Os esforços para reduzir o trauma num sistema forense contencioso são dificultados pela alegação de que o processo por abuso sexual não pode ser realizado sem que se observem os direitos do pretenso perpetrador. Inquirir uma criança-testemunha é uma tarefa muito especializada; os promotores e o advogado de defesa não estão treinados nestes métodos. Apesar disso, os serviços de intermediação para crianças-testemunhas num tribunal são importantes para reduzir o trauma experimentado pela criança. Este artigo objetiva destacar que os crimes contra crianças e os subseqüentes procedimentos criminais nos quais se exige que a criança participe como testemunha ocorrem com suficiente freqüência para que se garantam serviços de intermediação a todas as crianças-testemunhas. Ele destaca as implicações práticas a fim de melhorar o processo corrente de intermediação, em nível regional, provincial e nacional. Primeiramente, o artigo faz uma reflexão sobre os serviços de intermediação oferecidos a crianças-testemunhas em algumas áreas dos subúrbios da região oeste de Johannesburgo; em segundo lugar, discute experiências práticas e literatura de apoio, assim como a experiência da Bethany House com o projeto Child in Crisis Foundation (SA).
Segundo Coughlan e Jarman,1 o objetivo dos serviços de intermediação para crianças-testemunhas é reduzir o trauma experimentado pela criança. No entanto, os esforços para reduzir o trauma num sistema forense contencioso são dificultados pela alegação de que o processo por abuso sexual não pode ser realizado sem que se observem os direitos do pretenso perpetrador. A África do Sul marcou a história do direito internacional (e dos direitos humanos) com a promulgação da Seção 170A do Decreto 51 de Procedimentos Criminais de 1977, que foi introduzida através do Decreto 135 de Emenda à Lei Criminal, de 1991. Este prevê a designação de um intermediário para crianças em casos de abuso sexual em razão da idade precoce e da vulnerabilidade emocional.2
Müller3 diz que ao avaliar a competência da criança para atuar como testemunha devem ser levados em consideração dois aspectos. O primeiro requisito é a capacidade ocular da testemunha, ou seja, sua capacidade de relatar de modo acurado e completo os detalhes de um evento observado. Isso está relacionado ao desenvolvimento cognitivo da criança, considerando-se os fatores que influenciam a aquisição, retenção, recuperação e comunicação verbal de informação. O segundo requisito é a disposição da testemunha em contar a verdade, ou seja, o aspecto motivacional. Mesmo levando em conta que captar a diferença entre verdade e mentira é crucial num testemunho, a competência das crianças-testemunhas a esse respeito foi investigada pela Comissão Legal Sul-Africana em 2001. Depois de avaliar a posição sul-africana, a comissão recomendou que uma testemunha não deve ser desqualificada para depor devido ao fato de ser incapaz de distinguir a diferença entre dizer a verdade e mentir. Argumentou-se que todas as testemunhas devem ser encaradas como competentes para depor se forem capazes de entender as perguntas que lhes forem feitas e puderem por sua vez dar respostas que o tribunal possa entender. O teste proposto é focado na capacidade cognitiva da criança. Porém, fica pouco claro quem vai fazer essas avaliações ou de que maneira elas serão realizadas.4
Segue-se uma descrição prática do processo de intermediação e de sua necessidade:
Na África do Sul, um sistema de intermediação vem tentando reduzir o trauma e o abuso secundário freqüentemente experimentado por crianças-testemunhas em casos judiciais de abuso (sexual). Ao se separar a criança da sala formal do tribunal e permitir que um intermediador transmita as perguntas e as respostas da criança por meio de um sistema fechado de televisão, esperava-se reduzir o estresse que essa experiência gera nas crianças, e ao mesmo tempo preservar os direitos do acusado de interrogar testemunhas e de ter um julgamento justo […]. Proteger os direitos das crianças é um princípio universalmente aceito, que influencia tanto o desenvolvimento de políticas quanto de práticas. Nas situações em que ocorre a violação destes direitos – como no abuso sexual -, é importante que a reação das instituições da sociedade (como a Justiça e o Estado de Bem-estar) se volte não apenas para proteger as crianças de outros abusos de seus direitos, mas também para uma atitude ativa de reparar algumas das violações ocorridas. Portanto, é essencial que, quando possível, as crianças que deponham em casos criminais de abuso sexual sejam protegidas contra danos adicionais. O sistema de intermediação para crianças-testemunhas é um desses esforços.5
Coughlan e Jarman6 também confirmam que uma parte significativa da literatura tem mostrado que a experiência de testemunhar é emocionalmente traumática e, às vezes, em termos de desenvolvimento e cognição, é impossível para uma criança, ao se esforçar para relembrar detalhes durante períodos dilatados de tempo, lidar com a linguagem abstrata, e ficar exposta a processos e padrões que com freqüência são sem sentido para ela. Müller7 afirma que as interrogações seguidas são não só traumáticas para as crianças, mas também resultam em provas pouco precisas. A criança é inquirida num ambiente hostil, muitas vezes a respeito de eventos muito íntimos e de alta carga emocional. A defesa é obrigada a atacar a credibilidade da criança numa tentativa de ressaltar inconsistências e desacreditar o testemunho da criança. À luz disso, a inquirição de uma criança-testemunha é uma tarefa muito especializada; os promotores e o advogado de defesa não estão treinados nestes métodos.8
Este artigo tem duas partes. Primeiro, ele vai refletir sobre os serviços de intermediação oferecidos a testemunhas-crianças em três magistraturas dos subúrbios a oeste de Johannesburg, na província de Gauteng, África do Sul. Segundo, será feita uma discussão sobre experiências práticas e literatura de apoio. Por meio deste artigo, queremos ressaltar que os crimes contra crianças e o subseqüente processo criminal no qual se requer que a criança deponha como testemunha ocorrem com suficiente freqüência para que se garantam serviços de intermediação a todas as crianças-testemunhas. As implicações práticas serão destacadas mais adiante neste artigo, a fim de melhorar o atual processo de intermediação, em nível regional, provincial e nacional.
