Um olhar a partir do Sistema Interamericano de Direitos Humanos de Direitos Humanos
O presente trabalho pretende apresentar uma aproximação entre conceito e natureza do direito à identidade cultural dos povos indígenas e das minorias nacionais a fim de, posteriormente, buscar as formas de proteção da norma internacional deste direito em suas diversas modalidades. Pretende-se, ainda, construir este direito a partir dos tratados do Sistema Interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos para que pelo menos parte dele seja garantida.
Trataremos de conceituar como grupos étnico-culturais, os povos indígenas e as minorias nacionais, étnicas, religiosas ou lingüísticas (adiante como “minorias nacionais”). Estou consciente de que entre tais grupos existem algumas diferenças que mereceram a adoção de uma norma internacional diferenciada. No entanto, neste trabalho, serão tratados de forma indistinta, com suas semelhanças ressaltadas, deixando ao leitor a tarefa de fazer as distinções oportunas.
Para elaborar o direito à identidade cultural, é necessário recorrer às definições dadas à cultura, cultura tradicional e popular, diversidade e pluralismo culturais e ao patrimônio cultural, reconhecendo previamente que estes conceitos não estão plenamente definidos e continuam em debate entre especialistas.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) definiu a cultura como
o conjunto de traços espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que distinguem e caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os valores, as tradições e as crenças.2
A cultura deixou de ser unicamente uma acumulação de obras e conhecimentos produzidos por uma determinada sociedade e não se limita ao acesso aos bens culturais, mas é, ao mesmo tempo, uma exigência de um modo de vida, que abrange também o sistema educativo, os meios de difusão, as indústrias culturais e o direito à informação.3
A cultura tradicional e popular, por seu lado, foi definida pela Unesco na recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular (1989) como
o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural, fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente atendem às expectativas da comunidade como expressão de sua identidade cultural e social. As normas e valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outra maneira. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os brinquedos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.
No preâmbulo da mencionada recomendação, afirma-se que a cultura tradicional ou popular “faz parte do patrimônio universal da humanidade e que é um poderoso meio de aproximação entre os povos e grupos sociais existentes e de afirmação de sua identidade cultural”.
A diversidade cultural refere-se “à multiplicidade de formas em que se expressam as culturas dos grupos e sociedades. Estas expressões se transmitem entre os grupos e as sociedades e dentro deles”.4 Esta diversidade cultural “é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para os organismos vivos e constitui o patrimônio comum da humanidade, que deve ser reconhecido e consolidado em benefício das gerações presentes e futuras”.5
Neste sentido, os Estados têm obrigação de proteger e promover a diversidade cultural e adotar “políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos, para que se garanta, assim, a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz”.6 Por isso, “o pluralismo cultural constitui a resposta política ao fato da diversidade cultural”.7
A identidade cultural foi conceituada como o conjunto de referências culturais por meio do qual uma pessoa ou um grupo se define, se manifesta e deseja ser reconhecido. Também implica as liberdades inerentes à dignidade da pessoa e integra, em um processo permanente, a diversidade cultural, o particular e o universal, a memória e o projeto.8 É uma “representação intersubjetiva que orienta o modo de sentir, compreender e agir das pessoas no mundo”.9
O patrimônio cultural, como parte integrante da identidade cultural, deve ser entendido como “tudo o que faz parte da identidade característica de um povo, que pode ser compartilhado com outros povos, se assim o desejar”.10 O patrimônio cultural se subdivide em patrimônio tangível e intangível. O primeiro se refere aos “bens, móveis ou imóveis, que tenham grande importância para o patrimônio cultural dos povos”;11 enquanto o segundo abrange:
os usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais inerentes – que as comunidades, os grupos e em alguns casos, os indivíduos reconheçam como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu entorno, sua integração com a natureza e sua história, infundindo-lhes um sentimento de identidade e continuidade e promovendo o respeito da diversidade cultural e da criatividade humana.12
As tradições e expressões orais, os costumes e as línguas, as artes do espetáculo – como a música, o teatro, o bailado, as festas e a dança –, os usos sociais e rituais, os conhecimentos e costumes relacionados à natureza e ao Universo – como a medicina tradicional e a farmacêutica, a arte culinária, o direito consuetudinário, o vestuário, a filosofia, os valores, o código de ética e as demais habilidades especiais relacionadas aos aspectos materiais da cultura, tais como as ferramentas e o habitat, estão incluídos no patrimônio cultural.13
Desse modo, podemos concluir que o direito à identidade cultural, que chamaremos adiante como DIC, basicamente consiste no direito de todo grupo étnico-cultural e seus membros a pertencer a uma determinada cultura e ser reconhecido como diferente, conservar sua própria cultura e patrimônio cultural tangível ou intangível e a não ser forçado a pertencer a uma cultura diferente ou a ser assimilado, involuntariamente, por ela.
