Uma categoria de análise social e política
O artigo pretende aprofundar a relação entre cuidados e migração transnacional, analisando as mudanças e desafios que contextos de migração e mercado de trabalho globalizado trazem para as mulheres. Os cuidados emergem como uma categoria para analisar como as desigualdades são produzidas e reproduzidas, principalmente a partir do interesse nas relações de gênero como relações de poder inseparáveis e sustentadas fundamentalmente por vínculos de parentesco que permanecem para além das fronteiras do Estado-nação. O objetivo é mostrar as múltiplas desigualdades que operam na gestão do cuidado nas cadeias globais do cuidado, bem como o lugar que as mulheres migrantes ocupam nesse contexto, que está gerando novas lógicas de dominação.
A vida social humana é impossível sem cuidado, mas o cuidado como um aspecto intrínseco da vida social surgiu apenas recentemente como uma questão a ser pesquisada por cientistas sociais.11. Niall Hanlon, Masculinities, Care and Equlity: Indentity and Nurture in Men’s Live (Gender and Sexualities in the Social Sciences) (Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2012): 29. Nas palavras de Nakano Glenn,22. Evelyn Nakano Glenn, Forced to Care: Coercion and Caregiving in America (Berkeley, CA: University Press Books, 2010). o trabalho de cuidado envolve três tipos de atividades interligadas. O primeiro tipo envolve o cuidado direto dirigido às pessoas, que inclui cuidados físicos (alimentação, banho, asseio); o cuidado emocional (escutar, falar, oferecer conforto); e os serviços para ajudar as pessoas a satisfazer suas necessidades físicas e emocionais (por exemplo, comprar comida, fazer uma excursão). O segundo tipo de trabalho de cuidados se refere à manutenção física dos ambientes em que as pessoas vivem (trocar roupa de cama, lavar roupa, limpar o chão). E, em terceiro lugar, teríamos aquele que se relaciona ao trabalho de fomentar as relações e conexões sociais entre as pessoas, uma forma de cuidado que tem sido chamada como “trabalho de parentesco”.33. Ibid., 5. Todas essas atividades, atribuídas cultural e historicamente às mulheres e naturalizadas nelas, tornam a vida possível. O problema é quando essa naturalização desencadeia certas desvantagens para as mulheres – desvantagens que a migração coloca em evidência a partir do trabalho de cuidado exercido à distância, o chamado cuidado transnacional, por meio das cadeias globais de cuidado.
Em particular, a migração feminina e sua incorporação no mercado de trabalho global causaram certos desequilíbrios no âmbito familiar, enquanto o trabalho de reprodução da força de trabalho, socialização e cuidado das crianças foram alterados devido à ausência física da mulher, definida, como mãe, esposa e/ou companheira, mas principalmente, como a cuidadora por excelência. Como resultado, os acordos e arranjos no interior dos lares, os quais sustentavam a casa, passam a se reproduzir num contexto transnacional, desencadeando cadeias globais de cuidado.44. Arlie Russell Hochschild, “Las Cadenas Mundiales de Afecto y Asistencia y la Plusvalía Emocional,” In: En el Límite. La Vida en el Capitalismo Global, ed. Will Hutton e Anthony Giddens (Barcelona: Tusquets Editores, 2002): 187-208. Nesse ponto, sabemos que as migrações hoje em dia representam um novo desafio para a análise dos cuidados, já que revela o lugar das mulheres em diversos regimes de bem-estar.55. Gøsta Esping-Andersen, Three Worlds of Welfare Capitalism (London: Cambridge Polity Press, 1990); Fiona Williams e Anna Gavanas, “The Intersection of Childcare Regimes and Migration Regimes: a Three-Country Study,” In: Migration and Domestic Work, ed. Helma Lutz (London: Routledge, 2008): 13-28. Mas a origem da preocupação com o cuidado é anterior à migração, e remonta a décadas passadas, quando as tarefas de cuidado se tornaram um dos pilares da luta feminista.