A introdução do Decreto 135 de Emenda à Lei Criminal, de 1991, na África do Sul, que entrou em vigor em 1º de agosto de 1993, trouxe os seguintes elementos a respeito de casos criminais com crianças-testemunhas, conforme resumido na tabela a seguir por Viviers:9
Seção relevante no Decreto de Procedimento Criminal | Implicação prática |
---|---|
Seção 161 (2) – a inquirição oral deve, no caso de testemunha surda e muda, incluir a linguagem gestual e, no caso de testemunha menor de 18 anos, incluir demonstração, gestos ou qualquer outra forma de expressão não verbal. | Permite que a criança dê testemunho de uma maneira apropriada à sua idade usando gestos, demonstrações e outras formas de comunicação não verbal. É tarefa e responsabilidade do intermediador entender gestos, demonstrações e comunicação não verbais e verbalizar isso para o tribunal. |
Seção 165 – Quando a pessoa envolvida tiver que depor por meio de um intérprete ou intermediador indicado na seção 170A(1), o juramento, a afirmação ou a advertência com fundamento na seção 162, 163 ou 165 devem ser conduzidos pelo juiz presidente, oficial judiciário ou pelo escrivão do tribunal, conforme o caso, por meio do intérprete ou intermediador na presença ou sob as vistas do juiz presidente ou oficial judiciário, conforme o caso. | O juiz ou oficial judiciário pode convocar o intermediador para dar assistência na administração de juramento, afirmação ou admoestação. O intermediador deverá apresentá-los de tal modo que a criança compreenda, e que o tribunal fique satisfeito com o fato de a criança ser capaz de dar testemunho sobre a verdade e saber a diferença entre depoimento verdadeiro e depoimento falso. |
Seção 170A(1) – Sempre que procedimentos criminais estiverem pendentes em algum tribunal e este achar que ele pode expor qualquer testemunha menor de 18 anos a um estresse mental ou sofrimento indevido se ela depuser nestes procedimentos, o tribunal poderá se ater à subseção (4), e indicar uma pessoa competente como intermediador a fim de que tal testemunha seja capaz de depor por meio dele. | A decisão de usar um intermediador fica a cargo do tribunal, e ele deve ser requisitado pelo promotor, com o juiz decidindo a respeito da sua necessidade ou não. Isso exige fortemente que os assistentes sociais advoguem (e não instruam) o uso de intermediadores em todos os casos em que crianças- testemunhas tenham que depor. Deve ser notado que a idade é apenas um dos fatores a considerar ao decidir se se deve nomear um intermediador. O simples fato de que a testemunha seja uma criança não obriga o tribunal a isso. Antes de se tomar uma decisão é necessário garantir às partes uma oportunidade de se manifestar. |
Seção 170A(2)(a) – Nenhum interrogatório, inquirição ou reinquirição de qualquer testemunha para a qual o tribunal haja indicado um intermediador segundo a seção (1), exceto interrogatório pelo tribunal, deve ter lugar a não ser por meio de um intermediador. | Todas as questões feitas pelo promotor, pela defesa ou por qualquer outra pessoa no tribunal devem ser dirigidas à criança por meio do intermediador. Apenas o tribunal, isto é, o magistrado tem a prerrogativa de fazer perguntas diretamente à criança-testemunha. Em tais casos, o magistrado tem que pedir ao intermediador para formular a pergunta, como foi feita, à criança, ou o magistrado pode endereçá-la à criança diretamente. |
Seção 170A(2)(b) – O referido intermediador pode, exceto quando o tribunal decidir de outro modo, transmitir o conteúdo geral de qualquer pergunta à testemunha relevante. | O intermediador pode simplificar as questões para a criança, de tal modo que ela possa compreendê-las, sem alterar o significado. O magistrado é a única parte que pode exigir do intermediador que transmita à criança com as mesmas palavras a pergunta feita. Neste caso o intermediador não poderá simplificar essas perguntas específicas. Os intermediadores devem ter o cuidado de não interpretar as perguntas quando forem transmiti-las às crianças, ou de dividir ou alterar as respostas das crianças. |
Seção 170A(3) – O tribunal designa um intermediador na subseção (1), o tribunal pode deliberar que a testemunha relevante dê seu depoimento em qualquer lugar – (a) que tenha sido informalmente arrumado para deixar a testemunha à vontade; (b) que fique localizado de tal modo que qualquer pessoa cuja presença possa perturbar a testemunha fique fora da visão e da audição desta testemunha; e (c) que permita ao tribunal e a qualquer pessoa cuja presença seja necessária aos procedimentos relevantes ver e ouvir o intermediador e a testemunha durante o depoimento, seja diretamente ou por um meio eletrônico qualquer ou outros recursos. | A criança geralmente dá seu testemunho através do intermediador numa sala separada, que fica ligada ao tribunal geralmente por um circuito fechado de televisão ou então por meio de um vidro, transparente apenas de um lado. A criança não vê nem ouve os procedimentos, mas o tribunal vê e ouve a criança e o intermediador. |
Seção 170A(4)(a) – O ministro pode por meio de notificação no Diário Oficial determinar a pessoa ou a categoria ou a classe de pessoas que são competentes para serem indicados como intermediadores. | Segundo Nota Governamental No R.1374, de 30 de julho de 1993 expedida pelo Ministro da Justiça (Publicada na Government Gazette n. 15.024, com emendas na Government Gazette n. 17.822 de 28 de fevereiro de 1997, e na Government Gazette n. 22.435 de 2 de julho de 2001), as seguintes pessoas são competentes para serem indicadas como intermediadores: Assistentes sociais registrados de acordo com a s. 17 do Social Work Act (Lei de Serviço Social) 110, de 1978 e com no mínimo 2 anos de experiência em trabalho social.Pessoas com mestrado em trabalho social com 2 anos de experiência na área; médicos com registro no The AS Medical and Dental Council (Conselho Médico e Dental AS) segundo o Act 56 de 1974 e que também sejam registrados como pediatras ou psiquiatras; conselheiros familiares designados na s. 3 do Act 24 – the Mediation in terms of Certain Divorce Matter (a Mediação em Certas Questões de Divórcio) de 1987 e que sejam registrados como assistentes sociais, ou classificados como professores na categoria de classificação C a G conforme deliberado pelo Departamento de Educação, ou que tenham registro como psicólogos clínicos, educacionais ou de orientação; assistentes sociais responsáveis pelo cuidado de crianças que tenham completado 2 anos de treinamento na National Association for Child Care Workers (Associação Nacional de Assistência a Crianças) e com no mínimo 4 anos de experiência; professores que tenham no mínimo 4 anos de experiência e que nunca tenham sido suspensos ou temporariamente suspensos da atividade de ensino; psicólogos que tenham registro como psicólogos clínicos, educacionais ou de orientação segundo o Act 56 de 1974. |
Seção 170A (4)(b) – Um intermediador que não esteja trabalhando para o Estado em tempo integral deve ter pagas suas despesas de viagem e subsistência e outras despesas relacionadas aos serviços prestados por ele, conforme o Ministro, com a concorrência do Ministro das Finanças, venha a determinar. | O uso da palavra ‘deve’ indica que o Ministro da Justiça e o Departamento de Justiça estão obrigados a pagar o que for reivindicado pelo intermediador referente aos serviços realizados. |
Combrink e Durr-Fitchen10 destacaram que as pessoas competentes para serem indicadas como intermediadores nos termos das categorias determinadas pela lei não serão por isso necessariamente intermediadores apropriados. Com base em sessões de discussão entre profissionais de direito, assistência social e psicologia, realizadas no Wynberg Sexual Offences Court (Tribunal de Ofensas Sexuais de Wynberg), e em análises do funcionamento da intermediação, ficou claro que é preciso cumprir certos requisitos pessoais. Os pré-requisitos mais básicos para uma intermediação apropriada devem inter alia incluir os seguintes:11
• capacidade comprovada de se relacionar com crianças e capacidade de desenvolver rapportem curto tempo;
• consciência da transferência no que tange ao gênero do intermediador;
• habilidade de se comunicar – ter fluência de linguagem com crianças e expressar mensagens claras;
• técnicas de entrevista com boa capacidade de observação e de transmitir calor, empatia e apoio à criança, sem deixar de permanecer imparcial e objetivo;
• conhecimento operacional de aspectos legais, da dinâmica do abuso sexual e dos estágios de desenvolvimento infantil, com as relativas capacidades intelectuais e verbais;
• consciência confortável da própria sexualidade;
• o intermediador e o terapeuta devem ser duas pessoas diferentes para diminuir a acusação de que a tendenciosidade aumente o risco de recurso.