Entretanto, a identidade cultural de um grupo não é estática e tem constituição heterogênea. A identidade é fluida e tem um processo de reconstrução e revalorização dinâmico, resultado de contínuas discussões internas ou de contatos e influência de outras culturas. Em cada grupo étnico-cultural há subgrupos (idosos, mulheres, jovens, pessoas com deficiências) que continuamente retomam, readaptam ou rejeitam certos traços tradicionais culturais de seu grupo, que “é parte integral dos processos de reorganização étnica que permitem sua persistência”.14 Do mesmo modo, ao entrar em contato com outras culturas, os grupos culturais tomam certas práticas ou traços da cultura alheia e os incorporam à sua própria identidade.15
Nesse sentido, o DIC também consiste na mudança, na adaptação e na incorporação de elementos culturais de outras culturas e povos, no entendimento de que isso ocorra de maneira voluntária, livre e deliberada por parte do grupo. Impedir ou dificultar o acesso a estes mecanismos poderia levar o grupo ao estancamento e à exclusão, colocando em perigo sua sobrevivência física e cultural. Por esta razão, alguns autores sustentam que o fortalecimento da identidade cultural não tem como único objetivo conservar culturas, mas impulsionar o desdobramento de suas potencialidades no presente e no futuro, permitir o exercício dos direitos culturais, estabelecer canais mais justos de diálogo e participação na tomada de decisões, e evitar processos de interação avassaladores entre diferentes culturas.16
Também deve-se destacar que, por sua própria natureza, o DIC é um direito autônomo, dotado de singularidade própria (ao menos conceitualmente), mas, ao mesmo tempo, é um “direito síntese”, que abrange (e atravessa) tanto direitos individuais como coletivos. Nessa linha, requer a realização e o efetivo exercício de todos os direitos humanos e de sua realização depende a vigência de muitos outros direitos humanos internacionalmente protegidos.17
Com relação ao sujeito do direito, a Corte Constitucional Colombiana (adiante como CCC) reconheceu que o DIC “projeta-se em duas dimensões: uma coletiva e outra individual”. Segundo a Corte, o sujeito do direito é a comunidade dotada de singularidade própria, o que não implica “que não se deva garantir as manifestações individuais desta identidade, uma vez que a proteção do indivíduo pode ser necessária para a materialização do direito coletivo do povo indígena ao qual pertence”. “Existem – agrega a Corte – dois tipos de proteção à identidade cultural, uma direta, que ampara a comunidade como sujeito do direito, e outra indireta, que ampara o indivíduo, para proteger a identidade da comunidade (Sentença T-778/05).”18
O caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos (adiante como Corte IDH) é diferente. Mesmo quando interpreta as dimensões sociais de certos direitos humanos individualmente consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (adiante como CADH),19 declara a violação dos mesmos unicamente em detrimento dos “membros da comunidade” e não da comunidade como tal. Isto se deve à disposição consagrada no artigo 1.2 da CADH,20 “que esclarece a conotação que esse instrumento internacional usa sobre o conceito de ‘pessoa’: o ser humano, o indivíduo, como titular de direitos e liberdades”.21
Considero, entretanto, que se deveria reformular a interpretação do artigo mencionado para aceitar a comunidade como titular do direito. A razão que motivou a adoção deste artigo foi impedir que qualquer indivíduo fosse excluído da proteção da CADH, com o argumento de que não ostenta o caráter de pessoa. Tal argumento não tem qualquer relação com a concepção comunal dos direitos dos grupos étnico-culturais que, na verdade, é o que sustenta e dá conteúdo aos direitos individuais. Além disso, devemos considerar que esta concepção limitativa do artigo 1.2 da CADH apresenta uma série de dificuldades práticas no litígio dos direitos dos grupos étnico-culturais nos órgãos do Sistema Interamericano. Por exemplo, é necessário individualizar e listar todos os membros da comunidade antes da sujeição de um caso (carga processual que recai sobre as próprias vítimas ou seus representantes). No entanto, essa relação nunca será definitiva devido aos casamentos, óbitos, nascimentos e à mobilidade que diariamente acontecem no seio da comunidade, tornando a individualização difícil, custosa e inútil com o tempo.
