Ensaios

Expansão e exclusões do Subsídio Universal por Filho na Argentina

Pilar Arcidiácono

O litígio pelo acesso das mães privadas de liberdade

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RESUMO

A justiciabilidade dos direitos sociais é um tema que tem atraído a atenção de juízes, ativistas de direitos humanos e acadêmicos/as. No entanto, o litígio relativo a benefícios sociais não contributivos – sobretudo em relação a transferências de renda a famílias em situação de pobreza ou vulnerabilidade – é muito incipiente.

Na Argentina, essas políticas se intensificaram com o surgimento do Subsídio Universal por Filho, mas há setores que permaneceram excluídos. Este artigo retoma o único caso de litígio coletivo que foi apresentado até o momento, relacionado a mulheres privadas de liberdade que convivem com seus filhos/as menores de quatro anos. Para esse reduzido número de pessoas, as agências governamentais consideraram que suas “necessidades já estavam cobertas” e, portanto, não lhes correspondia acessar esse abono. Diante disso, em 2014, a Procuradoria Penitenciária da Nação impetrou um habeas corpus coletivo na esfera penal para solicitar sua inclusão, obtendo ao final de 2015 uma sentença favorável na Câmara Federal de Recurso Criminal. Quais as razões e pressupostos para justificar a exclusão num cenário de intensificação do benefício? Como as políticas são readequadas com a intervenção dos diferentes poderes? Essas são algumas das questões a serem tratadas neste artigo.

Palavras-Chave

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O surgimento e a expansão do Subsídio Universal por Filho

Os Estados e governos têm um papel central no conflito por distribuição e na produção e reprodução material e simbólica das hierarquias sociais. Um olhar minucioso sobre casos concretos permite identificar diferentes efeitos das políticas, que podem contribuir para a reprodução de desigualdades existentes, para sua redução ou até mesmo para a criação de novas desigualdades e exclusões.

Diante dos altos níveis de pobreza, desemprego e informalidade decorrentes dos processos de “ajuste estrutural” que tiveram seu auge na década de noventa, a resposta política de diversos governos na região foi orientada para a cobertura do risco de famílias não contarem com renda suficiente, especialmente para aquelas não plenamente inseridas no mercado de trabalho, um aspecto fundamental em sociedades de mercado por seu impacto direto na capacidade de consumo e acesso a direitos sociais. Parte desses esforços foi concretizada por meio dos programas de transferências condicionadas de renda, que surgiram num primeiro momento como iniciativas isoladas, mas que, no início do novo século, alcançaram mais de 20 países e 120 milhões de pessoas na região e também se expandiram a outras regiões do mundo com altos níveis de pobreza e desemprego. Esse instrumento foi consolidado como parte do repertório permanente das políticas sociais, sendo que seu objetivo de curto prazo consiste em transferir renda a fim de que as famílias superem a pobreza ou indigência e, no médio prazo, por meio de um conjunto de condicionantes educacionais e de saúde que as famílias devem cumprir para receber o dinheiro, garantir o acesso a serviços de saúde e educação para que as crianças acumulem capital humano.11. Para mais informações, consultar a base de dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) sobre programas de proteção social não contributiva na América Latina e Caribe, disponível em: http://dds.cepal.org/bdptc/programa/.

