Avaliação e estratégia
O fato de as políticas de comércio, financiamento e investimento se tornarem prioridades para aqueles que estão comprometidos com promover o respeito e a defesa dos direitos econômicos e sociais tem a ver com a percepção crescente de que, na luta em defesa desses direitos, essas políticas não podem ser ignoradas ou abstraídas como se fossem um campo separado. O paradigma dos direitos humanos tal como moldado pelos eventos posteriores à Segunda Guerra Mundial, que se baseia na responsabilidade dos atores estatais, complementa-se com os aspectos econômicos da globalização como, por exemplo, a ascensão do comércio internacional e dos fluxos financeiros transnacionais, a desregulamentação, a privatização e a redução do papel do Estado, culminando com o desgaste da capacidade dos Estados de tomar as medidas ativas exigidas para respeitar, proteger e fazer cumprir os direitos humanos em suas jurisdições territoriais. Por outro lado, organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional aumentaram sua influência sobre a capacidade dos Estados de implementar as obrigações relacionadas com os direitos humanos. Este artigo busca vários objetivos. Com base numa visão geral das tendências apresentadas pela interseção das políticas de comércio, investimento e financiamento com os direitos humanos, apresentaremos um rico panorama de estratégias e atividades para os defensores dos direitos humanos. Antes de formular algumas recomendações na última seção, examinaremos algumas histórias de êxito e tendências futuras, inclusive oportunidades e obstáculos.
Os campos do investimento, comércio e financiamento ganharam importância para as condições de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC). A tendência para a globalização do comércio, financiamento e investimento representa, nesse sentido, um grande desafio que os defensores dos DESC enfrentaram apelando para um conjunto diversificado de estratégias. Ainda que tenham feito um progresso notável em expandir seu grau de conhecimentos, recursos e habilidades, persiste uma grande distância entre os recursos disponíveis e a dimensão do desafio. Em particular, os defensores dos DESC lutam para tratar de forma eficaz os alvos de incidência política relevantes para as questões de comércio, investimento e financiamento.
No texto que segue, a Seção I traz uma visão geral das tendências apresentadas pela interseção das políticas de comércio, investimento e financiamento com os direitos humanos e os desafios consequentes para os defensores desses direitos. A Seção II examina o rico panorama das estratégias e atividades que a comunidade dos direitos humanos mobilizou até agora como resposta. A Seção III trata de histórias de sucesso e das tendências futuras que funcionarão como um contexto para o avanço das estratégias, inclusive as oportunidades e os obstáculos constituídos por elas. A Seção IV formula algumas recomendações.
O fato de as políticas de comércio, financiamento e investimento se tornarem prioridades para aqueles que estão comprometidos com promover o respeito e a defesa dos direitos econômicos e sociais tem a ver com a percepção crescente de que, na luta em defesa desses direitos, essas políticas não podem ser ignoradas ou abstraídas como se fossem um campo separado.
Isso sempre foi verdade para esse conjunto de direitos, na medida em que os instrumentos que definem as obrigações em relação aos DESC estão vazados numa linguagem que força o recurso a passar por avaliações extrajurídicas de ordem econômica e de política econômica. A obrigação dos Estados nessa área é habitualmente definida como “adotar medidas… até o máximo de seus recursos disponíveis”, “assegurar progressivamente” etc.2 A linguagem específica de certos direitos acrescenta ainda mais qualificações, como quando, no que diz respeito ao direito à saúde, refere-se ao “mais elevado nível… possível de atingir”. Não se trata de negar que existem padrões segundo os quais uma violação é imediatamente configurada pela privação de um direito como, por exemplo, a obrigação de não discriminar no gozo de qualquer dos DESC. Na maioria dos casos, no entanto, as obrigações dos DESC são veiculadas por uma linguagem que torna inevitável o recurso aos juízos de política econômica a fim de averiguar se os Estados estão, por exemplo, fazendo a “melhor utilização” dos recursos, ou quais os “recursos disponíveis” que eles têm realmente a sua disposição.
A tendência à globalização econômica aumentou os problemas associados a esses fatores. Isso porque o paradigma dos direitos humanos, tal como foi moldado depois da Segunda Guerra Mundial, baseava-se na responsabilidade dos atores estatais, fazendo deles os únicos responsáveis diretos pelas obrigações. No entanto, os aspectos econômicos da globalização, como a ascensão do comércio internacional e dos fluxos financeiros transnacionais, a desregulamentação, a privatização e a redução do papel do Estado, desgastam a capacidade dos Estados de tomar as medidas ativas exigidas para respeitar, proteger e fazer cumprir os direitos humanos em suas jurisdições territoriais. Assim, algo que de uma perspectiva tradicional dos direitos humanos e civis costumava ser bem recebido (a retração do papel do Estado em face da esfera das liberdades individuais), do ponto de vista dos DESC, passa a representar uma desvantagem. Os direitos econômicos e sociais, por sua própria essência, pedem um Estado mais capaz de tomar medidas ativas de política econômica e social, mesmo quando essas medidas não signifiquem uma intervenção, mas uma regulamentação e fiscalização mais diligente das atividades do setor privado.3
O mesmo fenômeno significou que organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) aumentaram sua influência sobre a capacidade dos Estados de implementar as obrigações relacionadas com os direitos humanos. O mesmo pode ser dito em relação a vários atores em mercados financeiros internacionais desregulamentados, tais como fundos de hedge ou fundos privados de renda variável. Em outras palavras, várias áreas de ação que costumavam ser alvo somente de decisões nacionais, e que têm consequências sobre o modo como os compromissos para com os direitos humanos são cumpridos, são cada vez mais permeadas por políticas e normas definidas em nível internacional, ou em processos colegiados dos quais o Estado nacional é apenas uma parte (comércio, propriedade intelectual, financiamento). Atores empresariais internacionalmente organizados também têm um peso crescente na esfera nacional, direta ou indiretamente. Esse peso influi fortemente na capacidade desse setor de exercer lobby em relação a políticas e normas definidas em nível internacional.