A individualização das vítimas pode ir contra a sua própria cultura, pois entre os “membros” de uma comunidade não são contabilizados os ancestrais e as gerações futuras. Esses últimos, no entanto, são pensados como membros em algumas culturas. Sabe-se que somente são consideradas vítimas da violação do direito individual as pessoas que figuram na listagem mencionada acima.22 Aquelas que não figuram, por qualquer razão, permanecem de fora. Finalmente, a individualização também é inútil quanto às reparações pretendidas. Por exemplo, a comunidade indígena Yakye Axa teve de individualizar seus membros para, posteriormente, obter da Corte IDH o reconhecimento de seu direito à propriedade comunal, o que teria sido perfeitamente possível sem necessidade da individualização. Em suma, a individualização dos membros de uma comunidade não é adequada, útil nem justa.
O principal garantidor do DIC, assim como de qualquer outro direito humano, é o Estado dentro do qual se encontra o respectivo grupo étnico-cultural. No entanto, dado que a diversidade cultural “constitui o patrimônio comum da humanidade”,23 a comunidade internacional também tem responsabilidade sobre sua proteção. Isto ficou evidenciado, por exemplo, com a adoção da Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (1954) e de seus dois protocolos e com a adoção da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972). Da mesma forma, cresceu a preocupação a respeito de terceiros alheios às autoridades estatais que estão no controle ou posse de bens importantes para a identidade de uma cultura. Sobre este assunto, na 31ª Conferência Geral da Unesco, celebrada em Paris em 2001, o diretor geral sugeriu que se adotasse uma declaração: “as autoridades que controlam efetivamente um território, sejam ou não reconhecidas pela comunidade internacional, bem como as pessoas e instituições que controlam temporariamente ou a longo prazo sítios culturais importantes e bens culturais móveis são responsáveis pela sua proteção”.
No presente trabalho, concentrar-nos-emos nas obrigações do Estado, a respeito das quais o não-cumprimento, por ação ou omissão, acarrete responsabilidade internacional. É necessário lembrar que:
é um princípio básico do direito da responsabilidade internacional do Estado, amparado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tal responsabilidade possa ser gerada por atos ou omissões de qualquer poder, órgão ou agente estatal, independente de hierarquia, que violem os direitos internacionalmente consagrados. Além disso, […] um fato ilícito violador dos direitos humanos, que inicialmente não seja imputável diretamente a um Estado, por tratar-se, por exemplo, de obra de um particular ou por não ter se identificado o autor da transgressão, pode acarretar a responsabilidade internacional do Estado, não pelo fato em si, mas pela falta da devida diligência para prevenir a violação.24
Apesar disso, não se pode exigir que o Estado proteja e promova a identidade cultural de todos os grupos que se encontram em seus territórios. Este direito recai unicamente sobre os grupos étnico-culturais. Permanecem fora, por exemplo, os grupos imigrantes. Kymlicka25 mostra a razão de tal separação, ao sustentar que, enquanto as minorias nacionais e os povos indígenas mantêm o desejo de continuar sendo sociedades distintas com relação à cultura majoritária da qual fazem parte, à qual foram incorporados muitas vezes contra sua vontade, exigindo, portanto, diversas formas de autonomia ou auto-governo para assegurar sua sobrevivência como grupo, os imigrantes, além de estarem geralmente dispersos, deixaram suas respectivas culturas voluntariamente26 e, assim, renunciaram à parte de sua cultura. “Apesar de almejarem um maior reconhecimento de sua identidade étnica, seu objetivo não é tornar-se uma nação separada e auto-governada, paralela à sociedade da qual fazem parte, mas modificar as instituições e as leis dessa sociedade para que seja mais permeável às diferenças culturais.”27 Em suma, enquanto para os primeiros se aplica o direito à identidade cultural e, conseqüentemente, o direito a serem diferentes, para os segundos, há que se buscar termos de integração mais justos, mesmo quando lhes seja permitido manter, como benefício, certos traços de sua própria cultura.