Coughlan e Jarman12 explicam que na maioria dos casos o intermediador é um assistente social que prepara a criança para que se apresente no tribunal e que se senta com ela em uma sala com uma câmara. Seu papel é traduzir as perguntas feitas pelo juiz, advogado, promotor ou pelo suposto perpetrador para uma linguagem que a criança possa entender, sem alterar o conteúdo geral da pergunta. O intermediador tem o dever de atenuar agressões e intimidações e de informar o tribunal quando a testemunha demonstrar cansaço ou perda de concentração, a fim de que o oficial que preside a sessão possa postergá-la. Um circuito fechado de televisão, um microfone e o intermediador formam a base do sistema. Há um receptor de televisão na sala principal do tribunal, e uma sala com uma câmera, que fica adjacente a esta sala principal do tribunal, acomoda a criança-testemunha e o intermediador. Este fica com fones de ouvido. Somente o intermediador ouve as perguntas, mas as pessoas presentes na sala do tribunal ouvem as respostas e qualquer outra coisa que se passe na sala da testemunha. Esse sistema difere do adotado na Inglaterra, no qual se usa circuito interno de televisão, mas onde não há nenhum intermediador envolvido.13
A Bethany House Trust foi fundada em 1998 como um projeto da Child in Crisis Foundation SA(Fundação da Criança em Risco). Ela etá registrada como Entidade de Caridade para Crianças pela Alta Corte e também como Organização Beneficente Não Lucrativa e Pública. A entidade oferece desenvolvimento à criança e ao jovem, serviço profissional para os pais e serviços para testemunhas infantis. Em abril de 2003 a Bethany House entrou numa parceria público-privada com os Departamentos de Justiça e Desenvolvimento Social da África do Sul para conduzir um projeto piloto relativo a serviços de intermediação. Embora os serviços de intermediação já fossem disponíveis naquele estágio, o serviço não era coordenado, os intermediadores não estavam adequadamente capacitados e os funcionários dos tribunais não usavam o serviço. ABethany House treinou uma equipe básica de intermediadores, lançou uma campanha educativa e de conscientização a fim de que todo o pessoal dos tribunais tivesse conhecimento e começasse a usar o serviço. Foi desenvolvido um serviço 100% focado na criança, a fim de dar assistência a todas as crianças-testemunhas, independentemente de gênero e língua materna. Entre os desafios estava o fato de que na área geográfica em que o projeto foi lançado eram faladas 11 línguas diferentes por crianças-testemunhas, o que exigiu dos intermediadores fluência em todas elas.
O objetivo básico do projeto piloto era prover um serviço de intermediação profissional regular a testemunhas infantis. A fim de conseguir isso, a Bethany House desenvolveu uma base de dados única de gerenciamento de casos, para agendar e rastrear os casos. Os dados derivados desse serviço podem ser usados para moldar os procedimentos e planejar o orçamento em serviços para crianças nos departamentos de assistência social, polícia e justiça. Os dados usados neste artigo foram obtidos dessa base de dados. As informações que alimentaram essa base de dados foram, por sua vez, obtidas dos tribunais onde os casos eram tratados. Um segundo objetivo do projeto piloto era compilar um perfil provisório de vítima e perpetrador para uma área geográfica específica. No entanto, os dados apresentados neste artigo não foram comparados com tendências populacionais. A frustração em relação ao desenvolvimento de uma base de dados como essa que acabamos de mencionar é confirmada pela experiência de Coughlan e Jarman,14 que declaram que até hoje há muito pouca, se é que há alguma, pesquisa sobre o uso do sistema de intermediação na África do Sul. É difícil determinar se o sistema teve algum impacto sobre os índices de condenação porque a moratória nacional quanto à liberação pela polícia de estatísticas e informações sobre crimes tornou impossível a coleta desses dados. Pode-se, portanto, alegar que a tentativa deBethany House de fornecer informações por meio do uso de uma base de dados é pioneira na determinação do sucesso e do status dos serviços de intermediação.
A Tabela 2 dá uma visão geral das áreas geográficas onde os serviços de intermediação foram fornecidos a crianças-testemunhas, de abril de 2003 a setembro de 2006. Os distritos judiciários (tribunais) atualmente atendidos pela Bethany House são Randfontein, Roodepoort e Westonaria. Em alguns poucos casos a Bethany House deu assistência a outros tribunais. A tabela também mostra as diferentes áreas policiais dentro dos distritos judiciários e o número de casos relatados em cada uma.
Distrito judiciário | Número de casos | Área policial | Número de casos |
---|---|---|---|
Tribunal de Oberholzer | 7 | Delegacia de Carltonville | 29 |
Tribunal de Krugersdorp | 7 | Delegacia de Krugersdorp | 6 |
Delegacia de Kagiso | 1 | ||
Tribunal de Protea Glen | 1 | Delegacia Soweto | 1 |
Tribunal de Randfontein | 716 | Randfontein/Toekomsrus/Mohlakeng | 692 |
Tribunal de Roodepoort | 506 | Delegacia de Roodepoort | 285 |
Delegacia de Dobsonville | 160 | ||
Delegacia de Florida | 26 | ||
Delegacia de Honeydew | 35 | ||
Tribunal de Westonaria | 259 | Westonaria | 262 |
Total | 1496 | Total | 1496 |
Nos distritos judiciários servidos pela Bethany House, foram atendidos 1.496 casos em 3 anos e meio. Isso ilustra claramente a freqüência de casos judiciários e serve como indicador de que o serviço é necessário.
A Figura 1 mostra um gráfico do número de crianças-testemunhas e perpetradores por distrito judiciário. O alto número de incidentes em Randfontein é digno de nota, embora esses dados devam ser equilibrados com outros fatores de influência, como a densidade populacional variável e o fato de que promotores de alguns distritos nem sempre requisitam o serviço.
A Tabela 3 destaca sexo, idade e idiomas das crianças-testemunhas que foram vítimas dos crimes explicados a seguir na Figura 2. Note que a população das crianças-testemunhas é maior que o número de casos discutido na seção anterior, já que algumas vezes mais de uma criança depôs (vítimas múltiplas) no mesmo caso.
