Editora Executiva da Sur | Revista Internacional de Direitos Humanos
Enquanto preparávamos esta edição da Sur, tentando responder à pergunta sobre os futuros possíveis para o movimento de direitos humanos num cenário de crise política, econômica e sanitária global, nos deparamos com discussões importantes que desafiaram ou, ao menos, tensionaram algumas das categorias usadas na nossa chamada de artigos: poder, desinformação e “pós-pandemia” são alguns exemplos. Através do diálogo com autoras e autores desta edição, as perguntas iniciais ganharam outros sentidos e as conclusões a que chegamos nem sempre foram as que imaginávamos no início. De qualquer maneira, a Sur continua assumindo o enorme desafio de costurar diversos fios interpretativos, colocar em diálogo muitas vozes e visibilizar perspectivas díspares sobre um trabalho radical e complexo como a defesa e promoção de direitos humanos no Sul Global.
A pergunta pelo futuro implica em uma análise crítica do presente e uma compreensão do passado enquanto história sempre aberta à interpretação. A busca por compreender os meandros do poder, a sua reconfiguração atual e as muitas formas de disputá-lo estão no cerne do debate atual sobre tecnologias, desinformação e democracia. Este cenário, somado a um contexto de desigualdade crescente, agravada pelos impactos de uma pandemia ainda em curso, configura a realidade na qual pessoas, movimentos e organizações (o amplo espectro da sociedade civil) estão inseridos, desenvolvem sua labor e o qual almejam transformar.
Ao concluir essa edição acreditamos ter reunido um importante e diverso grupo de especialistas da academia, de organizações internacionais e de atores e atrizes da sociedade civil com importantes contribuições à discussão sobre as novas configurações de poder global, o papel da tecnologia e da desinformação nos processos democráticos e, finalmente, sobre os desafios estruturais que essa conjuntura coloca para as organizações de direitos humanos.
A pandemia de Covid-19 inaugurou um novo panorama internacional no campo dos direitos humanos. Se, por um lado, assistimos à impressionante capacidade de algumas potências para enfrentar a crise sanitária, por outro, ficou evidente a assimetria de poder global e a imbricada relação entre saúde pública e geopolítica. Além disso, no começo de 2022, o início da guerra entre Rússia e Ucrânia trouxe à superfície as forças profundas dessa reconfiguração do poder global em curso; uma multipolaridade emergente e confusa que se perfila como um campo amplo de disputa entre players cada vez mais importantes e em busca de hegemonia.
Analisar e entender os percursos do poder global não é, porém, uma tarefa simples. Respondendo a esta primeira pergunta sobre as muitas faces dessa reconfiguração de poder, Sonia Corrêa (Brasil), em entrevista para esta edição, concentra sua análise nas conexões, tramas e atores/atrizes-chave do movimento transnacional ultraconservador, cuja força e alcance vêm, precisamente, do poder econômico, político e religioso que querem preservar. As teias complexas desse movimento se enredam com a história recente do Brasil e apontam para uma preocupante disputa epistemológica no campo dos direitos humanos. Por sua parte, Ronilso Pacheco (Brasil/EUA) não apenas propõe uma reflexão sobre o poder da extrema-direita e os desafios para seu enfrentamento, mas também chama atenção sobre a urgente necessidade que o campo progressista tem de compreender e dialogar com outro tipo de poder – aquele que circula nas bases e também disputa (embora de maneira assimétrica) a narrativa de direitos humanos e da democracia.
Ao tratar da contenda política ao redor da gramática dos direitos humanos, Raphael Viana David (Brasil/Suíça) examina, de maneira detalhada, o papel que a China vem crescentemente desempenhando no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ao defender uma perspectiva própria no campo dos direitos humanos. Como potência global, e interlocutor incontornável nos fóruns multilaterais, a China tem exercido uma forte influência nos países do Sul Global.
Em artigo a respeito da política externa brasileira, Déborah Silva do Monte e Matheus de Carvalho Hernandez (Brasil) argumentam que significativas mudanças na política externa do país, durante o governo de Jair Bolsonaro, foram resultado de uma reconfiguração favorável à base eleitoral do ex-presidente, ideologicamente conservadora e de identidade cristã, principalmente evangélica.