Em síntese, concluímos que o DIC é o direito dos povos indígenas e das minorias nacionais(assim como de seus membros),consistente em conservar, adaptar e mudar voluntariamente a própria cultura. Também abrange todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos dos quais depende e dos quais retira seu sentido, merecendo a proteção das pessoas, da comunidade internacional e, sobretudo, do Estado.
Como mencionamos anteriormente, o enfoque principal deste artigo é a proteção do DIC no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Esse Sistema é composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (adiante como CIDH) e pela Corte IDH, órgãos que se encarregam principalmente da aplicação e interpretação da CADH e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (adiante como DADDH).
Uma das características que revelam a importância do SIDH é a possibilidade que tem de receber petições ou denúncias referentes a violações dos direitos humanos de pessoas ou de grupos de pessoas. Como veremos, muitas comunidades indígenas conseguiram a proteção dos órgãos do Sistema e o reconhecimento das violações que sofreram. Entretanto, o sistema ainda é limitado por não dispor de um instrumento vinculante que consagre os direitos diferenciados dos grupos étnico-culturais. Os direitos que fazem referência direta à cultura estão consagrados no artigo XIII da DADDH e no artigo 14 do protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador” (adiante como PSS).
Estes dois instrumentos apresentam alguns entraves no litígio internacional dos direitos culturais. Em primeiro lugar, a Corte IDH não tem poder para aplicar diretamente a DADDH em sua competência contenciosa.28 Em segundo lugar, o PSS não outorga competência nem à CIDH, nem à Corte IDH, para lidar com casos contenciosos envolvendo a violação de direitos econômicos, sociais e culturais que consagra, salvo quanto aos direitos à educação e à liberdade sindical.29 Por esta razão, temos que ficar circunscritos ao que dispõe a CADH.
A seguir, trataremos de esboçar algumas idéias de utilização deste tratado para proteger o DIC.
As regras de interpretação da CADH estão no artigo 29 da mesma, que dispõe:
nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:
• permitir a algum Estado-membro, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na convenção, ou limitá-los em maior medida que a prevista;
• limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade reconhecido pelas leis de qualquer Estado-membro, ou de acordo com outra convenção em que um dos referidos Estados seja membro;
• excluir outros direitos e garantias inerentes ao ser humano, ou que resultem da forma democrática representativa de governo; e
• excluir ou limitar o efeito que possa surtir a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
Os princípios de interpretação consagrados neste artigo, bem como os estabelecidos pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), permitem aos órgãos do SIDH fazer uma interpretação evolutiva dos instrumentos internacionais, uma vez que “os tratados de direitos humanos são instrumentos vivos, cuja interpretação deve acompanhar a evolução dos tempos e as condições de vida atuais ”.30
Sobre o assunto, a Corte IDH sustentou que:
O corpus juris do Direito Internacional dos Direitos Humanos está formado por um conjunto de instrumentos internacionais de conteúdo e efeitos jurídicos variados (tratados, acordos, resoluções e declarações). Sua evolução dinâmica exerceu um impacto positivo no Direito Internacional, que afirma e desenvolve a aptidão deste, para regular as relações entre os Estados e os seres humanos, sob suas respectivas jurisdições. Portanto, esta Corte deve adotar um critério adequado para considerar a questão sujeita a exame no âmbito da evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana no direito internacional contemporâneo.31
A formulação e o alcance dos direitos devem ser interpretados de uma maneira ampla, enquanto as restrições aos mesmos requerem uma interpretação restritiva.