Em relação ao caso argentino, historicamente o acesso ao bem-estar e aos direitos sociais foi estruturado em torno da combinação de diversos princípios: universal (baseado no princípio de cidadania universal), contributivo (associado ao papel do trabalhador assalariado formal) e outro residual/focado (vinculado a algum critério de merecimento/vulnerabilidade). Desde meados do século 20, o princípio contributivo adquiriu maior relevância, por meio da expansão dos benefícios sociais baseados em relações formais assalariadas, incorporando muitas famílias na seguridade social. No entanto, as transformações estruturais, especialmente aquelas relacionadas ao mercado de trabalho que ocorreram de meados dos anos setenta em diante, aprofundaram-se nos anos noventa e ganharam força ainda maior durante a crise de 2001 e 2002, fazendo com que o eixo contributivo perdesse sua capacidade de cobertura e sua força como princípio assegurador. É por isso que, durante o governo do presidente Nestor Kirchner (2003 e 2007), a intervenção estatal no campo do bem-estar social teve uma abordagem ”trabalhocêntrica”, que implicou a criação de medidas destinadas aos trabalhadores assalariados formais.22. Isto envolveu: a promoção da criação de emprego (público e privado), medidas de reestruturação salarial, aumento de abonos familiares, incentivos para o registo de emprego, suspensão das demissões sem justa causa, modificação da lei de falência e limitação dos poderes do empregador, entre outras medidas. Esse regime representou uma diferenciação política e discursiva em relação ao período anterior de “ajuste estrutural” e à crise de 2001-2. No entanto, mesmo em contextos de recuperação do mercado de trabalho, a informalidade laboral não conseguiu superar a barreira dos 30 pontos, aspecto que se mostra como o desafio urgente das políticas trabalhistas e sociais na Argentina.

Depois de passar por experiências mais ou menos similares aos programas de transferências de renda condicionadas vigentes na região (Plano Chefes de Família (Mulheres e Homens) Desempregados em 2002, Plano para a Inclusão Social de Famílias em 2005), em 2009, durante a presidência de Cristina Fernández de Kirchner, foi criado pelo Decreto nº 1602 o Subsídio Universal por Filho para Proteção Social (Asignación Universal por Hijo, AUH). O AUH representou um salto no campo das políticas sociais com um enfoque de direitos. Não somente em razão da ênfase do discurso como tal, mas porque ele se apresentou como novidade ao ser incluído como um subsistema não contributivo dentro da seguridade social clássica (ou seja, os tradicionais benefícios familiares para trabalhadores formais) e sob a direção da Administração Nacional de Seguridade Social (ANSES). Também se diferencia no que diz respeito aos programas de transferências condicionadas de renda ao contemplar a atualização dos montantes dos benefícios (por diferentes aumentos a cargo do Poder Executivo e, depois, por lei, desde 15 de julho de 2015, quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 27.160 que regulamenta tanto os aumentos de benefícios como as faixas de renda para seu recebimento). Finalmente, o modo de financiamento, em contraste com os programas de transferências condicionadas de renda, não corresponde a um organismo de assistência de crédito, mas é composto por recursos próprios da ANSES.

Essa medida atinge famílias cujos adultos são trabalhadores informais, cuja renda declarada é menor que o salário mínimo e desempregados que não receberam o seguro por tal condição.33. Para mais informação sobre o Subsídio Universal, cfr. Laura Pautassi; Pilar Arcidiácono e Mora Straschnoy, Asignación Universal por Hijo para Protección Social de la Argentina. Entre la satisfacción de necesidades y el reconocimiento de derechos (Santiago de Chile: Naciones Unidas, CEPAL, 2013). (Serie Políticas Sociales, no. 184). Também alcança filhos/as de trabalhadores domésticos e de trabalhadores temporários registrados no setor agropecuário. O Subsídio Universal por Gravidez para Proteção Social (Asignación Universal por Embarazo, AUE) foi criado em 2011 (Decreto n. 446/11) como parte do subsistema não contributivo criado a partir do AUH. O limite de idade máxima de filhos e filhas para receber o benefício é de18 anos, condição que não se aplica quando se trata de pessoas com deficiência, para as quais não se exige idade determinada. Até o final de 2015, o Subsídio Universal por Filho cobria 3.624.230 crianças e adolescentes menores de 18 anos de idade.