Embora existam muitas definições de cuidado, o que se pode dizer é que o conceito de cuidado foi construído gradualmente sobre a observação das práticas cotidianas. Em termos gerais, o cuidado tem sido definido como as relações e atividades envolvidas na manutenção das pessoas em sua vida diária, assim como intergeracionalmente,66. Nakano Glenn, Forced to care, 5. mas essa generalidade presume uma multiplicidade de definições de cuidado e algumas imprecisões sobre o termo. E, mais, há uma série de dificuldades não só em termos de definição do cuidado, mas também para estabelecer os limites específicos entre o trabalho de cuidado, o trabalho doméstico e o trabalho reprodutivo enquanto termos que, em sua maior parte, são quase intercambiáveis.77. Mignon Duffy, Making Care Count: A Century of Gender, Race, and Paid Care Work (Piscataway, NJ: Rutgers University Press, 2011): 12. Enquanto o trabalho reprodutivo se situa como possibilitador do mercado de trabalho, os teóricos do cuidado propõem o trabalho de cuidado como oposto aos valores relacionados ao mercado, por considerar que é contraditório aplicar a terminologia do mercado de trabalho ao domínio das relações íntimas pessoais.88. Ibid., 13; Hanlon, Masculinities, Care and Equlity, 31. No entanto, os teóricos do cuidado, apesar de ressaltar a importância dos sentimentos e identidades em relação a esse tipo de trabalho, não desconhecem o contexto de relações sociais, políticas, econômicas, no qual esse cuidado se localiza.
Desde que emergiu como uma categoria de análise, o cuidado tem mostrado sua complexidade a partir dos arranjos que permitem satisfazer as necessidades de cuidados e bem-estar, incluindo: cuidados remunerados e não remunerados (com ou sem contrato, com ou sem documentação), cuidados que se realizam dentro de casa ou fora dela, cuidados que se dão dentro de um país ou entre vários países (cuidados transnacionais), para mencionar apenas algumas dessas divisões. Embora haja muitos estudos que expliquem essas práticas, originalmente realizados pelas correntes feministas nas ciências sociais, na década de 1970, nos países anglo-saxônicos e escandinavos, foram as pesquisas comparativas entre países que permitiram enriquecer a elaboração teórica sobre essas práticas. No entanto, uma característica comum a todos tem sido uma busca por maior precisão conceitual.
Buscando ir além das definições de cuidado,99. Maria Ángeles Durán e Jesús Rogero Garcia, La Investigación Sobre el Uso del Tiempo - Colección Cuadernos Metodológicos N° 44 (Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2009); Rosario Aguirre e Karina Batthyány (ed.), Uso del Tiempo y Trabajo no Remunerado. Encuesta en Montevideo y Área Metropolitana (Uruguay: Unifem, Universidad de la República, 1995); Marie-Thérèse Letablier Letablier, “El trabajo de ‘cuidados’ y su conceptualización en Europa,” In: Trabajo, Género y Tiempo Social, ed. Carlos Prieto Rodríguez (Madrid: Editorial Complutense, 2007): 64-84; Ubaldo Martínez Veiga, Trabajadores Invisibles. Precariedad, Rotación y Pobreza de la Inmigración en España, (Madrid: Editorial Los Libros de la Catarata, 2004); Precarias a la Deriva, A la Deriva por los Circuitos de la Precariedad Femenina (Madrid: Traficantes de sueños, 2004): 217-48; Precarias a la Deriva, “Una Huelga de Mucho Cuidado. Cuatro hipótesis,” Contrapoder. Publicación de debate para, por, desde las prácticas de autonomía 9, no. 6 (2005): 25-36; Teresa Del Valle, “La articulación del género y el parentesco desde la antropología feminista,” In: Procreación, crianza y género. Aproximaciones antropológicas a la parentalidad, ed. Virgínia Fons, Anna Piella e María Valdés (Barcelona: PPU, 2010): 295-317; Francesca Cancian y Oliker Stacey, Caring and Gender (New York: Altamira Press, 2000); Maria Jesús Izquierdo, “Hacia una Política Democrática del Cuidado,” In: Revista Emakunde. Cuidar Cuesta: Costes y Beneficios del Cuidado (2003): 56-60; Emily Abel e Nelson Margery, eds., Circles of Care (Albany: State University of New York Press, 1990); Paula England, “Emerging Theories of Care Work,” Annual Review of Sociology 31 (2005): 381-99; Sandra Huenchuán, “‘¿Qué Más Puedo Esperar a mi Edad?’