O texto literal (b) do artigo 29 da CADH tem uma importância especial e foi interpretado pela Corte IDH.
Se a uma mesma situação são aplicáveis a Convenção Americana e outro tratado internacional, deve prevalecer a norma mais favorável à pessoa humana. Se a própria Convenção estabelece que suas regulações não têm efeito restritivo sobre outros instrumentos internacionais, menos ainda terão as restrições de outros instrumentos, para limitar o exercício dos direitos e liberdades que a Convenção reconhece.32
Pelas considerações anteriores, o tribunal considera útil e apropriado utilizar outros tratados internacionais distintos à CADH para interpretar suas disposições no momento atual, levando em consideração a evolução do direito internacional dos direitos humanos.33
A interpretação das normas contidas na CADH também deve contar com os aportes da jurisprudência interna dos Estados-membros do SIDH, especialmente em casos sobre os direitos dos grupos étnico-culturais, ainda em gestação no âmbito internacional, mas com um desenvolvimento mais amplo na legislação e na jurisprudência internas.
Finalmente, a doutrina criada pelos publicistas de maior renome nas diferentes nações também constitui, segundo o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, meio auxiliar para o direito internacional e fonte para a interpretação da CADH.
A Corte IDH e a CIDH não podem deixar de incorporar estes avanços, uma vez que só assim se dará pleno sentido aos direitos que reconhecem e se permitirá que o regime de proteção dos direitos humanos tenha todo seu efeito útil. Segundo Medina:34
os aportes nacionais e internacionais, em matéria de direitos humanos, são colocados em um recipiente, e produzem uma sinergia que amplia e aperfeiçoa os direitos humanos. E é a este recipiente que os intérpretes das normas de direitos humanos devem recorrer para realizar sua tarefa.
Com base no que foi dito anteriormente, passemos a analisar a CADH para construir em seu regulamento a proteção do DIC dos grupos étnico-culturais.
O DIC não está expressamente consagrado na CADH, de maneira que se requer uma construção a partir dos direitos que este corpo normativo prevê. Uma primeira tentativa de construção do DIC constitui o voto parcialmente dissidente do juiz Abreu Burelli no Caso Comunidade Indígena Yakye Axa versus Paraguai:
O direito à identidade cultural, ainda que não esteja expressamente estabelecido, está protegido na Convenção Americana a partir de uma interpretação evolutiva do conteúdo dos direitos consagrados nos artigos 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 5 (direito à integridade pessoal), 11 (proteção da honra e da dignidade), 12 (liberdade de consciência e de religião), 13 (liberdade de pensamento e de expressão), 15 (direito de reunião), 16 (liberdade de associação), 17 (proteção à família), 18 (direito ao nome), 21 (direito à propriedade privada), 23 (direitos políticos) e 24 (igualdade perante a lei), a serem aplicados conforme os fatos do caso concreto. Ou seja, nem sempre que se infringir um dos artigos mencionados, o direito à identidade cultural será afetado.
A esta relação, acrescentaria os direitos consagrados nos artigos 8 (garantias judiciais ) e 14 (direito de retificação ou de resposta) do mesmo instrumento.
Há momentos em que tudo é difícil, mas de qualquer forma, atendo meus pacientes por consideração, porque eles choram quando não têm dinheiro para se tratar e, vendo-os tristes, uso meu coração para curá-los.35
O DIC se vale da proteção do artigo 5 da CADH, direito à integridade pessoal, que abrange a integridade física, psíquica e moral.
