Por que nossas sociedades ainda aceitam, e até mesmo perpetuam, violações aos direitos humanos? Na primeira parte deste artigo discutimos por que as pessoas, individualmente, respeitam ou deixam de respeitar os direitos das demais. Entre outros fatores, esse desrespeito emerge da persistente desigualdade que cria a exclusão moral e, conseqüentemente, promove a invisibilidade dos excluídos e a demonização dos que lutam por seus direitos.
A segunda parte do texto mostra o papel crucial da sociedade civil que, com seus variados interesses, proporciona um discurso plural, torna públicas as injustiças, protege o espaço privado, interage diretamente com os sistemas legais e políticos e promove a inovação social. Tendo em vista montar uma agenda que fortaleça a futura discussão dos direitos humanos, os autores sugerem três estratégias: aperfeiçoamento da capacidade de comunicação e educação; investimento em alternativas inovadoras como, por exemplo, a abordagem proativa, e a implantação de redes que proporcionem um diálogo ativo entre diversidades.
Na última metade do século passado, a linguagem dos direitos tornou-se lugar comum. Para horror de muitos, converteu-se em ferramenta política durante o período da guerra fria e invadiu a política externa como uma arma altamente seletiva para atacar inimigos. Sob uma perspectiva positiva, a guerra fria desempenhou um papel importantíssimo, ao favorecer que a linguagem dos direitos humanos fosse ouvida no mundo todo. Difícil imaginar que a ONU pudesse sozinha efetivar uma disseminação tão ampla.
Indiscutivelmente, a demanda por um sistema internacional justo está na ordem do dia. O protesto mundial pela paz, no dia 15 de fevereiro de 2003, reuniu milhões de pessoas em todos os continentes, não apenas para demonstrar a oposição à ofensiva no Iraque, mas também para apoiar a ONU. Uma das razões para esse senso de injustiça está no fato de termos falhado em dar um basta às violações dos direitos humanos básicos. Os direitos sociais, culturais, civis, econômicos e políticos se incorporaram aos sistemas legais nacionais e internacionais, mas, na realidade, são desfrutados por poucos.
Por que esse contínuo desrespeito aos direitos? E o que podemos fazer para mudar isso?
Quem deve respeitar os direitos humanos?
A primeira questão pode parecer óbvia, mas convém explorá-la: quem deve respeitar os direitos humanos? Em outras palavras, quem é responsável pela contínua falta de respeito?
Uma resposta simples a essa questão é que o Estado deve respeitar os direitos humanos. Ela está correta. Os piores abusos, omissões e transgressões são de responsabilidade do Estado, tomado aqui como a autoridade governante (polícia, judiciário, legislativo, serviços públicos e política externa) que nasce de alguma forma de pacto social. A presença e o poder da autoridade estatal são tão dominantes em todas as esferas de nossas vidas que os direitos humanos freqüentemente são concebidos como um conjunto de princípios, ou pactos, entre o Estado e os que são governados por ele. Argumenta-se aqui, no entanto, que os direitos humanos vão além da relação entre o Estado e o indivíduo por três razões: (1) eles exigem submissão individual voluntária a uma obrigação correlata de respeitar o direito dos outros e criam, portanto, obrigações intersubjetivas; (2) são afetados, tanto positiva quanto negativamente, por autoridades não-estatais; (3) o encolhimento dos mandatos dos Estados face ao processo de globalização, promove a redução do papel da autoridade pública. Em reconhecimento ao conjunto mais amplo dos agentes que devem respeitar os direitos, o artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos menciona explicitamente “uma ordem social e internacional” que implica outros agentes, incluindo indivíduos, comunidades, outras autoridades não-estatais, corporações e a comunidade internacional como sujeitos de obrigações em relação aos direitos humanos.
Acima de tudo, o respeito aos direitos humanos é responsabilidade de indivíduos. Mesmo os maiores abusos contra os direitos humanos são cometidos freqüentemente, ainda que nem sempre, por falha de um indivíduo. A atuação dos indivíduos é ampliada mediante o acesso à autoridade estatal, corporativa ou informal. Separar os indivíduos dos contextos nos quais são gerados, nutridos e prosperam é insensato. Mas, claramente, eles precisam ter respeito aos direitos.
A ilusão de que o Estado é a única parte responsável pelos direitos humanos deveria ser desfeita de vez. A autoridade está em qualquer poder que um indivíduo ou um grupo detenha sobre outro, e não unicamente no poder do Estado. Os grupos sociais detêm essa autoridade sobre seus membros. O Estado pode restringir ou desencorajar seus abusos, mas não isentá-los do poder que exercem. Nossa hipótese deve explicar também por que essas forças sociais, que agrupadas formal ou informalmente compõem um nível de “autoridade”, não respeitam os direitos humanos.
O setor privado assume de fato o controle de muitas áreas críticas dos direitos humanos e assim, ao colocar o foco apenas na autoridade do Estado, não explica por que os direitos das pessoas não são respeitados. Os enormes esforços para a criação de um conceito de responsabilidade social do setor corporativo, nas últimas décadas, deveriam servir para ilustrar a necessidade de uma discussão dos direitos humanos que inclua e transcenda a dualidade Estado-cidadão. O Global Compact, promovido pela ONU, é um exemplo de tal discussão.
Voltando a nossa questão, buscamos uma razão para nós (lembrando aqui que “nós” inclui indivíduos, Estado, setor privado e grupos sociais) escolhermos respeitar ou não os direitos humanos. Começaremos por examinar as razões pelas quais as pessoas respeitam os direitos humanos.
