade social, qual é a responsabilidade do Estado e em que princípios será garantida. O debate deve tratar da seguinte questão: se o foco dos programas será centrado nas pessoas que estão fora do mercado de trabalho, ou que permanecem na informalidade, ou seja, trata-se de um programa do tipo assistencial; ou se a seguridade social será garantida como um direito ao cidadão, isto é, um direito próprio e de acesso imediato.
Também devem ser incorporadas de forma definitiva à agenda dos governos avaliações integrais das reformas implementadas, para compreender por que estas opções de políticas acarretaram os resultados apontados. Vale lembrar que as dinâmicas excludentes adotadas na maioria dos países da região não obedecem só à aplicação de equações técnicas, mas têm como base conteúdos culturais e sociais que não legitimam as instituições de seguridade social e a memória das políticas dos Estados de Bem-Estar, absolutamente cegas à questão do gênero.
Outro tema crucial para a discussão política é a escassa realização dos direitos sociais como parte constitutiva do desenvolvimento nos países da região.28 Cabe apontar novamente que estas afirmações não são só propositivas, mas operativas. Não há forma de lutar efetivamente contra a discriminação, se não se tecem redes de seguridade social universais com maiores impactos sobre os grupos sociais menos autônomos. Um modo de tecer essas redes é, por exemplo, incluir as mulheres em acordos institucionais que solucionem os problemas de insegurança social e precariedade trabalhista que afetam a maior parte da população. A saída não está em ações isoladas que busquem alívios transitórios de danos irreparáveis, mas em políticas estáveis que contenham as condições necessárias para evitar que as pessoas cheguem à marginalidade e exclusão. Estas redes deveriam funcionar de forma permanente para dar garantias desde o nascimento a cada cidadão.
Esse assunto se relaciona com o princípio da igualdade. Requer, primeiramente, uma mesma condição jurídica e, em segundo lugar, a efetiva realização de oportunidades na vida. Ainda que o primeiro princípio de iure esteja garantido, tanto nas constituições nacionais como na adesão aos pactos e tratados internacionais, o mesmo não acontece com as condições de vida, já que não são similares para todos e já que não existem níveis mínimos garantidos para cada indivíduo.
A idéia de seguridade social ficou apagada no contexto de situações que configuram maior insegurança e vulnerabilidade. Mesmo que isso tenha sido conseqüência das reformas, não significa que deva ser abandonado como ideal de sistema. Ainda que a seguridade social tenha se tornado insegura, não significa que a mesma deva transformar-se em regra de futuros modelos. Pelo contrário, deve contar com instrumentos para minimizar essas conseqüências.29
Faz-se necessário, mais uma vez, considerar a idéia de propor ações integrais no âmbito de padrões de distribuição de ingresso e de capacidades fortemente residuais como acontece na América Latina. É preciso que se pergunte os motivos pelos quais as sociedades latino-americanas têm tão baixa capacidade de redistribuição para, assim, poder antepor, nesses limitados padrões, os efeitos de novas reformas. A seguir, relacionamos um conjunto de propostas de formulação de políticas integrais que busquem conjugar o trabalho produtivo, reprodutivo e um sistema integral de seguridade social, ou seja, um espectro mais amplo que as políticas setoriais e ações afirmativas, que as incluem e dinamizam.
Aqui as propostas se situam de duas formas:
• a consideração da pessoa como portadora de direitos próprios, por ser cidadão/cidadã, sem necessidade de contrapartida;
• as estratégias para implementação e garantia desses direitos próprios, que chamamos de direitos conexos neste trabalho.
Como se dá o “salto” da categoria de trabalhador contribuinte a um sistema que, mesmo que seja parcialmente contributivo, privilegie a categoria de cidadão? Isso é possível? Esse “salto” pode ser legitimado?
Sem dúvida, consideramos que é possível e necessário. A legitimidade desta proposta existe, porque não é nem mais nem menos que considerar o estabelecido: mulheres e homens são titulares de direitos cidadãos, que compreendem o exercício de direitos civis, políticos e sociais. Em vez de considerar a capacidade associada a uma categoria (trabalhador/a; contribuinte), deve-se simplesmente considerar sua condição de cidadão.
O primeiro passo para conseguir legitimar esta proposta é considerar a seguridade social em toda sua abrangência, e não apenas de forma restrita ao sistema previdenciário ou a outros seguros sociais. Deve-se reorganizar o sistema com vistas a potencializar novas formas de cobertura das contingências sociais (biológicas, sócio-econômicas e patológicas), considerando as especificidades de gênero em cada uma delas e integrando ações hoje isoladas em matéria de políticas sociais, numa integridade sistêmica.