Com relação à integridade física, o artigo 5 da CADH, em conjunto com o artigo 10 (direito à saúde) do PSS, relaciona-se com o DIC. Este artigos compreendem o direito dos grupos étnico-culturais e seus membros de conservar, utilizar e proteger suas próprias medicinas e práticas de saúde tradicionais, e exigir que os serviços de saúde públicos sejam apropriados do ponto de vista cultural. Também é garantido que não lhes sejam impostos tratamentos alheios à sua cultura, sem seu devido consentimento livre e informado e que se considerem cuidados preventivos, práticas curativas e sua medicina tradicional.
A respeito da integridade psíquica e moral, convém lembrar a sentença da Corte IDH no caso da Comunidade Moiwana versus Suriname sobre o massacre de 39 de seus membros em uma operação militar em 1986. As investigações realizadas pela Justiça estatal não tiveram os resultados esperados e os crimes permanecem impunes. Segundo os costumes da comunidade, se um de seus membros é ofendido, seus familiares devem procurar justiça. Se o ofendido morre, a crença é de que seu espírito não poderá descansar até que se faça justiça.36 No entanto, a comunidade Moiwana não pôde honrar apropriadamente seus falecidos, o que se considera uma “transgressão moral profunda”, que ofende os ancestrais e provoca “doenças espirituais”.37
A Corte IDH considerou o fato e julgou violado o direito à integridade pessoal dos membros da comunidade pela “indignação e vergonha de terem sido abandonados pelo sistema de justiça penal do Suriname [e porque] devem ter sentido a ira dos familiares que morreram injustamente durante o ataque”.38
Outro caso exemplar é o dos Guarani-Kiowah, uma nação de 26.000 membros no estado de Mato Grosso do Sul, no Brasil, onde ocorreu um fenômeno seqüencial de suicídios, cuja proporção era 30 vezes maior à média nacional. Os suicídios ocorreram por causa da profunda depressão dos indígenas pela perda de seus territórios tradicionais.39
Como se pode observar, para muitas comunidades indígenas o rompimento dos laços ancestrais, a fragmentação de sua relação com a terra e seus recursos naturais e o abandono forçado de suas práticas culturais causa severos sofrimentos que, sem dúvida, afetam seu direito à integridade psíquica e moral.
Propondes cinco varões […] que devo conhecer. O primeiro é o Deus, Três e Um que são quatro, a quem chamais o Criador do Universo. Por acaso é o mesmo que nós chamamos Pachacámac e Viracocha? […] O segundo é o que chamais ‘Adão’, pai de todos os homens. Ao terceiro chamais ‘Jesus Cristo’ (a quem imputaram todos os pecados) […] ao quarto nomeais ‘Papa’. O quinto é Carlos, príncipe e senhor de ‘todo o mundo’. Então, este Carlos pode pedir que permissão ao Papa que não é maior senhor que ele?40
O parágrafo acima citado evidencia as contradições que Atahualpa descobriu no discurso que lhe foi imposto pelo representante de uma religião diferente da sua. Desde essa época até a atualidade, desenvolveu-se um processo de destruição das religiões indígenas e, conseqüentemente, de sua identidade cultural.
Uma forma de imposição simbólica do poder muito utilizada pelos europeus na invasão da América era a destruição dos templos e lugares sagrados indígenas e a edificação, no mesmo lugar, de grandes igrejas e catedrais. Com isso, pretendiam destruir os símbolos das comunidades, sua auto-estima e sua cultura para transformá-las em concentrações operário-escravas a serviço de seus algozes.
A negação e a eliminação da religião apaga a percepção que cada povo tem de suas origens e sua concepção sobre o mundo. Os laços entre os membros do grupo se enfraquecem, a influência das autoridades tradicionais se dilui e a apropriação de objetos e lugares sagrados é, assim, consumada.