De acordo com dados oficiais da Pesquisa Nacional de Proteção e Seguridade Social do Ministério do Trabalho,44. Ministério do Trabalho, Protección y Seguridad Social en la Argentina. Resultados de la Encuesta Nacional de Protección y Seguridad Social 2011, 1a ed. (Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social, 2014). a partir dessas mudanças no Sistema de Benefícios Familiares (Sistema de Prestaciones Familiares), a Argentina conseguiu cobrir 75 % das crianças menores de 18 anos. Do restante, metade não é coberta por problemas nos procedimentos ou falta de Documento Nacional de Identidade, e os demais pelo próprio recorte normativo dos subsídios familiares e AUH. Um grupo excluído pela legislação é o dos migrantes, porque em termos de nacionalidade, o AUH traz exigências elevadas se comparado com seus antecessores, exigindo que as crianças e os adultos sejam argentinos, naturalizados ou estrangeiros legalmente residentes por um período não inferior a três anos, aspecto assinalado pelo Comitê para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias.55. O Comitê destacou: “Si bien celebra el establecimiento de una asignación universal para los hijos de familias pobres en virtud del Decreto Nº 1602/2009, el Comité observa con inquietud que, para que las familias migrantes puedan acogerse a esa prestación, los padres y el niño deben haber residido legalmente en el Estado parte al menos tres años, salvo que el niño sea argentino, en cuyo caso el requisito de residencia sigue siendo aplicable a los padres, que deben demostrar la legalidad de su residencia presentando su documento nacional identidad (DNI) para extranjeros”, Nações Unidas, Observaciones finales del Comité de Protección de los Derechos de Todos los Trabajadores Migratorios y de sus Familiares (Argentina: CMW/C/ARG/CO/1, 23 de setembro de 2011), 6. Isso representa uma dissociação em relação às próprias mudanças normativas em matéria de direitos dos migrantes que ocorreram na Argentina nos últimos anos.

Até aqui, poderíamos entender essas exclusões normativas como parte do recorte da política. Continuamos a examinar outro tipo de exclusões que culminaram em processos judiciais.

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O merecimento em sua expressão máxima: o litígio sobre a exclusão das mães privadas de liberdade

Há um grupo que, sem dúvida, é quantitativamente irrelevante, mas que merece uma atenção especial, não só porque passa por uma situação de extrema vulnerabilidade, mas pelo fato de que não está excluído pela legislação que deu origem ao AUH, porém por decisões arbitrárias posteriores. Trata-se das mães que vivem com seus filhos menores de quatro anos em contextos de encarceramento. Juntamente com a exclusão das pessoas migrantes, a problemática da população privada de liberdade foi destacada pelo Comitê Econômico, Social e Cultural das Nações Unidas.66. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Naçõs Unidas, em sua observação 20, destacou sua preocupação a respeito da situação em relação a AUH, não somente dos migrantes, mas também das pessoas privadas de liberdade e mais em geral das pessoas em situação desfavorecida: “Preocupa al Comité que los requisitos para recibir la Asignación Universal por Hijo, establecida por ley, en la práctica excluyan a ciertos grupos, como los migrantes y sus hijos, del derecho a recibir esa prestación. El Comité insta al Estado parte a que considere la posibilidad de adoptar todas las medidas que sean necesarias para ofrecer la cobertura de la Asignación Universal por Hijo sin restricciones, especialmente en el caso de grupos de personas marginadas y desfavorecidas, como los hijos de los trabajadores migratorios en situación irregular y los hijos de las personas privadas de libertad”, Nações Unidas, Conselho Econômico e Social, Observaciones finales del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (Argentina: E/C.12/ARG/CO/3, 14 de diciembre de 2011), 6.

Embora ultrapasse o escopo deste artigo, as pessoas privadas de liberdade em geral lidam com as mais variadas dificuldades para acessar os benefícios de seguridade social (benefícios, seguros por riscos de trabalho, assistência social, aposentadoria e pensão),77. Para mais informação, ver Sebastián Tedeschi “Los derechos sociales de las personas privadas de libertad y el sistema penitenciario”, Em Mariano Gutiérrez, Lápices o rejas (Buenos Aires, Del Puerto: 2012). apesar de trabalharem em contextos de encarceramento, aspecto que foi recentemente abordado pelos tribunais.88. Para una discussão sobre este tema, tanto sob aspecto normativo como judicial, cfr Elsa Porta, El trabajo en contexto de encierro (Buenos Aires: 2016), Ediar.

