O difícil rompimento com o legado da ditadura no Brasil
Este artigo reconstitui e analisa o processo de acerto de contas desenvolvido pelo Estado brasileiro junto às vítimas da ditadura e a sociedade. Começa recordando a natureza e a forma de repressão utilizada pelo regime militar (1964-1985), faz uma breve caracterização da ditadura propriamente dita e do processo de redemocratização e trata dos mecanismos de justiça de transição adotados pelo Brasil. Como a ênfase, no país, foi dada ao esforço reparatório, trata das indenizações pagas pelas duas comissões administrativas criadas com essa finalidade. Também analisa o que foi feito e o que ainda falta fazer em relação aos deveres de verdade e justiça e no que diz respeito à reforma das instituições.
Assim como outros países da região, na segunda metade do século passado o Brasil também foi governado por militares que usurparam o poder e operavam dentro de uma estrutura ideológica compartilhada, da doutrina de “Segurança Nacional”, no cenário internacional da Guerra Fria. Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a “ordem” em seu território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas idéias. Com o objetivo declarado de livrar o país da ameaça comunista e da corrupção, no Brasil a ditadura passou por pelo menos três fases distintas e valeu-se, entre outros expedientes, dos chamados Atos Institucionais (AI) para exercer o poder. Também fez uso dos mais diversos métodos para punir e perseguir aqueles que considerava seus opositores , e de instrumentos excepcionais que reduziram ou suprimiram o direito de defesa dos acusados de crimes cometidos contra a segurança nacional. Entre as penas adotadas com mais freqüência estavam o exílio, a suspensão de direitos políticos, a perda de mandato político ou de cargo público, a demissão ou perda de mandato sindical, a perda de vaga em escola pública ou a expulsão em escola particular e a prisão. Assim como a prática de detenções arbitrárias, também eram constantes o uso da tortura, os seqüestros, estupros e assassinatos. E embora formalmente não pudesse ser considerada punição, na prática a inclusão dos nomes de opositores do regime, nos arquivos dos órgãos da repressão, funcionava como tal (DALLARI, 197?). Havia também a pena de morte. Estabelecida pelo AI-14, oficialmente ela nunca foi utilizada. Para eliminar seus adversários, o governo optou por execuções sumárias ou no decorrer de sessões de torturas, sempre às escuras (FAUSTO, p. 481).
A primeira fase da ditadura brasileira pode ser situada entre o golpe de Estado, quando, em abril de 1964, o autodenominado Comando Supremo da Revolução editou o AI-1 estabelecendo o estado de exceção no país, e a consolidação do regime imposto pelos militares. Baixado pelos comandantes das três Armas, tal ato formalmente manteve, depois de várias modificações, a Constituição de 1946, mas ampliou substantivamente os poderes do Executivo. Ao contrário de outros países da região, o Congresso Nacional seguiu funcionando, ainda que de forma cerceada – o Parlamento tinha, por exemplo, prazos bastante estritos para apreciar os projetos de lei encaminhados pelo presidente da República, que precisava de apenas um mês para aprová-los, em qualquer uma das Casas. O AI-1 suspendeu por seis meses as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, permitindo, assim, “mediante investigação sumária”, que fossem demitidos ou dispensados servidores civis ou militares. Estima-se que inicialmente 10 mil funcionários públicos foram afastados e 5 mil investigações, envolvendo mais de 40 mil pessoas, abertas. Em seu art. 10º, o ato também autorizava a suspensão dos direitos políticos e a cassação de mandato eletivo. No primeiro ciclo punitivo, cuja lista inicial continha uma centena de nomes, entre eles os do ex-presidente João Goulart, e de políticos como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Celso Furtado, foram cassados 2.985 cidadãos brasileiros. Além disso, logo após o golpe, navios foram transformados em presídios, vinte generais e 102 oficiais foram rapidamente transferidos para a reserva, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) foi fechado, todas as demais entidades de coordenação sindical e centenas de sindicatos, colocados sob intervenção, e as Ligas Camponesas foram extintas. Também deixaram de funcionar a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Só nos primeiros meses de arbítrio estima-se que 50 mil pessoas tenham sido detidas. Com o AI-2 as eleições presidenciais passaram a ser indiretas, extinguiram-se os partidos políticos e foram punidas outras 305 pessoas. Na terceira onda repressiva, 1.583 cidadãos perderam seus direitos políticos ( ARNS, 1985, p. 61-68; MARTINS, 1978, p. 119-122, 127; GRECO, 2003, p. 266; BRASIL, 2007a, p. 30. UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES, 1979, p. 3). O AI-3, em fevereiro de 1966, ampliou os poderes das Assembléias Legislativas que, além de nomear os governadores de Estado, também passaram a indicar os prefeitos das capitais e de outras cidades classificadas como de “segurança nacional” (GREEN, 2009, p. 97).
A segunda fase da ditadura teve início em dezembro de 1968, com o AI-5, que concedeu ao Presidente da República poderes para fechar provisoriamente o Congresso Nacional, intervir nos estados e suspender direitos individuais e a garantia ao habeas corpus . No chamado “golpe dentro do golpe”, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda chegaram a ser detidos e foram cassados os direitos políticos não apenas de integrantes do MDB, o partido de oposição ao governo, como da Arena, agremiação que dava sustentação aos militares. Foi o período onde a repressão atingiu seu grau mais elevado, com forte censura à imprensa e ações punitivas em universidades. Enquanto governaram o país, e ao contrário de ditaduras como a chilena, por exemplo, no Brasil os generais se revezaram no cargo de presidente, simulando uma espécie de alternância de poder, em processos sucessórios dos quais participavam apenas seus próprios pares.
