Ensaios

Para erradicar a pobreza sistêmica

Thomas W. Pogge

Em defesa de um dividendo dos recursos globais

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RESUMO

A atual apropriação da riqueza de nosso planeta é muito desigual. As classes economicamente favorecidas utilizam muitíssimo mais os recursos mundiais, e o fazem de forma unilateral, sem dar qualquer compensação às classes menos favorecidas por seu consumo desproporcional. Invocando três diferentes razões da injustiça – o efeito das instituições sociais compartilhadas, a exclusão não compensada do uso dos recursos naturais e os efeitos de uma história comum e violenta –, o objetivo do autor é mostrar que talvez seja possível reunir partidários de correntes dominantes do pensamento político normativo ocidental numa coalizão voltada para a erradicação da pobreza mundial mediante a introdução de um Dividendo dos Recursos Globais, ou DRG. Uma versão anterior deste artigo foi publicada pela Revista Lua Nova: Thomas Pogge. “Uma proposta de reforma: um dividendo global de recursos”, Revista Lua Nova n. 34, 1994. Agradecemos à Revista Lua Nova pela autorização da reimpressão deste artigo.

Palavras-Chave

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Artigo 25. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis [...]. 
Artigo 28. Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Declaração Universal dos Direitos Humanos

01

Em dois ensaios anteriores,1 esbocei e defendi a proposta de um Dividendo dos Recursos Globais, ou DRG. Essa proposta explicita que os Estados e seus cidadãos e governos não devem ter plenos direitos de propriedade em relação aos recursos naturais de seus territórios, e que se pode exigir deles que partilhem uma pequena parte do valor de qualquer recurso que decidam utilizar ou vender. Esse pagamento que devem fazer é chamado de Dividendo porque se baseia na idéia de que as classes mais desavantajadas economicamente possuem uma participação inalienável em todos os recursos naturais limitados. Como no caso das ações preferenciais, essa participação não confere o direito de participar das decisões sobre se e como os recursos naturais serão usados e, portanto, não interfere no controle nacional sobre os recursos, ou no domínio eminente. Mas dá direito aos seus detentores a uma parcela do valor econômico do recurso em questão, se de fato a decisão for de utilizá-lo. Essa idéia poderia ser ampliada aos recursos limitados que não são destruídos pelo uso, mas meramente erodidos, gastos ou ocupados, tais como o ar e a água usados para despejar poluentes ou terras usadas para agricultura, pecuária ou construção.

A receita do DRG deverá ser usada para assegurar que todos os seres humanos possam satisfazer suas necessidades básicas com dignidade. O objetivo não é somente melhorar a nutrição, os cuidados médicos e as condições sanitárias de pessoas economicamente excluídas, mas também tornar possível que elas possam efetivamente defender e realizar seus interesses básicos. Essa capacidade pressupõe que estejam livres de servidão e de outras relações de dependência pessoal, que sejam capazes de ler, escrever e aprender uma profissão. Também,  que possam participar como iguais da política e do mercado de trabalho e que seu status seja protegido por direitos legais que eles possam compreender e efetivamente fazer valer por meio de um sistema judiciário aberto e justo.

A proposta do DRG destina-se a mostrar que há modos alternativos factíveis de organizar nossa ordem econômica global, que a escolha entre essas alternativas faz uma diferença substancial para a quantidade de miséria que há em todo o mundo e que há razões morais de peso para fazer essa escolha a fim de minimizar a pobreza. Minha proposta provocou algumas reações críticas2 e defesas apaixonadas3 na academia. Todavia, para ajudar a reduzir a pobreza extrema, a proposta deve ser convincente não apenas para os acadêmicos, mas também para as pessoas que estão nos governos e nas organizações internacionais, que estão envolvidas concretamente nos esforços de erradicação da miséria. Portanto, sou muito grato pela oportunidade de apresentar neste volume uma versão concisa e aperfeiçoada do argumento.

Introdução: a desigualdade radical e nossa responsabilidade

Um grande desafio atual para qualquer pessoa moralmente sensível é a amplitude e a severidade da pobreza mundial. Dos cerca de 6,373 bilhões de seres humanos (em 2004), 850 milhões carecem de nutrição adequada, 1,037 bilhão não tem acesso à água potável e 2,6 bilhões carecem de saneamento básico,4 mais de 2 bilhões não têm acesso a medicamentos essenciais,5 um bilhão não tem moradia adequada e 2 bilhões vivem sem eletricidade.6 “Duas em cada cinco crianças do mundo em desenvolvimento têm crescimento atrofiado, uma em cada três está abaixo do peso e uma em cada dez está fadada à morte”.7 179 milhões de crianças com menos de dezoito anos estão envolvidas “nas piores formas de trabalho infantil”, inclusive trabalho perigoso na agricultura, construção, indústria têxtil e produção de tapetes, bem como “escravidão, tráfico, servidão por dívida e outras formas de trabalho forçado, recrutamento forçado de crianças para uso em conflito armado, prostituição, pornografia e atividades ilícitas”.8 Cerca de 799 milhões de adultos são analfabetos.9 Em torno de um terço de todas as mortes humanas, cerca de 50 mil por dia, devem-se a causas relacionadas com a pobreza e, portanto, são evitáveis na medida em que a pobreza é evitável.10 Se os Estados Unidos tivessem uma participação proporcional nessas mortes, a pobreza mataria mais de 70 mil de seus cidadãos por mês – mais do que foram mortos em toda a guerra do Vietnã. Para o Reino Unido, a quantidade de mortes mensais devido a causas relacionadas com a pobreza seria de 15 mil.

Há duas maneiras de se conceber a pobreza global como um desafio moral para nós: podemos não cumprir nosso dever positivo de ajudar as pessoas em dificuldade aguda ou podemos não cumprir nosso dever negativo mais rigoroso de não sustentar a injustiça, não contribuir para ou lucrar com o empobrecimento dos outros.

Essas duas visões diferem em aspectos importantes. A formulação positiva é mais fácil de substanciar. Basta mostrar que os pobres estão em um estado muito ruim, que nós estamos em um estado muito melhor e que podemos aliviar um pouco do seu sofrimento sem piorar nossa situação. Contudo, essa facilidade tem um preço: aqueles que aceitam a formulação positiva pensam que as razões morais que ela oferece são fracas e discricionárias e, portanto, não se sentem obrigados a promover causas meritórias, especialmente as caras. Muitos sentem-se autorizados, pelo menos, a apoiar boas causas de sua escolha – sua igreja ou alma mater, a pesquisa sobre câncer ou o meio ambiente –ao invés de se mobilizarem por estranhos totais que estão a meio mundo de distância e com quem não compartilham nenhum laço de comunidade ou cultura. Portanto, tem alguma importância investigar se a miséria mundial existente implica nossa violação de um dever negativo. Isso é importante para nós, se quisermos levar uma vida moral, e é importante também para as pessoas economicamente excluídas, porque fará uma grande diferença para elas se nós, os economicamente favorecidos, virmos ou não a pobreza como uma injustiça que ajudamos a manter.

Alguns acreditam que o mero fato da existência da desigualdade radical revela uma violação do dever negativo. A desigualdade radical pode ser definida como implicando cinco elementos (ampliando Nagel):11

1. Os que estão num estado pior estão num estado muito ruim em termos absolutos;

2. Eles estão também num estado muito ruim em termos relativos – muito pior do que o de muitos outros;

3. A desigualdade é impermeável: é difícil ou impossível para as pessoas em situação de miséria melhorar substancialmente sua sorte; e a maioria que está em estado melhor jamais experimenta a vida no fundo do poço nem que seja por alguns meses e não tem idéia do que seja viver dessa maneira;

4. A desigualdade é difusa: ela diz respeito não apenas a alguns aspectos da vida, como clima ou acesso às belezas naturais e à alta cultura, mas à maioria dos aspectos ou a todos eles;

5. A desigualdade é evitável: os que estão em estado melhor podem melhorar as condições dos que estão em estado pior sem ficarem em situação ruim.

A pobreza mundial exemplifica claramente a desigualdade radical tal como foi definida. Duvido, contudo, que essas cinco condições sejam suficientes para invocar mais do que um dever positivo. E suspeito que a maioria dos cidadãos do Ocidente desenvolvido também as acharia insuficientes. Eles podem apelar para o seguinte paralelo: suponha que descobrimos pessoas em Vênus que estejam num estado muito ruim e suponha que poderíamos ajudá-los a um custo baixo para nós. Se não fizermos nada, certamente violaríamos um dever positivo de beneficência. Todavia, não estaríamos violando um dever negativo de justiça, porque não estaríamos contribuindo para a perpetuação de sua miséria.