. Cuidado, Derechos de las Personas Mayores y Obligaciones del Estado,” In: Autonomía y Dignidad en la Vejez: Teoría y Práctica en Políticas de Derechos de las Personas Mayores, ed. Sandra Huenchuan e Rosa Icela Rodríguez (Santiago: CEPAL, 2014). pode-se observar que definir o cuidado supõe falar sobre partes opostas ou complementares, que, por sua vez, ilustram, como indicado pelo coletivo feminista espanhol Precarias a la Deriva, que, na verdade, do que se está falando é de trânsitos entre pares onde o cuidado ocupa o lugar da transversalidade, uma vez que: 1) rompe a noção de dependência frente à independência, ao destacar a ideia de que todas as pessoas têm de se cuidar no dia-a-dia, que dependem umas das outras em diferentes dimensões e em momentos diferentes da vida; 2) entrelaça, de maneira indissociável, o “material” e o “imaterial”; 3) atravessa várias esferas de atividade econômica (une o comercial ao não-comercial); 4) não se restringe às famílias, e tampouco a uma mulher em particular, mas historicamente tem sido organizado em torno de redes de mulheres, dentro e fora de casa, remuneradas ou não remuneradas, parte de famílias nucleares ou estendidas, entre outras; 5) são cadeias de mulheres que atravessam as fronteiras; 6) é um trabalho em que se misturam várias tarefas ao mesmo tempo, exigindo constante gestão de tempo e espaço e versatilidade de conhecimentos; e 7) é um trabalho em que a diferenciação entre o tempo de vida e tempo de trabalho é extremamente difícil.1010. Precarias a la Deriva, A la Deriva por los Circuitos de la Precariedad Femenina, 224-225.
No entanto, apesar de maior precisão que tem recebido o conceito ao longo do tempo, ele ainda não é consensual, dando origem a controvérsias entre aqueles que tentam dar uma abordagem teórica capaz de superar as fronteiras nacionais, as diferenças quanto ao gênero e as relativas ao parentesco, e aqueles que limitam seu âmbito, tornando-o uma categoria de descrição localizada em um contexto nacional particular, deixando de fora todas as experiências de cuidado exercido à distância, o chamado cuidado transnacional. Em suma, os contextos são relevantes para a compreensão dos cuidados,1111. Carmen Gregorio Gil, “Silvia, Quizás Tenemos que Dejar de Hablar de Género y Migraciones: Transitando por el Campo de los Estudios Migratorios,” Gazeta de Antropología 25, no. 1 (2009): 1-17. e pertencem a um cenário de mobilidade em que o cuidado emerge não só como uma categoria analítica, mas também como uma categoria política.
Como se pode comprovar no transcurso das últimas décadas, as migrações têm sido uma área de estudo muito importante para a investigação contemporânea sobre desigualdades no marco das ciências sociais. Nos trabalhos que focam nas relações de poder na análise do fenômeno migratório, as perguntas sobre as diferenças de gênero, parentesco, classe social, nacionalidade ou idade, entre outras, têm sido uma preocupação. Em estreita vinculação com a inquietação por mostrar como se produzem e se reproduzem as desigualdades, os cuidados emergem como uma prática a partir da qual se pode analisá-las, principalmente a partir do interesse pelas relações de gênero como relações de poder inseparáveis, exercidas fundamentalmente no exercício de parentesco transnacional ou, de forma equivalente, nos vínculos de parentesco que permanecem além das fronteiras do Estado-nação.
Se olharmos para apenas alguns anos atrás, notaremos que, em análises sobre as migrações, as questões relacionadas com o gênero estiveram voltadas para a mudança social. Essas investigações se perguntavam se, com a migração, as relações de gênero tenderiam a ser mais igualitárias, ou se, pelo contrário, as relações de desigualdade e subordinação já existentes no local de origem seriam reproduzidas no destino. As indagações se situavam nas transformações ou permanências, no aqui ou ali.