Não obstante, essas organizações e esses atores não são eles mesmos partes dos instrumentos de direitos humanos cujo desenvolvimento e adoção constituem o fruto de longas lutas do movimento de direitos humanos. Em última análise, evidentemente, as organizações internacionais são feitas de Estados partes dos instrumentos de direitos humanos. Do mesmo modo, os atores do setor privado não funcionam num vácuo, mas pode-se dizer que estão sujeitos à jurisdição de Estados partes desses instrumentos. No entanto, permanece o fato de que a cadeia de responsabilidade no caso desses atores não estatais é, para dizer o mínimo, menos direta exatamente num momento em que sua influência tem aumentado.
Portanto, com sua crescente importância, organizações e órgãos com jurisdição sobre comércio, financiamento e investimento, bem como as diretrizes que emitem, ganharam mais relevância nas lutas para promover e respeitar os DESC.
Os esforços para tornar a elaboração de políticas e normas responsável perante o sistema de direitos humanos enfrentam desafios importantes.
O primeiro desafio é aquele representado pela globalização econômica. Ele surge logicamente quando se fazem reivindicações baseadas em direitos (as quais, por definição, representam o outro lado de uma obrigação), num ambiente cada vez mais globalizado, no qual os principais atores econômicos não são partes nem se sentem obrigados a obedecer aos instrumentos de direitos humanos que criam tais obrigações. A retirada do processo decisório sobre políticas econômica do nível nacional também torna mais difícil a busca da responsabilidade. Isso possibilita que instâncias nacionais e supranacionais iniciem um “jogo de culpa” no qual cada uma delas alega que a outra é responsável por um determinado resultado, confundindo a responsabilidade por sustentar o direito em questão.
As dificuldades de acesso à informação também constituem um desafio, e este desafio é duplo. Em vez de se referirem somente a um governo nacional, as questões de política econômica transnacionais afetam, por definição, o comportamento e as políticas de mais de uma parte. Essas partes podem ser as que negociam um acordo de comércio ou um empréstimo de outro país, ou de uma instituição financeira internacional (a qual, por sua vez, tem também um grande número de membros coletivamente responsáveis pela decisão). Essas partes também podem ser Estados de origem ou de destino em um projeto de investimento, ou doador e recipiente de uma ajuda financeira. Para os cidadãos, é muito difícil reunir informações sobre uma parte que não é o governo deles. A globalização também tornou mais difícil obter informações sobre o que seu próprio governo está fazendo nas negociações internacionais, mesmo que os resultados dessas negociações venham a impor obrigações aos legisladores nacionais e locais.
Em terceiro lugar, as exigências de direitos humanos em relação às questões de política econômica podem ser condescendentemente descartadas pelos elaboradores dessas políticas sob o pretexto de que são bem intencionadas, mas não estão a par das realidades dos recursos limitados. Os elaboradores de políticas econômicas, que talvez concordem inteiramente com aquelas exigências, muitas vezes se perguntam se elas oferecem alguma orientação útil no tratamento de intricadas questões políticas como: qual o grau ótimo de abertura num determinado setor industrial, ou onde obter os recursos para satisfazer necessidades imediatas e conflitantes de diferentes grupos sociais. O desafio imposto pela limitação de recursos é um ao qual os defensores dos direitos humanos – cujas exigências não parecem com frequência deixar espaço para os trade-offs, que são ingrediente necessário da economia – precisam responder de forma verossímil. As tentativas feitas de desenvolver essas respostas não são amplamente conhecidas, ou carecem de base sólida em padrões obrigatórios de direitos humanos, ou são vulneráveis à alegação de não estarem baseadas em fundamentos econômicos saudáveis.
Em quarto lugar, o arcabouço jurídico dos direitos humanos é também bastante omisso quando se busca orientação sobre prescrições políticas detalhadas. Não se trata de um defeito, nem deveria ser surpreendente. Se aceitarmos a noção sensata de que os modelos econômicos e de desenvolvimento deveriam ser moldados país por país e até região por região, como um produto de realidades econômicas, políticas e sociais singulares, tentar alcançar as melhores políticas universais é um exercício fadado ao fracasso. Da mesma forma que os muito criticados programas de ajuste estrutural, exercícios similares para estabelecer modelos de tamanho único atrairão críticas justificadas. Essa falta de receitas exatas, no entanto, ao mesmo tempo em que é uma força, pode também significar que elaboradores de políticas inescrupulosos – ou simplesmente mal-orientados – possam se apropriar da linguagem dos direitos humanos para justificar políticas econômicas equivocadas ou questionáveis.
Em quinto lugar, a falta de ampla expertise dos grupos de direitos humanos sobre políticas comerciais e financeiras e sobre o processo de formação em torno delas representa um obstáculo para que as ações deles tenham um impacto sobre as políticas e práticas econômicas. Essa falta de uma compreensão sólida do comércio, financiamento e investimento e de sua relativa relevância para objetivos específicos de DESC prejudica a capacidade e a confiança dos defensores dos direitos humanos para projetar estratégias e propor ações baseadas em avaliações sobre onde uma intervenção de incidência política planejada possa ser útil.4
Diante desse cenário, há a tentação de confinar a defesa dos direitos humanos ao nível “micro”, pois é no contexto limitado de um projeto específico ou microeconomia que os impactos de uma determinada política ou projeto podem ser mais facilmente identificados e articulados. Contudo, essa abordagem não pode dar conta de ambientes macroeconômicos que possam ser responsáveis pela necessidade, viabilidade ou existência de alternativas para os mesmos projetos micros e específicos. Concentrar-se no impacto micro equivale, em certo sentido, a centrar-se nos sintomas, sem enfrentar as causas primárias. Além disso, o foco “micro” é vulnerável à alegação de falta de rigor ao não levar em conta os trade-offs entre direitos de diferentes regiões ou entre parcelas da população. Num projeto de represa, por exemplo, que exigirá a remoção de uma comunidade de seu habitat, é fácil identificar os direitos atingidos da comunidade, mas, de uma perspectiva mais ampla, o governo que faz isso pode argumentar que está simplesmente tentando reduzir a pobreza para que outros setores da população possam ter acesso a educação, saúde, eletricidade ou até mesmo água. As questões de onde se deve estabelecer limites e do que é um trade-off aceitável não podem ser respondidas em abstrato e exigirão um exame caso a caso. A perspectiva dos direitos humanos certamente se aplica ao estabelecimento desses limites, na medida em que as diretrizes emitidas por órgãos de monitoramento de tratados abrem espaço para medidas que implicarão regressão no gozo de certos direitos, mas desde que sejam justificadas em termos dos direitos que estão sendo promovidos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1990). O marco dos direitos humanos oferece um marco para escolhas políticas. Mas esse marco é mais difícil de utilizar, uma vez que sua aplicação requer expertise em políticas comerciais e financeiras e suas conclusões não serão tão absolutas e diretas como aquelas que surgem da abordagem micro.