Esse argumento poderia ser mais discutido. Aceitemos, contudo, o argumento venusiano e examinemos que outras condições deveriam ser satisfeitas para que a desigualdade radical manifestasse uma injustiça que envolvesse a violação de um dever negativo pelos que estão em melhores condições de vida. Vejo três enfoques plausíveis para essa questão, invocando três diferentes razões da injustiça: o efeito das instituições sociais compartilhadas, a exclusão não compensada do uso dos recursos naturais e os efeitos de uma história comum e violenta. Esses enfoques exemplificam filosofias políticas distintas e concorrentes. Não obstante, não precisamos decidir entre eles aqui se, como sustento, as duas teses seguintes são verdadeiras.

Primeiro, todos os três enfoques classificam a desigualdade radical existente como injusta e sua manutenção coercitiva como uma violação do dever negativo. Segundo, os três enfoques podem concordar com a mesma reforma factível do status quo como um passo importante na direção da justiça. Se essas duas teses podem ser sustentadas, então talvez seja possível reunir partidários das correntes dominantes do pensamento político normativo ocidental numa coalizão voltada para a erradicação da pobreza mundial mediante a introdução de um Dividendo dos Recursos Globais, ou DRG.

02

Três razões da injustiça

Os efeitos das instituições sociais compartilhadas

O primeiro enfoque12 propõe três condições adicionais:

6. Há uma ordem institucional compartilhada que é moldada pelos que estão em uma situação economicamente melhor e que é imposta aos que estão em uma situação economicamente pior;

7. Essa ordem institucional implica a reprodução da desigualdade radical na medida em que há uma alternativa institucional na qual uma pobreza tão grave e ampla não persistiria;

8. A desigualdade radical não pode ser atribuída a fatores extra-sociais (tais como desvantagens genéticas ou desastres naturais) que, como tais, afetam os diferentes seres humanos de forma diferenciada.

A atual desigualdade radical do mundo cumpre a Condição 6 no sentido de que os pobres globais vivem dentro de um sistema mundial de Estados baseado em domínios territoriais reconhecidos internacionalmente, interligado por meio de uma rede global de mercados, comércio e diplomacia. A presença e a relevância das instituições sociais compartilhadas revelam-se na maneira dramática como influenciamos as condições de vida das pessoas economicamente excluídas através de investimentos, empréstimos, comércio, subornos, ajuda militar, turismo sexual, exportação de cultura, entre outros mais. A própria sobrevivência delas depende muitas vezes de nossas escolhas de consumo, que podem determinar o preço de seus alimentos e suas chances de achar emprego. Em claro contraste com o caso de Vênus, estamos profundamente envolvidos nas causas de sua miséria. Isso não significa que devamos nos considerar responsáveis pelos efeitos remotos de nossas decisões econômicas. Esses efeitos reverberam pelo mundo e interagem com os efeitos de incontáveis outras decisões e, assim, não podem ser remontados às suas origens, muito menos previstos. Nem precisamos tirar a conclusão duvidosa e utópica de que a interdependência global deve ser desfeita, isolando-se os Estados ou grupos de Estados uns dos outros. Todavia, devemos nos preocupar com o modo como as regras que estruturam as interações internacionais previsivelmente afetam a incidência da miséria. Os países desenvolvidos, graças ao seu poderio militar e ao seu conhecimento imensamente superior, controlam essas regras e, portanto, partilham da responsabilidade por seus efeitos previsíveis.

A Condição 7 implica remontar, de forma explicativa, a incidência da pobreza na estrutura das instituições sociais. Esse exercício é familiar no que diz respeito às instituições nacionais, cuja importância explicativa foi muito bem ilustrada pelas mudanças de regime na China, na Europa Oriental e em outros lugares. No que se refere à ordem econômica mundial, o exercício não é familiar e é até evitado pelos economistas. Sem dúvida, isso se deve, em parte, à poderosa resistência de nos vermos como responsáveis pelas privações inimagináveis sofridas pelos miseráveis do mundo. Essa resistência nos predispõe contra dados, argumentos e pesquisadores propensos a perturbar nossa visão de mundo preferida e, desse modo, torna tendenciosa a competição pelo sucesso profissional contra quem explora o contexto causal mais amplo da pobreza mundial. Essa predisposição é reforçada por nossa tendência cognitiva a negligenciar a significação causal de fatores estáveis de fundo (por exemplo, o papel do oxigênio atmosférico na irrupção de incêndios), pois nossa atenção é atraída naturalmente para fatores geográfica ou temporalmente variáveis. Olhando para a incidência da pobreza no mundo, impressionamo-nos com as grandes mudanças locais e as variações internacionais que apontam para fatores explicativos locais. O foco concentrado nesses fatores locais estimula, então, a ilusão, a que Rawls,13 por exemplo, sucumbiu: a de que tais fatores locais explicam completamente a pobreza mundial.

Essa ilusão esconde como os fatores locais e seus efeitos são profundamente influenciados pela ordem global existente. Sim, a cultura da corrupção permeia o sistema político e a economia de muitos países em desenvolvimento. Todavia, essa cultura não teria relação com o fato de que a maioria dos países ricos permitia, até recentemente, que suas empresas subornassem funcionários de outros países e até tornassem esses subornos dedutíveis do imposto de renda?14 – Sim, os países em desenvolvimento mostraram-se propensos a governos opressores, a terríveis guerras, e a guerras civis. No entanto, a freqüência dessa brutalidade não teria relação com o comércio internacional de armas e com as regras internacionais que autorizam os que detêm poder efetivo em um país tomar emprestado em seu nome e vender direitos de propriedade sobre seus recursos naturais?15 – Sim, o mundo é diverso, e a pobreza está declinando em alguns países e piorando em outros. Contudo, o padrão de crescimento da desigualdade mundial é bastante estável, remontando à era colonial: “A distância de renda entre o quinto dos habitantes do planeta que vive nos países mais ricos e o quinto que vive nos mais pobres era de 74 para 1 em 1997, acima de 60 para 1 em 1990 e 30 para 1 em 1960. A distância de renda entre os países do topo e da base da pirâmide econômica aumentou de 3 para 1 em 1820 para 7 para 1 em 1870 e 11 para 1 em 1913”.16 O Banco Mundial relata que nos países de renda alta, a renda bruta per capita, PPC (em dólares correntes internacionais), aumentou 52,7% em termos reais durante o período de globalização 1990-2001.17 O software interativo do Banco Mundial18 pode ser usado para calcular o desempenho da metade mais pobre da humanidade, em termos de seus gastos de consumo reais (ajustados para a inflação/PPC), durante o mesmo período. Eis os ganhos para vários percentis de cima para baixo: +20,4% para o 50º percentil (médio), +20,0% para o 35º percentil, +15,9% para o 20º percentil, +12,9% para o 10º percentil, +6,6% para o 3º percentil, -7,3% para o 1º percentil (o mais baixo). Os países ricos vêm usando seu poder de moldar as regras da economia mundial de acordo com seus interesses e, desse modo, privam as populações mais pobres de uma fatia justa do crescimento econômico mundial19 – o que é perfeitamente evitável, como a proposta do DRG mostra.

A pobreza global cumpre a Condição 8 na medida em que as pessoas do mundo, se tivessem nascido em condições sociais diferentes, teriam tantas condições de levar vidas saudáveis, felizes e produtivas quanto o resto da humanidade. A causa profunda de seu sofrimento é a péssima posição social inicial que não lhes dá muita chance de se tornarem outra coisa, senão economicamente excluídos, vulneráveis e dependentes – incapazes de dar a seus filhos um começo melhor do que o deles mesmos.

É graças ao cumprimento dessas três condições adicionais que a pobreza global existente tem, de acordo com o primeiro enfoque, a urgência moral especial que associamos com os deveres negativos, de tal modo que deveríamos levá-la muito mais a sério do que um sofrimento similar em Vênus. A razão é que os cidadãos e os governos dos países ricos – seja intencionalmente ou não – impõem uma ordem institucional mundial que de modo previsível e evitável reproduz a pobreza extrema e disseminada. Os que estão em estado pior não são apenas pobres e, com freqüência, famintos, mas estão sendo empobrecidos e sendo mortos pela fome sob nossos arranjos institucionais compartilhados, que inevitavelmente moldam suas vidas.