Por que as pessoas respeitam os direitos humanos?
Este texto discute três razões para que as pessoas respeitem os direitos humanos: cognitivas, instrumentais e morais.
Razão cognitiva. Precisamos saber o que são direitos. A informação, um elemento essencial para se fazer escolhas, nos chega por diversas fontes culturais, educacionais e pela mídia. As que se referem aos direitos humanos devem vincular os indivíduos aos princípios universalizados que integram os direitos humanos, ou dizer claramente onde eles não se encontram, dentro de valores desenvolvidos em cada contexto.
Não se trata de um ponto trivial. Em muitas sociedades e línguas, palavras e termos do vocabulário dos direitos às vezes inexistem, ou estão sendo inventados. O conceito de que as pessoas são dotadas de direitos é freqüentemente contrariado no dia-a-dia, pela existência de privilégios, a título religioso ou hierárquico, conforme os sistemas culturais vigentes. Isso é comprovado não só por práticas como a mutilação de órgãos genitais femininos ou os sistemas de castas, mas também pelo direito, reconhecido em várias sociedades, de portar armas, punir com pena de morte ou usar crianças como soldados.
Na medida em que os direitos humanos não são respeitados por falta de maior entendimento, é crucial investir na educação. Todavia, a cognição não é só resultado da educação formal. O diálogo e a ativa participação na evolução da linguagem dos direitos são essenciais para uma lógica cognitiva sustentável. Nesse sentido, a educação cria uma linguagem comum. Ela não força as pessoas a seguir as regras dos direitos humanos, mas capacita-as a fazer melhores escolhas com base em informações. A razão cognitiva, portanto, é uma força necessária, mas não é motriz para a lógica dos direitos humanos. Basta dizer que algumas das maiores violações aos direitos humanos na história moderna foram perpetradas por sociedades com alto grau de instrução.
Razões instrumentais: as pessoas respeitam os direitos para obter benefícios ou escapar de punições. Levando-se em conta uma visão instrumental estreita, o respeito aos direitos é reforçado quando o desrespeito a eles é claramente prejudicial à própria imagem, ao bem-estar psíquico ou à integridade física, sendo vantajoso respeitá-los. Para ter valor instrumental, o respeito aos direitos deve trazer um benefício. Por esse raciocínio instrumental, chamado utilitarismo na tradição de Bentham, os indivíduos procuram maximizar suas vantagens sociais e econômicas. Três razões instrumentais são aqui postas em discussão: (1) coerção do Estado; (2) pressão social; (3) reciprocidade.
1. Na medida em que as pessoas temem punições ou esperam recompensas por parte do Estado, elas respeitam as normas legais que incorporem os direitos humanos. Este é um argumento que poderia ser chamado hobbesiano. A coerção do Estado pode ser um instrumento efetivo dos direitos humanos, em certas circunstâncias, e é também uma condição necessária, pois sempre é possível a existência de algum nível de comportamento anti-social que não pode ser controlado. Entretanto, as pessoas também respeitam direitos na ausência de coerção. Seria insustentável para qualquer sociedade arcar com os custos do nível de coerção estatal necessário para assegurar o cumprimento de todos os direitos legais. Vamos imaginar, por exemplo, que a ameaça de uma multa, ou coisa pior, fosse a única razão pela qual as pessoas não ultrapassam sinais vermelhos. Razão muito mais forte é o instinto de evitar um acidente, associado à compreensão de que infringir a regra pode causar um.
O espectro da punição ou da recompensa que os Estados podem usar como instrumento vem sendo minimizado, principalmente nas últimas décadas. Os Estados mantêm um monopólio sobre a violência (guerras) e a punição (sistemas legais), mas sua atuação tem se reduzido visivelmente na área dos serviços sociais – mais especificamente, emprego, educação, saúde, previdência social e outras áreas vinculadas aos sub-respeitados direitos sociais e econômicos.
Além do mais, não podemos nos esquecer, como parte da solução, que os Estados têm sido os piores violadores dos direitos humanos. Devemos, fortalecer tanto a coerção restritiva quanto a positiva do Estado, tendo em vista sua responsabilidade e os limites razoáveis de sua autoridade.
2. As razões instrumentais vão além das estruturas legais. As pessoas fazem parte de grupos e de comunidades que modelam e determinam suas ações. Uma segunda razão instrumental para se respeitar os direitos humanos está na expectativa de retaliação ou recompensa por parte da comunidade à qual se pertence. Por motivos óbvios, a pressão social é uma razão complexa e indireta para os direitos humanos. Os indivíduos não pertencem a um único grupo. Eles são influenciados por vários grupos e pouquíssimos deles são alheios aos direitos. Mas a aproximação e a participação dos indivíduos em grupos sugerem que a pressão social tem considerável influência.