Isso posto, surge uma nova questão: como combinar reformas que incluam a eqüidade e não sejam mais uma carga no salário dos trabalhadores? O assunto foi pouco discutido. Na maioria dos países, as soluções ao definanciamento dos regimes reformados se deram por meio de novas contribuições ou novos aportes, principalmente recaindo sobre os trabalhadores e, em segundo lugar, sobre os empregadores.
As ações que devam ser implantadas e que sejam consideradas de utilidade social para toda a sociedade não podem, nem devem ser financiadas com contribuições sociais, incluindo, entre outras, as políticas ativas de emprego, cobertura por desemprego, medidas para a conciliação da proteção da família e do trabalho, a maternidade, e o reconhecimento de determinados períodos não computados, como a criação de filhos, formação, estudos.
Por outro lado, a maioria dos países da região assinou os pactos e tratados internacionais de direitos humanos, o que pressupõe uma obrigação de cumprimento. Trata-se de uma obrigação mínima. Estes requerimentos se fundamentam no exercício de uma cidadania plena e pertencem ao campo dos direitos humanos fundamentais. Afinal, em que consiste a idéia de direitos conexos?
Entende-se, no contexto de propostas de políticas, por direitos conexos, as ações e garantias que, respeitando um conteúdo mínimo, deveriam existir para garantir efetivamente o exercício de um direito próprio à seguridade social.
Retomando o exposto no início deste trabalho, a idéia é que o novo vetor de integração social não seja o emprego formal assalariado, mas sim o sistema de seguridade social, a partir de sua redefinição. Isto é, não mais vinculando os benefícios à condição de trabalhador assalariado, mas considerando os direitos de cada cidadão e cada cidadã.
Desta forma, um primeiro direito conexo que pode ser garantido é a incorporação ao regime do casamento a possibilidade de contribuição partilhada ao regime previdenciário, que em princípio não está estabelecida nas regulações civis – salvo exceções – na América Latina. Assim, em caso de divórcio, as contribuições feitas durante o casamento pelos cônjuges devem ser consideradas bens aquestos. A regulação consiste em repartir à base de 50% entre ambos os cônjuges as contribuições feitas pelos dois durante a união. Deve ser considerado um direito indisponível.30
A relação é bastante simples e não afetaria o sistema previdenciário. Basta mudar a ótica, ao considerar os aportes previdenciários efetuados durante o casamento ou relação estável como um direito próprio e passível de ser considerado como bem aquesto. Com esta medida, é muito provável que serão fortalecidos os direitos próprios das mulheres.
Com o objetivo de incorporar efetivamente e promover o desenvolvimento de um sistema que considere os direitos das mulheres como direitos próprios, a proposta é considerar que os períodos de contribuição das mulheres – que continuam sendo inferiores aos dos homens, tanto na duração como nos valores das bases de contribuição, apesar dos planos de equiparação de tratamento e de conciliação familiar – sejam menores que os exigidos aos homens ou que se compense idade por anos de aporte ou vice-versa. Esta proposta se baseia no entendimento de que o incremento da atividade remunerada das mulheres não é suficiente para conseguir uma pensão de aposentadoria sem ter que recorrer a direitos derivados.
Um dos motivos pelos quais as mulheres não chegam a alcançar o mesmo teto de pensão ou aposentadoria dos homens é a interrupção da vida trabalhista pela criação dos filhos, ou pela realização de trabalhos em tempo parcial e presença de mecanismos discriminatórios (salarial, ocupacional, entre outros). Estas situações se refletem no valor da pensão ou aposentadoria. É ilustrativa a reforma do regime previdenciário realizada na Alemanha em 2001, que incorpora um complemento adicional de pensão em função do número de filhos sob sua responsabilidade. Este complemento, um exercício do direito próprio da mulher, também incide nas pensões por viuvez.31
Assim, poderiam ser incorporados dispositivos como os estabelecidos na Alemanha, onde uma mulher que tenha contribuído durante 25 anos à seguridade social, teria as bases de contribuição feitas durante os 10 anos imediatamente posteriores ao nascimento de um filho, consideradas como se houvesse realizado pela base média de contribuição de todos os segurados no ano de que se trate. Dessa forma, não se penaliza o trabalho de tempo parcial, pois mesmo que seja computado como tempo de contribuição, a base de cálculo é muito baixa, o que faz com que qualquer pensão que advenha, seja também baixa. Quando ocorre o fim da atividade, como conseqüência do acompanhamento de um filho incapacitado para o trabalho, menor de 18 anos, e em função da dependência do filho, um dos pais tenha que dedicar-lhe ao menos 28 horas semanais de atenção, a base de contribuição deve ser considerada pela média de todos os segurados.