O primeiro enfoque pode ser apresentado de uma forma conseqüencialista, como em Bentham, ou de uma forma contratualista, como em Rawls ou Habermas. Em ambos os casos, a idéia central é que as instituições sociais devem ser avaliadas de um modo que leve em conta seus efeitos futuros. Na ordem internacional vigente, bilhões de pessoas nascem em posições sociais iniciais que lhes dão perspectivas extremamente baixas de uma vida satisfatória. Sua miséria só poderia ser justificada se não houvesse alternativa institucional dentro da qual essa miséria em massa fosse evitada. Se, como a proposta do DRG mostra, existe tal alternativa, então devemos atribuir essa miséria à ordem global existente e, portanto, em última análise, a nós mesmos. Charles Darwin, de uma forma talvez surpreendente, escreveu sobre sua Inglaterra nativa: “Se a miséria de nossos pobres não é causada por leis da natureza, mas por nossas instituições, grande é o nosso pecado”.20

Exclusão não compensada do uso de recursos naturais

O segundo enfoque acrescenta (em lugar das Condições 6-8) somente mais uma condição às cinco condições relativas à desigualdade radical:

9. Os que estão em situação economicamente melhor desfrutam de vantagens significativas no uso de uma única base de recurso natural de cujos benefícios os que estão em situação economicamente pior são, em larga medida e sem compensação, excluídos.

Atualmente, a apropriação da riqueza de nosso planeta é muito desigual. As pessoas ricas utilizam muitíssimo mais os recursos mundiais, e o fazem de forma unilateral, sem dar qualquer compensação aos economicamente excluídos por seu consumo desproporcional. Sim, os ricos pagam freqüentemente pelos recursos que utilizam, como o petróleo cru importado. Todavia, esses pagamentos vão para outras pessoas ricas, como a família reinante saudita ou a cleptocracia nigeriana, e muito pouco – se é que algum – goteja para os pobres. Assim, a questão permanece: o que dá direito à elite global de acabar com os recursos naturais em termos mutuamente acordados, ao mesmo tempo em que deixam os pobres do mundo de mãos vazias?

Os defensores das instituições capitalistas desenvolveram concepções de justiça que dão suporte ao direito da apropriação unilateral de partes desproporcionais dos recursos, ao mesmo tempo em que aceitam que todos os habitantes da terra tenham, em última análise, iguais reivindicações aos seus recursos. Essas concepções baseiam-se na idéia de que tais direitos se justificam se todos ficam em situação melhor com eles do que qualquer um ficaria se a apropriação fosse limitada a partes proporcionais.

Esse tipo de justificativa está exemplificada com particular clareza em John Locke.21 Este filósofo pressupõe que, em um estado de natureza sem dinheiro, as pessoas estão sujeitas ao constrangimento moral de que suas apropriações unilaterais devem sempre deixar “o suficiente e algo tão bom quanto” para os outros, isto é, devem ser confinadas a uma parte proporcional.22 Essa assim chamada “condição lockeana” pode, no entanto, ser levantada com consentimento universal.23 Locke sujeita esse levantamento a uma condição de segunda ordem, que requer que as regras da coexistência humana só possam ser mudadas se todos puderem racionalmente consentir com a alteração, ou seja, somente se todos ficarem em situação melhor com as novas regras do que estariam dentro das antigas. Locke afirma que o levantamento da restrição “suficiente e tão bom quanto” através da aceitação geral do dinheiro não satisfaz essa condição de segunda ordem: um trabalhador diarista na Inglaterra tem comida, alojamento e roupas melhores do que as de um rei de um grande território fértil das Américas.24

É difícil acreditar que a afirmação de Locke fosse verdadeira em seu tempo. De qualquer modo, é certamente falsa no plano global de hoje. Milhões nascem na pobreza todos os meses, em um mundo onde todos os recursos acessíveis já são propriedade de outros. É verdade que eles poderão alugar seu trabalho e depois comprar recursos naturais nos mesmos termos dos ricos. No entanto, suas oportunidades de educação e emprego são quase sempre tão restritas que, por mais que trabalhem, mal conseguem ganhar o suficiente para a sua sobrevivência e, com certeza, não podem conseguir algo como uma parte proporcional dos recursos naturais do mundo. O que as pessoas pobres do mundo conseguem é compartilhar o ônus resultante da degradação de nosso ambiente natural, ao mesmo tempo em que observam, impotentes, os ricos distribuírem a riqueza natural abundante do planeta entre eles mesmos. Com uma renda per capita anual média em torno de cem dólares, correspondente ao poder de compra de 400 dólares nos Estados Unidos, o quinto mais pobre da humanidade está hoje numa situação econômica tão ruim quanto os seres humanos podem estar enquanto estão vivos.25 Portanto, não é verdade, o que segundo Locke e Nozick precisaria ser verdade, que todos estão em situação melhor sob as regras de apropriação e poluição existentes do que estariam com a condição lockeana. De acordo com o segundo enfoque, os cidadãos e governos dos Estados ricos estão, portanto, violando um dever negativo de justiça quando, em colaboração com as elites dirigentes dos países pobres, excluem coercitivamente os pobres de uma parte proporcional dos recursos.

Os efeitos de uma história comum e violenta

O terceiro enfoque acrescenta uma condição às cinco condições da desigualdade radical:

10. As posições sociais iniciais dos mais ricos e dos mais pobres surgiram de um único processo social que estava permeado por enormes e graves erros.

As atuais condições das pessoas pobres do mundo foram significativamente moldadas por um período dramático de conquista e colonização, com severa opressão, escravização, até mesmo genocídio, por meio dos quais as instituições e as culturas nativas de quatro continentes foram destruídas ou gravemente traumatizadas. Isso não significa dizer (ou negar) que os descendentes ricos daqueles que participaram desses crimes têm alguma responsabilidade restitutiva especial em relação aos descendentes empobrecidos daqueles que foram vítimas desses crimes. A idéia é antes que não devemos sustentar a desigualdade extrema em posições sociais iniciais quando a alocação dessas posições depende de processos históricos em que os princípios morais e as regras legais foram amplamente violados. Não se deveria permitir que uma história profundamente manchada do ponto de vista moral resultasse em desigualdade radical.

Esse terceiro enfoque independe dos outros. Supondo que rejeitemos os outros dois e afirmemos que a desigualdade radical é moralmente aceitável quando ela acontece de acordo com regras do jogo que são, pelo menos, um pouco plausíveis moralmente e observadas pelo menos em sua maior parte. A desigualdade radical existente é, então, condenada pelo terceiro enfoque com base no fato de que as regras foram, na verdade, violadas amplamente por meio de incontáveis crimes horríveis cujos efeitos não podem ser neutralizados cirurgicamente décadas e séculos depois.26

Alguns defensores da distribuição atual alegam que os padrões de vida na África e na Europa, por exemplo, seriam aproximadamente os mesmos se a África não tivesse sido colonizada. Mesmo que essa alegação fosse clara e verdadeira, ainda assim seria ineficaz porque meu argumento se aplica a pessoas, não a sociedades ou continentes. Se a história mundial tivesse decorrido sem colonização e escravização, talvez houvesse agora gente rica na Europa e pobre na África, tal como na hipótese venusiana. Todavia, seriam pessoas e populações bem diferentes das que vivem realmente nesses continentes. Então, não podemos dizer aos africanos famintos que estariam morrendo de fome e que nós seríamos ricos mesmo se os crimes da colonização jamais tivessem acontecido. Sem esses crimes, não haveria a desigualdade radical, que consiste no fato de que essas pessoas são ricas e aquelas, miseráveis.

Desse modo, o terceiro enfoque também leva à conclusão de que a desigualdade radical existente é injusta, que sustentá-la coercitivamente viola um dever negativo e que temos uma razão moral urgente para erradicar a pobreza global.

03

Uma proposta moderada

A proposta de reforma que esboçaremos agora se destina a apoiar minha segunda tese: a de que o status quo pode ser reformado de um modo em que todos os três enfoques reconheceriam essa reforma como um passo importante na direção da justiça. Todavia, é preciso também fechar brechas em meu argumento para a primeira tese: a proposta deve mostrar que a desigualdade radical existente pode ser remontada à estrutura de nossa ordem econômica global (Condição 7). E também deve mostrar que se cumpre a Condição 5, pois de acordo com os três enfoques, o status quo é injusto somente se pudermos melhorar as condições das pessoas pobres do mundo sem nos empobrecer.