Em sexto lugar, um número crescente de decisões que exigiriam um equilíbrio delicado entre os princípios internacionais dos direitos humanos e os imperativos de executar uma boa política econômica parece estar de facto (ou, em alguns casos, de jure) sujeito a decisões de órgãos com formação puramente econômica (comércio, investimento, financiamento) e com base em considerações que excluem os direitos humanos. Este é o caso, por exemplo, de disputas que envolvem o acesso a serviços que foram submetidos a tribunais de arbitragem de investimento.5
Ao mesmo tempo, as organizações da sociedade civil parecem encontrar seu mais alto grau de conforto centrando-se no desenvolvimento e estabelecimento de normas por órgãos e mecanismos de direitos humanos. Essa observação não pretende de nenhum modo diminuir a importância do desenvolvimento de padrões. “Leis suaves” como as Observações Conclusivas que o Comitê da ONU sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) pode formular, depois de examinar relatórios de países, ou os Comentários Gerais, são úteis não somente para os defensores dos direitos humanos, como também para os governos. Contudo, está claro que as instituições de financiamento internacional, ou os ramos de governo envolvidos em negociações sobre acordos de comércio dão pouca atenção a tais normas e padrões e os consideram, no melhor dos casos, de natureza consultiva.
Isso é certamente agravado pela estrutura de aplicação. Por exemplo, os Comentários Gerais do CDESC constituem a interpretação autorizada do Pacto. Essas interpretações, no entanto, são vinculantes apenas para os titulares da obrigação, ou seja, os Estados. Apresentaram-se argumentos defensáveis para justificar a aplicabilidade das declarações desse órgão a atores não-estatais (tais como organizações internacionais e entidades do setor privado). No fim das contas, porém, o que importa é se existe um tribunal para dar vazão à reivindicação. No caso do CDESC, afora a jurisdição nacional, tais tribunais não estão geralmente disponíveis.
Em consequência, os defensores dos direitos humanos descobrem que, com frequência, para ter um impacto sobre as discussões e negociações de política econômica, são forçados a refutá-las em desvantagem, em instituições para as quais os direitos humanos são, na melhor das hipóteses, uma consideração secundária, de aplicação um tanto arbitrária. Existem defensores da concepção de que órgãos com jurisdições econômicas, se contarem com pessoal adequado, podem ser mais abertos à aplicação do direito internacional dos direitos humanos. Alguns estudiosos, por exemplo – entre eles, especialistas em direitos humanos – invocam o sistema de resolução de disputas da OMC como sendo um caminho possível para entrar com ações de direitos humanos.6 O desenvolvimento da formação e da expertise em direitos humanos desses órgãos deveria ser certamente levado em consideração como uma alternativa pragmática.
Mas a noção de que mudanças de pessoal podem superar as dificuldades culturais e estruturais de órgãos primariamente orientados para a aplicação do direito econômico de dar uma audiência justa a reivindicações de direitos humanos, ou mesmo admiti-las numa base consistente, repousa sobre alicerces fracos. Isso porque a sentença nesses órgãos ocorre no contexto de um corpo de leis orientado primariamente para mercados abertos a transações internacionais, como é o caso da OMC, ou investimentos internacionais. Ademais, no que diz respeito aos órgãos de direito econômico e de elaboração de políticas econômicas, não está disponível o instrumento de montar precedentes perante tribunais judiciais e desenvolver jurisprudência e princípios sobre a interpretação dos direitos via ação judicial estratégica. Os tribunais arbitrais de investimentos, ao contrário de outros tribunais, simplesmente não estão vinculados a precedentes, nem os seus procedimentos estão, na maioria dos casos, disponíveis publicamente. Isso significa que os defensores dos direitos humanos estão em posição semelhante à de Sísifo, tendo de defender cada caso como se fosse o primeiro, em condições muito desfavoráveis, num esforço para o qual a comunidade dos direitos humanos não possui recursos suficientes.
Uma reforma do mecanismo institucional, de tal sorte que os processos de tomada de decisões da política econômica forçassem a consideração das questões de direitos humanos, beneficiaria toda a comunidade dos direitos humanos. Contudo, não há uma estratégia combinada e coletiva da comunidade para levar a cabo uma defesa sistemática das reformas desses processos institucionais (ou a construção de alianças táticas com os grupos que estão envolvidos nessas reformas).
Em sétimo lugar, é muito difícil identificar uma contribuição específica do movimento de direitos humanos a mudanças e reformas. Quando isso acontece, é frequentemente resultado de esforços conjuntos com um grande número de grupos de áreas diferentes da dos direitos humanos, num esforço formulado de modo negativo, tal como “retirar da OMC as normas de investimento”, ou “remover a influência do FMI num determinado país”. Isso é, de fato, bom e não deveria ser minimizado. Na medida em que esses esforços liberam espaço para a elaboração de políticas e regras em nível nacional que possam estar mais sincronizadas com as obrigações de direitos humanos do país em questão, isso pode ser considerado um progresso. Com menos freqüência, contudo, é possível identificar uma mensagem de direitos humanos formulada de modo positivo, que explicite qual deveria ser a alternativa específica. Por exemplo: depois que os Estados estejam livres para articular uma política de investimentos, qual deveria ser essa política para promover melhor os DESC? Ou, depois que um país ganha espaço em face de um programa restritivo anterior do FMI, o que exige uma política macroeconômica baseada nos direitos humanos?