3. Concedemos aos outros os direitos que desejamos que eles nos concedam. Teoricamente, reciprocidade se relaciona com diferença. Ela nos dá uma razão para esperar que pessoas diferentes necessariamente devam ser tratadas como desejamos ser tratados. Portanto, ouvimos porque queremos ser ouvidos, e respeitamos a propriedade alheia porque queremos assegurar nossa propriedade. A reciprocidade não expressa qualidade transcendental alguma, de bem ou mal. Ela não implica que assassinato, tortura, fome, analfabetismo e doenças evitáveis sejam maus em si mesmos. Reciprocidade significa que não posso aceitar certas coisas para os outros, a menos que as aceite para mim mesmo. Não afirma, tampouco nega, a existência de uma estrutura moral mais profunda. Além disso, há pouco a dizer acerca das situações de desigualdade. A reciprocidade como razão para se respeitar os direitos humanos é variável. Partindo de uma estrutura de vantagem mútua, os indivíduos têm um incentivo para trapacear, julgando que “o que me interessa é que todos cooperem, e eu não”. Em outras palavras: que todos aceitem as regras que são mutuamente vantajosas, quando há adesão, mas eu, de minha parte, posso quebrá-las quando for vantajoso para mim.1
Razões morais: as pessoas respeitam os direitos porque acreditam que os seres humanos são dotados de igual valor moral. Os direitos não fazem sentido, a menos que aceitemos uma dimensão humana moral fundamental, e que cada ser humano mereça ser tratado como um fim, e não um meio. É o argumento kantiano de respeito aos direitos. É fácil entender a moralidade, mas ela resiste ao reducionismo. Uma razão moral para respeitar os direitos pode ser elaborada de uma perspectiva mais procedente; temos de respeitar os direitos de outras pessoas porque, pelo consenso democrático, admitimos que os seres humanos os possuem, não importando o status, a condição social, a raça ou quaisquer outras diferenças existentes.
O essencial é que os direitos humanos devem ter uma autoridade moral com um mínimo de princípios operacionais, e não como uma visão utópica. Aquilo que testemunhamos na década passada em Ruanda, Kosovo, Colômbia e Mianmar, apenas para citar alguns poucos exemplos, demonstra que ainda estamos longe de realizar essas proteções. Sem elas, milhões de pessoas continuarão vítimas do poder e da ambição desenfreados.
Em resumo, propomos elementos centrais para explicar que o respeito aos direitos inclui: saber o que são e refletir sobre eles; simetria e consonância com a lógica instrumental; e crença na igualdade, enquanto dimensão moral de todas as pessoas. Na prática, essas três condições implicam que as normas dos direitos em si sejam dinâmicas e surjam dos processos sociais. Jürgen Habermas, ao desenvolver seu discurso ético, teoriza como tal processo se apresenta: “Para uma norma ser válida, as conseqüências e os efeitos colaterais que podem ser esperados de seu cumprimento em geral, para satisfazer aos interesses particulares de cada pessoa envolvida, devem ser tais que todos os afetados possam aceitá-los livremente”.2 A validação de normas a partir de diversas perspectivas proporciona a autoridade cognitiva, instrumental e moral de um respeito aos direitos implantado profundamente no seio da sociedade. Assim, vemos o discurso social contínuo como o processo que cria as condições lógicas para o respeito aos direitos humanos.
Por que as pessoas não respeitam os direitos dos outros?
Hoje, um dos temas mais prementes para quem promove os direitos humanos é a desigualdade social e econômica. A desigualdade atualmente é avassaladora e crescente. A título de ilustração, consideremos a desigualdade econômica medida pelo acesso a recursos financeiros (como poderíamos também discutir as persistentes desigualdades provenientes de preferências religiosas, sociais, de classe, de raça ou sexuais). Cerca de uma em cada cinco pessoas no mundo vive com menos de um dólar por dia. Em países como o Brasil, a parcela mais rica da população, equivalente a 1%, controla o mesmo volume de recursos que os 50% mais pobres. Como aponta o Relatório do Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, a falta de recursos significa também carência de educação adequada, condições de saúde, moradia, água e infra-estrutura sanitária. A ausência dessas condições básicas para a maioria cria uma situação de disparidade e inferioridade entre os que têm e os que não têm acesso a elas. Tais circunstâncias ocorrem tanto nas nações mais afluentes quanto nas menos.
A desigualdade social e a econômica acionam a exclusão moral. Elas reduzem a percepção da igualdade entre os seres humanos, destruindo as condições de respeito aos direitos humanos. Em 2002, na campanha presidencial no Brasil, um dos principais candidatos declarou que “iria defender os direitos humanos, mas também defenderia os seres humanos ‘direitos’ (que obedecem às leis)”.3 Isso significa que as pessoas podem ser menos do que humanas, se não se ajustarem à categoria de pessoa válida. É fácil demais assegurar nosso próprio bem quando se focaliza um inimigo fácil. Sob tais circunstâncias, os direitos podem freqüentemente parecer uma farsa, uma questão de poder daqueles que estão entre os poucos felizardos que negociam os termos para os excluídos. A exclusão moral se manifesta em duas características distintas:
Invisibilidade dos excluídos. O verdadeiro estado de sofrimento e dor desses indivíduos não é partilhado pelos incluídos. Embora existam enquanto força coletiva (economicamente, utilizados na produção; e politicamente, como sujeitos a serem governados), eles têm pouca voz e poucos meios diretos para mobilizar ou constranger aqueles que se encontram no topo. Sua submissão opaca e silenciosa às mais altas realidades hierárquicas torna-os invisíveis. Essa invisibilidade é reforçada por um aspecto cultural algumas vezes aceito, e até aprofundado, com a conivência de mem-bros desses grupos invisíveis. As percepções negativas de capacidade e desigualdade se tornam o statu quo, se arraigan-do em todos os níveis de ação e criando uma impermeabili-dade às mudanças.