Formulo minha proposta de reforma de acordo com o segundo enfoque, porque os outros dois dariam suporte a quase qualquer reforma que melhorasse a situação das pessoas em estado de miséria. O segundo enfoque estreita o campo ao sugerir uma idéia mais específica: aqueles que fazem uso mais extenso dos recursos de nosso planeta devem compensar aqueles que, involuntariamente, os utilizam muito pouco. Essa idéia não exige que concebamos os recursos globais como propriedade comum da humanidade, a serem compartilhados igualmente. Minha proposta é muito mais modesta, deixando para cada governo o controle dos recursos naturais em seu território. A modéstia é importante se quisermos que a alternativa institucional proposta ganhe o apoio necessário para ser implementada e se sustentar no mundo tal como o conhecemos. Espero que o DRG satisfaça esses dois desiderata ao ficar próximo da ordem global atual e por ser evidentemente sensível a cada um dos três enfoques.

À luz da vasta extensão da pobreza mundial de hoje, poderíamos pensar que um enorme DRG seria necessário para resolver o problema. Mas duvido que seja assim. A desigualdade radical existente é o resultado cumulativo de décadas e séculos em que as sociedades e os grupos mais ricos usaram suas vantagens em capital e conhecimento para expandir essas vantagens ainda mais. Esse imenso abismo entre ricos e pobres não demonstra que os sistemas econômicos possuem forças centrífugas irresistíveis. Antes, revela o poder de uma acumulação de longo prazo, quando tais tendências não sofrem uma resistência contínua (como sofrem, em certa medida, nos Estados mais modernos). É bem possível que, uma vez erradicada a desigualdade radical, um DRG bastante pequeno possa, no contexto de um sistema de mercado global justo e aberto, ser suficiente para equilibrar as tendências centrífugas habituais dos mercados, de forma suficiente para impedir seu ressurgimento. Porém, a grande magnitude do problema sugere que inicialmente seja preciso mais, de tal modo que não demore demais para que a miséria seja apagada e se atinja um perfil distributivo aceitável.27 Para se ter uma idéia concreta das magnitudes envolvidas, consideremos um número máximo inicial de um por cento da renda agregada global. Em 2005, os países ricos doaram US$150 bilhões de ajuda oficial ao desenvolvimento;28 um DRG teria elevado essa quantia para US$450 bilhões naquele ano.29 Uma tal quantia, se bem direcionada e gasta com eficácia, faria uma diferença fenomenal para os pobres em poucos anos. Por outro lado, ela é um tanto pequena para o resto da humanidade: está bem abaixo do orçamento americano da Defesa, é significativamente menor do que o “dividendo da paz” anual desfrutado pelos países desenvolvidos, e menos da metade do valor de mercado da atual produção anual de petróleo cru.30

Detenhamo-nos um pouco no caso do petróleo e examinemos os efeitos prováveis de US$2 por barril de DRG sobre a extração do óleo cru. Esse dividendo seria devido pelos países em que o petróleo é extraído, mas a maior parte desse custo seria repassada, através de preços mundiais mais altos, aos usuários finais dos produtos petrolíferos. A dois dólares por barril, mais de 17% da meta inicial de receita poderiam ser levantados apenas com o petróleo cru – e de forma confortável: ao custo de elevar o preço dos produtos petrolíferos em cerca de cinco centavos de dólar por galão (0,63 pence por litro). Portanto, é obviamente possível – sem grandes mudanças em nossa ordem econômica mundial – erradicar a fome do mundo em poucos anos, obtendo um fluxo de receita suficiente de um número limitado de recursos e poluentes. Estes deveriam ser escolhidos com cuidado, tendo em vista todos os efeitos colaterais. Essa preocupação sugere os seguintes desiderata: o DRG deve ser de fácil compreensão e aplicação. Deve, por exemplo, basear-se em recursos e poluentes cuja extração ou descarga seja fácil de monitorar ou calcular, a fim de assegurar que cada sociedade esteja pagando sua parte justa e assegurar a todos de que isso está correto. Essa transparência ajuda também a realizar um segundo desideratum de manter baixos os custos totais de coleta. Em terceiro lugar, o DRG deve ter um impacto pequeno sobre os preços dos bens consumidos para satisfazer as necessidades básicas. E em quarto lugar, deve se concentrar nos usos de recursos cujo desestímulo seja especialmente importante para a conservação e preservação ambiental. Com relação a esse último aspecto, a reforma do DRG pode produzir grandes benefícios ecológicos que são difíceis de obter de uma forma mais coordenada devido aos problemas conhecidos da ação coletiva: cada sociedade tem poucos incentivos para restringir seu consumo e sua poluição, porque o custo de oportunidade dessa restrição recai somente sobre ela, enquanto que os custos do esgotamento e da poluição são disseminados pelo mundo e para o futuro.

O esquema de desembolso dos fundos do DRG deve ser projetado de tal modo a tornar esses fundos eficazes ao máximo, no sentido de assegurar que todos os seres humanos possam satisfazer suas necessidades básicas com dignidade. Esse projeto deve contar com a expertise dos economistas e advogados internacionais. Gostaria de fazer, entretanto, algumas sugestões provisórias para dar mais concretude à reforma proposta. O desembolso deveria ser feito de acordo com regras gerais claras e diretas cuja administração seja barata e transparente. A transparência é importante para excluir o favoritismo político e mesmo seu aparecimento. É importante também para dar ao governo de qualquer país em desenvolvimento incentivos claros e fortes no sentido de erradicar a pobreza interna. Para otimizar esses efeitos de incentivo, as regras de desembolso devem recompensar o progresso: ao alocar mais fundos para esse país e/ou atribuir mais de sua alocação diretamente ao seu governo.

Esse incentivo nem sempre pode prevalecer. Em alguns países pobres, os governantes se preocupam mais em manter seus súditos miseráveis, sem instrução, dóceis, dependentes e, portanto, exploráveis. Nesses casos, ainda pode ser possível encontrar outras maneiras de melhorar as condições e chances dos economicamente excluídos, fazendo pagamentos em dinheiro vivo diretamente para eles ou para suas organizações, ou financiando programas de desenvolvimento administrados pelas agências da ONU ou por ONGs eficazes. Quando, em casos extremos, os fundos do DRG não puderem ser usados com eficácia em um determinado país, então não há razão para gastá-los lá, quando há tantos outros lugares em que esses fundos podem fazer uma verdadeira diferença na redução da pobreza e da desvantagem.

Mesmo que os incentivos propiciados pelas regras de desembolso do DRG nem sempre prevaleçam, eles inclinam a balança política das forças na direção certa: um bom governo traz mais prosperidade através do apoio do DRG e assim gera mais apoio popular que, por sua vez, tende a garantir sua posição. Um mau governo encontra mais dificuldade para oprimir os economicamente excluídos quando eles recebem fundos do DRG através de outros canais e quando todos os estratos da população têm interesse em obter uma melhoria econômica acelerada pelo DRG sob um governo diferente, mais comprometido com a erradicação da pobreza. Com o DRG em funcionamento, as reformas serão buscadas com mais vigor e em mais países, e terão sucesso com mais freqüência e mais cedo do que sem o DRG. Combinado com regras de desembolso adequadas, o DRG pode estimular uma competição internacional pacífica pela erradicação efetiva da pobreza.

Espero que esse esboço grosseiro e sujeito a revisões tenha mostrado que a proposta do DRG merece um exame sério como uma alternativa à ajuda convencional ao desenvolvimento. Embora essa última tenha uma aura de dádiva e sujeição, o DRG evita qualquer aparência de generosidade arrogante: ele apenas incorpora em nossa ordem institucional mundial a reivindicação moral dos economicamente excluídos de participar dos benefícios do uso dos recursos planetários. Ele implementa um direito moral, que pode ser justificado de várias maneiras: olhando para o futuro, com referência a seus efeitos, e olhando para o passado, com referência à evolução da distribuição econômica atual. Ademais, o DRG também seria muito mais eficiente. O desembolso da ajuda ao desenvolvimento convencional é muito influenciado por considerações políticas, como mostra o fato de que tão pouco vai para a erradicação da pobreza. Ao contrário, o DRG levantaria inicialmente uma quantia trinta vezes maior exclusivamente para satisfazer as necessidades básicas dos economicamente excluídos no mundo.