O raciocínio anterior deve ser complementado com outra situação: enquanto não se aceitar que as tarefas de criação dos filhos não são um bem privado, e devem ser consideradas como um bem público, não haverá avanço na situação da mulher. Questões como a divisão do trabalho doméstico e a consideração da mulher como “dependente” continuarão em vigor e não haverá mudança na cobertura previdenciária para as mulheres não-assalariadas. Também não haverá o reconhecimento de que as tarefas da criação dos filhos são fundamentais para gerar capacidades sociais, indispensáveis para o desenvolvimento da pessoa e suas oportunidades.
Da análise feita resulta a presença de um quadro favorável que propicia a experiência em matéria de metas alcançadas, como as descritas ao longo deste trabalho. No entanto, seria recomendável selecionar um conjunto de ações afirmativas sobre trabalho e seguridade social que promova um salto de qualidade nas ações já desenvolvidas. Neste trabalho, enunciamos algumas que, sem dúvida, promovem o debate, mas que não consideramos conclusivas e exaustivas.
A rigor, seria necessário avaliar os limites que esta combinação de marcos regulatórios restritivos apresenta no contexto de processos de ajuste estrutural, com ações afirmativas de alto conteúdo igualitário. Uma primeira leitura dos textos legais e das políticas de igualdade daria uma resposta positiva. No entanto, os indicadores de discriminação ocupacional, salarial e de diversas formas de segregação – combinadas com a precarização e a baixa ou nenhuma cobertura de seguridade social e de contingências em geral – anulam os êxitos supostamente alcançados.
Deixamos aqui uma recomendação específica. Não se trata de incluir e incorporar mais direitos, e sim de revisar os direitos já estabelecidos e reconhecidos nos instrumentos internacionais e na legislação interna, e verificar se atendem os padrões mínimos em matéria de direitos sociais.32
Por essa razão, seria importante revisar muitas das normas sancionadas ou direitos associados e verificar se cumprem os requisitos estabelecidos. Este tipo de controle de legalidade é importante para fiscalizar diversas políticas (nem sempre legítimas), programas e ações que concedem direitos. De forma inversa, a obrigação de garantir níveis essenciais de direitos obriga o Estado a não afetar este conteúdo mínimo ao restringi-los, considerando que toda restrição aos direitos econômicos, sociais e culturais deve ser submetida ao controle da afetação ou não do conteúdo essencial do direito regulado.33
Finalmente, e não menos importante, é fundamental debater sobre os mecanismos de inclusão – e não só de regulação – do grande contingente de trabalhadores informais existentes na América Latina. Enquanto não lhes outorgarmos os mesmos direitos e obrigações que têm os trabalhadores formais, os princípios de igualdade de tratamento e de oportunidades para homens e mulheres não serão princípios operativos.
Em conseqüência, é o Estado em todas as suas dimensões quem deve liderar o processo de mudanças, a partir da obrigação assumida nos instrumentos internacionais, tanto de direitos humanos, como os específicos, em matéria de direitos sociais, reafirmando a busca da eqüidade.
Só quando conseguirmos projetar sistemas integrados, caminharemos em direção à implementação do princípio da igualdade de oportunidades e à possibilidade de reverter, por meio de ações afirmativas, a seguridade social em vetor de integração. É preciso ainda que esses sistemas tenham como eixo o emprego e que igualmente considerem as diferenças e situações discriminatórias que persistem.
Em outros termos, não se trata apenas de garantir o emprego e a seguridade social, mas de torná-los acessíveis a todos os membros da sociedade, em igualdade de condições. Dessa forma, conseguiremos uma inclusão social que não contemple só os âmbitos de emprego formal, mas que se dissemine para as demais esferas da vida pública. Trata-se de combinar a cidadania com a efetividade de direitos.
1. R. Castel, La Metamorfosis de la Cuestión Social. Una Crónica del Salariado, Buenos Aires, Paidós, 1997.
2. R. Dworkin, Taking Rights Seriously, London, Duckworth & Co, 1977. Dworkin faz uma distinção entre dar um “tratamento igualitário” às pessoas e “tratar as pessoas como iguais”. O princípio sustenta que as pessoas deveriam ser tratadas “como seres iguais” (isto é, pessoas que têm o mesmo direito moral a adotar livremente um plano de vida e receber o mesmo respeito de seus semelhantes), que lhes permita fazer uso adequado dos recursos à sua disposição e tirar proveito das oportunidades. O direito ao “mesmo tratamento” só pode ser resultado daquele outro princípio.
