Com colaboração de
Diretora-Executiva Conectas Direitos Humanos
Assessor de Programa, The Fund for Global Human Rights
Editor, Revista Sur
Desde que começamos a preparar a 26ª edição da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, à qual a Conectas teve a honra de receber a colaboração do Fundo para os Direitos Humanos Globais (O Fundo), testemunhamos contínuas repressões à sociedade civil em todo o mundo.
Conforme é possível verificar por meio do alcance geográfico das contribuições (vindas de 16 países), assim como no infográfico desta edição, a questão é claramente uma preocupação global. A primeira seção da revista procura abordar as causas dessa repressão, quem a está liderando e se há fertilização cruzada de ideias entre atores.
A edição, portanto, tem como ponto central as estratégias implementadas por ativistas para combater a repressão. Um resumo dessas estratégias pode ser visto em um vídeo que captura uma série de perspectivas de autores e autoras ativistas, compartilhadas durante uma reunião em São Paulo, em outubro de 2017, para uma oficina de escrita.
Ao decidir produzir esta edição especial da Sur, a Conectas e o Fundo visaram resolver a assimetria na produção do material atualmente disponível, a maior parte centrada em diagnósticos e não em respostas às repressões que estamos testemunhando. As contribuições para esta edição fornecem uma riqueza de estratégias empregadas por ativistas em seus contextos locais, que podem ser adaptadas e replicadas em outros países ou regiões. Os autores oferecem uma avaliação autocrítica, ajudando os leitores a entender quais as estratégias bem-sucedidas, mas também quais os desafios de cada caso.
Esta edição também inclui contribuições que abordam a resiliência financeira, a sustentabilidade e o bem-estar das organizações de direitos humanos no contexto das restrições à filantropia transfronteiriça e a insegurança e o medo criados pela atual onda de repressão em todo o mundo.
Apesar dos difíceis cenários em que operam muitos dos autores e autoras desta edição, a mensagem preponderante não é a de uma batalha perdida contra forças sempre poderosas. Em vez disso, os e as ativistas desta edição descrevem uma sociedade civil vibrante que está se adaptando aos desafios atuais com criatividade, resiliência e esperança. Além disso, as contribuições enfatizam a importância e a eficácia da coordenação e das alianças entre os movimentos da sociedade civil, além dos silos estreitos que frequentemente ocupamos. Quando essa criatividade, resiliência e esperança se combinam com um sentido renovado de propósito comum e comunitário, indo além das linhas tradicionais, começamos a ver uma força que pode resistir à repressão e ser capaz de recuperar o espaço civil.
Para ajudar a entender por que estamos testemunhando essa repressão, Ana Cernov, Victoria Ohaeri, Olga Guzman e Zoya Rehman remetem à percepção negativa dos ativistas de direitos humanos em muitos contextos e às questões que envolvem a legitimidade e a responsabilização das ONGs – muitas vezes promovida por autoridades repressivas para facilitar suas tentativas de conter a sociedade civil e que limita a capacidade desta de lutar, fazendo com que não conte com apoio público. Maina Kiai, Danny Sriskandarajah e Mandeep Tiwana e Denise Dora, Ravindran Daniel e Barbara Klugman destacam o papel do setor privado e sua convergência de interesses – e até mesmo os flagrantes conluios – tendo os governos repressivos como outro importante motor dessa repressão. Com a maioria das empresas focadas na maximização dos lucros, esses autores e autoras questionam se o setor pode realmente ser visto como um aliado na promoção e proteção dos direitos humanos.
Várias contribuições apontam para o Norte Global, cujo papel em causar a repressão não foi suficientemente examinado. Ana Cernov, Maina Kiai, Danny Sriskandarajah e Mandeep Tiwana concluem que as tendências cada vez mais populistas e nacionalistas que o Norte Global vem promovendo levam governos repressivos a justificar mais descaradamente as restrições por meio da ideia de que “se eles conseguem sair impunes deste tipo de situação, nós também podemos” (Maina Kiai). Além disso, essas tendências também resultam em menos dinheiro destinado ao Sul Global para o apoio ao trabalho crítico que protege e capacita a sociedade civil – seja porque as verbas de apoio estão diminuindo ou porque as populações estão se tornando mais seletivas em suas doações pessoais (Ana Cernov). O papel do Norte não deve ser esquecido no que tange à Força-Tarefa de Ação Financeira (discutida por Ana Cernov, Victoria Ohaeri e Miguel de la Vega) – tendo sido fundada, afinal, por um grupo de países do Norte, o G7, em 1989 – cujo objetivo legítimo de combater o financiamento do terrorismo e evitar a lavagem de dinheiro acabou por fortalecer Estados repressivos.
Fundamentalmente, sustentando tudo isso, está o fato de que a repressão global é um “fenômeno de gênero” (Bondita Acharya, Helen Kezie-Nwoha, Sondos Shabayek, Shalini Eddens e Susan Jessop). As mulheres e a comunidade LGBTI não sofrem apenas a repressão devido à natureza de gênero de seu trabalho, mas em países onde a sociedade civil está particularmente sob ataque, os papéis de gênero tradicionais e os valores patriarcais são usados como um meio de repressão, agravada por outras formas de discriminação baseada na orientação sexual, classe e raça.