Uma vez que o DRG custaria mais e traria menos retorno em termos de benefícios políticos diretos, muitos dos Estados mais ricos e poderosos podem ser tentados a se recusar a obedecer. Seria preciso, então, uma agência global para impô-lo, algo como um governo mundial? Em resposta, concordo que o DRG teria de ser apoiado por sanções. Contudo, as sanções poderiam ser descentralizadas: depois que a agência que facilita o fluxo dos pagamentos do DRG relatasse que um país não cumpriu com suas obrigações para com o projeto, todos os outros países deveriam impor taxas sobre as importações do país faltoso – e talvez sobre as exportações para ele – para levantar fundos equivalentes a suas obrigações para com o DRG, mais o custo dessas medidas punitivas. Essas sanções descentralizadas têm boa chance de desestimular as defecções em pequena escala. Nosso mundo tem agora – e muito provavelmente continuará a ter – uma economia mundial altamente interdependente. A maioria dos países exporta e importa entre 10% e 50% de seu PIB. Nenhum país lucraria com o fechamento do comércio exterior para evitar suas obrigações com o DRG. E todos teriam motivos para cumpri-las voluntariamente: para manter o controle sobre como os fundos que são levantados, para evitar pagar a mais por medidas punitivas e para evitar a publicidade adversa associada ao não cumprimento de compromissos.

Naturalmente, esse esquema de sanções descentralizadas só poderia funcionar se tanto os Estados Unidos como a União Européia continuassem a cumprir o acordo e a participar do mecanismo de sanções. Suponho que ambos farão isso, desde que, antes de mais nada, seja possível fazer com que se comprometam com o projeto do DRG. Esse pré-requisito, que é decisivo para o sucesso da proposta, é tratado na seção 5. Porém, devemos deixar claro que uma recusa dos EUA e da UE de participar da erradicação da pobreza mundial não afetaria as implicações desta seção. A exeqüibilidade do DRG é suficiente para mostrar que a miséria mundial é evitável a um custo moderado (Condição 5), que a ordem global existente desempenha um papel importante em sua persistência (Condição 7) e que podemos dar o que os três enfoques reconheceriam como um grande passo na direção da justiça (segunda tese).

04

O argumento moral para a reforma proposta

Ao mostrar que as Condições 1-10 são cumpridas, espero ter demonstrado que a pobreza global atual manifesta uma injustiça grave que pode e deve ser abolida mediante uma reforma institucional – envolvendo o projeto do DRG, ou alguma alternativa superior. Para tornar essa série de idéias o mais transparente e criticável possível, repito-a agora como um argumento em seis passos. Os dois primeiros implicam formulações novas, por isso os comento brevemente no final.

1. Se uma sociedade ou sistema social comparável, ligada e regulamentada por uma ordem institucional compartilhada (Condição 6), exibe uma desigualdade radical (Condições 1-5), então essa ordem institucional é prima facie injusta e exige justificação. Aqui, o ônus da prova está com aqueles que desejam defender essa ordem e sua imposição coercitiva como sendo compatível com a justiça;

2. Essa justificação de uma ordem institucional dentro da qual a desigualdade radical persiste precisaria mostrar uma das seguintes condições:

2a. que a Condição 10 não é cumprida, talvez porque a desigualdade radical existente aconteceu de forma justa: através de um processo histórico que decorreu de acordo com regras moralmente plausíveis que foram geralmente obedecidas;

2b. ou que a Condição 9 não é cumprida, porque os que estão em estado pior podem se beneficiar adequadamente do uso da base comum de recursos naturais pelo acesso a uma parte proporcional ou por meio de algum substituto pelo menos equivalente;

2c. ou que a Condição 8 não é cumprida, porque a desigualdade radical existente pode ser remontada a fatores extra-sociais (tais como deficiências genéticas ou desastres naturais) que, como tais, afetam diferentes pessoas de modo diferente;

2d. ou que a Condição 7 não é cumprida, porque qualquer alternativa proposta à ordem institucional vigente é:

•  impraticável, ou seja, não pode ser mantida de forma estável no longo prazo;

• ou não pode ser instituída de uma maneira moralmente aceitável mesmo com a boa vontade de todos envolvidos;

• ou não melhoraria substancialmente a condição dos miseráveis;

• ou teria outras graves desvantagens morais que contrabalançariam qualquer melhoria na condição dos miseráveis;

3. A humanidade está ligada e regulamentada por uma ordem institucional compartilhada sob a qual a desigualdade radical persiste;

4. Essa ordem institucional global requer, portanto, justificativa de 1 a 3;

5. Essa ordem institucional global não pode receber justificativa das formulações 2a, 2b ou 2c. Uma justificativa da formulação 2d também é falha, porque uma reforma que envolva a introdução de um DRG propicia uma alternativa que é exeqüível, pode ser instituída (com alguma boa vontade de todos envolvidos)  de uma maneira moralmente aceitável, melhoraria substancialmente a condição das pessoas em situação de miséria e não teria desvantagens de significação moral comparável;

6. A ordem mundial existente não pode ser justificada a partir de 4, 2 e 5 e, portanto, é injusta <a partir de 1>.

Ao apresentar esse argumento, não tentei satisfazer as exigências mais rigorosas da formulação lógica, que exigiria várias qualificações e repetições. Tentei apenas esclarecer a estrutura do argumento de modo a deixar claro como ele pode ser atacado.

Pode-se atacar o primeiro passo. Entretanto, essa premissa moral é bastante fraca e se aplica somente se a desigualdade existente ocorre dentro de uma ordem institucional compartilhada (Condição 6) e é radical, ou seja, implica pobreza realmente extrema e diferenças extremas em padrões de vida (Condições 1-5). Além disso, a primeira premissa não exclui terminantemente qualquer ordem institucional sob a qual a desigualdade radical persista, mas apenas exige que seja justificada. Uma vez que as instituições sociais são criadas e sustentadas, perpetuadas ou reformadas pelos seres humanos, essa exigência não pode ser plausivelmente recusada.

Pode-se também atacar o segundo passo. No entanto, essa premissa moral também é fraca, no sentido de que exige do defensor do status quo somente uma das quatro possíveis demonstrações (2a-2d), deixando-o livre para tentar cada uma das concepções de justiça econômica esboçadas na seção 2, ainda que dificilmente possa endossar todas elas ao mesmo tempo. Ainda assim, permanece em aberto argumentar que uma ordem institucional que reproduz a desigualdade radical pode ser justificada de uma maneira diferente das quatro (2a-2d) que descrevi.

Pode-se ainda tentar mostrar que a ordem global existente não cumpre uma das dez condições. Dependendo de que condição seja escolhida, essa pessoa negaria a terceira premissa ou daria uma justificação das formulações 2a, 2b ou 2c, ou mostraria que minha proposta de reforma cai em um dos quatro problemas listados em 2d.

Só se alcança a conclusão do argumento se todas as dez condições são cumpridas. A pobreza global existente manifesta então uma injustiça essencial: um fenômeno que as linhagens dominantes do pensamento político normativo ocidental classificam em conjunto – embora por razões diversas – como injusto e podem conjuntamente buscar sua erradicação. Na medida em que os participantes dominantes e influentes da ordem internacional atual admitem o argumento, reconhecemos nossa responsabilidade compartilhada por essa injustiça: estamos violando um dever negativo de justiça na medida em que contribuímos para (e deixamos de mitigar) os danos que ela reproduz e na medida em que resistimos a reformas apropriadas.

05

A proposta de reforma é realista?

Mesmo que a proposta do DRG seja exeqüível, e mesmo que possa ser implementada com a boa vontade de todos envolvidos, permanece o problema de gerar essa boa vontade, em especial da parte dos ricos e poderosos. Sem o apoio dos EUA e da UE, a pobreza e a fome mundiais não serão certamente erradicadas enquanto formos vivos. Quão realista é a esperança de mobilizar esse apoio? Tenho duas respostas a essa pergunta.

Primeira. Se essa esperança não é realista, ainda assim é importante insistir que a pobreza global atual manifesta uma injustiça grave, de acordo com o pensamento político normativo ocidental. Não somos meras testemunhas distantes de um problema sem relação conosco, com um dever positivo e fraco de ajudar. Ao contrário, estamos do ponto de vista causal e moral materialmente envolvidos no destino das pessoas pobres: ao impor-lhes uma ordem institucional mundial que produz habitualmente miséria e/ou ao excluí-las efetivamente de uma parcela justa do valor dos recursos naturais explorados e/ou ao sustentar uma desigualdade radical que evoluiu através de um processo histórico permeado por crimes horríveis. Podemos acabar de fato com nosso envolvimento nessa miséria, não nos desembaraçando desse envolvimento, mas somente pondo um fim a essa pobreza mediante uma reforma econômica. Se as reformas factíveis são bloqueadas por outros, então talvez não consigamos fazer mais do que mitigar alguns dos danos que também ajudamos a produzir. Restaria então uma diferença, porque nosso esforço cumpriria não um dever de ajudar os necessitados, mas um dever de proteger as vítimas de qualquer injustiça para a qual tenhamos contribuído. Esse último dever, mantidas iguais as outras coisas, seria muito mais estrito que o primeiro, especialmente quando podemos cumpri-lo com os benefícios que continuamente derivamos dessa injustiça.