Em 1974, com a posse do general Ernesto Geisel, na presidência, começou a terceira fase, que ficaria marcada pela lenta abertura política que se estenderia até o fim do regime de arbítrio ( GREEN, 2009, p. 98, 142, 184 ). A partir de 1978, os banimentos políticos começaram a ser revogados e o Ministério das Relações Exteriores passou a facilitar a concessão de passaportes e títulos de nacionalidade a brasileiros que viviam fora do país por motivos políticos ( SOARES; D’ARAUJO; CASTRO, 1995, p. 308 ). A censura arrefeceu e a comunidade de segurança e informações teve suas atividades limitadas. Depois de dez anos, o AI-5 deixou de vigorar no país.
Marcada pela inexistência de Estado de Direito e, portanto, pelo constante desrespeito a princípios jurídicos fundamentais e pela ampla margem de arbítrio de que dispunham as autoridades policiais, a realidade imposta pela doutrina de “Segurança Nacional” contava com a ajuda da Justiça Militar para manter-se. Como “fundamento legal” para os abusos praticados havia o Código Penal Militar, o Código de Processo Penal Militar e a Lei de Organização Judiciária Militar. Decretados em 1969, “regularizavam” os chamados órgãos de segurança, convertendo-os em autoridade competente para ordenar e executar a prisão de qualquer pessoa, redefiniam os crimes contra a segurança nacional e atribuíam à Justiça Militar o julgamento de crimes a ela relacionados como, por exemplo, o de assalto a bancos ( BRASIL, 1982, v. 2, p. 524; D’ARAUJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 19 ). Promulgado no mesmo ano, outro instrumento do arbítrio era a Lei de Segurança Nacional (LSN), a aplicação prática dos postulados da doutrina homônima ( INSTITUTO INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS, 1991, p. 44 ). Para controlar e/ou reprimir a sociedade, o governo valia-se do aparato formado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), dos Centros de Informação do Exército (CIEX), Marinha (CENIMAR) e Aeronáutica (CISA) e dos Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Em São Paulo, vinculada ao II Exército, para atuar na repressão havia ainda a Operação Bandeirantes (OBAN). Para enfrentar o jugo militar, com o recrudescimento da ditadura algumas organizações de esquerda optaram pela luta armada ( BRASIL, 2007a, p. 24 ).
Durante todo o regime, calcula-se que dez mil cidadãos brasileiros deixaram o país para viver no exílio – pelo menos 130 foram banidos. Até o ano de 1979, dados do projeto Brasil: nunca mais indicam que 7.367 pessoas foram acusadas judicialmente e 10.034 atingidas na fase de inquérito, 6.592 militares foram punidos e pelo menos 245 estudantes foram expulsos das universidades em que estudavam ( ARNS, 1985, p. 61-68; MARTINS, 1978, p. 119-122, 127; GRECO, 2003, p. 266; BRASIL, 2007a, p. 30 ). Os sucessivos atos institucionais e as disseminadas perseguições levaram a União dos Estudantes do Estado de São Paulo a estimar, no final dos anos 70, em mais de meio milhão o número de pessoas presas, banidas, exiladas, cassadas, aposentadas, processadas ou indiciadas pelo arbítrio (UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES, 1979, p. 3). No livro Liberdade para os brasileiros: anistia ontem e hoje, publicado em 1978, Roberto Ribeiro Martins foi mais longe. Calculou em mais de um milhão o número de brasileiros que necessitavam diretamente de anistia. “O que vale dizer, em cada cem brasileiros pelo menos um precisa de anistia”, escreveu, na época (MARTINS, 1978, p. 152).
Diferentemente do observado em outros países da região, no Brasil a anistia aos perseguidos políticos não foi apenas bastante desejada, como constantemente reivindicada, desde o início da ditadura. Na realidade, uma verdadeira luta por anistia começou a ser travada quinze anos antes da promulgação da lei, por uns poucos expoentes do meio político e intelectual, e teve uma trajetória ascendente dentro da sociedade, ao final envolvendo boa parte dos brasileiros. No final da década de 70, nas ruas e nos campos de futebol, por exemplo, era possível ver cartazes e faixas defendendo a adoção do expediente. Carros também exibiam adesivos plásticos nos vidros, panfletos eram distribuídos nas esquinas e comícios buscavam sensibilizar a opinião pública a respeito do assunto. Reclamada em um contexto de retomada da democracia, da volta do Estado de Direito e de reconhecimento e defesa dos direitos humanos, a luta por anistia contou com o apoio de personalidades e grupos internacionais, mas essa pressão externa, exercida junto ao governo, não repercutiu da forma esperada, embora tenha conseguido resultados expressivos na divulgação internacional dos horrores do arbítrio.
Assim, foi em um contexto de abertura política, quando já pesava sobre o Estado brasileiro a responsabilização pela morte, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog, e o pluripartidarismo interessava ao regime militar, que o governo começou efetivamente a pensar em anistia. Em junho de 1979 um projeto de lei, nesse sentido, foi enviado ao Congresso pelo então presidente da República, general João Baptista Figueiredo. Durante sua tramitação no Parlamento praticamente não houve troca de idéias com a sociedade, tampouco com os potenciais beneficiários da legislação, embora os Comitês Brasileiros de Anistia estivessem mobilizados pelo fim das torturas e a elucidação dos casos de desaparecimento e não admitissem a hipótese de que a lei pudesse beneficiar os “algozes” das vítimas do regime.
Aprovada em agosto de 1979, a Lei n. 6.683, ou Lei da Anistia1, ficou longe de associar-se aos objetivos que envolviam seu movimento reivindicatório e sequer atendeu as principais reclamações dos perseguidos políticos. Foram excluídas do escopo da legislação determinadas manifestações de oposição ao regime, classificadas como terrorismo e práticas enquadradas em atos de exceção, como os crimes de sangue, e contemplados apenas aqueles indivíduos que não haviam sido condenados previamente pela ditadura, que ainda duraria mais quase seis anos. Ou seja,
embora de grande significado no processo de democratização do país, a lei 6.683 se deu basicamente nos termos que o governo queria, mostrou-se mais eficaz aos integrantes do aparato de repressão do que aos perseguidos políticos e não foi capaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o golpe de 1964. Em outras palavras, a Lei da Anistia ficou restrita aos limites estabelecidos pelo regime militar e às circunstâncias de sua época. […]. Dessa forma, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a idéia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime democrático
(MEZAROBBA, 2006, p. 146-147).