A Tabela 3 fornece os seguintes detalhes demográficos relativos a crianças-testemunhas que podem ser usados para oferecer um perfil da criança-cliente típica da área atendida pelaBethany House:
• oitenta e cinco por cento das testemunhas são meninas;
• a maior concentração de idade é de crianças entre 9 e 12 anos de idade. É significativo notar que o maior número de crianças se concentra na faixa de 13 anos de idade – 259 [13%] do total das crianças atendidas;
• significativamente mais crianças Tswana (34%) e Afrikaans (23.5%) receberam serviços de intermediação. Isso corresponde à representação cultural da área;
• crianças de diversas culturas (11) têm necessidade de serviços de intermediação. Isso implica que os intermediadores também precisam ser representativos dessas culturas para poderem dar verdadeira assistência às crianças por meio da linguagem e da compreensão do contexto cultural.
Na província de Gauteng há 345.600 meninas na faixa de idade entre 10 e 14 anos.15 Se o perfil de informação apresentado acima for considerado, o foco para serviços de prevenção e tratamento deve ser dirigido para as atividades desse grupo etário.
As unidades de Violência Familiar, Proteção à Criança e Abusos Sexuais (FCS) dos Serviços Policiais da África do Sul (SAPS) são responsáveis por investigar crimes contra crianças, como assalto com tentativa de danos corporais graves, tentativa de homicídio, estupro, incesto, violação do pudor, assalto comum, rapto, abdução, exploração de crianças e adultos previstos no Sexual Offences Act 23 de 1957 (Lei 23 sobre Violência Sexual), no Prevention of Family Violence Act 133 de 1993 (Lei 133 sobre Prevenção da Violência Familiar), no Domestic Violence Act 116 de 1998 (Lei 116 sobre Violência Doméstica) e no Films and Publication Act 65 de 1996 (Lei 65 sobre Filmes e Publicações).16 O que é significativo deste tipo de crime e do desfecho dos casos (o que será discutido adiante) é o número de casos relatados em relação aos índices de condenação. Esta seção dá uma visão geral sobre o tipo de crimes nos quais os intermediadores do projeto piloto da Bethany House estiveram envolvidos.
A Figura 2 mostra o tipo de acusação em relação aos casos em que as crianças-testemunhas estiveram envolvidas. Podemos ver que houve um número significativamente alto de casos de estupro e atentado violento ao pudor. Em relação à identificação do perfil, os dados sobre tipo de acusação mostram que:
• crianças que foram vítimas de estupro (64.52% do total de casos) e de atentado ao pudor (27.57%) eram o maior grupo de concentração de testemunhas;
• não foram fornecidos serviços de intermediação em casos de abandono de criança e negligência.
A experiência de abuso sexual impacta negativamente o desenvolvimento da criança, seu comportamento e a percepção de seu ambiente, e costuma ser classificada como traumática. Considera-se que os efeitos traumáticos do abuso sexual são os mais complexos e mais insidiosos no que tange ao impacto na vida da criança. Quando o trauma é infligido por uma pessoa que é conhecida da criança, o sofrimento pode ser mais intenso e persistente. A natureza do evento, súbita, horrível e inesperada, também define o trauma.17
O efeito na criança pode variar em gravidade e ter uma natureza perdurável. Inclui uma perda da infância, perda da família se a criança for removida dela, e perda da confiança, o que irá ter influência em seus futuros relacionamentos. A criança pode ainda experimentar complexos sintomas pós-trauma, como baixa auto-estima, medo, raiva e hostilidade fora de contexto, comportamento e atitude sexual inadequados, depressão, culpa e vergonha, comportamento autodestrutivo, sensação de impotência, confusão de papéis ou limites pouco precisos a respeito deles, pseudo-maturidade ou regressão e dissociação no desenvolvimento. Um tribunal não tem a competência para tirar conclusões sobre as conseqüências de um atentado violento ao pudor e de um estupro em vítimas crianças. Alegações factuais relacionadas ao trauma podem ser provadas pelo Estado, ou o tribunal pode obter informações requisitando testemunhas nos termos da seção 274 (1) do Criminal Procedure Act (Lei de Processo Penal). Uma possibilidade seria convocar a mãe ou o(a) professor(a) para testemunhar sobre sintomas de trauma, como alterações nos padrões de sono, na alimentação e na socialização, na realização de lição de casa, na capacidade de concentração, na atitude em relação à disciplina e num estado mental nervoso ou medroso. Se esta evidência não for contestada, pode ser aceita sem prova psiquiátrica como decorrente do estupro.18
Uma razão interessante pela qual a maioria dos casos não vai para o tribunal é que muitos deles são casos “não detectados”, ou seja, casos nos quais a polícia não conseguiu identificar o suspeito. Alguns ficam sem solução porque a polícia tem pistas inadequadas ou não tem quaisquer pistas para seguir, sem que haja qualquer falha em sua atuação. Em outros casos, o problema é uma investigação policial precária ou incompleta.19
A Figura 3 ilustra a relação entre o perpetrador e a criança. Na maioria dos casos (1.755 ou 95%) os perpetradores eram do sexo masculino. Em 62% (1.145) dos casos o perpetrador do sexo masculino era conhecido da criança e em apenas 33% (610) dos casos o perpetrador não era conhecido da criança.
O gráfico oferece as seguintes informações sobre o relacionamento com a criança, para fins de compilação de um perfil da vítima:
• Na maioria dos casos o perpetrador é um homem conhecido da criança: um vizinho (402 ou 22%); um membro da família biológica (401 ou 22%); um membro da família do padrasto ou da madrasta (103 ou 5.6%); ou um homem com o qual a criança se relacionou fora da família (220 ou 12%).
• Por ordem decrescente, a criança precisando de serviços de intermediação corre maior risco no ambiente próximo de sua casa e família, assim como nos seus relacionamentos sociais e na escola.
Tendo conhecimento do fato de que a maioria das crianças foi vítima de estupro e atentado violento ao pudor e que um grande número de perpetradores era conhecido da criança, pode-se supor que as crianças-testemunhas experimentaram altos níveis de trauma. É responsabilidade dos Departamentos de Bem-Estar Social e de Justiça serem sensíveis a esse fato e explorar quais os sintomas da criança que irão precisar de tratamento após o julgamento.
Descrever os perpetradores envolvidos com os crimes contra as crianças vai também contribuir para a compreensão do processo de intermediação em West Rand.
A Tabela 4 dá informação sobre o gênero, a idade e a cultura dos perpetradores envolvidos nos casos nos distritos judiciários mencionados na Tabela 1. Preocupa a constatação de uma grande porcentagem de perpetradores com menos de 19 anos de idade.
As informações úteis na tabela a seguir incluem:
• A esmagadora maioria dos perpetradores são homens (95%) e a maioria tem entre 19 e 40 anos de idade.
• De novo um grande número de perpetradores vem das culturas Afrikaans e Tswana. Uma análise comparativa da representatividade populacional na área do West Rand pode lançar mais luz sobre o porquê dos membros das comunidades Afrikaans e Tswana constituírem a maior concentração de perpetradores (note-se que o Afrikaans é a língua-mãe de pessoas brancas e negras nas comunidades representadas).