Minha segunda resposta é a de que a esperança pode não ser tão irrealista afinal. Meu otimismo provisório baseia-se em duas considerações. A primeira é a de que as convicções morais podem ter efeitos reais mesmo na política internacional – como até alguns políticos realistas admitem, embora com pesar. Às vezes, essas são as convicções morais dos políticos. No entanto, é mais comum que a política seja influenciada pelas convicções morais dos cidadãos. Um exemplo dramático disso é o movimento abolicionista que, no século XIX, pressionou o governo britânico a acabar com o tráfico de escravos.31 Uma mobilização moral similar pode também ser possível em favor da erradicação da pobreza mundial – desde que se possa convencer os cidadãos dos Estados mais poderosos de uma conclusão moral que possa realmente ser apoiada e desde que se possa mostrar um caminho que faça apenas exigências modestas de cada um de nós.

A proposta do DRG é moralmente convincente. Ela pode ser ancorada amplamente nas linhagens dominantes do pensamento político normativo ocidental esboçadas na seção 2. E tem também a vantagem moralmente significativa de mudar o consumo de uma forma que restrinja a poluição e o esgotamento dos recursos, para o benefício de todos e das gerações futuras em particular. Uma vez que pode ser apoiada por esses quatro raciocínios morais importantes e mutuamente independentes, a proposta do DRG está bem posicionada para se beneficiar do fato de que as razões morais podem causar efeitos no mundo. Se for possível obter alguma ajuda de economistas, cientistas políticos e advogados, então a aceitação moral do DRG pode crescer gradualmente e se disseminar no Ocidente desenvolvido.

Erradicar a pobreza mundial por meio de um projeto como o DRG implica também exigências mais realistas do que uma solução através de iniciativas privadas e da ajuda convencional ao desenvolvimento. Mesmo quando alguém tem certeza de que, ao doar 900 dólares por ano, pode elevar o padrão de vida de duas famílias miseráveis em 400 dólares anuais, é difícil manter o compromisso de fazê-lo. A mitigação unilateral contínua da pobreza leva à fadiga, à aversão, até mesmo ao desprezo. Ela requer que os cidadãos e governos mais ricos se mobilizem periodicamente em torno da causa, ao mesmo tempo em que sabem muito bem que a maioria dos outros em situação semelhante a deles contribui com muito pouco ou nada, que suas contribuições são legalmente opcionais e que, independente do que doam, poderiam, por apenas um pouco mais, salvar mais crianças da doença e da fome.

Em contraste, ao ajudar a implementar o DRG, ainda que também significasse 900 dólares anuais a menos no padrão de vida de uma família, isso seria feito para elevar em 400 dólares anuais o padrão de vida de centenas de milhões de famílias pobres. Isso seria feito em nome da erradicação da pobreza extrema deste planeta, ao mesmo tempo em que se saberia que todas as pessoas e nações ricas estariam contribuindo com sua justa parcela para esse esforço.

Considerações análogas se aplicam aos governos. A ineficácia da ajuda ao desenvolvimento convencional é sustentada por sua situação competitiva, na medida em que eles se sentem com o direito moral de não fazer mais, apontando para seus competidores ainda mais mesquinhos. Essa explicação serve de apoio à suposição otimista de que as sociedades ricas estariam preparadas para se comprometerem a fazer mais em conjunto do que tendem a fazer cada uma por si.

Considerações similares se aplicam à proteção e, à conservação ambiental, com respeito às quais o DRG também contribui para uma solução coletiva: os graus de poluição e devastação continuarão a ser muito mais altos do que seria melhor para todos enquanto aqueles que os causam puderem descarregar a maior parte de seu custo sobre o resto do mundo, sem qualquer compensação (“a tragédia dos bens comuns”). Ao exigir essa compensação, o DRG repara esse desequilíbrio dos incentivos.

Um aspecto adicional é que a ajuda ao desenvolvimento nacional e as medidas de proteção ambiental precisam ser conquistadas ou defendidas ano após ano, enquanto que a aceitação do projeto do DRG exigiria apenas uma única decisão política – embora de alcance muito maior.

A outra consideração otimista tem a ver com a prudência. Acabaram-se os tempos em que podíamos nos dar ao luxo de ignorar o que acontecia nos países em desenvolvimento. O crescimento econômico deles terá um grande impacto sobre nosso meio ambiente e seus ganhos militares e tecnológicos são acompanhados por graves perigos, entre os quais, aqueles associados às armas nucleares, biológicas e químicas são apenas os mais óbvios. A imposição transnacional de externalidades e risco vai se tornar cada vez mais uma rua de mão dupla, na medida em que nenhum Estado ou grupo de Estados, por mais rico e poderoso, será capaz de se isolar eficazmente das influências externas: de ataques militares e terroristas, imigrantes ilegais, epidemias e tráfico de drogas, poluição e mudança climática, flutuações de preços e inovações científico-tecnológicas e culturais. Portanto, é cada vez mais de nosso interesse que surjam instituições democráticas estáveis nos países em desenvolvimento – instituições sob as quais o poder governamental seja efetivamente constrangido por regras de procedimento e direitos básicos. Enquanto grandes segmentos dessas populações carecem de educação elementar e não têm garantia de que poderão satisfazer suas necessidades mais básicas, essas instituições democráticas são muito mais improváveis do que misturas explosivas de fanatismo religioso e ideológico, movimentos de oposição violentos, esquadrões da morte e militares corruptos e envolvidos em política. Expormo-nos às explosões ocasionais dessas misturas seria cada vez mais perigoso e também mais caro no longo prazo do que o DRG proposto.

Essa consideração prudente tem também um lado moral. Um futuro permeado pela desigualdade radical e, por isso, instável, poria em risco não somente nossa segurança e a de nossa progênie, mas também a sobrevivência de nossa sociedade, nossos valores e nossa cultura no longo prazo. Assim, o interesse pela paz – em um mundo futuro no qual diferentes sociedades, valores e culturas possam coexistir e interagir em paz – é também, obviamente e de maneira importante, um interesse moral.

Concretizar nosso interesse sensato e moral em um futuro pacífico e ecologicamente correto exigirá – e aqui vou além de minha modéstia anterior – instituições e organizações sociais supranacionais que limitem os direitos de soberania dos Estados de modo mais severo do que a prática corrente. Os Estados mais poderosos poderiam tentar impor tais limitações a todos os outros, ao mesmo tempo em que se eximiriam delas. Porém, é duvidoso que as grandes potências atuais possam reunir e manter o apoio político interno necessário para levar uma tentativa desse tipo até o fim. E é duvidoso também que possam ter sucesso, pois tal tentativa provocaria a resistência mais encarniçada de muitos outros Estados, que se esforçariam simultaneamente, por meio do aumento da força militar, para obter acesso ao clube das grandes potências. Para esse tipo de projeto, as “elites” de muitos países em desenvolvimento poderiam provavelmente mobilizar suas populações com bastante facilidade, como ilustram os exemplos de Índia e Paquistão.

Pode então fazer mais sentido para todos trabalhar no intuito de criar instituições e organizações sociais supranacionais que limitem os direitos de soberania de todos os Estados igualmente. Todavia, essa solução só funcionará se pelo menos uma grande maioria dos Estados participantes dessas instituições e organizações sociais seja de democracias estáveis, o que pressupõe, por sua vez, que seus cidadãos tenham garantias de que podem satisfazer suas necessidades básicas e de que podem ter acesso a uma educação e a uma posição social decente.

O atual desenvolvimento geopolítico tende para um mundo em que um número crescente de Estados e grupos muito avançados do ponto de vista tecnológico e militar representa um perigo cada vez maior para um subconjunto ainda maior da humanidade. Desviar esse desenvolvimento para uma direção mais razoável de forma realista requer um apoio considerável daqueles outros 84% da humanidade que querem reduzir nossa vantagem econômica e alcançar nosso alto padrão de vida. Por meio da introdução do DRG ou outra reforma semelhante, podemos ganhar esse apoio mostrando concretamente que nossas relações com o resto do mundo não estão devotadas apenas à consolidação de nossa hegemonia econômica e que os economicamente excluídos no mundo poderão conseguir pacificamente uma melhoria considerável em suas condições. Desse modo – e somente desse modo – podemos refutar a convicção, compreensivelmente difundida nos países pobres, de que não daremos a mínima para sua miséria até que tenham poder econômico e militar para nos causar danos graves. E somente desse modo podemos enfraquecer o apoio popular que os movimentos políticos agressivos de todos os tipos podem derivar dessa convicção.