Em relação ao componente dos subsídios familiares tradicionais, embora a ANSES tenha alertado repetidamente que essas transferências devam ser recebidas por pessoas privadas de liberdade, isso não se concretizou até o momento. O trabalho em contextos de encarceramento é canalizado através da Agência de Cooperação Técnica do Serviço Penitenciário Federal (ENCOPE), organismo descentralizado do Serviço Penitenciário Federal. A agência atualmente mantém o critério de que a legislação vigente não contempla a possibilidade de que as pessoas privadas de liberdade recebam subsídios familiares e, de fato, atualmente estão excluídas, mesmo nos casos em que não existe uma condenação final, em que não perderam o poder familiar sobre seus/suas filhos/as.99. Para um detalhamento sobre a questão dos subsídios familiares em contextos de encarceramento, cfr. Rodrigo Borda, El régimen de asignaciones familiares y la situación de las personas privadas de su libertad. ¿La cárcel es un límite infranqueable para los derechos (sociales)? Em Revista de Derecho Penal y Procesal Penal Nº 4, año 2014, (Buenos Aires, Abeledo Perrot: 2014). Paradoxalmente, a opinião da ANSES nesse aspecto deveria ser decisiva, por ser a autoridade de execução do regime de benefícios.

No caso específico do Subsídio Universal por Filho (AUH), chama a atenção que, expressamente através do artigo 17 da Resolução 393/09 da ANSES, fica estabelecida a possibilidade de exigir o benefício através da figura de um procurador nos casos em que a pessoa privada de liberdade não exerça poder familiar (por ter uma condenação final). No entanto, as mulheres privadas de liberdade que passam por uma gestação ou, como o sistema penal permite, optaram por permanecerem com seus filhos e filhas menores de quatro anos não conseguiram acessar nenhum benefício. A Procuradoria Penitenciária da Nação solicitou esclarecimentos ao Serviço Jurídico da ANSES, que, por meio do Parecer 46.205, afirma que

“através do Serviço Penitenciário é fornecido para a mãe todo o necessário para a assistência e o cuidado de sua criança (artigo 195 da lei 24.660) (…) Dessa forma, este Departamento [de Subsídios Familiares e Desemprego], (…), conclui que não corresponde pagar aos pais, tutores e curadores nomeados o Subsídio Universal por Filho”.

A verdade é que, através de uma norma de hierarquia inferior (parecer da ANSES) foram introduzidos critérios ad hoc para justificar uma exclusão para mães e crianças que passam por uma situação especial de vulnerabilidade. Nesse caso, as mães não apenas exercem o poder familiar, como também estão a cargo dos cuidados de seus/suas filhos/as. Convém também recordar que as mães são titulares dos subsídios pela própria normativa que regulamenta esses benefícios na Argentina.

Diante disso, a Procuradoria Penitenciária da Nação interpôs um habeas corpus coletivo no Juizado Federal Criminal e Correcional número 1 de Lomas de Zamora a favor de 31 mulheres privadas de liberdade no Centro Federal de Detenção de Mulheres – unidade 31 de Ezeiza.1010. Para obter uma descrição sobre a causa, ver Procuradoria Penitenciária da Nação, Relatório Anual 2015. A situação dos direitos humanos nas prisões federais na Argentina (pp. 368 a 373) Disponível em: http://www.ppn.gov.ar/sites/default/files/Informe%20Anual%202015_0.pdf. Um grupo de pesquisadores do Grupo de Trabalho Interdisciplinar “Direitos Sociais e Políticas Públicas” (UBA) se apresentou sob a figura de Amicus Curiae1111. O amicus curiae (amigo da corte ou amigo do tribunal) refere-se a manifestações apresentadas por terceiros alheios a um litígio, os quais oferecem voluntariamente sua opinião sobre alguma questão de direito ou outro aspecto relacionado, a fim de colaborar com o tribunal na resolução da causa. Também foram apresentados como amicus o Centro de Estudios Legales y Sociales e a Dra. Elsa Porta (ex-juíza da Câmara Nacional de Recursos do Trabalho). nesse caso. Em 29 de maio de 2015, o Judiciário rejeitou a via do habeas corpus por entender que “não há uma situação que configure um agravamento ilegítimo na forma e condições de detenção das solicitantes que habilite essa via” e apenas indicou ao Serviço Penitenciário tomar conhecimento dessa situação sem avançar mais sobre o ponto. Em 11 de agosto de 2015, a Sala III da Câmara Federal de La Plata, por maioria, confirmou a decisão do juiz de primeira instância.