Demonização dos que estão sendo marginalizados e podem desafiar o statu quo. A força e a quantidade das populações excluídas – quer busquem igualdade religiosa ou de raça, tentem obter bens, como terra, emprego e serviços de saúde; ou quer se comportem de maneira anti-social – são uma ameaça direta aos elementos da sociedade mais prósperos e mais bem-colocados, e aos interesses destes em manter ou expandir seus privilégios. Desse modo, a luta dos excluídos emerge como um problema a ser eliminado. A violência é freqüentemente o instrumento utilizado para tratar os que contestam a injustiça.
Políticas, práticas sociais e até mesmo leis que negam a igualdade de valor para os que pertencem a grupos vulneráveis são ainda lugares-comuns. Para se tornarem viáveis, são sempre justificadas em termos de prioridade social ou como imperativos econômicos. O medo engendrado nos Estados Unidos, por exemplo, depois do ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, permitiu que o governo norte-americano ignorasse os direitos dos soldados afegãos capturados na guerra subseqüente em retaliação àquele país, e que empreendessem uma campanha global contra os inimigos demonizados, ignorando a possibilidade de justificar tais ações pela legislação internacional. No mundo em desenvolvimento, os direitos mínimos individuais estão sendo desrespeitados em nome de princípios econômicos ortodoxos. Em certa dimensão, o temor pela segurança nacional e internacional prevalece sobre os direitos humanos. Todavia, uma base social forte, na qual os direitos humanos estejam compreendidos, com sistemas de punição e recompensa e com uma linguagem moral compartilhada, estabelecerá os limites mínimos para que eles sejam respeitados.
As conseqüências desse processo de desvalorização da humanidade são muito negativas para o respeito aos direitos humanos e respondem, pelo menos parcialmente, à questão das causas do desrespeito aos direitos humanos no mundo atual. Os que estão na parte mais baixa da pirâmide social, cujos direitos deveriam ser protegidos, são tratados como objeto, ou como inimigos. Ao mesmo tempo, a impunidade e o privilégio dos que estão no topo são reforçados. O problema é a necessidade de desenvolver uma lógica dos direitos humanos – que podemos chamar de cosmopolitismo ético – que convença os indivíduos, os grupos e as sociedades a tratar cada indivíduo como um sujeito de igual valor intrínseco. Este seria um cosmopolitismo no qual os direitos humanos estariam tanto integrados nos currículos (razão cognitiva), como promovidos por sistemas de coerção e recompensa (razão instrumental), e tornados óbvios graças a uma norma compartilhada sobre a dignidade da humanidade (razão moral).
A partir da citação de Habermas acima, enfatizamos que a concepção de direitos humanos tem uma dinâmica tanto moral quanto política, compreendida por meio do discurso social. Esse discurso ético necessita de um diálogo atualizado e de estruturas que permitam mudanças contínuas, de modo que uma norma seja vista sob todas as perspectivas. Isso requer simetria, imparcialidade e abertura que devem ser conduzidas por uma associação voluntária que maximize a escolha e a plena participação do indivíduo. Voltamo-nos para a sociedade civil como o ambiente em que naturalmente cada uma das diversas perspectivas e o diálogo acerca das normas é um processo contínuo. A lógica da sociedade civil é a ação de indivíduos e de grupos para expressar e realizar os diversos e válidos desejos e necessidades da sociedade. A próxima seção deste texto refletirá o papel da sociedade civil na construção do cosmopolitismo ético global para a realização dos direitos humanos.
O que entendemos por sociedade civil e o que nos leva a pensar que uma sociedade civil forte é importante para o respeito aos direitos humanos? A expressão “sociedade civil” tem sido apropriada por tradições intelectuais e políticas diferentes, e algumas vezes antagônicas.
De uma perspectiva normativa, definimos sociedade civil como a esfera da vida que não foi colonizada pelo etos instrumental do Estado e do mercado. Na tradição maquiavélica, a luta pelo poder entre os Estados e no interior deles se baseia em uma ação estratégica, na qual a legitimidade dos meios é medida pelos resultados. Esse etos instrumental colide com a moralidade dos direitos, para a qual as pessoas são um fim em si mesmas e a moralidade não pode ser usada para conquistar outros objetivos. No mercado, esse etos instrumental também prevalece, uma vez que a lógica da economia é a maximização dos benefícios (econômicos), mediante o uso de recursos mínimos, dos quais as pessoas (os trabalhadores) são um meio para a produção de lucros. Em um mundo dominado pelo mercado e por Estados, o contínuo debate social, político e econômico que tem lugar na sociedade civil é essencial para a criação e o fortalecimento das condições necessárias para o respeito aos direitos humanos. Isso não diminui a importância estratégica de desenvolver um bom governo democrático e nele incorporar a responsabilidade social. No entanto, modelos de direitos humanos mais responsáveis somente serão catalisados por uma sociedade civil saudável.