A despeito da intenção dos militares, de encerrar a questão em torno das violações de direitos humanos do período, começava, assim, de maneira bastante peculiar, o processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura e a sociedade. Como a Lei da Anistia não foi capaz de atender as principais reivindicações dos perseguidos políticos e dos familiares das vítimas fatais do regime (o art. 6 da lei, por exemplo, permitia apenas que o cônjuge, um parente ou o Ministério Público requeressem uma declaração de ausência da pessoa que, envolvida em atividades políticas, estivesse desaparecida de seu domicílio, sem dar notícias há mais de um ano, considerando-se a data de vigência da própria lei), o tema naturalmente continuou em aberto durante todo o período de distensão.
No Brasil, como se sabe, a transição democrática levou anos, foi negociada desde o início e definida em uma espécie de “acordo” entre as elites, que
[…] pode ser resumido como um compromisso dos militares de se retirarem gradualmente da política, retraindo-se até o ponto de seu papel político do início da República: a de garantidores, em última instância, da ordem pública, ou seja, da estabilidade das instituições políticas republicanas. Por sua vez, as elites civis aceitariam os termos da avaliação feita pelos militares a respeito do período pós-64: tratou-se de um período excepcional, em que os militares intervieram na política para “salvar” as instituições republicanas, no qual houve ações “excessivas” cometidas de parte a parte (leia-se dos militares e dos militantes de esquerda). Para o encerramento desse período, deveria haver o “perdão recíproco”, sem a apuração das violações, nem mesmo com o objetivo humanitário de fornecer às vítimas e seus familiares relatos para que pudessem conhecer e elaborar a memória daqueles acontecimentos ou para recuperar os corpos das pessoas mortas ou desaparecidas. Esse limite tinha o evidente objetivo de evitar que fossem levantadas informações sobre os agentes das violações […]
(IBCCRIM; SABADELL; ESPINOZA MAVILLA, 2003, p. 108-109).
Além disso, os militares deixaram o poder sem a realização de eleições diretas para presidente, o que não contribuiu para o debate em torno do tratamento a ser dado ao legado de violações em massa de direitos humanos, acumulado ao longo dos 21 anos de duração da ditadura. Como se isso não bastasse, Tancredo Neves, o civil que deveria suceder ao general Figueiredo, escolhido indiretamente pelo Colégio Eleitoral, morreu antes de tomar posse no cargo de presidente da República. Coube a seu vice, o senador José Sarney, da Arena, partido de sustentação da ditadura militar, assumir o poder, em 1985.
De acordo com Sarney, a questão das vítimas da ditadura preocupava Tancredo Neves: “[…] mas, com certeza (ele) não teria como se comprometer com posições mais radicais quanto ao tema. Ele temia muito um retrocesso.” Segundo o ex-presidente, que ficou no cargo entre 1985 e 1990, apesar de ser “um homem de entendimento, de conciliação”, Tancredo Neves sabia da “delicadeza da situação e de suas responsabilidades” e conhecia as resistências da chamada “linha dura” do regime:
Sabia que deveria fazer a transição com os militares e não contra eles. Se fizesse “compromissos” mais enfáticos quanto ao tema das vítimas do regime, poderia comprometer todo o processo. Para ilustrar esse sentimento, é bom não se esquecer que ele temia até mesmo a convocação da Constituinte e a legalização dos partidos clandestinos. Não estava nos planos dele. Como eu não estava amarrado às complexas negociações e aos compromissos que Tancredo teve que fazer com a área militar, ao assumir a Presidência eu pude legalizar o PC do B e convocar a Constituinte. Pude concluir a anistia, libertando os últimos presos políticos, medida que beneficiou, por exemplo, os penalizados da Petrobras. É claro que houve resistência dos militares. 2
Sarney diz que a questão envolvendo a localização dos corpos das vítimas fatais da ditadura não avançou em seu governo porque aquele “não era um assunto da agenda política”. “Por outro lado, seria muito imprudente naquele momento. A Lei de Anistia, como foi negociada e aprovada, foi a possível naquele contexto. Sem ela, poderíamos ter tomado outros rumos mais conflituosos.” 3 Tem-se claro, portanto, que a transição brasileira foi promovida de modo a evitar que o que hoje se convencionou designar de mecanismos de justiça de transição pudessem ser adotados no início da gestão civil.
Não foram poucos os esforços no sentido de ampliar a Lei da Anistia, inclusive durante o regime militar, mas os primeiros avanços no processo de acerto de contas só começaram a acontecer à medida que os militares foram perdendo poder e simultaneamente ao fortalecimento da democracia e a incorporação da temática dos direitos humanos na agenda nacional. Foi dessa forma que, em dezembro 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ele próprio um anistiado político, sancionou a Lei n. 9.140 ou Lei dos Desaparecidos 4, reconhecendo como mortos 136 desaparecidos políticos cujos nomes estavam relacionados em seu anexo I. No Brasil, havia registro de casos de desaparecimento desde 1964, mas a prática só se tornaria emblemática do período de terror cinco anos depois, em setembro de 1969, com a prisão de Virgílio Gomes da Silva, um militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) que sumiu depois de ter sido levado, algemado e encapuzado, à sede da Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo ( MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 38-39 ). Com a aprovação da Lei n. 9.140 foi a primeira vez, no Brasil, que se admitiu, independentemente de sentença judicial, a responsabilidade objetiva do Estado pela atuação ilícita de seus agentes de segurança. Embora a Lei dos Desaparecidos enuncie que a aplicação de suas disposições e todos os seus efeitos serão orientados pelo princípio de reconciliação e pacificação nacional expressos na Lei da Anistia, com esse ato legal, como observam Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade geral pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar, como seqüestros, prisões, torturas, desaparecimentos forçados e assassinatos, inclusive contra estrangeiros que residiam no país (da lista, constam os nomes de quatro desaparecidos políticos que não são brasileiros). A partir daí, os familiares passaram a ter o direito de requerer os atestados de óbito dos desaparecidos e a receber indenizações. Com a entrada em vigor da lei, uma comissão também foi criada para analisar as denúncias de outras mortes, ocorridas por motivação política e envolvendo causas não naturais, “em dependências policiais ou assemelhadas”.