Os numerosos desafios não impediram o surgimento de uma resposta abundante da comunidade dos direitos humanos em termos de estratégias para promover a responsabilidade das políticas econômicas perante os direitos humanos. Esta seção apresenta exemplos de atividades e estratégias. Para realizar o exercício da apresentação, em vez de apresentarmos uma longa lista, oferecemos uma classificação por tipo de estratégia e incluímos um ou dois exemplos representativos de cada uma delas.7 Não devemos esquecer que a classificação tem apenas propósitos analíticos. Na realidade, seria difícil encontrar uma organização que se centrasse em somente uma dessas estratégias. A maioria delas utiliza mais de uma estratégia ao mesmo tempo e, na verdade, tenta fazer com que diferentes estratégias funcionem juntas.
a. Conscientização das bases, de outras ONGs, das autoridades do governo e do público em geral. Consiste em atividades dedicadas a elevar a consciência do público ou em comunidades específicas, com a realização de palestras, oficinas, preparação e distribuição de materiais, campanhas de imprensa, apresentações artísticas e outros eventos públicos. O South East Asian Council for Food Security and Fair Trade (SEACON), com sede na Malásia, por exemplo, está engajado na educação de grupos de interesse de agricultores sobre as implicações dos acordos de livre comércio para a agricultura. Do mesmo modo, a 3D conscientiza organizações de comércio, desenvolvimento e direitos humanos para que as regras de comércio sejam desenvolvidas e aplicadas de forma a promover uma economia equitativa.
b. Capacitação e mobilização pública. Consiste em atividades devotadas a organizar e mobilizar grupos atingidos e ONGs. Algumas seções da FoodFirst Information and Action Network (FIAN) em países da América Latina e da África, por exemplo, trabalham com outras ONGs de direitos humanos a fim de mobilizar grupos de agricultores e camponeses para que exijam seus direitos. Do mesmo modo, membros da Habitat International Coalition, realizaram determinados trabalhos no México e em outros países, e a capacitação é uma força tradicional da Secretaria do Asian Forum for Human Rights and Development (FORUM-Ásia, com sede em Bangkok) no que diz respeito a comércio e direitos humanos. De sua parte, o Land Center for Human Rights trabalha para aumentar a capacidade de pequenos agricultores de analisar o impacto das políticas de comércio e investimento sobre suas comunidades no Egito. O Centro de Derechos Económicos y Sociales (CDES) do Equador também tem trabalhado para impedir acordos de comércio regionais e bilaterais que ameaçam os direitos humanos, centrando-se especificamente no papel da mobilização pública em torno do Acordo de Livre Comércio EUA-Equador, da Área de Livre Comércio das Américas e, mais recentemente, do Acordo de Parceria Econômica entre a Comunidade de Nações Andinas e os Estados Unidos.
c. Influenciar as decisões e a elaboração de políticas e normas de governos nacionais. Busca mudar o comportamento de um determinado governo em relação a políticas de comércio, financiamento e investimento. A DECA Equipo Pueblo, por exemplo, incorpora um forte componente de incidência política junto aos ramos executivo e legislativo do governo mexicano (tais como a Secretaria de Relações Exteriores, a Secretaria de Economia, a Câmara de Deputados e o Senado), à Comissão Europeia e sua delegação no México e aos bancos de desenvolvimento multilaterais e seus escritórios no México. Parte desse trabalho é criar mecanismos de consulta, em particular com o governo mexicano, a respeito dos impactos das políticas comercial e econômica sobre o desenvolvimento social, desenvolvimento sustentável e direitos humanos no país. O Instituto de Servicios Legales Alternativos (ILSA), com sede na Colômbia, contesta perante tribunais colombianos a constitucionalidade das negociações em andamento do Acordo de Livre Comércio Estados Unidos-Colômbia.8 A ação judicial na África do Sul desencadeada pela Treatment Action Campaign sobre a falta de acesso a medicamentos retrovirais para HIV/Aids tinha por objetivo não somente uma mudança dentro do país, mas também uma dimensão internacional, buscando forçar o governo sul-africano a exigir mudanças no regime de direitos de propriedade intelectual por meio de negociações internacionais disponíveis (ÁFRICA DO SUL, 2002). Por seu turno, a ONG mexicana FUNDAR envolve-se no processo de elaboração de políticas fiscais do governo, monitorando e analisando as negociações em torno do orçamento nacional do ponto de vista dos direitos humanos e de gênero.
d. Influenciar as decisões e a elaboração de políticas e normas em fóruns e instituições internacionais. Consiste em atividades cujo objetivo é influenciar o comportamento de uma instituição internacional envolvida em política econômica, como o Fundo Monetário Internacional, a OMC ou o Banco Mundial. A iniciativa Halifax e outras trabalham para que a avaliação do impacto sobre os direitos humanos passe a fazer parte dos procedimentos dessas instituições no exame de seus projetos de financiamento. A FORUM-Asia funciona com frequência como plataforma regional asiática para a defesa no interior de instituições como a ASEAN e a ONU de um regime de comércio consistente com os direitos humanos. O Projeto de Biodiversidade e Propriedade Intelectual do Institute for Agriculture and Trade Policy (IATP) defende reformas significativas no Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio da OMC (TRIPs), que viola direitos humanos básicos ao pôr em risco o acesso a remédios contra Aids e outros medicamentos, bem como o direito dos agricultores de preservar e semear sementes colhidas. O Bretton Woods Project defende no interior do Banco Mundial que a instituição reconheça suas obrigações, integrando uma abordagem de direitos humanos aos seus programas e políticas com transparência e participação pública.