A importância da construção de alianças e coalizões foi mencionada com mais frequência como estratégia-chave para resistir às restrições contra a sociedade civil (Ana Cernov, Stefánia Kapronczay, Adrian Jjuuko e Linette du Toit, Danny Sriskandarajah e Mandeep Tiwana, Miguel de la Vega, Olga Guzman, Raull Santiago, Zoya Rehman, Jonas Bagas, Valerie Msoka e Denise Dora, Ravindran Daniel e Barbara Klugman). Os autores descrevem como a coalizão e a construção de alianças ajudam a quebrar os silos tradicionais nos quais as organizações de direitos humanos muitas vezes operam. Trabalhar em coalizões e alianças proporciona uma voz e uma ação coletivas mais fortes que podem contribuir para o compartilhamento de conhecimento e a capacitação em torno de estratégias e táticas de conformidade e resistência. Além disso, essa estratégia reduz a probabilidade ou o impacto de uma organização ser alvo das autoridades. Dito isto, resta afirmar que o processo apresenta desafios. Decidir sobre quais são os objetivos comuns e assegurar que todas as organizações tenham voz igual, independentemente de seu tamanho e dos recursos de que dispõem, pode ser difícil, na melhor das hipóteses, e o é ainda mais em um contexto de repressão sustentada, no qual as apostas são mais altas. E, às vezes, as opiniões dos membros podem diferir, o que resulta no rompimento e até mesmo no colapso de alianças.
O protesto também continua a ser uma estratégia importante e Maina Kiai descreve essa ferramenta como sendo a “mais eficaz” para jogar luz sobre o excesso do poder desfrutado pelo Estado contra a sociedade civil. Sara Alsherif descreve como a No Military Trials for Civilians usou os protestos como estratégia para fazer campanha contra julgamentos militares para civis no Egito. A autora examina os perigos que o protesto pode trazer à vida e à integridade física – o que se dá de maneira particularmente acentuada em países que possuem governos repressivos – e a importância de avaliar a estratégia contra essas ameaças. Consequentemente, o grupo readaptou os melhores momentos e maneiras de se realizar protestos como reação à crescente brutalidade das autoridades em relação aos manifestantes.
Victoria Ohaeri e Miguel de la Vega descrevem as razões que levam suas respectivas organizações a considerarem o monitoramento, a compreensão e o registro das medidas restritivas como sendo o primeiro passo na resistência efetiva ao fechamento do espaço civil. É fundamental estarmos cientes de todas as leis que estão sendo discutidas pelo parlamento, uma vez que as tentativas de restringir a sociedade civil podem estar escondidas nos projetos de lei mais inócuos. Além disso, através da construção dessa experiência, as organizações se tornam uma referência sobre o assunto, fortalecendo assim seu trabalho de advocacy neste tema, tanto em nível nacional como internacional, nos meios de comunicação e nas audiências parlamentares sobre projetos de lei. Denise Dora, Ravindran Daniel e Barbara Klugman também destacam a produção de conhecimento como uma ferramenta importante – particularmente a partir da perspectiva do Sul Global –, pois ela ajuda a subsidiar a compreensão global sobre as forças empregadas localmente e orientam as respostas das ONGs e dos doadores internacionais.
Apesar dos importantes desafios e das restrições que muitas autoridades estão colocando para tentar deter a sociedade civil, Miguel de la Vega, Sara Alsherif e Jonas Bagas relatam que é sempre muito importante, em certos contextos, manter o diálogo com o governo e encontrar perspectivas mais tolerantes ou até mesmo aliados, dentro do que pode parecer um sistema político muito fechado. Esses indivíduos podem significar uma brecha de oportunidade para se iniciar um diálogo, apresentar propostas ou encontrar recursos alternativos de financiamento.
Onde os aliados políticos não são possíveis, o sistema de justiça continua a ser uma ferramenta importante, com muitos sucessos, como observado por Victoria Ohaeri, Adrian Jjuuko e Linette du Toit. Além de levar casos aos tribunais nacionais, a importância de operar em nível regional também foi enfatizada por Denise Dora, Ravindran Daniel e Barbara Klugman e Adrian Jjuuko e Linette du Toit. Essa ação ajuda a dissipar a narrativa de que os valores da sociedade civil são derivados do Norte Global – uma estratégia frequentemente empregada por governos repressivos para desacreditar o trabalho das ONGs.