Apesar de reconhecer a importância da iniciativa do governo, em elaborar um projeto de lei para tratar da questão dos mortos e desaparecidos políticos, os familiares das vítimas fatais do regime militar não conseguiram validá-la na íntegra, entre outros motivos, pelo fato de a iniciativa desobrigar o Estado de identificar e responsabilizar os que estiveram diretamente envolvidos na prática de tortura, com as mortes e desaparecimentos, e pelo ônus da prova ter sido deixado aos próprios parentes. Os familiares também não concordaram com a argumentação do governo, de atribuir aos limites impostos pela Lei da Anistia, a impossibilidade de se examinar as circunstâncias das mortes. E questionavam a exigência de apresentação do requerimento de reconhecimento da responsabilidade do Estado exclusivamente por eles mesmos, limitando a questão à esfera doméstica, e não como um direito da sociedade. Durante toda a ditadura, e depois, na redemocratização, familiares de mortos e desaparecidos políticos seguiram lutando para que houvesse justiça, mas suas demandas pautavam-se principalmente pelo conhecimento da verdade (a revelação das condições em torno dos crimes), a apuração das responsabilidades dos envolvidos e a localização e identificação dos despojos das vítimas. O pagamento de reparações jamais figurou entre as prioridades reivindicadas. Mesmo assim, ao término de onze anos de atividades, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) havia desembolsado cerca de 40 milhões de reais aos familiares de mais de três centenas de vítimas fatais do regime militar – 475 casos passaram pela comissão; o valor médio de cada indenização foi de 120 mil reais (cerca de 120 mil dólares em valores da época da aprovação da lei).
Além do pagamento de indenizações, com a finalidade de constituir um banco de dados de perfis genéticos, capaz de assegurar a certeza científica na identificação de ossadas já separadas para exames e em despojos que eventualmente venham a ser localizados, em setembro de 2006 a CEMDP iniciou a coleta de amostras de sangue de familiares de mais de uma centena de vítimas fatais do período. Ainda são mais de 140 os desaparecidos políticos da ditadura brasileira. A comissão também segue trabalhando na sistematização de informações sobre a possível localização de covas clandestinas em grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento de militantes, na zona rural, sobretudo na região do rio Araguaia.
Ao contrário dos familiares das vítimas fatais do regime militar, os perseguidos políticos sempre estiveram às voltas com o aspecto financeiro da questão. Embora a Lei da Anistia previsse, em seu art. 2, que “os servidores civis e militares demitidos, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados” poderiam requerer o retorno ou reversão ao serviço antigo, na prática não foi exatamente isso que aconteceu, com a entrada em vigor da legislação. Depois de solicitar a anistia, os perseguidos tinham de pedir reversão ao serviço ativo e submeter-se a análise médica (que precisava ser compatível com o último exame da época anterior à punição). Para que fossem eventualmente reconduzidos aos seus cargos, não bastava existir vaga. Era preciso que houvesse interesse público na reintegração do perseguido político anistiado. Provavelmente vislumbrando as dificuldades que se avizinhavam, antes mesmo da aprovação da lei já era possível observar certa preocupação com os direitos usurpados dessas vítimas, especialmente nas propostas enviadas ao Congresso Nacional, sobretudo aquelas que tratavam de casos envolvendo servidores civis e militares que haviam perdido seus postos de trabalho. Enquanto esteve tramitando, o próprio projeto de anistia do governo recebeu inúmeras propostas de emendas concedendo algum tipo de indenização aos perseguidos políticos. Nenhum delas prosperou. Ao ser sancionada em 1979, a Lei da Anistia vetou qualquer possibilidade de reparação. Em seu art. 11, talvez o formulado com mais clareza entre todos aqueles que integram a Lei n. 6.683, a proibição é explícita: “Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos.”
Depois de anos envolvidos com portarias e circulares que, de forma pouco sistematizada, regulavam seus vencimentos, foi só com a entrada em vigor da Lei n. 8.213, em julho de 1991, que os anistiados passaram a ter direito a uma aposentadoria excepcional. Na ocasião, não eram poucos os processos que aguardavam, nos tribunais, a concessão da anistia negada pela administração pública. A situação ainda iria piorar antes de o terceiro momento do processo de acerto de contas, entre o Estado e as vítimas do regime militar, começar a ser definido. Foi só em 1996, um ano depois de promulgada a Lei dos Desaparecidos, que ex-perseguidos políticos, reunidos em distintas entidades, de todas as regiões do país, decidiram unificar o discurso. Passados cinco anos de trabalho ordenado, em 2001 eles conseguiram que o governo Fernando Henrique Cardoso enviasse ao Congresso Nacional medida provisória para reduzir as perdas dos que foram impedidos de exercer suas atividades por causa da perseguição política sofrida durante o arbítrio. A entrada em vigor da Lei n. 10.559 5 e a instalação da Comissão de Anistia, no Ministério da Justiça, conseguiram, mais uma vez, ampliar o processo de acerto de contas – com a capacidade de o Estado em reparar economicamente ex-perseguidos políticos que a Lei n. 6.683 não havia conseguido reabilitar, compensando os danos causados a milhares de pessoas pelo uso discricionário do poder, embora isso não tenha necessariamente relação com o sofrimento vivido pela vítima.