A definição de sociedade civil proposta por Jan Aart Scholte é um ponto de partida útil: “A sociedade civil é o espaço político no qual associações voluntárias buscam explicitamente formular as regras (em termos de políticas específicas, normas mais abrangentes e estruturas sociais mais profundas) para governar um ou outro aspecto da vida social”.4
As organizações e associações da sociedade civil assumem diferentes formas, mas têm em comum a característica de ampliar as vozes dos interesses particulares e advogar naturalmente em favor dos grupos excluídos e invisíveis. Jean Cohen e Andrew Arato apontam quatro características da sociedade civil que tomamos como estrutura para entender a amplitude do impacto potencial que a discussão dos direitos humanos causa na sociedade civil: publicidade (instituições de cultura e comunicação); pluralidade (diferenciação de interesses e formas); privacidade (um ambiente que sustente o desenvolvimento e a expressão do indivíduo); e legalidade (a estrutura de leis e direitos básicos que propiciem a publicidade, a pluralidade e a privacidade).5
As associações que lutam em defesa dos direitos humanos freqüentemente surgiram em resposta ao abuso governamen-tal, a restrições genéricas ou específicas aos direitos humanos ou em outras circunstâncias adversas. O movimento inclui uma gama de organizações que formulam um discurso libertador e de justiça social em termos de direitos. Essas associações tomaram uma decisão estratégica de promover o discurso dos direitos humanos em oposição a outras formas de ação política. Elas se dividem, refletindo o desenvolvi-mento desses conceitos nos acordos das Nações Unidas, em: direitos civis e políticos (participação no governo, proteção e segurança individual, associação e expressão, acesso à justiça); direitos sociais e econômicos (renda, emprego, educação e formação, serviços de saúde, acesso à informa-ção); e direitos culturais.
Como a sociedade civil é um ator essencial para os direitos humanos?
O avanço na questão dos direitos humanos requer o estabelecimento de condições que conduzam ao respeito por eles. Essas condições criam normas tendo em conta os aspectos cognitivo, instrumental e moral surgidos do diálogo progressivo, juntando diversas perspectivas e recriando constantemente tais normas como princípios dinâmicos e universais. Se o que se busca é justiça, é impossível escapar desse processo, porque o diálogo em si é um componente da justiça. A efetivação dos direitos é um processo, que não se dá unicamente pela incorporação de direitos em estruturas legais nacionais e internacionais. A sociedade civil cria e recria as condições para validar e concretizar os direitos humanos. Enfatizamos cinco aspectos dessa ação: (1) oferecer uma esfera de ação para todos os grupos sociais; (2) tornar pública a injustiça; (3) proteger o espaço privado da incursão do Estado e do mercado; (4) intervir e interagir diretamente nos sistemas legais e políticos; (5) promover a inovação social.
Um discurso de pluralidade. O discurso dos direitos humanos deve ser prático, responsável e acessível a uma pluralidade de perspectivas. Ele deve engajar os grupos desprezados e invisíveis como proponentes das mudanças que considerem necessárias à justiça. Obviamente, a sociedade civil é a origem dos conflitos entre os clamores por justiça, e um aspecto do diálogo é a negociação entre vários direitos e a distribuição dos recursos para serem investidos em soluções. Por exemplo, para certo indivíduo a segurança pessoal e um bom tratamento por parte da lei podem corresponder à idéia de justiça. A perspectiva será outra para uma pessoa que viva em estado de insegurança, ou seja diretamente afetada por uma ação legal. A discussão dos direitos humanos não é um mecanismo para a resolução dessas questões; é um espaço no qual elas podem ser resolvidas através da interação e do diálogo entre todos os envolvidos no problema.
Injustiça pública. Grupos da sociedade civil são bons cães de caça para injustiças, pois dão voz a perspectivas e pontos vantajosos que, de outro modo, não seriam ouvidos. Para que isso se torne realidade, a associação e o diálogo devem estar abertos e com um mínimo de intervenção. Assim, a sociedade civil contribui para a efetivação dos direitos humanos, ao levar a injustiça à esfera pública. Podem surgir problemas quando grupos mais influentes e poderosos abafam as vozes dos menos poderosos, na própria sociedade civil. Isso é em parte protegido pelo princípio associativo – indivíduos se associam em vários níveis e com vários interesses, baseados em suas próprias necessidades de expressão social e particular – e também pelo fato de a força da sociedade civil advir diretamente da coexistência de diversas perspectivas. Desse modo, diversos grupos atuam nos direitos humanos ao divulgar e trazer à luz a injustiça, ao defender mudanças ou exercer pressão para que ocorram. Os grupos podem exercer pressão produzindo e fornecendo informações, educando o público e outros grupos, propondo políticas públicas e dando encaminhamento a ações legais.
Proteção ao espaço privado. A sociedade civil define um espaço para a expressão e o desenvolvimento do indivíduo, que se distingue da lógica do cidadão e do consumidor a respeito do Estado ou do mercado. A individualidade é expressa mediante a associação ou a não-participação – sendo, portanto, amplamente eletiva. Em termos de direitos, essa visão do indivíduo é crucial, porque considera cada pessoa como um fim em si mesma. Os grupos de direitos humanos protegem esse espaço, ao buscar condições necessárias e positivas que propiciem a expressão individual e reforcem os limites da ação do Estado e do mercado.
Participação direta nos sistemas legais e políticos. Em cada país e no nível internacional, têm sido promulgadas, até certo ponto, leis e políticas públicas que conduzem à realização dos direitos humanos. As leis e normas incorporadas a esses sistemas só se tornam efetivas na medida em que são usadas, refinadas e aprovadas – e assim validadas pela sociedade civil. Grupos de direitos humanos têm participado diretamente desse processo, ao levar casos legais aos tribunais, fornecer informações e dados essenciais para o refinamento das políticas públicas e propor novos mecanismos – ou a erradicação dos que são ineficazes – para a criação de um sistema de apoio aos direitos humanos. Essa intervenção deve ser estratégica, com foco na mudança paradigmática e na pressão sobre a política governamental, para que se torne mais consistente com o discurso progressivo dos direitos humanos.