Posteriormente, as pesquisas realizadas principalmente a partir de uma abordagem feminista1212. Em relação a isso, o olhar da antropologia feminista sobre os processos de construção e mudança das relações de gênero nas migrações levou à análise das articulações entre gênero e parentesco como relações de poder inseparáveis. Essa perspectiva, na qual me situo, interpreta claramente os sujeitos e contextos em que a migração ocorre, explica não só sua feminização, mas também a reprodução da desigualdade nos contextos de transnacionalidade. começaram a visualizar como os discursos de mulheres sobre suas migrações, sua responsabilidade como mães, mas também como irmãs ou filhas, ocupavam um lugar central para elas, assim como para os outros membros de sua família e redes de parentesco. Esses estudos mostraram como a circulação de mercadorias, cuidados e afetos entre mulheres relacionadas entre si sustentavam a vida familiar no espaço transnacional.1313. Carmen Gregorio Gil e Herminia Gonzálvez Torralbo, “Las Articulaciones entre Género y Parentesco en el Contexto Migratorio: Más Allá de la Maternidad Transnacional,” Ankulegi. Revista de Antropología Social, no. 16 (2012): 43-57. A partir de então, o parentesco se incorpora aos estudos sobre migração transnacional como um eixo de diferenciação social e, como resultado, as famílias e as redes de parentesco são consideradas não apenas como unidades de análise, mas também como eixos de desigualdade social. A inclusão das relações de parentesco como relações de poder e desigualdade coloca em diálogo as famílias com a reprodução social da vida transnacional e as práticas de cuidado e ser cuidado com as relações de parentesco transnacional (maternidade, paternidade e conjugalidade transnacionais). Assim, a feminização das migrações, o uso de novas tecnologias da informação e comunicação e desligamento da própria mobilidade da migração contemporânea permitiram que as questões relacionadas com a mudança social se juntassem às da reprodução social, ao visibilizar a preocupação por cuidados, por famílias transnacionais e parentesco transnacional.1414. Carmen Gregorio Gil, “El Estudio de las Migraciones Internacionales desde una Perspectiva de Género,” Migraciones, no. 1 (1997): 145-75; Carmen Gregorio Gil, “Tensiones Conceptuales en la Relación ‘Género y Migraciones’. Reflexiones desde la Etnografía y la Crítica Feminista,” Papers. Revista de Sociología 97, no. 3 (2012): 569-90. A partir desse ponto, a análise das “cadeias globais de cuidados”, termo cunhado pela socióloga feminista A. Hoschschild1515. Hochschild, “Las Cadenas Mundiales de Afecto,” 187-208., assume o seu papel protagonista devido ao interesse em conhecer como se sustenta a vida transnacional.
As transformações do capitalismo global nas sociedades de bem-estar1616. Lourdes Benería, “Crisis de los Cuidados, Migración Internacional y Políticas Públicas,” In: El Trabajo de Cuidados. Historia, Teoría y Políticas, ed. Cristina Carrasco, Cristina Borderías e Teresa Torns (Madrid: Catarata, 2011): 359-89. desencadearam a visibilidade dessas cadeias globais de cuidados que transcendem as fronteiras do Estado-nação, como resultado do papel desempenhado pelas mulheres migrantes na solução da crise global de cuidados. Assim, quando falamos de cuidados em relação à mobilidade que acontece para além das fronteiras, muitos desses estudos se concentram no gerenciamento do bem-estar familiar.1717. Amaia Pérez Orozco, Miradas Globales a la Organización Social de los Cuidados en Tiempos de Crisis I: ¿Qué Está Ocurriendo? (Serie Género, Migración y desarrollo, no. 5) (Santo Domingo: Instituto Internacional de Investigaciones y Capacitación de las Naciones Unidas para la Promoción de la Mujer, 2009). Nesse contexto de transformações em nível global, a crítica feminista é quem, mais uma vez, se preocupará em analisar a reprodução da desigualdade a partir das práticas de cuidar e receber cuidados como princípios de organização social na compreensão das causas e impactos das migrações.1818. Carmen Gregorio Gil, Migración Femenina. Su Impacto en las Relaciones de Género (Madrid: Narcea, 1998); Herminia Gonzálvez Torralbo, Migración Colombiana, Género y Parentesco. La Organización Social de los Cuidados (Granada: Editorial Universidad de Granada, 2010). Nesses estudos, o feminismo se encarregará de analisar a especificidade do trabalho de cuidado, perguntando-se por quem se faz o quê, como, quando e para quê, para, assim, visualizar essas práticas a partir da complexidade de seus aspectos morais, materiais e afetivos em contextos locais e agora também transnacionais. Assim, seguir a extensão dessa cadeia, que depende não só da distribuição intrafamiliar dos cuidados, mas também da existência de serviços públicos, políticas migratórias ou de regulamentação do trabalho doméstico, entre outras, permite visualizar como, a partir do cuidado transnacional, desigualdades de gênero são produzidas.