Organizada em cinco capítulos, na lei (que foi considerada bastante satisfatória pelos perseguidos políticos) estão assegurados os seguintes direitos do anistiado: à declaração da condição de anistiado político; à reparação econômica; a contagem, para todos os efeitos, do tempo em que foi obrigado a afastar-se de suas atividades profissionais, devido a punição ou ameaça de punição; à conclusão de curso interrompido por punição ou ao registro de diploma obtido em instituição de ensino fora do país e o direito à reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos. Em seu parágrafo único, a legislação garante aos que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e fundamentos da decisão, a reintegração aos seus cargos (devido à idade dos requerentes, na prática essa reintegração tem ocorrido na inatividade). A lei também explicita de forma minuciosa todos os tipos de punição que permitem às vítimas o reconhecimento da condição de anistiado político e diz que a reparação econômica, prevista em seu capítulo III, pode se dar de duas formas distintas: em prestação única, que consiste no pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição aos que não têm como provar vínculos com a atividade laboral e cujo valor, em nenhuma hipótese pode exceder cem mil reais; e em prestação mensal, permanente e continuada, garantida a aqueles que conseguirem demonstrar seus vínculos de trabalho. De acordo com a lei, todo perseguido político tem direito a receber os valores atrasados até cinco anos antes da data em que ingressou com o requerimento solicitando a anistia.
Desde que começou a funcionar, em Brasília, a Comissão de Anistia, destinada a analisar os pedidos de anistia política e de indenização, formulados por aqueles que foram impedidos de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política, recebeu mais de 80 mil requerimentos. Dados de janeiro de 2011 indicam que a comissão já julgou 66.400 processos. Dentro desse universo, deferiu mais de 35 mil e indeferiu o restante. Entre os pedidos deferidos, mais da metade foram concedidos sem nenhum tipo de reparação econômica ( BRASIL, 2009a ). Balanço realizado no primeiro semestre de 2010, indicava que o governo desembolsou R$ 2,4 bilhões no pagamento de reparações a essas vítimas – em alguns casos, a reparação de um único perseguido político ultrapassa a casa de um milhão de reais (LUIZ, 2011). Em todos os casos despachados favoravelmente, o reconhecimento da condição de “anistiado político” é formalizado da mesma maneira que ocorria durante a ditadura, ou seja, com a publicação do nome de cada “anistiado político” no Diário Oficial da União.
Se a luta por anistia envolveu grande parte da sociedade, não se pode dizer o mesmo das reivindicações em torno das obrigações do Estado democrático e dos direitos das vítimas do regime militar, que não conseguiram mobilizar – e sequer parecem interessar – a maior parte dos brasileiros. Em relação ao principal objetivo almejado pela anistia em 1979, o de esquecimento dos “excessos” cometidos durante o regime militar, a realidade indica que, por motivos distintos, os desdobramentos se deram de forma muito parecida entre aqueles que estiveram diretamente envolvidos na questão:
Permanentemente assombrados pela possibilidade de reconstituição do passado, os militares continuam se mostrando os mais interessados em não lembrar os abusos ocorridos a partir de 1964, evidenciando que ainda hoje não lhes foi possível esquecer. Da mesma forma, a duradoura necessidade de recordar, movida por reivindicações nunca atendidas, verdades desconhecidas e pelo desejo de que aquele sofrimento não mais se repita, tem oposto as vítimas do arbítrio e seus familiares à possibilidade de olvidar. Desprendida do debate segue, alheia, a sociedade. Parece ser a única que, de fato, conseguiu construir o esquecimento
(MEZAROBBA, 2006, p. 150-151).
Assim, mantido o caráter inicial de conciliação, explícito na Lei da Anistia e reiterado nas duas leis subseqüentes, novos significados políticos foram conferidos ao processo de acerto de contas. Isso fica evidente na observação dos três momentos principais desse processo, orientado basicamente por legislação federal (a Lei da Anistia, de 1979; a Lei dos Desaparecidos, de 1995; e a Lei n. 10.559, de 2002): “De seu caráter inicial de conciliação pragmática, observa-se que anistia viu seu significado evolver para o reconhecimento da responsabilidade do Estado em graves violações de direitos humanos e depois para a reparação econômica das perdas sofridas por ex-perseguidos políticos” ( MEZAROBBA, 2006, p. 150 ). Pelo que foi sintetizado até aqui, tem-se claro, portanto, que o caminho percorrido pelo Estado brasileiro evidencia que o investimento principal foi feito em justiça na esfera administrativa, a partir da criação das duas comissões, e voltado, sobretudo, à compensação financeira. E que as iniciativas tiveram origem no Poder Executivo e se desenvolveram com o apoio do Legislativo. Em relação ao dever de identificar, processar e punir violadores de direitos humanos, muito pouco foi feito até agora, explicitando a quase completa ausência do Judiciário no processo nacional de acerto de contas.