e. Desenvolvimento de normas em nível nacional. Consiste em atividades dedicadas a criar normas nacionais que possam ajudar a contestar certas atividades de comércio, investimento e financiamento. Exemplo: vários grupos reunidos em torno de redes como as que promovem a Petição de Parlamentares pela Supervisão Democrática das Políticas do Banco Mundial e do FMI (BRETTON WOODS PROJECT, 2004) estão engajados em campanhas para aprovar leis que tornem obrigatório para os poderes executivos obter aprovação parlamentar de qualquer empréstimo que negociem com o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial, de tal forma que o empréstimo possa ser declarado ilegal e, de outro modo, fora da autoridade do governo. O trabalho da Egyptian Initiative for Personal Rights (EIPR) sobre comércio está ligado ao seu programa de Saúde e Direitos Humanos, tendo por foco principal os direitos de propriedade intelectual em acordos de comércio e a acessibilidade e disponibilidade de medicamentos. Nisso, eles efetuam ações de lobby no interior da União Europeia e da ONU, em particular junto a Comissão de Direitos Humanos da UE, UNGASS e outros mecanismos, voltadas para incorporar uma linguagem mais forte de direitos humanos em questões de saúde e comércio, acesso a tratamento médico etc.
f. Desenvolvimento de normas em nível internacional. Consiste em atividades voltadas para expandir e refinar o direito internacional dos direitos humanos, mediante normas duras e suaves, na medida em que ele se relaciona com comércio, investimento e financiamento. Exemplo: o desenvolvimento das Diretrizes Tilburg sobre Direitos Humanos em Instituições Financeiras Internacionais por um grupo de especialistas reunidos pela Universidade de Tilburg em 2000 (VAN GENUGTEN; HUNT; MATHEWS, 2003, p. 247-55); o envolvimento de algumas organizações na criação de diretrizes gerais para o projeto e implementação de políticas de reforma econômica e programas de dívida externa consistentes com os direitos humanos, liderado pelo Independent Expert on Foreign Debt and Human Rights (ORGANIZAÇAO DAS NAÇOES UNIDAS, 2008a); os esforços de grupos como 3D-> Trade – Human Rights – Equitable Economy para que os Comentários Gerais do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) tratem de comércio, financiamento e investimento e lidem de forma adequada com outras questões relacionadas ao comércio, como a propriedade intelectual.
g. Jurisprudência por mecanismos judiciais e quase judiciais em nível nacional. Direcionada para criar jurisprudência nacional referida à interpretação e implementação de regras de comércio e investimento, ou condições de empréstimo. Num exemplo recente, a Suprema Corte da Costa Rica embargou a implementação do Acordo de Livre Comércio Centro-Americano com os Estados Unidos – do qual a Costa Rica faz parte – baseada no fato de que não foram obedecidas as exigências de consulta a comunidades indígenas afetadas, tornando inconstitucionais as disposições de implementação (CENTRO INTERNACIONAL PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, 2008). Por sua vez, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil busca reparações para os impactos do financiamento público do setor hidrelétrico brasileiro participando de uma comissão de investigação criada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos. A Comissão de Direitos Humanos do Quênia entrou com processo contra o Acordo de Parceria Econômica Quênia-Estados Unidos. A Human Rights Law Network da Índia contestou perante a Suprema Corte de seu país o regime de direitos de propriedade intelectual relacionado com o acesso a medicamentos, defendendo com êxito uma ordem judicial que forçasse o governo a garantir que todos os remédios essenciais estivessem disponíveis e acessíveis a todas as pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza.
h. Jurisprudência por mecanismos judiciais e quase judiciais, bem como órgãos de supervisão e monitoramento dos direitos humanos em nível internacional. Voltada para estabelecer jurisprudência internacional referida à interpretação e implementação de regras de comércio e investimento, ou condições de empréstimo. Exemplo: o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) e a Asociación Civil por la Igualdad y la Justicia (ACI), ambos da Argentina, junto com organizações de consumidores, apresentaram um amicus curiae junto ao Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, em um caso que envolvia concessões do governo argentino a empresas estrangeiras para o fornecimento de serviços de água (CIADI, 2003a). A 3D teve sucesso em sua advertência sobre as consequências potenciais dos termos em que estão veiculadas as disposições de direito de propriedade intelectual em negociação por determinados países nos relatórios sobre o país pertinente de órgãos de monitoramento de tratado.9 Um grupo de quatro ONGs – entre elas, o Centre for Applied Legal Studies e a InterRights – obtiveram sucesso ao apresentar petição junto a um tribunal de arbitragem no Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI) para intervir numa disputa entre os donos europeus de certas companhias de mineração sul-africanas e a República da África do Sul relacionada com a implementação das medidas de Black Economic Empowerment na África do Sul (CENTRO INTERNACIONAL PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, 2008).
i. Avaliação do impacto sobre direitos humanos no nível de projeto. Voltado para criar metodologias e realizar efetivamente avaliações do impacto sobre os direitos humanos causado por políticas ou normas de comércio, investimento e financiamento. Embora ainda não sejam práticas oficiais nem tenham o endosso de um governo, mesmo assim as Avaliações de Impacto sobre os Direitos Humanos podem ser uma ferramenta para aumentar a qualidade da avaliação e para dar força a uma comunidade afetada por um projeto, com a disponibilização de um veículo para manifestar suas preocupações. A ONG canadense Rights and Democracy, em colaboração com a Tebtebba, Association Africaine de Défense des Droits de l’Homme (ACIDH), Action Contre l’Impunité pour les Droits Humains (ASADHO) e/ou CELS, desenvolveu uma série de publicações e práticas de avaliação do impacto sobre direitos humanos em projetos de investimento externo (RIGHTS AND DEMOCRACY, 2008).
j. Melhoria do acesso à informação. Direcionada para expandir o acesso às informações sobre as atividades governamentais relacionadas com comércio, investimento e financiamento. Embora o acesso à informação não seja diretamente reconhecido no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, trata-se de algo claramente importante e os comentários do CDESC assim o reconhecem. O acesso à informação revelou-se essencial para a oportunidade e a boa focalização de qualquer incidência política e mobilização substantiva por DESC em comércio, investimento e financiamento; isso ocorre particularmente em virtude do grau de opacidade que caracteriza a atividade nesse campo.