3. O direito público se refere às relações entre dependências do Estado ou entre este e os indivíduos, enquanto o direito privado regula as relações entre indivíduos. Nesta divisão, as acepções público e privado têm significado diferente ao que lhes é atribuído quando o enfoque é de gênero. Serão utilizadas doravante neste sentido, designando como privado o espaço e as relações do âmbito doméstico e como público o espaço, processos e relações que ocorrem fora dele. L. Pautassi, E. Faur & N. Gherardi, “Legislación Laboral en Seis Países Latinoamericanos. Límites y Omisiones para una Mayor Equidad”,Serie Mujer y Desarrollo, n° 56,Santiago de Chile, CEPAL, 2004.
4. Na maioria dos códigos trabalhistas e regulações específicas da América Latina, a dicotomia foi resolvida priorizando a proteção da maternidade e não a igualdade. Novamente esta opção condiz com os compromissos assumidos pelos Estados nas conferências internacionais, especialmente a CEDAW, os convênios da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e planos nacionais de igualdade de oportunidades, ao mesmo tempo que significa reconhecer as limitações impostas pela natureza do discurso normativo. Também incorpora o suposto de que nem toda desigualdade implica discriminação, portanto a garantia da igualdade não deve implicar tratamento igualitário aos que se encontram em circunstâncias distintas.
5. Vide a respeito, L. Pautassi, E. Faur & N. Gherardi, op. cit.
6. Alguns aspectos analisados aqui foram apresentados anteriormente em Laura Pautassi, “¿Bailarinas en la Oscuridad? Seguridad Social en América Latina el Marco de la Equidad de Género”, trabalho apresentado na Trigésima Octava Reunión de la Mesa Directiva de la Conferencia Regional sobre la Mujer de América Latina y el Caribe, Mar del Plata, 7 e 8 de setembro de 2005.
7. Estes princípios estão na legislação interna de cada país da América Latina, no ordenamento jurídico que contém as constituições políticas, códigos de trabalho (quando existem) e outras leis complementares ou disposições regulamentares. Os tratados internacionais de direitos humanos e os convênios da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também exercem uma importante influência sobre esse ordenamento, porque, além de ser de aplicação obrigatória para os tribunais nacionais, orientam algumas diretrizes da legislação interna. Ver Pautassi, Faur & Gherardi, op.cit.
8. Convênios 3, 13, 41, 89, 103 e 127.
9. Convênios 100, 111, 156 e 171. Não obstante, esta evolução não é completamente linear, e durante muitos anos, de 1919 a 1981, diversas formas de abordagem do trabalho feminino, que incluem diversos bens jurídicos tutelados foram superpostos: a mulher como sujeito frágil e carente de proteção especial, a mulher-mãe, a maternidade, a igualdade e, finalmente, a proteção da maternidade/paternidade. Flavia Marco, “Consecuencias Económicas de la Discriminación Laboral por Género”, Tese para obter título de magister em Direito Econômico, Santiago do Chile, Universidad de Chile, Facultad de Derecho, Escuela de Graduados, 1999.
10. Assembléia Geral das Nações Unidas, Convention on the Elimination of all forms of Discrimination against Women (Cedaw), 1979, artigo 1.
11. Ibid., artigo 11.
12. Ibid., artigo 13.
13. Ibid., artigos 11 e 12.
14. Pautassi, Faur y Gheradi, op. cit.
15. Cabe destacar que a taxa de atividade feminina no emprego urbano entre 1990 e 2004 aumentou de 37,9% a 51%. Foi um crescimento significativo, mas manteve distância da atividade masculina, que em 2004 era de 78%. Na América Latina, se situa a maior lacuna entre o desemprego de homens e mulheres: 3,4 % em 2003. Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), “Estadísticas de Género”, Unidad Mujer y Desarrollo, 2006, disponível na internet, no link <www.cepal.org/mulher/proyectos/perfiles/default.htm>, acesso em 16 de janeiro de 2007.
16. Uma análise realizada sobre a estrutura de custos trabalhistas por gênero em cinco países (Argentina, Chile, Brasil, México e Uruguai) prova, de maneira fidedigna, que é um mito considerar que a contratação de mulheres implica maior custo trabalhista. L. Abramo & R. Todazo, Cuestionando un Mito: Costos Laborales de Hombres y Mujeres en América Latina, Organización Internacional del Trabajo, Lima, 2002.