O primeiro caso de que se tem notícia, de aplicação da Lei da Anistia para impedir a punição de um desses criminosos da ditadura, ocorreu em abril de 1980, quando tramitava no Superior Tribunal Militar (STM) um pedido de punição a três torturadores que haviam deixado cego um preso político, quatro anos antes. O pedido foi julgado improcedente, apesar da violência praticada contra o preso ter sido comprovada nos autos e reconhecida na sentença da auditoria militar e do próprio tribunal. Ainda que nenhum perpetrador tenha sido, até hoje, condenado pelos crimes cometidos durante a ditadura, em diversas oportunidades o Estado brasileiro já foi responsabilizado judicialmente pela prisão, tortura, morte ou desaparecimento de perseguidos políticos. A primeira vez foi em 1978, no caso envolvendo a prisão ilegal do jornalista Herzog. Por não zelar por sua integridade física e moral, a União foi condenada a indenizar sua viúva e filhos, pelos danos materiais e morais decorrentes de sua morte. Outras sentenças na mesma linha foram ditadas posteriormente pelo Judiciário. Todas reconhecendo a responsabilidade civil do Estado. Nunca a responsabilidade criminal de seus agentes. Na verdade, os tribunais brasileiros tiveram pouco trabalho envolvendo responsabilidade criminal. Até onde se tem conhecimento, foram raríssimas as ações testando os limites da anistia, encaminhadas ao Judiciário, evidenciando não apenas a pouca crença das vítimas e seus familiares no sistema legal, mas como a noção de esquecimento e impunidade, articulada pelos militares, conseguiu aprisionar os atingidos pela violência do período. Sem dúvida alguma, contribuíram para essa realidade algumas peculiaridades institucionais como o fato de, no Brasil, tortura e homicídio serem considerados crimes de iniciativa pública, cabendo ao Ministério Público a prerrogativa de iniciar tais ações penais.
Em junho de 2008, uma tentativa de punição de crimes da ditadura começou a ser desenvolvida pelo Ministério Público Federal quando um procurador da República da cidade de Uruguaiana, no sul do país, requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar o seqüestro e desaparecimento de um militante de esquerda ítalo-argentino e de um padre argentino, em 1980, na fronteira do Brasil com a Argentina, e o suposto envolvimento de agentes, civis e militares, da ditadura. Os crimes teriam sido cometidos dentro da Operação Condor e há anos vêm sendo investigados pela Justiça italiana, que já indiciou mais de uma dezena de integrantes do aparato repressivo brasileiro e cobra o julgamento dos acusados. O caso segue em andamento. Logo depois, no mês de outubro, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra foi considerado responsável pela prática de seqüestro e tortura durante o regime militar, em uma ação movida por cinco integrantes da família Telles. Foi o primeiro reconhecimento oficial, do Estado brasileiro, de que um militar de alta patente teve participação efetiva em ações de suplício contra civis. Tramitando na esfera cível, a ação, de caráter meramente declaratório, buscava o reconhecimento da ocorrência de tortura e, portanto, da existência de danos morais e à integridade física das vítimas, mas não implica em pena ou indenização pecuniária. A decisão foi dada em primeira instância, e ainda cabem recursos.
Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, a Lei da Anistia terminou os anos 2000 sendo colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) Cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na esfera nacional tudo começou no segundo semestre de 2008, quando a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou um pedido formal, ao Supremo Tribunal Federal, questionando a validade da anistia para os agentes do Estado que, durante a ditadura, violaram direitos humanos. No documento, a entidade pedia ao Supremo uma interpretação mais clara do art. 1º da lei, de forma que a anistia concedida aos autores dos chamados crimes políticos e conexos não se estendesse a agentes públicos acusados de crimes comuns como estupro, desaparecimento forçado e homicídio. Valendo-se de argumentos supostamente históricos, o relator do processo, ministro Eros Grau, alegou que não caberia ao Poder Judiciário rever o acordo político que resultou na anistia. Seis ministros acompanharam seu voto; outros dois se posicionaram contra tal interpretação. A decisão foi duramente criticada por organizações de direitos humanos, dentro e fora do país.
Em março de 2009, foi a vez da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos, apresentar demanda contra o Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso referente à Guerrilha do Araguaia. Desde a ditadura, parentes das vítimas reclamavam acesso aos registros da repressão contra o movimento. Em 1982, vários familiares ingressaram na Justiça com uma ação de responsabilidade contra o Estado brasileiro, para que fossem esclarecidas as circunstâncias em que se deram as mortes desses opositores do regime e localizados seus restos mortais. Esgotados os recursos internos disponíveis, em 2001 familiares decidiram recorrer à CIDH, para onde encaminharam petição. Na demanda, a comissão solicitava à corte que determinasse a responsabilidade internacional do Estado brasileiro, pelo descumprimento de diversas obrigações, dentre elas o direito à integridade pessoal e o direito à vida. Na introdução à demanda, a comissão observava a possibilidade da corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos, no que se refere a graves violações de direitos humanos. No dia 14 de dezembro de 2010 a Corte tornou pública a sentença sobre o caso, declarando o país responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974, na região do rio Araguaia. Com base no direito internacional e em sua própria jurisprudência, a Corte concluiu que as disposições da Lei da Anistia que impediriam a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, não podendo continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Apesar de reconhecer e avaliar positivamente iniciativas e medidas de reparação adotadas pelo Brasil, a Corte determinou, entre outras coisas, que o Estado não apenas revele a verdade acerca dos crimes, mas também investigue penalmente os fatos. 6
Além de não atender a seu dever de justiça, a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro, com as vítimas da ditadura militar, também diz respeito ao dever de revelar a verdade, só recentemente contemplado de maneira mais substantiva, ainda que não plenamente. Como se sabe, no Brasil nunca foi instalada uma comissão de verdade, para tratar das violações de direitos humanos do período. Durante mais de duas décadas, o principal esforço nesse sentido esteve limitado ao desenvolvimento de uma única iniciativa não oficial: o projeto Brasil: nunca mais , levado a termo por um grupo de defensores de direitos humanos, sob a liderança do então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e do reverendo Jaime Wright e os auspícios do Conselho Mundial de Igrejas. O projeto começou a ser executado logo após a aprovação da Lei n. 6.683, em 1979, quando advogados de presos e exilados políticos puderam ter acesso aos arquivos do STM, para preparar petições de anistia em nome de seus clientes. Para garantir um registro duradouro do terror praticado pelo Estado, tais defensores colocaram em prática a idéia de fotocopiar o maior número possível de processos do tribunal. Três anos depois de iniciados os trabalhos, praticamente o arquivo inteiro havia sido reproduzido. Foram catalogadas mais de um milhão de páginas, cópias da quase totalidade dos processos políticos (707 completos e dezenas de outros incompletos) que transitaram pela Justiça Militar entre abril de 1964 e março de 1979 (ARNS, 1985, p. 22). Lançado em julho de 1985, pela Arquidiocese de São Paulo, o livro Brasil: nunca mais , que rapidamente chegou a 20 edições e entrou para a lista dos mais vendidos em toda a história do país, trata do sistema repressivo, da subversão do Direito e das diferentes formas de tortura a que os presos políticos foram submetidos durante a ditadura.