Apesar das enormes dificuldades, e levando em conta o ritmo inevitavelmente gradual do progresso que se pode esperar em relação ao objetivo ambicioso de obter regimes de comércio, investimento e financiamento responsáveis perante os direitos humanos, os últimos anos testemunharam alguns êxitos que deveriam ser anotados como passos nessa direção.
a. Protocolo Opcional sobre DESC. A adoção em 2008 do Protocolo Opcional para DESC traz um mecanismo para reclamações individuais que até então não existia e colocava a responsabilidade perante os DESC numa espécie de desvantagem quando comparada com direitos civis e políticos. Sua adoção é um tributo à incansável campanha de organizações da sociedade civil (ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008b).
b. TRIPs e Saúde Pública. A campanha persistente, inclusive com ações judiciais em países como o Brasil e a África do Sul, levou a classificar certas disposições do acordo TRIPs como uma violação de alguns DESC (notadamente, o direito à saúde). O CDESC, o Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos e outros órgãos de direitos humanos assumiram a questão e publicaram documentos oficiais que representam um precedente útil para contestar disposições de propriedade intelectual não somente na OMC, mas também em nível bilateral (que é o caso de vários acordos de livre comércio bilaterais sobre os quais o CDESC se pronunciou). Por sua vez, os órgãos nacionais encarregados de proteger os objetivos da saúde ou o direito à saúde, que de outro modo não teriam provavelmente poder para influenciar essas decisões, aproveitaram esses precedentes para maximizar seu impacto, como aconteceu no Peru10 e na Tailândia.11 É verdade que a Declaração de Doha sobre TRIPs e saúde pública dá aos países espaço para transgredir as regras do comércio quando isso for necessário para defender a saúde pública. Pode-se argumentar que a ênfase deveria ser oposta: os países deveriam ter obrigação de transgredir as regras de comércio para proteger a saúde pública. Desse modo, do ponto de vista dos direitos humanos, esse é apenas um passo na direção certa, mas não deixa de ser um passo importante.
c. Avaliações do impacto sobre os direitos humanos da IFC. Após vários anos em que os direitos ambientais e sociais – mas não os humanos per se – eram a norma nas avaliações de impacto, a Corporação Financeira Internacional (IFC) criou no ano passado um manual de orientação para avaliações do impacto sobre direitos humanos. O documento foi fortemente influenciado por empresas transnacionais e alguns o criticam, dizendo que não passa de um exercício de relações públicas. É também de valor duvidoso como expressão do automonitoramento da IFC e/ou das empresas. Mas é a primeira vez que numa das instituições do grupo do Banco Mundial a noção de avaliação de impacto sobre direitos humanos é aceita. Antes, as questões dessa área estavam condenadas e ficar na margem e eram tratadas de forma seletiva em avaliações de impactos ambientais ou sociais. O fato de a IFC achar necessário elaborar esse documento é também um sinal da seriedade com que começam a ser tratadas as reclamações de violação de direitos humanos por empresas que ela financia (CORPORAÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL, 2007).
d. A adoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Os ODM não estão isentos de críticas. Uma das mais importantes é que constituem uma versão diluída, aguada dos direitos humanos, pois estão centrados apenas em alvos específicos. Sua cegueira para as políticas econômicas necessárias para alcançá-los, sobre as quais são mais ou menos neutros, é outro ponto fraco. Mas do ponto de vista dos DESC, vale a pena observar que eles incorporam pela primeira vez números exatos aceitos universalmente como alvo para todos os países. Tendo em vista o caráter esquivo de conceitos habitualmente associados aos DESC, tais como “realização progressiva” e “núcleo mínimo”, e a relutância dos Estados em tomar medidas para aceitar alvos numéricos, os ODM, ainda que só fazendo isso para certas dimensões de alguns direitos, deveriam ser considerados um elemento de progresso. No mínimo, eles estabelecem um precedente em que se basear, demonstrando que a mobilização da vontade política é essencial para promover o progresso no desenvolvimento de padrões de DESC, em vez de esperar que o processo siga no sentido contrário (ou apresentar a falta de padrões como desculpa para não mobilizar a vontade política). Os ODM, ao conter uma dimensão que se refere ao ambiente internacional, lançam luz sobre o fato de que o progresso em DESC não depende somente de governos nacionais, mas também de outros membros da comunidade internacional, inclusive de organizações internacionais.12
e. Desenvolvimento de normas de direitos humanos que tratem de financiamento e investimento. Nesse ponto, o movimento também obteve alguns sucessos, tais como os Comentários Gerais do CDESC e os critérios para parcerias de desenvolvimento construídos dentro do Grupo de Trabalho sobre Direito ao Desenvolvimento.13 Tudo isso constitui um corpo de normas e interpretações que são ferramentas úteis para os ativistas, organizações, pesquisadores e autoridades nacionais e internacionais encarregadas de julgar questões de regras e políticas econômicas. Evidentemente, como já mencionamos neste artigo, é bastante questionável que os órgãos com competência em política econômica que são de facto capazes de influenciar a implementação dos direitos humanos estejam dispostos a levar a sério essas normas em suas decisões. Mas isso não deveria diminuir a importância do fato de que desenvolver normas e padrões para as pretendidas mudanças na prática seja um primeiro passo em qualquer atividade de incidência política. É por esse motivo que, embora apresentem, em última análise, resultados decepcionantes,14 as Normas da ONU sobre a Responsabilidade de Corporações Transnacionais e Outras Empresas Privadas em Relação aos Direitos Humanos podem ser consideradas uma história positiva no que diz respeito ao desenvolvimento de padrões.
f. Aumento marcante de expertise das organizações de direitos humanos nos aspectos de economia política do comércio, financiamento e investimento. Em comparação com uma década atrás, as organizações de direitos humanos apresentam uma abordagem mais realista da responsabilidade compartilhada entre países desenvolvidos e em desenvolvimento nas violações dos direitos humanos decorrentes da política de comércio, investimento e financiamento. Isso representa um avanço na compreensão da dinâmica de um mundo mais globalizado. Quanto mais bem compreendidos forem os mecanismos pelos quais se formam as políticas, mais eficaz será a formulação de alvos e de estratégias e táticas para influenciar a elaboração de políticas. Quanto mais eficaz forem os alvos e as táticas, mais eficientemente utilizados serão os recursos da comunidade da sociedade civil.
Esta seção apresenta algumas das tendências que podem ser observadas no campo e que moldarão o cenário para o trabalho futuro dos defensores dos DESC, com algumas reflexões sobre as oportunidades e os obstáculos que elas podem implicar.