Conduzir a inovação social. A inovação social é uma abordagem proativa dos direitos humanos, que precisa ocorrer em níveis exeqüíveis, em que o diálogo, o feedback e os resultados estejam em aberto e sejam explicáveis sob diversas perspectivas. A inovação ocorre por meio da criação de modelos em menor escala que mostrem a possibilidade de soluções para questões de intransigência da justiça em escala, mais ampla. A inovação social na sociedade civil emerge como uma resposta direta a injustiças localizadas. Os inovadores estão profundamente conscientes e envolvidos com aqueles que foram afetados pela injustiça e, trabalhando com eles, experimentam e criam maneiras de encontrar soluções. Foi o que ocorreu, por exemplo, na África do Sul, onde o Social Change Assistance Trust criou e manteve estruturas de assistência jurídica à comunidade durante o período do apartheid, demonstrando que é possível, com uma infra-estrutura mínima e de baixo custo, tornar a justiça acessível em áreas rurais.6 Atualmente, vários grupos sociais buscam, no Brasil, maneiras mais efetivas de usar os tribunais e a Constituição para reparar casos de antigas injustiças. O Instituto Pro Bono (São Paulo, Brasil),7 que fornece advogados voluntários altamente qualificados para grupos sociais, é um exemplo desse tipo de ação.
Em suma, a sociedade civil é um ator central na criação de condições para a efetivação dos direitos humanos. Ela promove o discurso dos direitos humanos que legitima as normas dos direitos, particularmente por incluir os grupos desprezados e invisíveis. As formas desse discurso também variam e conduzem a diferentes estratégias e meios que permitem efetivar a lógica dos direitos humanos na sociedade. A rápida discussão do papel da sociedade civil nos remete a uma questão óbvia. Se a sociedade civil é um agente poderoso e importante para a implementação dos direitos humanos, o que a impede de efetivá-los?
O que impede a sociedade civil de exercer maior impacto sobre os direitos humanos?
Flexibilidade, diversidade e voluntariado, algumas das forças da sociedade civil, são também sua fraqueza. Ela não está protegida contra o Estado e o mercado, tampouco tem poder sobre eles; é muito dividida e carece de financiamentos e outros recursos. Várias dessas características se refletem nos desafios do atual movimento de direitos humanos. Este texto discutirá três delas: a fragmentação (tanto a temática quanto a geográfica); a neutralização do discurso; e a dependência de recursos.
Fragmentação
A fragmentação do movimento criou uma competição por espaço, voz e recursos que rompe a solidariedade em torno dos direitos humanos. De modo a se tornarem mais efetivas, as organizações de direitos humanos devem buscar meios para unir as ações e os discursos dos diversos atores.
Os grupos de direitos humanos se dedicam a uma variedade de temas e questões, incluindo tortura, abuso policial, aids, moradia, direitos sociais e econômicos, discriminação e até mesmo temas como proteção e desenvolvimento ambiental. A fragmentação temática apresenta aspectos positivos e negativos. Um aspecto positivo é que a diversidade de ação e envolvimento reflete a diversidade de interesses no discurso social, conduzindo a um sistema significativo de direitos humanos. Os trabalhos abrangem muitas áreas importantes para os excluídos, dando voz aos grupos invisíveis e trazendo à luz aqueles que estão esquecidos ou são ignorados. E há vários aspectos negativos: (1) a diversidade de interesses pode criar uma competição pela atenção e pelos recursos públicos necessários para encaminhar determinados direitos, minimizando o sentido de uma causa compartilhada; (2) associada ao primeiro aspecto está a canalização da energia social em diferentes direções, empobrecendo o discurso social.
Outra divisão a ser tratada é a Norte/Sul. Relaciona-se menos com a geografia do que com um conceito “periférico” de acesso a recursos pela maioria da população mundial. Alguns dos acordos internacionais, tal como os que se referem aos direitos humanos, contaram com pequena participação das populações menos afluentes no passado. É preciso observar que as conferências das Nações Unidas no Rio de Janeiro, 1992; em Viena, 1993; em Beijing, 1995; e em Durban, 2003, contaram com um acréscimo muito bem-vindo da participação dos países do Sul. Os atores do Sul precisam se tornar proponentes mais fortes nos movimentos internacionais dos direitos humanos. Reconhecendo que as organizações mais fortes naturalmente se desenvolvem à sombra das agências governamentais internacionais e com recursos e poder dos países do Norte, precisamos trazer a questão dos direitos humanos para cá. O Sul deve participar em maior escala no nível internacional da ação dos direitos humanos, pois tem grande necessidade de proteção e de acesso aos direitos humanos – suas populações são as menos atendidas pela infra-estrutura legal de direitos já existente.
Um aspecto da divisão entre Norte e Sul é a necessidade de reforçar a credibilidade dos direitos humanos locais deste último em seus próprios governos e sociedades. Freqüentemente, eles trabalham à sombra das organizações do Norte, ou como subsidiários delas, vinculando-se à proteção de organizações baseadas em Washington, Nova York, Londres, Paris e Genebra. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia de sobrevivência em países que reprimem ativamente os direitos humanos e quem advoga a seu favor. Mas não é uma boa estratégia, na medida em que são conquistadas proteções mínimas, porque os direitos humanos precisam ser públicos e visíveis. As organizações de direitos humanos no Sul precisam aperfeiçoar seu alcance e sua credibilidade em seus próprios contextos e na arena internacional.