A guerra pela informação é, sem dúvida, uma questão que define o nosso tempo. Agressivas campanhas de fake news contribuíram em grande escala na promoção de campanhas enganosas sobre a pandemia de Covid-19 e na pouca adesão ao cronograma de vacinação em diferentes países. Assim também, agendas eleitorais ao redor do mundo têm sido fortemente influenciadas por um uso questionável de redes sociais e meios digitais. A manipulação da informação acontece em diferentes níveis, e enfrentá-la tem se tornado tarefa urgente da agenda democrática de direitos humanos.
Contrariando os prognósticos de superação de fronteiras nacionais, enfraquecimento de governos autoritários e fortalecimento comunitário que pareciam ser as promessas da massificação da internet, a rede reforça, de fato, a importância de velhos elementos já conhecidos, como o poder, a lei e a lógica empresarial.11. Jack Goldsmith e Tim Wu, Who Controls the Internet?: Illusions of a Borderless World (Nova York: Oxford University Press, 2006), acesso em 26 de janeiro de 2023, https://scholarship.law.columbia.edu/books/175/.
A propagação de discursos de ódio foi potencializada pela digitalização da política nas últimas décadas, suscitando importantes debates em torno da responsabilidade estatal na sua regulamentação e punição. Victor Abramovich (Argentina) examina o dilema jurídico entre os princípios constitucionais de igualdade e não discriminação e os princípios legais que protegem a liberdade de expressão na resposta estatal frente aos discursos de ódio. Em seu texto, o autor aponta para algumas diretrizes de prevenção e reparação que permitiriam combater estes discursos que reafirmam estigmas sociais, sendo uma ameaça à dignidade humana e à democracia. Na mesma direção, mas voltada para os discursos de ódio on-line, Natalie Alkiviadou (Chipre/Dinamarca) discute os problemas decorrentes do uso de inteligência artificial (IA) por parte das plataformas digitais para combater discursos de ódio na rede. Embora os mecanismos automatizados possam auxiliar a moderação humana, precisam ser utilizados com precaução na remoção de discursos de ódio na internet, uma vez que podem incorrer em decisões equivocadas e, inclusive, violação de direitos.
O papel da internet e das plataformas digitais nos processos democráticos envolve a preocupação pelos conteúdos (quem os produz e controla) e o acesso a eles, pela violação de direitos decorrentes da vigilância que a era digital tem potencializado, mas também pela desinformação, incluindo uma busca por compreender a percepção de risco atrelados à proliferação de informações falsas na internet. Em entrevista à Sur, Otto Saki (Zimbábue/EUA) chama a atenção para um cenário de novas tecnologias, plataformas de mídias sociais e empresas que se tornaram atores muito poderosos na cena global. Combater os efeitos nocivos da desinformação passa, necessariamente, pelo crivo dos direitos humanos; ao qual ditas empresas não costumam responder, por estarem pautadas pelos interesses do capital e do mercado. A despeito disso, segundo Saki, o paradigma e a estrutura internacional de direitos humanos continuam sendo uma rota ética viável para orientar a busca por soluções e diálogos entre as partes interessadas em combater a desinformação, incluindo os Estados, o setor privado e a sociedade civil.
É importante lembrar que uma caraterística da desinformação, diferentemente de uma simples informação baseada em erro ou ignorância, é a sua intencionalidade, isto é, a sua tentativa maliciosa de enganar.22. Paul Butcher, "Disinformation and democracy: The home front in the information war". European Policy Centre, 30 de janeiro de 2019, acesso em 27 de janeiro de 2023, https://www.epc.eu/content/PDF/2019/190130_Disinformationdemocracy_PB.pdf. É nesse sentido que a divulgação de informação falsa tem operado em muitos contextos eleitorais, visando influenciar um resultado específico. Nina Santos (Brasil) descreve os principais aspectos da acirrada luta informacional durante as eleições de 2022 no Brasil, incluindo os desafios que o combate à desinformação e a busca por um ambiente digital saudável colocam para as plataformas digitais, o poder público e a sociedade civil, para além do contexto eleitoral.