Agora, se nos aprofundarmos na relação entre cuidado e migração transnacional, percebemos que os cuidados e as cadeias globais de cuidados aparecem naqueles estudos que analisam a família transnacional,1919. Deborah Bryceson e Ulla Vuorela, ed., The Transnational Family: New European Frontiers and Global Networks (Oxford: Berg, 2002); Loretta Baldassar, Raelene Wilding e Cora Baldock, Families Caring across Borders. Migration, Ageing and Transnational Caregiving (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007). ou mais especificamente, o vínculo da maternidade transnacional,2020. Pierrette Hondagneu-Sotelo e Ernestine Avila, “‘I’m Here, but I’m There’: The Meanings of Latina Transnational Motherhood,” Gender and Society 11, no. 5 (1997): 548-71; Gil e Torralbo, “Las articulaciones”, 43-57. ou seja, a partir do trabalho de apoio e cuidado que são pressupostos nessa relação mantida à distância. Baldassar,2121. Loretta Baldassar, “Transnational Families and the Provision of Moral and Emotional Support: The Relationship Between Truth and Distance,” Identities: Global Studies in Culture and Power 14, no. 4 (2007): 385-409. a partir da classificação de cuidados de Finch2222. Jane Finch, Family Obligations and Social Change (Cambridge: Polity Press, 1989)., estabelece diferentes tipos de apoio ou cuidado dispensados na migração, entre eles: apoio ou cuidado prático, financeiro, pessoal e moral e/ou emocional. De acordo com Baldassar,2323. Ibid. é sobre o apoio ou cuidado moral e/ou emocional que as relações familiares são consolidadas, o que se reflete no esforço para “manter contato”, ou seja, na aspiração não só por manter abertos os canais de comunicação, mas também os níveis de conexão emocional. Assim, o “estar em contato” implica em “trabalho de parentesco”,2424. Herminia Gonzálvez Torralbo, “El ‘Trabajo de Parentesco’ que Realizan las Familias en Santiago de Chile,” Revista de Antropología Social 25, no.1 (2016): 153-69. ou “trabalho emocional”,2525. Arlie Hochchild, “Las Cadenas Mundiales de Afecto y Asistencia y la Plusvalía Emocional,” In: En el Límite. La Vida en el Capitalismo Global, ed. Anthony Giddens e Will Hutton (Barcelona: Tusquets, 2001), 187-208. que é entendido como uma espécie de cuidado emocional nos termos de Finch.2626. Finch, Family Obligations, 1989. Além disso, as autoras Baldassar, Baldock e Wilding argumentam que o apoio moral e emocional “ajuda os migrantes a lidar com a tristeza e os pais e mães com seu profundo sentimento de perda devido à longa distância que os separa de seus filhos e netos. Envolve apoio mútuo quando as crises ocorrem devido a doença, morte ou ruptura familiar. À distância, o apoio moral e emocional é realizado por meio de cartas, telefonemas, emails e outras comunicações”.2727. Baldassar, Wilding e Baldock, Families Caring Across Borders, 87.