O desfecho do caso é uma parte significativa do processo para a criança-testemunha. A principal razão para depor contra o perpetrador é provar a sua culpa. A condenação implica punição pela má conduta e a punição deve ser compatível com o crime. Como o interesse dos serviços de intermediação é proteger a criança durante um processo criminal no qual se espera que seja conduzido um julgamento justo, é interessante refletir sobre os desfechos dos casos coletados na base de dados da Bethany House.
A Figura 4 mostra o desfecho de 384 casos criminais. Este é apenas um pequeno número dentre os 1.496 casos descritos na Tabela 2. Na próxima seção será discutida a eficácia do processo e será lançada alguma luz sobre por que se conhece tão pouco sobre desfecho de casos.
O que é encorajador a respeito da informação obtida dos dados sobre desfecho de casos é que não houve processos inconclusivos. O alto número de casos retirados no tribunal (143) é preocupante. É preciso questionar o processo legal que levou à retirada de casos depois que um perpetrador foi acusado e trazido perante o tribunal. Quando um caso é retirado, não se toma nenhuma decisão a respeito da culpa ou inocência do perpetrador. Nos casos conduzidos pela Bethany House, não houve contato posterior com a criança após o veredito. Devemos perguntar, no entanto, qual é o efeito que isso pode ter na criança-testemunha.
Para os propósitos de criação de um perfil, a informação sobre vereditos oferece a seguinte constatação:
• A maioria dos casos trazidos perante o tribunal (56%) levou ao veredito de culpado.
Ao comparar as tendências estatísticas do projeto piloto da Bethany House com as estatísticas nacionais da polícia anteriores a 2000, percebe-se que 58% dos casos de estupro relatados envolvendo vítimas com menos de 18 anos não foram parar nos tribunais. Além disso, 18% foram retirados dos tribunais e apenas 9% levaram ao veredito de culpado. Se considerarmos o índice de casos não relatados de abuso de crianças – especialmente aqueles que envolvem membros da família – o índice de condenação é baixo se comparado com os crimes cometidos. Absolvições constituem 9% dos casos levados a tribunal. É importante notar que a promotoria tende a julgar apenas aqueles casos que têm uma razoável perspectiva de resultar em condenação. Os recursos do processo focam-se nos casos mais promissores. Estupro costuma ser mais difícil de provar do que outros crimes. Mesmo assim, casos de estupro infantil que foram a julgamento apresentaram o dobro de probabilidade de resultar em condenação do que os casos de estupro envolvendo vítimas adultas.20
A cláusula 47 do projeto sobre Sentencing Framework (Estrutura de Sentenças) de 2000 propõe a apresentação nos tribunais de declarações relativas aos impactos sobre a vítima, esclarecendo os danos sofridos por ela, a fim de saber que impacto o crime teve na prática. Diferentemente do que ocorre no julgamento, com a condenação as impressões tornam-se mais importantes que os fatos, e considerações que eram irrelevantes para o mérito passam a adquirir importância, colocando no tribunal a expectativa de que faça um complexo julgamento de valor. As questões em pauta ao exercitar o discernimento para formular uma sentença são do interesse da justiça. Uma má escolha de punição vai contra os interesses da justiça e a decisão de impor uma sentença apropriada só pode ser tomada com base em todos os fatos relevantes ao assunto. Circunstâncias agravantes também influenciam a sentença. Entre essas, estão o processo de preparação para o crime (que mostra uma premeditação do crime), o abuso de uma posição de autoridade, o fato de conhecer a própria condição de HIV-positivo e a condição indefesa da vítima. Fatores atenuantes na sentença podem ser a juventude do acusado, a não existência de condenações prévias, a não utilização de arma, e a percepção da vontade em vítimas maiores de 16 anos.21
O Criminal Law Amendment Act 105 de 1997 (Lei 105 que emendou a legislação penal em 1997) entrou em vigor em maio de 1998 e sua seção 51 dispõe sobre um sistema de pena mínima para crimes mais graves. O objetivo de introduzir penas mínimas decorre da necessidade de desferir um golpe mais decisivo nos crimes graves, pela aplicação de penas significativamente mais pesadas. As penas mínimas relativas a crimes graves contra crianças são duas, conforme se segue:22
1. A pena perpétua deve ser imposta em caso de estupro quando:
• a vítima foi estuprada mais de uma vez ou por mais de uma pessoa de comum acordo;
• o acusado já tiver sido declarado culpado por dois ou mais delitos de estupro sem ter sido condenado ainda;
• o acusado sabia que era HIV positivo;
• a vítima era uma menina menor de 16 anos;
• foram infligidos sérios danos corporais.
2. O aprisionamento por um período de 10, 15 e 20 anos respectivamente para primeiro, segundo e terceiro infratores devem ser impostos nas seguintes instâncias.
• estupro em outras situações que não as acima mencionadas (por exemplo, quando o acusado tinha uma arma de fogo que pretendia usar ou quando a vítima era maior de 16 anos de idade);
• atentado violento ao pudor em criança com idade inferior a 16 anos envolvendo danos corporais (ou seja, qualquer tipo de dano físico por trivial que possa parecer);
• agressão com sérios danos corporais em criança com menos de 16 anos de idade.
Com conhecimento dessa estrutura de penas proposta, dos 2.599 casos de violência familiar e ofensa sexual contra crianças levados a tribunal entre 2005 e 2006, foram aplicados nos julgamentos 14.116 anos de prisão, 146 penas perpétuas, e multas no valor de 474.560 Rands.23
As informações obtidas a partir dos dados estatísticos da base de dados da Bethany House de abril de 2003 a setembro de 2006 fornecem informações que podem ser usadas para planejamento da Assistência Social, da Justiça e da Polícia na área de serviços de West Rand. A experiência adquirida com o projeto piloto também é significativa para orientar medidas práticas. Essas serão discutidas adiante. Junto com a discussão da experiência da Bethany House de fornecimento de serviços de intermediação, será analisado um artigo sobre as experiências de outros assistentes sociais na África do Sul, onde esses se questionam se vale a pena manter o serviço de intermediação. Também vamos tratar da conceitualização de Karen Müller sobre a relação entre o oficial judiciário e a criança-testemunha.
De acordo com Coughlan,24 o sistema de intermediação é usado apenas nas principais cidades da África do Sul, como East London, Cidade do Cabo, Port Elizabeth, Johannesburg, Pretória, Durban e Pietermaritzburg. Não existem essas instalações em tribunais da zona rural. Além disso, em cidades como East London, para todos os efeitos, o serviço não foi fornecido já que os assistentes sociais na época se recusaram a continuar a oferecê-lo. Experiências com um pequeno número desses intermediadores deixaram claro o fato de que eles estavam inadequadamente treinados e tinham de lidar com ansiedades e emoções relativas tanto ao processo do tribunal quanto ao trauma da criança. Ainda, esses intermediadores não precisavam relatar como suas experiências haviam se dado.