Entretanto, em 4 de dezembro de 2015, a Sala IV da Câmara Federal de Cassação Penal julgou a ação, e o voto majoritário dos magistrados Gustavo Hornos e Mariano Borinsky, após argumentar a favor da pertinência do habeas corpus coletivo como mecanismo processual para discutir o problema denunciado, destacou que as mulheres privadas de sua liberdade são sujeitos do direito à seguridade social, e, como tal, têm direito aos distintos benefícios estabelecidos na Lei 24.714 (AUH ou subsídios familiares). Em especial, enfatizou que, quando o legislador quis excluir alguma situação das previsões do regime de subsídios familiares, o fez e que, por tal razão, onde a lei não distingue, não cabe distinguir. No que se refere à situação em particular das mulheres mães detidas que trabalham na prisão, os juízes Hornos e Borinsky ressaltaram que, desde que realizem as contribuições correspondentes, como qualquer trabalhador formal, elas estão incluídas no regime de Subsídios Familiares. No acórdão de cassação foi destacado que “a concessão do subsídio demandado contribuirá diretamente para melhorar as condições das crianças alojadas na unidade penitenciária, em evidente resguardo e proteção de seu interesse”. Posteriormente, a ANSES interpôs um recurso federal extraordinário, o qual foi declarado inadmissível pela mesma Sala da Câmara de Cassação Penal em 14 de julho de 2016. A partir dessa decisão, a ANSES apelou via reclamação perante a Corte Suprema de Justiça da Nação, a qual até o momento não foi julgada, mas que processualmente não suspende a execução da sentença. À época de finalização deste artigo, várias agências do Estado estavam trabalhando para realizar o pagamento dos benefícios. Daqui para frente, resta conhecer suas possíveis implicações posteriores no que diz respeito aos subsídios familiares (contributivos e não contributivos) da população privada de liberdade.

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Reflexões finais

Em termos de política pública, o montante relacionado à demanda (31 mulheres) permite vislumbrar que não cabem argumentos orçamentários (tão frequentes no campo da justiciabilidade dos direitos sociais). Em um contexto de judicialização das questões sociais, a própria dinâmica da burocracia que resolve essa demanda administrativa e judicialmente, a qual chegou até a última instância penal, consome sem dúvida maiores recursos do Estado do que o reconhecimento do direito demandado por uma população tão limitada em termos quantitativos.

A leitura aqui proposta sugere que esse tipo de exclusão (para além das condições históricas de discriminação contra esses grupos) deve ser compreendido num contexto argentino atravessado por políticas sociais que primam pela força simbólica e institucional do sistema clássico de seguridade social organizado a partir da relação salarial formal. O próprio arranjo institucional proposto pelo AUH habilita distinções para manter a separação entre os empregados formais (aos quais se somam, dentro desse universo de classificação, outras distinções como penais e também migratórias) e o resto dos trabalhadores.

Em geral, no campo das políticas sociais não contributivas, há mais margem do que em outros setores para definições e redefinições (normativas e não normativas) sobre os critérios de acesso (que começam a ser questionados perante o poder judicial)1212. O antecedentes mais importante foram aqueles relacionados a exclusões pelo encerramento repentino do Plano Chefias de Família (Mulheres e Homens) Desempregados (em 2002), quando 195 amparos individuais foram interpostos e chegaram na Câmara Federal de Apelações da Seguridade Social para ter acesso à política pela via judicial. Além disso, a exclusão de migrantes das pensões não contributivas chamou a atenção de vários tribunais, inclusive da Corte Suprema de Justiça da Nação, que se pronunciou sobre a inconstitucionalidade desses elevados requisitos no caso “Daniela Reyes Aguilera. c/ Estado Nacional” (CSJN, 04/09/2007). Atualmente estão litigando sobre os efeitos coletivo deste caso. por parte das burocracias.