A seção de peças artísticas desta edição da Sur contou com a curadoria de Bruno Oliveira (Brasil), que em um potente texto sobre a disputa e a ruína dos monumentos, discute representação, colonialidade e reconstrução coletiva de sentidos e memória histórica. Essa reflexão se desenrola em diálogo com duas intervenções artísticas. A primeira consiste em pequenas e frágeis estátuas de gelo cuidadosamente dispostas e fotografadas, enquanto se derretem ao sol; a segunda é um ato coletivo e público de lavar as bandeiras nacionais, como um ritual de limpeza simbólica e clamor democrático. O registro fotográfico dessas duas intervenções compõe a galeria de imagens da Sur intitulada: Reconstruir símbolos, reinventar monumentos. O “Monumento Mínimo”, da artista Néle Azevedo (Brasil), e a ação performática “Lava a bandeira”, do Coletivo Sociedade Civil (Peru), disputam, cada uma a seu modo e contexto, o sentido hegemônico de monumentos e símbolos pátrios, enquanto gestam novos significados num exercício artístico-político de reconstrução e imaginação. A capa e as artes de divulgação desta edição da Sur foram inspiradas no registro fotográfico do Monumento Mínimo.
Claudia Coca (Peru), artista visual e ativista política que integrava o Coletivo Sociedade Civil à época da performance “Lava a bandeira” nos anos 2000, compartilha, em breve entrevista à Sur, a sua percepção sobre as convergências entre o contexto político que motivou a intervenção pública de lavagem pública da bandeira nacional e a atual e grave crise política que atravessa o país.
Organizações de direitos humanos ao redor do mundo enfrentam desafios relacionados a um cenário de mudanças e incertezas ocasionado pela pandemia de Covid-19 e seus impactos de longo prazo. Impactos que levaram, entre outras coisas, a uma revisão de estratégias internas de resposta a crises e que pressionaram por uma maior preocupação com processos e protocolos, institucionais e interinstitucionais, de bem-estar e cooperação.
Akwe Amosu (Nigéria/Inglaterra) apresenta algumas conclusões do intercâmbio entre lideranças globais de ativismo e advocacy em direitos humanos no “Simpósio sobre Força e Solidariedade pelos Direitos Humanos”, onde o objetivo principal é discutir os elementos que fortalecem ou enfraquecem as suas organizações, de modo a fortalecer e promover solidariedade no campo. Segundo Amosu, três áreas precisam de maior atenção: governança da diretoria, transições de liderança executiva e cultura organizacional interna. Muriel Asseraf (França/Brasil) expõe os principais desafios enfrentados pela Conectas Direitos Humanos na sua trajetória de autorreflexão, aprendizagem e fortalecimento da capacidade institucional. Este exercício interno implicou, por exemplo, a implementação de medidas para garantir maior segurança e bem-estar das pessoas da equipe, num contexto de extrema angústia e incerteza potencializado pela pandemia. Financiamento, trabalho com parceiros e atenção à saúde organizacional são pontos-chave para a construção de fortalecimento e capacidade institucional. Na mesma direção, Carlos Quesada (Costa Rica/EUA), em entrevista à Sur, argumenta sobre a necessidade de fortalecer o movimento de direitos humanos para além da compartimentalização de direitos. Quesada afirma que se reconhecer e aprender entre pares é um passo importante para enfrentar, de maneira coletiva e articulada, um dos grandes problemas que enfrentam as organizações na região: a sustentabilidade e o acesso a recursos. Assim, estratégias e oportunidades também podem ser pensadas e assumidas de maneira coletiva.
Este número da Sur também inclui o perfil de duas mulheres que dedicam sua vida a reivindicar melhores condições para mulheres e ativistas do Sul Global. Lutas muito particulares que, ao mesmo tempo, demandam solidariedade internacional. Nesse sentido, o perfil de Miluska Luzquiños (Peru), advogada e ativista pelos direitos das mulheres trans, reflete o árduo trabalho que algumas organizações tiveram para sobreviver no período da pandemia, assim como os impactos diferenciados sobre a população trans. Miluska, como é mais conhecida, é protagonista no projeto de lei de identidade de gênero que tramita desde 2016 no Congresso peruano e que busca, entre outras coisas, a despatologização da transsexualidade e a gratuidade na retificação do nome em documentos oficiais. Já no perfil de Firuzeh Mahmoudi (EUA/Irã), criadora da United for Iran, organização que disponibiliza ferramentas tecnológicas para a construção de uma sociedade mais livre e democrática envolvendo ativistas iranianos em todo o mundo, destaca-se o importante papel do movimento organizado de mulheres iranianas nas multitudinárias manifestações após a morte de Mahsa Amini em setembro de 2022, e se argumenta a favor da necessária (e almejada) transição de um governo teocrático para um Estado laico.