A organização social do cuidado é a maneira como cada sociedade estabelece uma correlação entre suas necessidades específicas de cuidados e a forma como responde a isso. É a forma como atores sociais que podem desempenhar um papel na prestação de cuidados (família, comunidade, mercado e Estado) são combinados para essa provisão, assim como a definição do protagonismo que cada um assume.2828. Mary Daly e Jane Lewis, “The Concept of Social Care and the Analysis of Contemporary Welfare States,” British Journal of Sociology 51, no. 2 (2000): 281-98; Irma Arriagada (coord.), Familias y Políticas Públicas en América Latina. Una Historia de Desencuentros (Santiago de Chile: CEPAL-UNFPA, 2007); Irma Arriagada, La Organización Social de los Cuidados y Vulneración de Derechos en Chile (Santiago de Chile: ONU Mujeres y Centro de Estudios de la Mujer - CEM, 2011); ONU Mujeres, Sesión 2. La Organización Social del Cuidado: Identificación de Necesidades y Escenarios de Cuidado (Santiago de Chile: ONU Mujeres Centro de capacitación, 2014). Esse conceito, “organização social dos cuidados” é uma adaptação regional, que surgiu na América Latina, do conceito de Social Care, proposto por Daly e Lewis.2929. Daly y Lewis, “The Concept of Social Care,” 281-98. Nas palavras de Arriagada,3030. Irma Arriagada, “La Crisis de Cuidado en Chile,” Revista de Ciencias Sociales Uso del Tiempo, Cuidados y Bienestar en Desafíos de Uruguay y la región XXIII, no. 27 (2010): 59. refere-se a “inter-relações entre as políticas econômicas e sociais do cuidado. Trata-se da forma de distribuir, compreender e gerenciar a necessidade de cuidados que sustentam o funcionamento do sistema econômico e da política social”. Assim, para entender como se organizam socialmente os cuidados, é necessário conhecer as necessidades de cuidados existentes em determinado contexto e como são respondidas pelos diferentes atores. Os atores antes mencionados – família, comunidade, mercado e Estado – configuram o “diamante de cuidado”. Essa expressão não apenas enfatiza a presença dos mesmos, mas também faz referência às relações estabelecidas entre eles: a provisão de cuidados não ocorre de maneira isolada ou estagnada, mas resulta de uma continuidade na qual se sucedem as atividades, trabalhos e responsabilidades.3131. Corina Rodríguez, “Economía Feminista y Economía del Cuidado. Aportes Conceptuales para el Estudio de la Desigualdad,” Nueva Sociedad, no. 256 (2015): 40. Trata-se de um diamante de cuidado que se reproduz e se mantém também transnacionalmente.
A partir de um marco mais amplo, no que diz respeito à relação entre migração e organização social dos cuidados, compreende-se, nas palavras de Gregorio,3232. Carmen Gregorio Gil, “Devenir Mujer y Antropóloga y Transitar por el ‘Campo’ de los Estudios Migratorios,” In: IV Congreso Iberoamericano de Estudios de Género. Los Caminos de la Libertad y la Igualdad en la Diversidad (Rosario, Argentina, 2008): 4. que:
no novo contexto global, as fronteiras de gênero produzidas pela separação da esfera reprodutiva, e entendida como doméstica, e da esfera produtiva, entendida como trabalho fruto do “contrato sexual”, se torna mais complexa com o surgimento de novas lógicas de dominação. Assistimos à produção de corpos-máquinas masculinizados, na medida em que são requeridos para produzir a mais-valia no contexto das relações de mercado, corpos sexuados em relação ao emprego e incapacitados para cuidar e auto-cuidado e corpos feminizados, etnizados e proletarizados que transitam entre a casa e o mercado, e necessários na produção de mais-valia também como provedores de cuidados.3333. Carmen Gregorio, “Análisis de las Migraciones Transnacionales en el Contexto Español, Revisitando la Categoría de Género desde una Perspectiva Etnográfica y Feminista,” Nueva Antropología. Revista de Ciencias Sociales no. 74 (2010): 61.