O mundo da incidência política internacional tem seus modismos. Diante de campanhas pelos ODMs, alívio da dívida, redução da pobreza, das “questões de Cingapura”,15 e das várias reuniões de cúpula que vieram depois das conferências da ONU do final da década de 1990 – sobre mulheres, população, desenvolvimento social, desenvolvimento sustentável – os direitos humanos enquanto tais, de certo modo, “saíram de moda”. Porém, uma certa fadiga está tomando conta dos processos de acompanhamento das diferentes conferências internacionais dos anos 90 e do início do século XXI. Há uma perceptível falta de liderança dos governos na abordagem das questões que exigem uma ação coletiva de um modo que reconheça a crescente interconexão entre as questões de política econômica e aquelas do campo social e ambiental.
Cabe à sociedade civil gerar um novo ímpeto na luta internacional pela justiça social e, ao fazer isso, o arcabouço dos direitos humanos, sendo juridicamente vinculante, apoiado por várias convenções que foram amplamente assinadas por governos, pode recuperar sua proeminência como um padrão que os governos não podem deixar de lado e como ferramenta perene de mobilização para as bases.
Os processos de liberalização e expansão da globalização, que pareciam impossíveis de ser detidos até recentemente, estão perdendo força. Isso abre chance para uma reformulação e redefinição de paradigmas para a elaboração de políticas econômicas. A diminuição em tamanho e relevância de organizações internacionais que exigiam grande atenção nos últimos anos (Banco Mundial, FMI, OMC) faz com que alguns países recuperem um pouco de “espaço político”. Embora a atual crise econômica e financeira mundial signifique para vários países um retorno aos constrangimentos da política do FMI, ela também está funcionando como um aviso de cautela no que diz respeito ao modelo político que vale a pena aceitar em troca de ajuda ou financiamento.
Permanece aberta a questão de se as políticas alternativas que venham a ser escolhidas pelos países que gozam de mais espaço político estarão de acordo com os direitos humanos. A suspensão das conversações da OMC, por exemplo, provocou mais pressão sobre muitos países para que assinassem acordos bilaterais que se mostraram muito mais constrangedoras para os governos nacionais do que as regras multilaterais jamais foram. Por sua vez, o recurso a fontes alternativas de financiamento traz consigo outros desafios, sejam essas fontes países emergentes como a China e a Índia, mercados financeiros internacionais ou o setor privado nacional. Isso significa ter uma paisagem mais diversificada, o que desafia a lógica do trabalho das organizações da sociedade civil, que se acostumaram por muito tempo a concentrar sua incidência política em reuniões e eventos internacionais promovidos por organizações internacionais como a OMC ou o Banco Mundial (ainda que somente para se opor a elas). Para os defensores dos direitos econômicos e sociais, a natureza fragmentada do movimento ficará mais aparente. A montagem de coalizões no novo ambiente terá de se fazer em torno de questões e se basear menos na utilização da oposição às grandes instituições globais como marco galvanizador.
Enquanto o Banco Mundial enfrenta níveis mais baixos de empréstimo, a IFC registra crescimento sem precedentes. A área do Banco Mundial de financiamento do setor público sobrevive sob a condição de que seja oferecido apoio mais amplo ao subsídio das atividades do setor privado em fornecimento de serviços, projetos de extração de recursos naturais etc. Essa tendência é perceptível também na dinâmica entre as áreas do setor público e privado de todos os bancos de desenvolvimento regional.
O surgimento de instituições financeiras regionais como o Banco do Sul, por exemplo, encabeçado pela maioria dos governos da América do Sul e associado a mudanças políticas na região que gerou governos mais progressistas, é um exemplo dessa tendência. Há uma chance de testar na prática como pode funcionar um paradigma diferente para o financiamento do desenvolvimento, mas como os ativistas também advertem, pode acontecer de os novos senhores manterem o mesmo modelo fracassado de desenvolvimento, com diferentes meios.
O crescente papel de emprestadores e doadores de governos do Sul põe em cheque o modelo usual da “divisão Norte-Sul” que os defensores de direitos tendem a usar para análise. Por outro lado, isso contribui para a falta de predominância das instituições de Bretton Woods e dos governos ocidentais e abre caminho para o acesso a financiamento alternativo; tudo isso pode ter conotações positivas. Ao mesmo tempo, o histórico dos direitos humanos em seus territórios e as práticas de empréstimo que já estão sendo exibidas por alguns desses novos doadores e emprestadores dão motivos para cautela no exame do impacto dessas novas tendências sobre os DESC.
A confluência de crises globais nessas áreas está abrindo caminho para um profundo reexame do papel atribuído às forças do mercado nos últimos vinte anos. Com efeito, o fracasso dos mercados na solução de problemas que o pensamento econômico dominante tentou minimizar deveria propiciar um estímulo às escolas heterodoxas, incluindo a luta dos defensores dos DESC, para repensar as abordagens desses problemas seguindo delineamentos que incorporem os direitos humanos.
1. Este artigo foi escrito para o Kenya International Strategy Meeting da Rede-DESC. O autor deseja agradecer a Areli Sandoval, Julieeta Rossi, Caroline Dommen e Daria Caliguire pelos valiosos comentários sobre versões anteriores dos quais se beneficiou este trabalho, e a Nicholas Lusiani por seu auxílio na pesquisa. A responsabilidade por erros, evidentemente, é exclusiva do autor.
2. Essa formulação, que se encontra no artigo 2 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aplica-se a todos os direitos contidos no Pacto. Termos similares fazem parte de outros instrumentos sobre direitos econômicos e sociais, como, por exemplo, o Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de San Salvador (pelo qual os Estados Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias “até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento” – conf. Artigo 1). Isso levou a uma percepção, mantida por muito tempo, mas possivelmente errada – de que as obrigações dos DESC são formuladas em termos menos assertivos, ou mais suaves do que aqueles dos direitos civis e políticos. Isso está longe de ser verdade, ainda que os padrões e indicadores para determinar o não cumprimento dos direitos econômicos e sociais exijam mais trabalho para definir, especialmente em casos concretos.