A primeira iniciativa oficial de se efetivamente revelar as arbitrariedades do período só adquiriu contornos delineados em 2007, durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ele também um anistiado político, com o lançamento do livro-relatório Direito à memória e à verdade , resultado de onze anos de atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Primeiro documento oficial do Estado brasileiro a atribuir a integrantes das forças de segurança crimes como tortura, estupro, esquartejamento, decapitação, ocultação de cadáveres e assassinato de opositores do regime militar que já estavam presos e, portanto, impossibilitados de reagir, a obra de aproximadamente 500 páginas reconstitui a trajetória da comissão e vinha sendo aguardada desde pelo menos 2004. Só foi realizada com a chegada de Paulo Vannuchi à Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Jornalista, ex-preso político e um dos autores de Brasil: nunca mais , o próprio Vannuchi responde, juntamente com outras duas redatoras, pelo texto final do livro-relatório. “A partir de agora temos um livro oficial com carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas”, declarou o então ministro à época de seu lançamento ( DANTAS, 2004, p.10; BRASIL, 2007a, p. 17, 2007b; MERLINO, 2007 ).
Concebida como reportagem e com críticas ao próprio governo Lula, consta da obra que ao término dos trabalhos da comissão foram derrubadas as versões oficiais indicando que as vítimas haviam sido mortas durante tentativas de fuga, tiroteios, ou que teriam cometido suicídio. As investigações realizadas conseguiram demonstrar que a maioria absoluta dos opositores foi presa, torturada e executada. Bastante crítico em relação à interpretação dada à anistia, o livro-relatório também fala em “terror de Estado”, sustenta que as vítimas “morreram lutando como opositores políticos de um regime que havia nascido violando a constitucionalidade democrática” e explicita a necessidade de os militares, especialmente aqueles que participaram diretamente das operações, revelarem a verdade há anos ocultada. “Sua oitiva formal pelos comandos superiores seguramente decifrará mistérios e contradições, permitindo um trabalho eficaz de localização dos restos mortais.” ( BRASIL, 2007a, p. 27, 30 ) . Do projeto Direito à memória e à verdade também faz parte uma exposição fotográfica itinerante, denominada “A ditadura no Brasil 1964-1985”. Nos últimos anos têm sido inaugurados memoriais intitulados “Pessoas Imprescindíveis” – painéis e esculturas que recuperam um pouco da história de mortos e desaparecidos políticos.
Em relação aos arquivos da ditadura, que começaram a ser abertos depois da posse do primeiro presidente democraticamente eleito, no início dos anos 90, avanços importantes vem sendo registrados gradativamente. Em maio de 2009, reconhecendo sua obrigação de revelar a verdade à sociedade brasileira, o governo federal lançou o portal Memórias Reveladas, denominação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), implantado com o objetivo de tornar disponíveis informações sobre a história política recente do país, agrupadas em uma rede nacional sob a administração do Arquivo Nacional, instituição subordinada à Casa Civil, da Presidência da República. Há alguns anos já fazem parte do acervo da instituição a documentação produzida pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN) e pela Comissão Geral de Investigações (CGI), que estavam sob controle da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Milhares de documentos secretos, elaborados entre 1964 e 1975, pelo Ministério das Relações Exteriores e pela Polícia Federal, também estão sob a guarda do Arquivo Nacional. Permanecem desconhecidos, no entanto, a existência e o paradeiro dos arquivos envolvendo as ações dos principais protagonistas da violência do período: as Forças Armadas.
Se ainda há muito que fazer para o cumprimento efetivo especialmente dos deveres de verdade e justiça, também permanece em aberto o dever do Estado brasileiro de reformar importantes instituições, tornando-as democráticas e accountable. Ainda que não restem dúvidas acerca de importantes avanços, sobretudo nas áreas social e econômica, registrados a partir da redemocratização, segue precário, por exemplo, o respeito aos direitos civis, como atestam os não apenas altos, mas em alguns casos crescentes, índices de violência registrados. Evidência trágica disso é que continua em uso, contra presos comuns, em delegacias e presídios de todo o país, o suplício da tortura. Anterior ao regime militar e constituinte da própria história brasileira, sua prática aprimorou-se nos porões do arbítrio e se mantém até hoje, mesmo após a sanção da Lei n. 9.455, que desde 1997 tipifica o crime de tortura, o que apenas confirma a noção de que a transição para a democracia não constitui condição suficiente para que se coloque um fim definitivo em um passado repressivo. Além da impunidade e da ameaça que ela representa em relação a abusos futuros, no caso brasileiro também está claro que até o presente momento o país não conseguiu se desfazer de todo legado autoritário construído ou mantido ao longo do arbítrio. Embora em 1996 tenha sido sancionada a Lei n. 9.299, que transferiu da Justiça militar para a Justiça comum a competência para julgar policiais militares acusados da prática de crimes dolosos contra a vida, há dispositivos, como a Lei de Segurança Nacional, que ainda persistem. Incompatível com a Constituição de 1988 e de caráter extremamente autoritário, tal legislação permanece em vigor, em total conflito com a prática democrática.