17. Claus Offe agrega que nenhuma dessas questões foi estabelecida de forma simples e inquestionável. A seguridade social tem uma natureza ambígua e “obscura”.Claus Offe, “Un Diseño no Productivista para Políticas Sociales”, in Rubén Lo Vuolo (comp.), Contra la Exclusión. La Propuesta del Ingreso Ciudadano, Buenos Aires, CIEPP/Miño y Dávila, 1995.
18. A inserção “plena” da mulher se dá quando ela usufrui de todos os direitos formais, particularmente os educativos. Não goza desses direitos quem não está inserido no mercado de trabalho formal e não contribui para seguridade social. Nesta situação, há um grande contingente de mulheres denominadas “inativas”, que integram esta categoria pelo simples fato de não terem tido acesso ao mercado de trabalho, precisamente por causa das responsabilidades do trabalho doméstico.
19. Esse discurso foi enfatizado nos últimos anos para evidenciar a necessidade de resolver o problema da recessão econômica como medida preliminar para melhorar a situação no mercado de trabalho. Embora seja evidente que, sem crescimento econômico não há possibilidade de aumentar as oportunidades no mercado de trabalho, o inverso não é necessariamente verdadeiro.
20. Um exemplo paradigmático dessa situação são os numerosos e variados programas sociais focalizados e projetados para “grupos vulneráveis”. Neles, as mulheres surgem como principais sujeitos de vulnerabilidade, são “beneficiárias” ou “destinatárias” de programas específicos, por exemplo, um programa materno-infantil, e não como portadoras de direitos ou titulares de um direito como a saúde, por exemplo.
21. Vide a respeito Carmelo Mesa Lago, “Desarrollo Social, Reforma del Estado y de la Seguridad Social en el Umbral del Siglo XXI”, Serie Políticas Sociales, nº 36, Santiago de Chile, CEPAL, janeiro de 2000.
22. F. Ewald, L’Etat Providence, Paris, Bernard Grasset, 1986, p. 540.
23. Nancy Folbre, The Invisible Heart. Economics and Family Values, New York, The New Press, 2001.
24. Aqui se retoma o tema desenvolvido em Laura Pautassi, “Legislación Previsional y Equidad de Género en América Latina”, Serie Mujer y Desarrollo, n° 42, Santiago de Chile, CEPAL, 2002.
25. Vide a respeito Flavia Marco, Los Sistemas de Pensiones en América Latina, Un Análisis de Género, Santiago de Chile, CEPAL, 2004.
26. Flavia Marco, op. cit.
27. Flavia Marco, op. cit, pp. 33. Baseando-se em evidência empírica das reformas previdenciárias em diferentes países da América Latina, a autora afirma que tanto regimes de capitalização individual como de repartição, os benefícios são distribuídos de forma não-eqüitativa. No entanto, acrescenta que “a seguridade social pode e deve cumprir uma função corretiva das desigualdades sociais. Com este raciocínio, responde-se à questão: as deficiências previdenciárias são ou não atribuíveis ao mercado trabalhista e se este é um dos diversos âmbitos de aplicação das políticas sociais”.
28. Para uma análise da lacuna entre direitos e perspectiva de desenvolvimento, vide Victor Abramovich, “Una Aproximación al Enfoque de Derechos en las Estrategias y Políticas de Desarrollo”, Revista de la CEPAL, n° 88, Santiago de Chile, CEPAL, Abril de 2006.
29. Mario Paganini, Financiamiento de lo Inestable,. Santa Fe, Mimeo, 2002.
30. Cabe destacar que países como a Alemanha incorporaram a contribuição previdenciária compartilhada como direito indisponível desde 1977.
31. Fidel Ferreras Alonso, Adaptar la Seguridad Social a las Nuevas Situaciones Sociales: El Ejemplo de Alemania, Madrid, Mimeo, Junho de 2001.
32. Entre os padrões mais comuns, os reconhecidos como conteúdo mínimo dos direitos estão os de progressividade e não- regressividade; de não-discriminação; de produção de informação e formulação de políticas; de participação dos setores afetados no projeto das políticas públicas e o de acesso à informação. Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS-Argentina), Plan Jefes y Jefas. ¿Derecho Social o Beneficio sin Derechos?, Colección Investigación y Análisis 1, Buenos Aires, CELS, 2004.
33. Abramovich, op. cit.