Sem dúvida, esses critérios são atravessados por dimensões morais, por exemplo, sobre o que seriam (ou não), as “necessidades cobertas” para o caso de mães privadas de liberdade. Na verdade, a partir da opinião da ANSES, ressurge uma discussão clássica no campo das políticas sociais sobre as “necessidades cobertas (ou não)” que permitem (ou não) o acesso a uma política. Isso ressurge no aspecto probatório, quando o próprio poder judiciário (Tribunal Federal de Lomas de Zamora) pediu às “cantinas”, onde eram vendidas mercadorias, uma lista detalhada sobre o tipo de consumo das mulheres envolvidas na causa. Em outras palavras, em consonância com o que destaca a sociologia moral do dinheiro, é evidenciado que o dinheiro que não se origina pela via do trabalho é visto como “dinheiro doado”, o que autoriza julgar moralmente, classificar e “avaliar” os destinatários.1313. Um desenvolvimento a partir desta perspectiva pode ser encontrado no trabalho de Ariel Wilkis, La sospechas del dinero. Moral y economía en la vida popular (Buenos Aires: Paidós, 2013).

Vale notar que o argumento que permitiu a exclusão das mulheres privadas de liberdade por terem “necessidades cobertas na prisão” salienta certos princípios do AUH. Por sua própria concepção, o AUH distanciou-se das transferências monetárias que só permitiam gastar em alguns produtos através de cartões, bilhetes ou planos que distribuíam alimentos. O AUH coloca nas mãos das famílias – e em especial das mães – a possibilidade de decidir quais os bens necessários para cada uma das famílias, assim como decidir sobre sua eventual “economia”.1414. Há uma controvérsia em torno do eixo titularidade feminina / exigência de condicionalidades que excede aos propósitos deste trabalho. Em breve resumo, uma posição sustenta que a partir dessas medidas o Estado reforça o papel de "mulher cuidadora" ao ponto de suspender o benefício, se ela não cumpre esse papel. Desta forma, as mulheres são inseridas na seguridade social como mães, na linha do que se denomina maternalismo social. Outra posição considera que tais medidas podem reforçar a autonomia no sentido político (algumas mulheres estabelecem pela primeira vez um vínculo com o Estado, ainda que seja por direito derivado), autonomia física (por exemplo, sair de situações de violência embora não haja nenhuma evidência empírica na Argentina sobre isso) e a autonomia econômica das mulheres para administração do dinheiro e tomada de decisões intrafamiliares. Para mais informações, ver: Corina Rodríguez Enríquez, “Programas de transferencias condicionadas de ingreso e igualdad de género ¿Por dónde anda América Latina?”, Série Mujer y Desarrollo CEPAL, Nº 109, (Santiago de Chile, 2011).

Como em toda análise de política pública, a busca de coerência e racionalidade lineares não se mostra pertinente. O AUH é mais um exemplo de uma política em que são cristalizadas diferentes concepções que coexistem com maior ou menor nível de tensão e que predominam de acordo com a dimensão em questão, a fase analisada ou os atores envolvidos: tanto na extensão da cobertura (3,6 milhões de beneficiários), seu registro como parte da seguridade social não contributiva, o acesso a novos beneficiários e o aumento do valor, que a partir de 2015, foi estabelecido por lei, como no conjunto da população que ainda não acessa a política, cujo acesso começou a se resolver nos tribunais (como a população privada de liberdade).

Pilar Arcidiácono - Argentina

Graduada em Ciências Políticas, mestre em Políticas Sociais e doutora em Ciências Sociais (Universidade de Buenos Aires - UBA). Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET). Professora de graduação e pós-graduação na Universidade de Buenos Aires. Ex-diretora da Área de Direitos Sociais do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS).

Recebido em janeiro de 2016.

Original em Espanhol. Traduzido por Akemi Akemi Kamimura.