Por fim, duas entrevistas fecham os conteúdos do nosso dossiê. Tania Reneaum Panszi (México), Secretária Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), descreve, entre os pontos prioritários da sua agenda, o fortalecimento institucional da Comissão, a implementação de planos estratégicos para o avanço em matéria de direitos humanos na região – enquanto reafirma a responsabilidade dos Estados no cumprimento das suas obrigações internacionais na garantia de direitos humanos -, e seu dever de uma interpretação evolutiva dos mesmos. Decidimos, de forma muito consciente, fechar este editorial com a entrevista que a Sur teve a honra de fazer com a artista e educadora Walidah Imarisha (EUA), ainda no exercício de reconhecer a força desta aproximação entre arte e direitos humanos. Ela explica a importância da “ficção científica e visionária” – um tema que à primeira vista poderia parecer não ter relação alguma com a luta por direitos – para a articulação política e o trabalho dos movimentos por justiça social. Uma pergunta simples é lançada para nós: como construir maneiras mais justas e coletivas de reorganizar o mundo prescindindo de um exercício de imaginação? Como conseguimos trabalhar por uma realidade concreta que sequer conseguimos dimensionar na nossa cabeça? O mundo que queremos não existe, ele precisa ser construído coletivamente, e para isso serve a ficção visionária ou ficção científica radical, algo que pode nos ajudar a sonhar melhor sobre futuros mais justos e a transformá-los em realidade. Nas sábias palavras de Imarisha, “[…] é somente por meio da imaginação acerca do assim chamado impossível que podemos começar a concretamente construí-lo”.33. Walidah Imarisha, “Rewriting The Future: Using Science Fiction To Re-Envision Justice.” Bitch Media, February 11, 2015, acesso em 31 de dezembro de 2022, https://www.bitchmedia.org/article/rewriting-the-future-prison-abolition-science-fiction.
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Queremos começar com um especial agradecimento para Juana Kweitel, Diretora Executiva da Conectas até dezembro de 2022. Não só pela sua participação ativa na preparação deste número, na delimitação dos temas e até no título dessa edição, mas principalmente pelo seu compromisso constante com os conteúdos e nomes presentes nas edições da Sur. Destacamos o seu olhar sempre crítico e a confiança posta no potencial e alcance da revista no seu objetivo de ser um espaço relevante de convergência de vozes, experiências e práticas em matéria de direitos humanos, capaz de influenciar a agenda global de direitos humanos, principalmente do Sul Global. Muchas Gracias, Juana!
Gostaria de agradecer à equipe editorial e, em particular, ao Renato Barreto e à Gabrielle Martins da Silva pela dedicação e cuidado com os muitos processos que tornam possível esta publicação. Ao Programa de Fortalecimento do Espaço Democrático pela colaboração com contatos, revisão de textos, diálogos ricos e acompanhamento na elaboração desta edição. Não podemos deixar de mencionar e agradecer a equipe de Comunicação da Conectas pelo suporte ao longo da produção da revista.
Esta edição da Sur não seria possível sem o apoio de financiadores que acreditam e apoiam o nosso trabalho. Agradecemos especialmente à Open Society Foundations, Sigrid Rausing Trust, Oak Foundation, assim como aos doadores particulares e anônimos que apoiam a defesa de direitos humanos no trabalho da Conectas.
Agradecemos, também, às seguintes pessoas que colaboraram nesta edição: Bruno Oliveira, Camila Asano, Carla Cristina Vreche, Carlos José Beltrán Acero, Celina Lagrutta, Fernando Campos Leza, Fernando Sciré, Giovanna Cardoso Pereira, Inara Cibele Alves de Carvalho Cencig, Jane do Carmo, Javier Esteban Cencig, Karen Lang, Letícia Coelho, Lucas Gomes, Luis Misiara, Marina Rongo, Michelle Magalhães, Naiade Rufino Silva, Néle Azevedo, Raissa Belintani, Renata Amado Bahrampour, Sara Baptista, Saulo Padilha, Sebastián Porrua Schiess e Thaís Sena.