Primeiro vamos resumir as experiências de intermediadores conforme vistas por Coughlan em 2002;25 depois iremos examinar nossa própria experiência com o sistema de intermediação em nossa área de atendimento. À luz disso, iremos discutir implicações para a prática sugeridas por outros autores interessados na situação das crianças-testemunhas na África do Sul, que virão se somar à nossa.
Muitas das dificuldades experimentadas por Coughlan e Jarman26 estavam relacionadas ao ambiente e ao processo do próprio tribunal. Elas incluem o impacto de longos atrasos e o estresse de um julgamento muito longo; a imprevisibilidade da presença de um intermediador; a preservação dos direitos do acusado versus a necessidade de evitar abuso adicional da criança; o questionamento da capacidade da criança entender conceitos de verdade conforme definidos por adultos; o fato de não se levar em consideração as diversas abordagens culturais para falar a respeito de questões relativas ao sexo; o potencial para erros de tradução; o fato de se pedir à criança para repetir os detalhes do abuso; a dúvida se um processo bem-sucedido compensa o trauma a que ele submete a criança; o conflito de papéis entre assistentes sociais e intermediadores; e as demoras de até 2 anos para que os casos tivessem suas respectivas audiências, em função de trâmites judiciais.
Müller27 acrescenta que o intermedidador foi introduzido para assistir a criança-testemunha no sentido de remover toda hostilidade e agressão de uma pergunta e de mudar uma pergunta, quando necessário, de modo que fique mais compreensível para a criança. No entanto, na prática, o uso de um intermediador deu lugar a uma série de problemas. O poder do intermediador é muito limitado, pois ele é percebido como nada mais do que um intérprete (e não uma testemunha especializada) e o tribunal pode a qualquer momento insistir em que o intermediário repita a questão exatamente com as mesmas palavras. Uma desvantagem adicional do presente sistema é que o intermediador não tem a autoridade de fazer comentários a respeito de uma pergunta e de dar opinião sobre o grau de compreensão da criança sobre determinada pergunta que lhe tenha sido feita. O intermediador não tem poder de intervir e argumentar que certas perguntas não devem ser feitas numa determinada seqüência ou formuladas de certa maneira.
Estes autores destacam que o contexto no qual a criança oferece seu testemunho pode estar causando mais danos do que seria cabível. Constata-se decepção entre aqueles que tinham a esperança de atuar como intermediadores a fim de tornar o processo mais fácil para as crianças, pois acabaram se defrontando apenas com expectativas inadequadas para a idade das crianças e com um foco muito acentuado nos direitos do acusado. A próxima seção mostra de que modo as próprias experiências da Bethany House confirmam a ineficácia do processo atual. Mas há alguma esperança no horizonte. Essa luz é criada por algumas mudanças que deverão ocorrer no próximo ano.
A eficácia do processo atual só pode ser descrita como “pouco amigável ao usuário”. Isso se refere especificamente ao uso da linguagem e à integração do processo legal ao mundo já traumatizado da criança. O lapso de tempo entre o momento em que o caso é relatado à polícia, o momento em que o caso é levado a tribunal pela primeira vez e o momento em que a criança dá seu testemunho pode chegar a dois anos. Isso não só compromete o processo judicial, mas faz com que a criança permaneça no limbo no que se refere ao “processo de cura”.
O número de vezes que um caso é postergado está ilustrado na tabela a seguir. Além dos custos adicionais para representar a criança vítima, a criança-testemunha tem de comparecer a cada audiência. Na prática, isso significa que a criança é preparada para comparecer ao tribunal (uma vez), depois tem de ser preparada para depor, comparecer à audiência e estar pronta a testemunhar em cada uma das vezes. A criança vítima fica, portanto, sujeita a um estresse mental indevido mesmo antes de testemunhar.
nº de casos | nº de postergações | % do total | |
---|---|---|---|
147 | 0 | 29.76 | |
122 | 1 | 24.70 | |
69 | 2 | 13.97 | |
55 | 3 | 11.13 | |
36 | 4 | 7.29 | |
23 | 5 | 4.66 | |
16 | 6 | 3,24 | |
7 | 7 | 1.42 | |
9 | 8 | 1.82 | |
3 | 9 | 0.60 | |
1 | 10 | 0.20 | |
1 | 11 | 0.20 | |
1 | 12 | 0.20 | |
3 | 13 | 0.61 | |
1 | 16 | 0.20 | |
Total | 494 | 107 | 100.00 |
Serviços posteriores ao testemunho, como terapia, só podem ser inciados depois que a criança tiver deposto no tribunal, a fim de assegurar que o depoimento da criança não fique contaminado. Na realidade, existe pouca intervenção posterior. Os serviços de terapia não são prontamente disponíveis para crianças-testemunhas e, na maioria das vezes, os pais ou quem dá assistência não têm acesso aos limitados serviços disponíveis devido a limitações econômicas. Na maioria dos casos, a preparação prática para as audiências no tribunal são a única ajuda disponível à criança.
Se a criança foi infectada pelo perpetrador com o vírus HIV/Aids quando o crime foi cometido, a criança pode também estar doente demais para poder depor ou pode ter falecido antes de ter a oportunidade de testemunhar contra o perpetrador. Embora o governo da África do Sul tenha programas ARV (anti-retrovirais) que podem ser disponibilizados às crianças-testemunhas infectadas pelo HIV/Aids, a criança com freqüência não tem condições de ir até os hospitais onde o serviço está disponível devido às grandes distâncias e a fatores econômicos como o custo do transporte.
Além disso, há muitos casos não relatados, especialmente crimes cometidos dentro da unidade familiar. A recente descentralização da unidade de policiamento especializado responsável pela investigação de crimes contra crianças pode contribuir com o não relato de casos já que a comunidade em geral perdeu a fé na capacidade do Estado de proteger suas crianças.
Dos casos relatados, apenas uma pequena porcentagem acaba sendo levada ao tribunal, e uma porcentagem inaceitavalmente alta deles é retirada já no próprio tribunal. Isso ocorre quando provas cruciais se perdem (por exemplo, DNA) ou quando a testemunha não pode ser localizada. Devido à grande morosidade judicial, a criança testemunha às vezes muda para endereço não sabido, obrigando o Estado a retirar o caso do tribunal.
Uma pequena porcentagem desses casos que chegam aos tribunais resulta em condenações. Pode-se então argumentar que os processos judiciários são pouco benéficos para as crianças. As razões básicas para o processo criminal não estão voltadas necessariamente para o melhor interesse da criança. Pode haver pouca ou nenhuma correlação entre o melhor interesse da criança e as expectativas da autoridade que move o processo.
A eficácia de um processo legal já questionável é comprometida ainda pela ausência ou precariedade do equipamento (por exemplo, fones de ouvido) usado para a realização dos serviços de intermediação, o que cria grandes atrasos ou adiamentos. Às vezes, os procedimentos judiciários são transferidos para outra jurisdição na qual se possa contar com um tribunal com equipamento em ordem.