Neutralização do discurso
Os direitos humanos estiveram no auge da evidência durante as lutas contra os regimes autoritários na América Latina, na Europa, na África e na Ásia. No Norte, os direitos humanos constituem um importante subtexto neste exato momento. As organizações de direitos humanos precisam compreender isso e agir no espaço político.
Quando as crises terminam, as organizações de direitos humanos freqüentemente passam para segundo plano. Alguns dos líderes mais qualificados entram para o governo; outros, tendo cumprido a tarefa a que se propuseram, abandonam a esfera social. Mas com o restabelecimento das estruturas democráticas e com a regulamentação das leis, os movimentos de direitos humanos encaram seu mais árduo desafio: transformar os direitos em realidade. Findo um período de repressão, confundimos a luta pelos direitos com uma revolução que pode ser vencida com uma carta constitucional, eleições diretas e liberdade de imprensa. É então que se tornam mais necessárias políticas específicas, normas mais amplas e estruturas sociais mais profundas para se efetivar os direitos humanos. Tudo isso deve ser experimentado e se desenvolver nas comunidades em que vivemos, em parceria com o governo e o setor privado.
Por isso, é um equívoco as organizações de direitos humanos buscarem a neutralidade política (na medida em que isso é possível), para tornar seu discurso mais aceitável e confiável para o público e o Estado. Se a neutralidade política do discurso evita conflitos, afasta também o debate crítico.
Sem dúvida, as organizações de direitos humanos devem evitar lutas partidárias, mas também precisam saber entendê-las. Afastar-se da esfera política tira a legitimidade dos esforços daqueles que buscam mudanças mediante meios políticos. Desse modo, os movimentos por justiça social, em Chiapas, no México; o movimento dos sem-terra, no Brasil; os movimentos relacionados à aids, na África do Sul, entre outras “rebeliões” sociais, são vistos com cautela por algumas organizações de direitos humanos. Os direitos humanos devem ser relevantes para as reais demandas dos desprivilegiados. A realização dos direitos brota de processos profundos, graduais e progressivos de negociação social. A profissionalização dos direitos humanos – qualificação, capacitação e apoio institucional – é uma atividade importante, mas deveria ser complementada pela tendência geral dos direitos humanos na esfera política e por maiores vínculos com os movimentos de justiça social.
Dependência de recursos e ação orientada para o financiamento
A necessidade de financiamentos e de outros recursos cresce à medida que as organizações passam a atuar em novas áreas, que sua força de trabalho se transfere de ativistas voluntários para advogados profissionais altamente treinados, e que os desafios requerem abordagens de longo prazo. Não obstante, apenas um punhado de fundações e outros patrocinadores investem em direitos humanos e, entre estes, bem poucos se dispõem a investir em organizações mais heterodoxas, menores e transitórias.
Os recursos estão sendo obtidos de governos e associações governamentais (dos Estados Unidos e Europa e, em certa medida, de outros grupos regionais e de alguns governos do eixo sul), fundações criadas pelo setor privado, fundações familiares e indivíduos. A fonte dos financiamentos tem um significativo impacto na conceituação das prioridades e na definição dos direitos humanos em si mesmos. Por exemplo, os financiamentos do governo dos Estados Unidos tradicionalmente têm enfatizado os direitos civis e políticos em detrimento dos direitos econômicos e sociais, refletindo a visão desse país em relação aos direitos humanos.8
A competição por esses escassos recursos cria um ciclo perverso, no qual as organizações de direitos humanos adaptam suas iniciativas e sua linguagem às prioridades do financiamento. Os recursos são canalizados para as organizações confiáveis do ponto de vista do objetivo dos controladores dos fundos. Mas o problema não é tanto o das prioridades das organizações capitalistas, mas principalmente do alinhamento em relação a elas. As organizações de direitos humanos ficam tentadas a mimetizar o discurso hegemônico, para sua própria credibilidade e sobrevivência. Um modo de reverter esse quadro pode ser os financiadores adotarem estratégias para desencadear o diálogo aberto e a ligação entre movimentos de direitos humanos de vários tamanhos, idades e localizações geográficas e ajudarem a desenvolver financiamentos mais consistentes.
Além do mais, os movimentos de direitos humanos devem expandir todo o espectro de seus recursos: novas idéias, habilidades, conhecimento, tempo, espaço e comprometimento. Os recursos estratégicos financeiros podem alavancar essas contribuições, mas não substituí-las.
Como fortalecer a ação dos movimentos de direitos humanos?
No futuro, o movimento de direitos humanos deveria, estrategicamente, se focalizar no fortalecimento e no aprofundamento da validação de normas que levem à criação de uma lógica de respeito aos direitos humanos. Sua atuação, como discutimos acima, deve promover esse processo pela participação em uma pluralidade de perspectivas – divulgação de injustiças, proteção ao espaço privado e promoção da inovação social. A fragmentação, a neutralização do discurso e a dependência de recursos são obstáculos que dificultam o avanço de cada uma dessas áreas. Mas acreditamos que há várias estratégias importantes que propiciarão mais impacto e melhores resultados, como nas reflexões a seguir.
Melhorar nossa capacidade de comunicação e educação
Atualmente, tanto os sistemas de comunicação quanto os de educação não se focalizam na promoção de um discurso social ou na difusão de informações sobre direitos humanos. As organizações de direitos humanos precisam melhorar sua capacidade de fazer uso desses sistemas, pois eles existem para ampliar o alcance do diálogo social.