O papel das novas mídias e espaços on-line para combater a repressão é prevalente nas contribuições. A facilidade e a rapidez com que as informações podem ser transmitidas em plataformas como Facebook, Twitter, WhatsApp e Telegram foram citadas como importantes na mobilização de apoio rápido, bem como para ajudar as bases anteriormente inexploradas (Sara Alsherif, Zoya Rehman, Raull Santiago, Victoria Ohaeri, Valerie Msoka e Denise Dora, Ravindran Daniel e Barbara Klugman). Apesar das oportunidades, Bondita Acharya, Helen Kezie-Nwoha, Sondos Shabayek, Shalini Eddens e Susan Jessop, Sara Alsherif e Zoya Rehman observam, todos eles, os desafios que as ferramentas digitais apresentam. O assédio on-line a ativistas está se tornando cada vez mais comum, particularmente em relação às mulheres. Além disso, as autoridades estão constantemente desenvolvendo novas formas de monitorar essas plataformas. Para combater isso, Sara Alsherif descreve como o desenvolvimento de relações com as empresas de tecnologia pode ajudar os ativistas a ficar um passo à frente do meio-fio.
O uso do vídeo é explorado por Hagai El-Ad e Raull Santiago, ambos descrevendo como este meio é uma ferramenta importante para capturar as restrições infligidas à sociedade civil em seus respectivos contextos. Além disso, Raull Santiago descreve como seu coletivo está tentando usar essas imagens de vídeo, capturadas por membros de sua comunidade, em processos legais contra a força policial.
Carlos Patiño discute a importância de desenvolver e manter a resiliência entre ativistas. O autocuidado é apenas um método que ele discute e que é explorado com mais detalhes por Adrian Jjuuko e Linette du Toit e Ana Hernández e Nallely Tello. Ambos os artigos enfatizam que o autocuidado dos ativistas deve desempenhar um papel central na manutenção do movimento – e que indivíduos e organizações compartilham a responsabilidade de garantir esse bem-estar. O papel dos doadores na garantia de disponibilizar fundos para esse tipo de autocuidado também é discutido por Bondita Acharya, Helen Kezie-Nwoha, Sondos Shabayek, Shalini Eddens e Susan Jessop.
Danny Sriskandarajah e Mandeep Tiwana, Maina Kiai e Bondita Acharya, Helen Kezie-Nwoha, Sondos Shabayek, Shalini Eddens e Susan Jessop enfatizam que os doadores devem se concentrar mais no financiamento de organizações de base e fornecer meios de financiamento mais flexíveis para permitir ações de resposta rápida por parte de organizações que de outra forma têm suas atividades restringidas por falta de financiamento para seus projetos. Demandas por relatórios trabalhosos e editais de financiamento que criam competição entre as organizações também se destacam como áreas em que os financiadores precisam melhorar suas políticas, o que permitirá que ativistas atuem com agilidade e se concentrem não apenas em sua missão, mas na defesa de espaço para operarem.
Jonas Bagas oferece uma perspectiva crítica sobre a forma como os financiadores se retiram de certos países e regiões, e os graves efeitos desse movimento no contexto do encolhimento do espaço civil. Ele sugere formas de melhor gerenciar esse processo a serem empregadas tanto pelo financiador quanto pela sociedade civil para garantir a sustentabilidade das organizações envolvidas. Inevitavelmente, isso requer adaptabilidade por parte da sociedade civil. A questão da adaptabilidade no contexto das restrições à sociedade civil também é abordada por Shannon Green. Ela apresenta modelos alternativos de organização e financiamento que podem ajudar os ativistas a contornar as medidas de repressão contra ONGs. G. Ananthapadmanabhan e Shambhavi Madhan observam que os ativistas também devem adaptar sua linguagem e a forma como se comunicam com os financiadores, a fim de reduzir o fosso entre os direitos humanos e o financiamento para o desenvolvimento.
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Finalmente, gostaríamos de enfatizar que esta edição da Revista Sur foi possível graças ao apoio da Fundação Ford, Open Society Foundations, Oak Foundation, Sigrid Rausing Trust, International Development Research Centre (IDRC) e Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA), bem como graças a alguns doadores anônimos. Agradecimentos especiais para esta 26a edição vão para o Fund for Global Human Rights, especialmente para James Savage, cuja vontade de compartilhar sua compreensão sobre as questões referentes ao espaço civil com os autores, as autoras e a equipe editorial contribuiu enormemente com a edição.
Somos também profundamente gratos a toda à equipe Conectas e às seguintes pessoas que nos ajudaram nesta edição: Alexandra DeBlock, Adriana Guimarães, Bianca Santana, Celina Lagrutta, Daniella Hiche, Evandro Lisboa Freire, Fernando Campos Leza, Fernando Sciré, Gustavo Huppes, Gustavo Valentim, Isis Lima Soares, Joana Amaral, Karen Lang, Luiza Bodenmuller, Mariana Manfredi, Muriel Asseraf Nilda Bullain, Pedro Maia Soares, Renato Barreto, Sebastián Porrua Schiess e Thiago Amparo. Além disso, a Conectas Direitos Humanos agradece especialmente a colaboração dos autores e o trabalho árduo da equipe editorial e da diretoria-executiva da Revista.
As equipes de comunicação da Conectas e do Fund for Global Human Rights merecem grande crédito por sua dedicação a esta edição.