A existência de situações comuns entre intermediadores de cidades geograficamente muito afastadas entre si, como East London na Província de Eastern Cape e West Rand, região da Província de Gauteng, mostram a importância de novas análises sobre o processo de intermediação, reconhecendo-se a necessidade de se usar esses dados para planejar intervenções eficazes voltadas para as crianças-testemunhas.
O Projeto 107 da Comissão Legal da África do Sul sobre Ofensas Sexuais: Processo e Procedimentos (2002) sugere a estratégia de adotar princípios orientadores (Protocolos e Memoranda ou Códigos de Boa Prática) para promover mudanças no tratamento das ofensas sexuais. O desenvolvimento desta estrutura ‘nacional multidisciplinar’ deve levar a um acordo inter-setorial de intenções que constitua a base de códigos práticos provinciais ou regionais multidisciplinares, incorporados à legislação para assegurar seu cumprimento. É feita breve menção aqui a algumas das recomendações que devem ter impacto positivo no processo legal em curso. Essas recomendações estão no documento de discussão que pode ser encontrado em <http://www.doj.gov.za/salrc/dpapers/dp102_prj107/dp102execsum.pdf>:28
• organismos oficiais, como órgãos do governo devem fornecer serviços imediatos, sensíveis, eficazes, confiáveis, bem coordenados e integrados;
• deve-se fazer uma provisão orçamentária para a efetiva implementação e operação da estrutura nacional;
• um comitê multidisciplinar de coordenação deve monitorar, supervisionar e avaliar a implementação dessa estrutura;
• recomendam-se técnicas flexíveis de administração do fluxo de casos. A estratégia de administração do fluxo de casos deve ser desenvolvida inter-setorialmente para reduzir atrasos nos procedimentos criminais;
• enfatizam-se também um adequado treinamento para credenciamento e uma adequada avaliação posterior dos fornecedores de serviços;
• existe um amplo precedente na África do Sul para a criação de equipes conjuntas ou com pessoas de diversos organismos para a investigação e processo de crimes de alta prioridade;
• apenas o pessoal médico, policiais, promotores, juízes e conselheiros altamente treinados devem lidar com ofensas sexuais graves;
• de preferência, todas as ofensas sexuais graves devem ser julgadas em tribunais especiais de ofensas sexuais;
• todas as crianças vítimas em casos de ofensas sexuais que precisem de cuidados e proteção devem poder contar com um sistema assistencial receptivo;
• a África do Sul é um país com recursos limitados, e a provisão de PEP para vítimas de estupro acabou se tornando uma questão controvertida. Admite-se que os custos envolvidos em oferecer a todas as vítimas de violência sexual tratamento PEP seriam extremamente altos. No entanto, o custo de não prover PEP será seguramente mais alto ainda e irá afetar o sistema público de saúde e repercutir na economia. É responsabilidade do Estado oferecer os meios financeiros para cobrir o custo do PEP para vítimas de violência sexual, já que esses requerentes foram expostos a um distúrbio que coloca em risco a própria vida sem nenhuma chance de escolha da parte deles;
• devem ser desenvolvidos protocolos para médicos e profissionais de saúde;
• a polícia deve rever os procedimentos para registrar e acompanhar casos “improcedentes” e casos nos quais a vítima deseja retirar a queixa;
• o Sexual Offences Act (Lei de Ofensas Sexuais) deve colocar uma obrigação à polícia de aceitar e registrar todas as queixas de ofensa sexual, e estabelecer que não cabe à polícia julgar se deve ou não abrir uma investigação, mesmo quando a própria vítima pedir para que não se abra processo. A única instância à qual cabe decidir não proceder a uma investigação deve ser a autoridade judicial.
Embora tenha sido realizado muito trabalho pela SA Law Commission (Comissão Legal da África do Sul) para melhorar o status quo, os autores reiteram a dúvida sobre o que é necessário para que essa questão se torne uma prioridade legislativa e orçamentária.
Concordamos com Coughlan e Jarman29 quando eles declaram que os assistentes sociais privados e do governo precisam de treinamento e adequada supervisão e oportunidades para colher os relatos dos intermediadores. Para que isso ocorra, o papel do intermediador precisa alcançar um nível maior de visibilidade e de aceitação em relação ao que ocorre hoje. O trabalho de intermediação não é reconhecido como uma função-chave e, portanto, não é oferecido nos mecanismos normais, profissionais e de nível equivalente, estabelecidos para apoiar e dar conta da prática profissional.
Isso deve ser questionado – não só no interesse dos assistentes sociais, mas também das crianças. Dada a natureza ad hoc do trabalho de intermediação, não existe um sistema de apoio, para accountability ou responsabilizaçãoe para uma perspectiva de desenvolvimento em busca de uma especialização. Dada à extensiva reestruturação dos serviços sociais do governo que estão tendo lugar em toda a África do Sul, isso será possível apenas se um número suficiente de pessoas mais influentes tornarem isso uma prioridade.
Mesmo que os assistentes sociais consigam assegurar que o assunto permaneça na agenda, eles precisam da colaboração da comunidade legal e dos responsáveis pela definição de prioridades e procedimentos nos tribunais. Casos de abuso infantil não devem aguardar mais do que dois ou três meses para irem para o tribunal. A postergação deve ser vigorosamente evitada. É necessária uma notificação adequada, de modo que as crianças possam ser preparadas e os assistentes sociais estejam certamente disponíveis.
O reconhecimento do serviço de intermediação deve ser dado pelas pessoas no poder, pois sem a cooperação de assistentes sociais o sistema todo fracassará nacionalmente, expondo todos os envolvidos a acusações de que os direitos da criança, protegidos pela constituição, estão sendo violados.
Van der Merwe e Müller30 também ofereceram linhas gerais práticas e úteis relativas à gestão judiciária a fim de proteger a criança durante os processos. Elas incluem regras básicas para advogados no que se refere especificamente à formulação de perguntas adequadas ao desenvolvimento da criança, como se observa a seguir.
O oficial judiciário deve explicar o processo de interrogação à criança e o que irá acontecer em seguida, reforçar a necessidade de que a criança conte a verdade, e dar à criança-testemunha uma idéia do que se espera dela. Ainda, as intervenções dos juízes devem ser necessariamente feitas nos casos em que a criança não puder compreender o peso agregado a uma declaração policial.
Deve-se convocar um recesso quando a criança mostrar sinais de fadiga, perda de atenção, respostas fechadas (como “não sei” ou “não lembro”) ou estresse difícil de lidar. A presença de uma pessoa de apoio tem comprovado ser útil para que a criança responda melhor ao interrogatório.
A criança tem direito a procedimentos realizados de forma ágil, em períodos de tempo apropriados à vítima e ao tipo de ofensa. O não atendimento dessa estratégia de administração fluente de casos que está sendo proposta deve ser submetido a sanções.