06

Conclusão

Estamos familiarizados, graças aos apelos à caridade, com a afirmação de que está em nossas mãos salvar a vida de muitos ou, ao não fazer nada, deixar essas pessoas morrerem. Estamos menos familiarizados com a asserção examinada aqui de uma responsabilidade mais pesada: a maioria de nós não apenas deixa que as pessoas morram de fome, mas também ajuda a matá-las de inanição. Não surpreende que nossa reação inicial a essa afirmação mais desagradável seja a indignação, até mesmo hostilidade – que em vez de pensar mais sobre ela e discuti-la, queiramos esquecê-la ou deixá-la de lado, considerando-a totalmente absurda.

Tentei responder construtivamente à asserção e mostrar sua plausibilidade. Não pretendo tê-la provado conclusivamente, mas minha argumentação deveria, ao menos, dar origem a sérias dúvidas sobre nossos preconceitos do senso comum, que devemos sempre tratar com suspeição, tendo em vista o quanto nosso interesse egoísta está envolvido nessa questão. A grande importância moral de chegar a um juízo correto sobre essa questão também aconselha a não desconsiderar levianamente a asserção aqui defendida. Os dados essenciais sobre a vida e a morte das pessoas pobres do mundo são, afinal, indiscutíveis. Em vista da considerável interdependência global, é extremamente improvável que sua pobreza se deva apenas aos fatores locais e que nenhuma reforma factível da ordem mundial atual pudesse influir sobre a pobreza ou sobre esses fatores locais. Não menos inacreditável é a opinião de que a nossa é a melhor de todas as ordens mundiais possíveis, de que qualquer modificação dela só poderia agravar a pobreza. Então, devemos trabalhar juntos em todas as disciplinas a fim de conceber uma solução abrangente para o problema da pobreza global, e,  acima das fronteiras, para a implementação política dessa solução.

• • •

Notas

1. T. Pogge, “An Egalitarian Law of Peoples”, Philosophy and Public Affairs, vol. 23, Issue 3, Princeton, Princeton University, 1994, pp.195-224; “A Global Resources Dividend”, in David A. Crocker e Toby Linden (eds.), Ethics of Consumption: The Good Life, Justice, and Global Stewardship, Rowman & Littlefield, Lanham, MD, 1998.

2. R. Reichel, “Internationaler Handel, Tauschgerechtigkeit und die globale Rohstoffdividende”,Analyse und Kritik, vol. 19, Issue 3, Hamburgo, 1997, pp. 229-241; T. Kesselring, “Weltarmut und Ressourcen-Zugang”, Analyse und Kritik, vol. 19, Issue 3, Hamburgo, 1997, pp. 242-254; R. Crisp e D. Jamieson, “Egalitarianism and a Global Resources Tax: Pogge on Rawls”, in Victoria Davion e Clark Wolf (eds.), The Idea of a Political Liberalism: Essays on Rawls, Rowman and Littlefield, Lanham, MD, 2000.

3. R. Kreide, “Armut, Gerechtigkeit und Demokratie”, Analyse und Kritik, vol. 20, Issue 3, Hamburgo, 1998, pp. 245-262; J. Mandle, “Globalization and Justice”, Annals of the American Academy of Political and Social Science, vol. 570, Thousand Oaks (CA), Sage Publications, 2000, pp.126-139.

4. Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), , Human Development Report 2005, Nova York, Oxford University Press, 2005, pp. 24, 44 e 49.

5. John E. Fogarty International Center, Strategic Plan – Fiscal Years 2000-2003, disponível em <http://www.fic.nih.gov/about/plan/exec_summary.htm>, acessado em 9 de janeiro de 2007.

6. Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Human Development Report 1998, Nova York, Oxford University Press, 1998.

7. Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO – sigla em ingles), The State of Food Insecurity in the World 1999, disponível em <www.fao.org/news/1999/img/sofi99-e.pdf>, acessado em 8 de janeiro de 2007.

8. Organização Internacional do Trabalho (OIT), A Future Without Child Labour, 2002. Disponívelonline em <www.ilo.org/public/english/standards/decl/publ/reports/report3.htm>, acessado em 8 de janeiro de 2007.

9. UNESCO, Global and internationally comparable statistics on education, science, technology, culture and communication, <www.uis.unesco.org>, acessado em 9 de janeiro de 2007.

10. Organização Mundial da Saúde (OMS), World health report 2004, Anexo tabela 2, disponível em <http://www.who.int/whr/2004/annex/en/index.html>, acessado em 15 de janeiro de 2007.

11. T. Nagel, “Poverty and Food: Why Charity Is Not Enough” in Peter Brown e Henry Shue (eds.), Food Policy: The Responsibility of the United States in Life and Death Choice, ,Nova York, Free Press, 1977.

12. Sugerida em O. O’Neill, “Lifeboat Earth” (1974) reimpresso em Charles Beitz, Marshall Cohen, Thomas Scanlon e A. John Simmons (eds.), International Ethics, Princeton, Princeton University Press, 1985; T. Nagel, “Poverty and Food: Why Charity Is Not Enough”, op. cit. e T. Pogge, Realizing Rawls, Ithaca, Cornell University Press, 1989, §24.

13. J. Rawls, The Law of Peoples, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999, p. 108.

14. Uma Convenção sobre Combate ao Suborno de Funcionários Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, que exige que os Estados signatários considerem crime o suborno desses funcionários, foi finalmente aprovada dentro da OCDE, sob a pressão pública gerada pela organização não-governamental Transparência Internacional, disponível online em <www.transparency.de>, acessada em 9 de janeiro de 2007. A Convenção entrou em vigor em fevereiro de 1999, disponível online em <www.oecd.org/document/21/0,2340,en_2649_34859_2017813_1_1_1_1,00.html>, acessado em 9 de janeiro de 2007.

15. L. Wantchekon, “Why do Resource Dependent Countries Have Authoritarian Governments?”, Working Paper, Yale University, 1999. Disponível online em <www.yale.edu/leitner/pdf/1999-11.pdf>, acessado em 8 de janeiro de 2007; e T. Pogge,World Poverty and Human Rights: Cosmopolitan Responsibilities and Reforms, Cambridge, Polity Press, 2002, cap. 6.

16. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Human Development Report 1999, Nova York, Oxford University Press, 1999, p. 3. Muitos economistas rejeitam essa estatística dizendo que ela é enganosa e que a comparação deveria ser feita em termos de paridades de poder de compra (PPCs), em vez de taxas de câmbio do mercado. Porém, essas taxas são bastante apropriadas para destacar as desigualdades internacionais em expertise e poder de barganha, bem como a crescente possibilidade de evitar a pobreza, manifesta no fato de que apenas um por cento das rendas nacionais dos países de renda mais alta seria suficiente para aumentar em 74% a renda dos países mais pobres. Para comparar padrões de vida, as PPCs são de fato apropriadas. Mas as PPCs de consumo geral, baseadas como são nos preços de todas as commodities ponderadas por sua participação no consumo internacional, exageram substancialmente o poder de compra dos pobres em relação às necessidades básicas na quais eles são obrigados a concentrar seus gastos. Isso é assim porque os países pobres tendem a propiciar as maiores vantagens de preço para commodities (serviços e outros “não-transacionáveis”) que seus cidadãos pobres não têm condições de consumir. Ao utilizar as PPCs que fazem a média dos diferenciais de preços em todas as commodities, os economistas inflacionam as rendas nominais dos economicamente excluídos, como se seu consumo espelhasse o do mundo em geral. Para uma crítica detalhada, ver S. Reddy e T.W. Pogge, “How Not to Count the Poor”, 2002. Working paper não publicado, disponível online em  <www.socialanalysis.org>,  acessado em  8 de janeiro de 2007.

17. Os Indicadores de Desenvolvimento Humano estão disponíveis online.

18. Ver <iresearch.worldbank.org/PovcalNet/jsp/index.jsp>, acessado em 9 de janeiro de 2007.

19. T. Pogge, “Recognized and Violated by International Law: The Human Rights of the Global Poor”, Leiden Journal of International Law, vol. 18, nº. 4, Cambridge (UK), Cambridge University Press, 2005, pp. 717-745.