Isso significa dar continuidade e aperfeiçoar as iniciativas educacionais que não apenas apresentem às pessoas a linguagem dos direitos humanos, mas também abram caminho para diálogos proativos com os governos, o setor privado e outros movimentos sociais. Abrem-se novas modalidades de mídias acessíveis – manuais, guias, currículos escolares, música e arte –, nas quais o movimento pelos direitos humanos precisa se tornar fluente. A simples exposição dos direitos humanos, de seus benefícios potenciais e do valor da humanidade constitui uma mensagem essencial que precisa penetrar na variada gama de experiências educacionais destinadas a atingir maior audiência.
Além da divulgação dos princípios e da linguagem sob formas acessíveis, é necessário frisar que os direitos humanos não constituem um corpo de conhecimentos fechado. Precisamos divulgá-los, utilizando os sistemas de educação e de comunicação existentes, meios pelos quais são obtidos mecanismos de progressivo feedback e de diálogo permanente.
Investir em modelos socialmente inovadores
As organizações de direitos humanos estão cada vez mais experientes na divulgação de injustiças, tal como devem fazer. Contudo, a história negativa dos direitos humanos deve ser contrabalançada com a existência de alternativas viáveis. Acreditamos que isso requer uma abordagem proativa. No que diz respeito aos direitos civis e políticos, por exemplo, devem ser criados modelos para mostrar como pode ser melhorado o acesso aos sistemas judiciários, como os criminosos podem ser tratados de forma mais humana, como um maior número de cidadãos pode participar do governo e como corrigir práticas discriminatórias. Na área dos direitos econômicos e sociais, além da contínua pressão para que o governo e o mercado atuem na direção de sua realização, também precisamos de modelos para mostrar como esse objetivo pode ser atingido. A inovação na abordagem dos direitos humanos em menor escala demonstrará que são possíveis melhores sistemas, em escala mais ampla, proporcionando às organizações de direitos humanos uma posição mais sólida.
Construir redes de direitos humanos que interrompam
a fragmentação e fortaleçam o uso dos recursos
Por meio da identificação com determinadas redes e da participação nelas, as organizações de direitos humanos trocam informações, aprendem com a experiência das outras, estimulam a solidariedade internacional e criam um ambiente de diálogo que favorece o protagonismo equilibrado no debate universal dos direitos humanos. Por definição, as redes são horizontais. Elas facilitam o discurso, sem monopolizá-lo, permitem que as organizações individuais aprimorem a utilização efetiva dos recursos e oferecem oportunidades a grupos menos visíveis. Existem hoje inúmeras redes, desde aquelas formalmente constituídas até aquelas ligadas por laços tão tênues que se torna difícil dar-lhes um nome. O que consideramos trabalho em rede corresponde a tomar a realidade do processo social como elemento crucial para a efetivação dos direitos humanos. Esse engajamento deve ocorrer ao longo dos níveis da sociedade, com indivíduos, grupos comunitários, universidades, órgãos governamentais e corporações; implica também um ativo e constante diálogo com interesses variados e não somente com os que estiverem de acordo conosco.
Uma reflexão, a título de conclusão
Este texto pretendeu explorar os motivos pelos quais as pessoas não respeitam os direitos e propor algumas idéias práticas para mudar essa situação. Para isso sugerimos que é preciso desenvolver a lógica do sistema de direitos e que um caminho promissor para isso está em compreender o respeito aos direitos humanos como algo que emerge de um processo que deve ser continuamente concretizado por meio do discurso social. Isso tem implicações no movimento dos direitos humanos hoje. Ao mesmo tempo que ele conquista alguns êxitos, particularmente nas áreas do direito e da educação, poderia ser bem mais efetivo em convocar perspectivas e grupos sub-representados e criar espaço para o fortalecimento das normas de direitos humanos.
Tais argumentos não pretendem oferecer uma resposta única e simples. Todavia, sugerem algumas razões otimistas, se o despertar da consciência da sociedade civil em várias partes do mundo puder conduzir a um maior respeito aos direitos humanos. Acreditar em um processo de discurso social pode ser insuficiente para aqueles cujos direitos estão sendo violados hoje, mas sem esse processo a situação dessas pessoas permanece invisível e a dimensão moral a que têm direito continua sendo uma construção teórica. O otimismo está garantido porque os processos sociais discutidos neste texto são atingíveis e, em alguns casos, já estão encaminhados.
1. Para maiores detalhes a respeito de reciprocidade, ver Brian Barry, Justice as Imparciality.Oxford, 1999, p. 51.
2. Jürgen Habermas, Moral Consciousness and Communicative Action, p. 120. Massachusetts Institute of Technology, 1990.
3. “[…] defender os direitos humanos, mas também os seres humanos ‘direitos’”, José Serra, em reportagem do jornal Folha de S. Paulo, 17 set. 2002.
4. Jan Aart Scholte, Civil Society and Democracy in Global Governance. CSGR Working Paper n. 65/01, Centre for the Study of Globalization and Regionalization, Universidade de Warwick, jan. 2001.
5. Jean L. Cohen & Andrew Arato, Civil Society and Political Theory, p. 347. Massachusetts Institute of Technology, 1994.
6. Para informações acerca do modelo SCAT, ver o Sourcebook on Foundation Building, do Synergos Institute, 2000, ou acesse o site www.scat.org.za. Acesso em 22 abr. 2004.
7. Sobre o Instituto Pro Bono, ver institutoprobono.org.br. Acesso em 14 maio 2004.
8. Ver Supporting Human Rights and Democracy: the US Record 2002-2003 no site state.gov. Acesso em 14 abr. 2004.