Também é sugerido que o interrogatório cruzado, ou a formulação direta de perguntas às testemunhas pela acusação e pela defesa seja concluído antes que a criança tenha oportunidade de entrar na sala do tribunal e identificar o acusado. Quaisquer questões adicionais relativas à identificação devem ser colocadas nessa hora.
Os autores acrescentam aos itens acima as seguintes sugestões:
O uso de uma base de dados para registrar os serviços prestados a crianças e oferecer informações que possam ajudar no planejamento é crucial. Todos os atores precisam usar/contribuir para essa base de dados que deve ter aplicação local e nacional. Ainda, a definição de responsabilidades do intermediador deve ser formalizada. Sua atribuição deve ser tratada como área especializada dentro do trabalho de assistência social.
Para lidar com a preocupação quanto à credibilidade das provas apresentadas por crianças-testemunhas, o modelo conceitual de De Young31 para avaliar a veracidade e o Statement Validity Analysis” (SVA) (Análise da Validade da Declaração) devem ser adotados como ferramentas de avaliação cruciais da validade das declarações ao longo de todo o processo de depoimento. Naturalmente, isso deve fazer parte do treinamento de um intermediador, que poderá contribuir com o processo, verificando a credibilidade das declarações feitas ao tribunal.
Para criar uma verdadeira empatia em relação às dificuldades inerentes aos procedimetnos judiciais e à identificação de informações carregadas de elementos pessoais e emocionais, a preparação do assistente social para atuar como intermediador deve incluir o conhecimento da obra Child Abuse Accommodation Syndrome32 (Síndrome Acomodativa de Abuso Infantil).
Deve, ademais, haver uma adequada compreensão da regra prática de prudência, segundo a qual o adjudicador factual deve ficar ele mesmo alerta para ser prudente na avaliação de provas que, segundo a prática tenha demonstrado, exijam circunspeção. Essas regras de prudência aplicam-se à avaliação de provas de testemunhas únicas, colaboração, armadilhas, crianças muito novas, identidade, desvio sexual, detetives particulares, prostitutas, e testemunhas detidas.33
Informações colhidas de casos administrados pela Bethany House (assinalados por numerais romanos ao longo deste documento) devem ser consideradas, junto com pesquisas adicionais, para identificação de um perfil capaz de ajudar no planejamento da prevenção e tratamento do abuso infantil. O uso de “declarações de impacto” de professores, familiares e outros adultos, que possam dar testemunho das conseqüências do abuso de uma criança, irão contribuir para uma adequada condenação do perpetrador.
É crucial estabelecer uma clínica sócio-legal onde as profissões do direito e da assistência social possam combinar seus serviços para atender de maneira mais eficaz a criança cliente. Também recomendamos enfaticamente que as recomendações da SA Law Commission tenham prioridade e que a implementação dessas recomendações seja acelerada.
Este artigo apresenta diversas realidades interessantes relativas ao sistema de intermediação. A questão é se uma abordagem mais focada e padronizada do sistema (com a produção de mais informações para propósitos de planejamento) iria fortalecer a posição das crianças, no sentido esperado de levar a mais condenações e, no final, contribuir para criar ambientes mais seguros para as crianças. É preciso dar mais proeminência aos problemas destacados por diversos autores. Já se passaram mais de dez anos desde que a Criminal Procedure Act (Lei de Processo Penal) foi emendada para permitir a utilização de intermediadores. Agora é o momento de seguir os passos tomados pela África do Sul no sentido de agir segundo o melhor interesse de suas crianças.
1. Coughlan & R. Jarman, “Can the intermediary system work for child victims of sexual abuse?”, Families in Society, vol.83, edição 5/6, Nova York, Alliance for Children & Family, set-dez 2002, p. 541.
2. Ibid., p. 541.
3 K. Müller, “The competency examination and the child witness” in K. Müller, The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, p. 152.
4. Ibid., p. 160.
5. Coughlan & Jarman, op. cit., p. 541.
6. Ibid.
7. K. Müller, “A question of confusion: cross-examination and the child witness” in K. Müller, The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, p. 170.
8. Ibid., p. 171.
9. A. Viviers (1999), “Manual on practice guidelines for Intermediaries”in RAPCAN – Resources Aimed at Prevention of Child Abuse and Neglect, Intermediary Training Manual, 2005. Disponível online em <http://www.rapcan.org.za>, acessado em 13 de março de 2007.
10. H. Combrink & E. Durr-Fitche, “The Child Witness”, The Child Care Worker, v. 12, No. 2, The International Child and Youth Care Network, Wisconsin-Milwaukee, 1994. Disponível online em <http://www.cyc-net.org>, acessado em 5 de fevereiro de 2007.
11. Ibid.
12. Coughlan e Jarman, 2002, op. cit.
13. Ibid., p. 542.
14. Coughlan e R. Jarman, op. cit.
15. Statistics South Africa, 2006, p. 9.
16. SAPS – South African Police Service, Annual Report, 2006, p. 93.
17. A. Van der Merwe, “Aspects of sentencing in child sexual abuse cases”in K. Müller, The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, p. 264.
18. Ibid., p. 265.
19. D. Van Zyl Smit, “Conviction rates of crimes reported in eight South African police areas”,South African Law Commission Research Paper 18, Project 82, 2000, p. 11. Disponível online em <http://www.doj.gov.za/salrc/rpapers/rp18.pdf>, acessado em 13 de março de 2007.
20. Ibid., pp. 18-19.
21. Van der Merwe, op. cit., pp. 261-262, 267-268, 272.
22. Ibid., pp. 269-270.
23. SAPS – South African Police Service, Annual Report, 2006, p. 94.
24. Coughlan e R. Jarman, op. cit.
25. Ibid.
26. Ibid., pp. 544-545.
27. K. Müller, “An inquisitorial approach to the evidence of children” in C. W. Marais (Ed), Crime research in South Africa – CRISA, volume 4, Número 4, Johannesbourg, University of South Africa, 2001. Online em: <http://www.crisa.org.za/volume4/ia.html>, acessado em 5 de fevereiro de 2007.
28. Consultas: Dellen Clark and Carrie Kimble. Site acessado em 13 de março de 2007.
29. Coughlan e Jarman, op. cit.
30. A. Van der Merwe e K. Müller, “Judicial management: ‘The boss of the court’”in K. Müller,The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, pp. 283-296.
31. De Young (1986) in K. Müller, “Evaluating the credibility of child witnesses: a more scientific approach” in K. Müller, The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, pp. 214-222.
32. K. Hollely, “Breaking the silence: a gradual process of disclosure”, in K. Müller, The judicial officer and the child witness, © Berne Convention, 2002, p. 126.
33. South African Justice College Notes (1994), “Corroboration and the Cautionary Rules” in RAPCAN – Resources Aimed at Prevention of Child Abuse and Neglect, Intermediary Training Manual, 2005. Disponível online em <http://www.rapcan.org.za>, acessado em 13 de março de 2007.