20. Citado em S. J. Gould, “The Moral State of Tahiti — and of Darwin”, Natural History, vol. 10, Nova York 1991, p.19.

21. Cf. também R. Nozick, Anarchy, State, and Utopia, Nova York, Basic Books, 1974, cap. 4.

22. J. Locke (1689), “An Essay Concerning the True Original, Extent, and End of Civil Government” in Peter Laslett (ed.), John Locke: Two Treatises of Government, Cambridge, Cambridge University Press,  §27 e §33.

23. Ibid., §36.

24. Ibid., §41 e §37.

25. O Banco Mundial estima que em 2001, 1,089 bilhões dos 6,150 bilhões de seres humanos viviam abaixo da linha de pobreza internacional, que ele define atualmente em termos de US$32,74 PPC 1993 por mês, ou US$1,075 PPC 1993 por dia (S. Chen e M. Ravallion, “How Have the World’s Poorest Fared since the Early 1980s?”, World Bank Research Observer, n. 19, pp. 147 e 153, disponível em <wbro.oupjournals.org/cgi/content/abstract/19/2/141>, acessado em 15 de janeiro de 2007). “PPC” significa “paridade de poder de compra”: as pessoas são consideradas pobres por esse padrão quando sua renda per capita anual tem menos poder de compra do que US$393 tinham nos Estados Unidos em 1993, ou menos poder de compra do que US$550 têm nos USA no ano de 2006 (disponível online em <www.bls.gov/cpi/>, acessado em 9 de janeiro de 2007). Aqueles que vivem abaixo dessa linha de pobreza, em média, caem 28,4% abaixo dela (S. Chen e M. Ravallion, op. cit., pp. 152 e 158). Assim, eles vivem com aproximadamente US$394 PPC 2006 por pessoa por ano em média. Ora, as rendas em US$ PPC que o Banco Mundial atribui às pessoas em países em desenvolvimento pobres são, em média, pelo menos quatro vezes maiores do que suas rendas reais a taxas de câmbio do mercado. Desse modo, o Banco Mundial equipara a renda nacional bruta per capita da Índia de US$460 a US$2,450 PPC, da China de US$890 a US$4,260 PPC, da Nigéria de US$290 a US$830 PPC, do Paquistão de US$420 a US$1,920 PPC, de Bangladesh de US$370 a US$1,680 PPC, da Etiópia de US$100 a US$710 PPC, do Vietnã de US$410 a US$2,130 PPC, e assim por diante (World Bank, World Development Report 2003, Nova York, Oxford University Press, 2002, pp.234-235). Uma vez que praticamente todos os todas as pessoas economicamente excluídas do mundo vivem nesses países em desenvolvimento pobres, podemos então estimar que sua renda per capita anual média corresponde a no máximo US$100 pelas taxas de câmbio do mercado. A renda anual agregada do quinto mais pobre da humanidade fica então em torno de US$109 bilhões pelas taxas de câmbio do mercado, cerca de 0,3% do produto global.

26. Cf. R. Nozick, Anarchy, State, and Utopia, Nova York, Basic Books, 1974, p. 231.

27. Na Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial de 1996, 186 governos fizeram a promessa solene de “erradicar a fome em todos os países, com o propósito imediato de reduzir pela metade o número atual de pessoas subnutridas até 2015, no máximo”. Mais da metade do período já se passou, com pouca ou nenhuma redução da quantidade de pessoas pobres e subnutridas. Mas houve uma espécie de progresso: a meta foi diminuída. A Declaração do Milênio da ONU promete “cortar pela metade, até 2015, a proporção das pessoas no mundo cuja renda é menos de um dólar por dia e a proporção de pessoas que sofrem de fome”, usando 1990 como data base. Uma vez que se estima que a população mundial aumentará em 36% no período 1990-2015, a redução buscada na quantidade de pessoas pobres e subnutridas entre 1990 e 2015 não é agora de 50%, mas apenas de 19% (T. Pogge, “The First UN Millennium Development Goal: a Cause for Celebration?”, Journal of Human Development, vol. 5, nº. 3, Oxford, Oxford University Press, 2004, pp. 377-397; tradução espanhola de David Álvarez García “El Primer Objetivo de Desarrollo de la ONU para el Milenio: ¿Un Motivo de Celebración?”). Diante dos 18 milhões de mortes por ano relacionadas com a pobreza, a abordagem lenta oficial é moralmente inaceitável e a falta de esforços no sentido de implementá-la é estarrecedora. Devemos dizer também que o método de medição da pobreza gravemente falho do Banco Mundial leva a uma subestimação grosseira do número de pessoas que vivem abaixo de sua linha de pobreza de um dólar por dia (S. Reddy e T.W. Pogge, “How Not to Count the Poor”, 2002. Working paper não publicado, disponível online em  <www.socialanalysis.org>,  acessado em 8 de janeiro de 2007). Além disso, essa linha de pobreza é grotescamente baixa (imaginem uma família de quatro membros vivendo com US$2.200 por anos nos EUA, ou com £1.100 na Grã-Bretanha). O Banco Mundial oferece estatísticas também para uma linha de pobreza mais adequada que é o dobro: US$786 PPC 1993 (US$1.100 PPC em 2006 ou cerca de US$275 no país pobre típico) por pessoa por ano. 2,735 bilhões de pessoas – quase a metade da humanidade (42%) – vivem abaixo dessa linha da pobreza mais alta (S. Chen e M. Ravallion, op. cit., pp. 153, 152 e 158), dividindo o índice de distância da pobreza pela contagem per capita. A renda anual agregada dessas pessoas é então cerca de US$330 bilhões por ano, 0,75% do produto global. Assim, o DRG seria suficiente para elevar todos os seres humanos até a linha de pobreza mais alta do Banco Mundial de “2 dólares por dia”.

28. Dessa quantia, menos de 10% são gastos normalmente na erradicação da pobreza ou “serviços sociais básicos” (disponível online em <mdgs.un.org/unsd/mdg/SeriesDetail.aspx?srid=592&crid=>, acessado em 9 de janeiro de 2007) – definidos como educação básica, serviços primários de saúde, inclusive saúde reprodutiva e programas populacionais), programas de nutrição e água potável e saneamento, bem como a capacidade institucional de fornecer esses serviços. Acrescentando-se a isso os US$7 bilhões que os cidadãos gastam anualmente na erradicação da miséria através de ONGs internacionais, chegamos ao total de US$18 bilhões anuais. Isso equivale a 1/18 do que seria preciso para erradicar a pobreza severa, a 1/17 de nosso dividendo da paz anual e a 0,05% de nossas rendas nacionais, ou 18 dólares anuais de cada cidadão dos países ricos.

29. Cf. World Bank 2006, World Development Report 2007, p. 289. O produto mundial anual (a soma de todas as rendas nacionais brutas) foi de US$44,983 trilhões em 2005. Disso, 79% pertenciam aos países mais ricos que abrigam 15,7% da humanidade (ibid.). Só os Estados Unidos, com 4,6% da população mundial, respondem por 28,8% do produto global (ibid. – e os EUA ainda conseguiram renegociar sua parcela no orçamento da ONU de 25 para 22%).

30. O fim da Guerra Fria permitiu que os países de alta renda cortassem seus gastos militares agregados de 4,1% do PIB, em 1985, para 2,2% em 1998 ( Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento,, Human Development Report 1998, Nova York, Oxford University Press, 1998, p. 197; Ibid., Human Development Report 2000, Nova York, Oxford University Press, 2000, p. 217). O dividendo da paz que esses países colhem pode então ser estimado em US$675 bilhões (1,9% de seu atual PIB agregado anual de US$35,529 trilhões no ano de 2005) – World Bank 2006, World Development Report  2007, p. 289.

31. S. Drescher, Capitalism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective, Oxford, Oxford University Press, 1986.

Thomas W. Pogge

Ph.D. em filosofia pela Universidade de Harvard. Pogge tem extensa publicação em filosofia moral e política. É editor em filosofia moral e política da Stanford Encyclopedia of Philosophy e membro da Academia de Ciência Norueguesa (Norwegian Academy of Science). Também, é professor adjunto no Centre for Applied Philosophy, Ethics and the Philosophy Department na Universidade Nacional da Austrália, Diretor de Pesquisa do Centre for the Study of Mind in Nature na Universidade de Oslo, e Professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Columbia (EUA).

Original em inglês. Traduzido por Pedro Soares.