E ainda que a criação do ministério da Defesa, em 1999, tenha propiciado algum tipo de controle civil sobre as Forças Armadas, nenhuma reforma significativa foi feita no sistema de segurança nacional, que também não foi submetido a qualquer tipo de expurgo, ao término da ditadura. Assim, não são raros os casos, divulgados pela imprensa, em geral a partir de denúncias de grupos de direitos humanos, de notórios torturadores do período que seguem atuando em delegacias, em repartições públicas ou que estejam planejando disputar eleições. Até hoje, e ao contrário do que aconteceu na Argentina e no Chile, por exemplo, também nenhum pedido oficial de perdão foi feito pelos militares brasileiros. Conquanto a prática da tortura naquele período venha sendo admitida progressivamente por oficiais das diferentes Armas, ainda que de forma enviesada, como ação isolada de uns poucos descontrolados e não uma política de Estado, os mais de 25 anos de democracia não constituíram tempo suficiente para que as Forças Armadas brasileiras se penitenciassem publicamente dos crimes cometidos a partir de 1964. De modo geral, os militares permanecem unidos, não expressam arrependimento e muitas vezes seguem colocando obstáculos ao avanço do processo de acerto de contas. O exemplo mais recente das dificuldades desse grupo em lidar com os crimes do passado foi dado no segundo semestre de 2009, durante debate em torno da possibilidade de criação de uma comissão da verdade. O ensino dos direitos humanos nas academias militares também segue sendo um tema delicado.
De qualquer maneira, e num âmbito mais geral, é possível perceber que não apenas importantes iniciativas foram desenvolvidas desde o retorno à democracia como a questão dos direitos humanos parece gradativamente estar se tornando uma política de Estado, a despeito das distintas posições ideológicas dos governantes que se sucederam no comando do país. O processo de atualização do Brasil em relação à temática de proteção internacional dos direitos humanos começou no governo de José Sarney que assinou, em setembro de 1985, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis e Degradantes. Seu sucessor, Fernando Collor de Mello (PRN), tornou-se o primeiro presidente brasileiro a destacar o papel da comunidade internacional no monitoramento dos direitos humanos, durante discurso na abertura anual da Assembléia das Nações Unidas, em 1990, e também o primeiro a receber oficialmente no país uma delegação da Anistia Internacional ( ALMEIDA, 2002, p. 16 ). Ao contrário de Sarney, cujo mandato foi marcado pela defesa incondicional da soberania do Estado brasileiro, Collor recusou seu uso para encobrir violações de direitos humanos ( ALMEIDA, 2002, p. 62 ). Com isso, e a partir da carta circular de n. 9.867, datada de 8 de novembro de 1990, o Ministério das Relações Exteriores passou a orientar seus quadros sobre a nova posição do governo, não mais de negação dos fatos, mas, sempre que fosse o caso, de reconhecimento de violações de direitos humanos e de mostrar que o governo estava empenhado em apurá-las ( ALMEIDA, 2002, p. 87, 122 ).
Atendendo a uma recomendação da Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas (cujo comitê de redação foi presidido pelo Brasil), realizada em Viena, em 1996 foi elaborado o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) do país, com ênfase na garantia dos direitos civis e políticos. Entre os seus inúmeros objetivos, colocados em prática a partir de sua implementação, destacam-se a criação do Sistema Nacional de Proteção à Testemunha e a implosão do presídio do Carandiru, em São Paulo, notabilizado na primeira metade dos anos 1990 pelo massacre que culminou na morte de mais de uma centena de presos e tornou o prédio símbolo de desrespeito aos direitos humanos. Em seguida foi criada, no âmbito do Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O primeiro PNDH foi revisado e atualizado em 2002, em função das demandas dos movimentos sociais que propuseram sua ampliação. O PNDH II incorporou direitos econômicos, sociais e culturais ( BRASIL, 2008, 2009b ).
No início do primeiro mandato do governo Lula, em 2003, a pasta passou a se chamar Secretaria Especial dos Direitos Humanos e, junto com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, adquiriu status de ministério. Cinco anos depois, a partir da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, iniciou-se um processo de atualização e revisão dos dois PNDHs anteriores, com 137 encontros prévios às etapas estadual e distrital e que envolveram cerca de 14 mil participantes, entre representantes da sociedade civil organizada e do poder público. Estruturado em seis eixos orientadores (um deles dedicado ao direito à memória e à verdade; outro à educação e cultura em direitos humanos), subdividido em 25 diretrizes e mais de 80 objetivos estratégicos, o PNDH III baseia-se nas 700 resoluções da 11ª Conferência e em inúmeras outras, das Conferências Nacionais temáticas, de planos e programas do governo federal, além de tratados internacionais ratificados pelo Brasil e nas recomendações dos Comitês de Monitoramento dos Tratados da ONU e seus relatores especiais ( BRASIL, 2009b ). Foi lançado pelo presidente da República no dia 10 de dezembro de 2009, em meio a muita polêmica. No final de 2010, o Brasil ratificou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. No início de 2011, tramitava no Congresso Nacional, encaminhado pelo Executivo, o projeto de lei n. 7.376/2010 7 que finalmente deverá instituir, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade.
1. A íntegra do texto da Lei n. 6.683 está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6683.htm>.
2. Entrevista concedida pelo ex-presidente da República José Sarney a Glenda Mezarobba em 23 de agosto de 2007. 3. Entrevista concedida pelo ex-presidente da República José Sarney a Glenda Mezarobba em 23 de agosto de 2007.
4. A íntegra do texto da Lei n. 9.140 está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9140.htm>.
5. A íntegra do texto da Lei n. 10.559 está disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10559.htm>.
6. O texto oficial da sentença está disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.pdf>.
7. A íntegra do PL n. 7.376/2010 pode ser encontrada em: <http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=478193>.
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