Sob essa lógica global, a migração torna visível essa imprecisão e os cuidados são convertidos em eixo articulador delas mesmas. Em relação a isso, estudos sobre a organização social dos cuidados3434. Irma Arriagada e Rosalba Todaro, Cadenas Globales de Cuidados: El Papel de las Migrantes Peruanas en la Provisión de Cuidados en Chile (Santiago de Chile: ONU Mujeres, 2012); Herminia Gonzálvez Torralbo, “Migración Colombiana, Género y Parentesco: La Organización Social de los Cuidados” (Tesis Doctoral, Universidad de Granada, 2010); Elaine Acosta, “Entre la Necesidad y el no Reconocimiento: La Valoración de la Dimensión Temporal en las Estrategias Familiares para la Contratación de Cuidadoras Domésticas Inmigrantes en España y Chile,” Si Somos Americanos 13, no. 2 (2013): 141-64. permitiram dimensionar e dar visibilidade ao papel das migrações internacionais e, em particular das mulheres nesse contexto, devido ao peso analítico, político e ideológico, que resulta na categoria de “cuidados”. Trata-se de uma categoria também política, na medida em que a “crise dos cuidados”, produto das transformações produzidas em conteúdos, protagonistas e circunstâncias em que o trabalho de cuidado se realiza, e a “mercantilização dos afetos”, produto da articulação entre práticas econômicas e relações afetivas ou sexuais no campo da intimidade (trabalhadoras domésticas, babás, enfermeiras, trabalhadoras sexuais, casamentos transnacionais etc.), desafiam o tipo de análise que se realiza sobre as práticas de cuidar e ser cuidado exercidas à distância.
Pelo exposto, pensamos que, para responder essa questão, para mostrar que cuidados produzem e reproduzem as diferenças de poder, é preciso mostrar as múltiplas desigualdades entrelaçadas na gestão do cuidado transnacional, considerando que essas relações sociais também são permeadas por uma série de dicotomias. Com efeito, se observarmos o geográfico, ou seja, o cuidado local ou transnacional, nos deparamos com a binômio distância/proximidade geográfica3535. O conceito de família transnacional mais utilizado nos últimos anos refere-se a “aquela família cujos membros vivem uma parte ou a maior parte do tempo separados uns dos outros e que são capazes de criar vínculos que permitem que seus membros se sentam parte de uma unidade e percebam seu bem-estar de uma dimensão coletiva, apesar da distância física” (Bryceson y Vourela, The Transnational Family, 2). Se nos concentrarmos nas áreas de ação, ou seja, o cuidado exercido em casa ou fora dela, surge a dicotomia público/privado. Se olharmos para as relações de parentesco, ou seja, para o peso do vínculo consanguíneo na gestão do cuidado, o binômio protagonista se refere à biologia contra a escolha na construção de vínculos que são considerados importantes, deixando de lado os vínculos de parentesco construídos de forma voluntária. Se olharmos o aspecto moral, ou seja, se o melhor cuidado é aquele que se entrega de maneira altruísta ou interessada, observa-se a dicotomia entre interesse pessoal/altruísmo. Se nos concentrarmos no aspecto físico, ou seja, os cuidados exercidos em situação de dependência, emerge o par dependência/autonomia. E, finalmente, se olharmos a partir do temporal, observamos a dicotomia tempo de vida/tempo de trabalho, em relação ao tempo que dedicamos ao cuidado de forma remunerada ou não remunerada, ao custo de outros tempos de nossa vida.3636. Herminia Gonzálvez Torralbo e Elaine Acosta, “Cruzar las Fronteras de los Cuidados. La Migración Transnacional Más Allá de las Dicotomías Analíticas,” In: Las Fronteras del Transnacionalismo. Límites y Desbordes de la Experiencia migrante en el Centro y Norte de Chile, ed. Menara Lube Guizardi (Santiago de Chile: Ocho Libros, 2015): 126-49; Herminia Gonzálvez Torralbo, “Las Familias Transnacionales ¿una Tautología? Más Allá de la Dicotomía ‘Distancia/Proximidad Geográfica’,” Polis, no. 43 (9 junio 2016), acesso em outubro de 2016, http://polis.revues.org/11738. Esses binômios, presentes na gestão das práticas de cuidar e ser cuidado também nas migrações, colocam as mulheres no lado da dicotomia que tem menor valorização, menos reconhecimento e, muitas vezes, menor remuneração.
Em última análise, a partir dessa atribuição de posições dicotômicas, as mulheres migrantes vão tentar cumprir com as obrigações que derivam da reprodução social transnacional, de cuidados transnacionais. Respostas que serão atravessadas não só por suas posições de gênero e parentesco (esposas-mães-irmãs-avós-tias ou amigas), mas também por sua classe social, sua etnia, sua idade ou sua relação colonial, na atribuição dessas dicotomias. Nosso compromisso é mostrar como se reproduz a desigualdade na gestão do cuidado transnacional, nas cadeias globais do cuidado.