3. É geralmente aceito hoje que o encolhimento do papel do Estado pode, na verdade, ser também uma desvantagem para sua capacidade de tomar medidas sobre direitos civis e políticos, em especial para promovê-los e cumpri-los.
4. Ver as “Necessidades identificadas” em Rede-DESC 2006, “Human Rights, Trade and Investment Mapping”. (A partir de maio de 2006, em resposta às necessidades de capacitação expressas pelos Membros, bem como seu interesse em esforços e incidências políticas coletivas, a Secretaria da Rede-DESC iniciou um mapeamento do trabalho, expertise, desafios e propostas atuais relacionados com comércio, investimento e direitos humanos de organizações-membros e participantes ativos na América Latina, Ásia e África. Com base em extensas entrevistas com treze organizações, completou-se em fevereiro de 2007 uma análise e avaliação, a fim de priorizar áreas de trabalho e criar estratégias para elas em discussão com participantes do mapeamento.)
5. Exemplos que podem ser mencionados a esse respeito são as ações envolvendo serviços de água e esgoto apresentadas perante o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI) contra a República Argentina pela Compañia de Aguas del Aconquija S.A. & Vivendi Universal S.A. (CIADI, 1997b), e pela Azurix (CIADI, 2003b); bem como pela Aguas del Tunari S.A. (controlada pela Bechtel) contra a Bolívia (CIADI, 2002). Do mesmo modo, uma ação envolvendo o despejo de lixo tóxico apresentada com base no Capítulo 11 do NAFTA pela Metalclad contra o México (CIADI, 1997a).
6. “A criação da OMC dá ao mundo uma nova oportunidade para pôr o Artigo XX em seu lugar apropriado no GATT. Fazer isso envolve a reinterpretação do Artigo XX à luz das normas do direito internacional dos direitos humanos. […] a construção da jurisprudência da OMC por seus órgãos de resolução de disputas não deve contradizer regras de interpretação estabelecidas na convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Isso deve incluir ‘quaisquer normas do direito internacional’ relevantes para a disputa” (HOWSE; MUTUA, 2000, p. 11).
7. Como não se trata de uma lista exaustiva, a ausência de menção a alguns grupos e atividades não significa um julgamento de valor sobre a importância deles.
8. Informações abrangentes sobre as ações apresentadas para questionar a constitucionalidade estão disponíveis em (GAVIRIA DIAZ, 2009).
9. Ver vários informes sobre países específicos em que a 3D fez isso postados em < http://www.3dthree.org/en/page.php?IDpage=23>
10. Ver (OVETT, 2006). Após as recomendações do Relator Especial da ONU sobre Direito à Saúde para que fosse feita uma avaliação do Acordo de Livre Comércio Estados Unidos-Peru, o Ministério da Saúde fez uma avaliação do impacto das regras propostas pelo Acordo sobre os custos dos medicamentos no Peru e concluiu que cerca de 700 a 900 mil pessoas a mais seriam excluídas de tratamento.
11. Após recomendações do Comitê sobre os Direitos da Criança, a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Tailândia realizou uma avaliação do impacto sobre os direitos humanos de um Acordo de Livre Comércio em negociação entre o governo do país e os Estados Unidos. Ver ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006a) e (REDE DO TERCEIRO MUNDO, 2007).
12. Sobre a relação entre ODM e direitos humanos, ver (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006b) e (Idem, 2008c).
13. O Grupo de Trabalho sobre Direito ao Desenvolvimento foi criado em 1998 por resolução da Comissão de Direitos Humanos (resolução 1998/72). Para o informe mais recente sobre a situação dos esforços para desenvolver as diretrizes mencionadas no texto, ver Human Rights Council 2009, 12th Session, Report of the Secretary-General and the High Commissioner for Human Rights on the right to development, A/HRC/12/29, 23 de julho.
14. Após vários anos em elaboração, as Normas da ONU sobre a Responsabilidade de Corporações Transnacionais e Outras Empresas Privadas em relação aos Direitos Humanos foram finalmente rejeitadas pela Comissão de Direitos Humanos da ONU em 2005. Em troca, a Comissão recomendou a nomeação de um Relator Especial, com um mandato mais restrito.
15. As “questões de Cingapura” referem-se a tentativas de iniciar negociações na Organização Mundial do Comércio sobre investimento, competição, compras governamentais e facilitação do comércio. Esses itens foram colocados na agenda da OMC na reunião ministerial realizada em Cingapura, em 1996. Sob forte pressão dos países desenvolvidos para iniciar negociações a pleno vapor, os países em desenvolvimento retiraram-se da reunião ministerial da OMC em Cancún, em 2003, e, em consequência, os itens foram retirados da agenda, com exceção da facilitação do comércio (as compras governamentais também estão embutidas em alguns processos em andamento da OMC, de forma parcial, mas não como um processo de negociação independente).
16. Vale a pena mencionar o trabalho do ETO Consortium, uma rede de cerca de trinta ONGs, institutos universitários e indivíduos de diferentes parte do mundo, que está preparando um “documento de princípios” sobre obrigações extraterritoriais dos Estados para com os direitos econômicos, sociais e culturais. A Secretaria Internacional da FIAN funciona como secretaria do comitê dirigente do Consortium, composto por Abo Akademi, Brot für die Welt, International Commission of Jurists e as universidades de Lancaster, Maastricht e North Carolina.
17. O mandato da Rede-DESC é geral, para fortalecer os direitos econômicos, sociais e culturais por meio do trabalho com organizações e ativistas de todo o mundo a fim de facilitar o aprendizado mútuo e o compartilhamento de estratégias, desenvolver novos instrumentos e recursos, empenhar-se em incidência política e propiciar o compartilhamento de informações enetworking . Tem sido particularmente notável sua contribuição para estabelecer conexões entre grupos que trabalham sobre comércio, financiamento e investimento de uma perspectiva dos direitos humanos. Desde sua fundação, ela proporciona um terreno fértil para discussão sobre temas de interesse dessa comunidade, eventos que exigem uma reação etc. Além disso, teve sucesso em envolver não somente ONGs, mas também movimentos sociais e acadêmicos.
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