Um caso submetido à CCC41 denunciava a Comunidade Indígena de Yanacona por ter impedido que integrantes da Igreja Pentecostal Unidade da Colômbia (IPUC) realizasse rituais religiosos na comunidade. Os denunciantes alegavam a violação de seu direito à liberdade de consciência e religião. A maioria dos membros da comunidade assistia o culto católico e só alguns poucos haviam abraçado o culto evangélico pregado pela IPUC, que desconhecia as leis e autoridades tradicionais da comunidade. Ao acolher a petição, a CCC destacou que:
a jurisprudência da Corte reconheceu o direito à integridade étnica e cultural, no sentido de que também é fundamental o direito à sobrevivência cultural. Se os membros da comunidade indígena, que professam a religião evangélica desconhecem a autoridade do cabildo e se negam a continuar a cumprir as práticas de produção e desenvolvimento comunitário estabelecidos, atentam contra a forma de vida que a autoridade indígena tenta preservar, toda vez que a extensão de suas crenças religiosas a outros campos da vida social evidenciam um conflito e uma ruptura das relações pacíficas dos membros da reserva […].
Nessa dimensão, o exercício da autonomia reconhecida pela Carta faz com que as autoridades indígenas tomem as medidas de previsão e de correção -como de fato ocorreu – diante do comentado incidente religioso, para que o mesmo não adquira uma transcendência que leve à destruição dos valores e da essência da cultura Yanacona. [… ] O catolicismo foi aceito e assimilado pela maioria dos indígenas da reserva porque não se opõe a suas normas, seus costumes, às formas de vida desenvolvidas por eles desde de 1700 e tampouco se constituiu fator de desconhecimento das autoridades tradicionais. Por outro lado, o que aconteceu com a propagação da religião evangélica protestante foi o extremo oposto.
A veneração ou admiração da idéia de Deus, como reconhecimento e convicção individuais, não pode transgredir a ordem social estabelecida pela comunidade de forma consensual e secular. Partindo da mobilidade e vitalidade que goza o desenvolvimento de qualquer coletividade social, é plenamente válido estimar um futuro possível, onde o pensamento da IPUC seja reconhecido pela maioria Yanacona, com a preservação da cultura e da identidade do povo Yanacona, e não da forma inversa, como se pretende neste caso. Em outras palavras, os valores culturais, usos, costumes e tradições deste povo, na medida em que não são fixos nem imutáveis, podem ser filtrados, sacudidos e transformados por forças evolutivas endógenas e exógenas. Coletivamente pode haver um espírito aberto a todas as possibilidades, desde que se preserve a identidade dinâmica que constitui a pedra angular da comunidade indígena.42
Esta extensa citação mostra duas facetas do DIC. De um lado, é reconhecido que a comunidade e seus membros têm o direito a conservar sua própria cultura, forma de organização e religião (ameaçada por práticas religiosas evangélicas) e, de outro, não se nega que o evangelismo poderia ser aceito e assimilado pela comunidade, desde que se curvasse à identidade da mesma e não de forma inversa. Deveria seguir, nessa linha, o processo de assimilação do catolicismo no caso, que foi adaptado e incorporado pela comunidade.43
Por essa razão, a proteção que dá o artigo 12 (liberdade de consciência e religião) da CADH ao DIC está no direito que têm os grupos étnico-culturais e seus membros de preservar, expressar, divulgar, desenvolver, ensinar e trocar suas práticas, cerimônias, tradições e costumes espirituais, tanto no âmbito público como privado. Envolve também seu direito de não sofrer tentativas de conversão forçada e imposições de crenças. Este artigo interpretado em conjunto com os artigos 21 (direito à propriedade privada) e 22 (direito de circulação e residência) da mesma Convenção, outorga-lhes o direito de manter e ter acesso a seus lugares religiosos, sagrados e culturais e de utilizar, cuidar e recuperar seus objetos de culto. Finalmente, em conjunto com o artigo 24 (igualdade perante a lei) da CADH, é-lhes dado exigir do Estado as mesmas possibilidades e benefícios que recebem as religiões majoritárias, por exemplo, o reconhecimento dos dias feriados de suas religiões e a anuência para que seus membros, contratados por órgãos públicos ou privados, ou internados em instituições de saúde e centros penais, assistam a cerimônias religiosas.
Um dos pequenos paradoxos da História é que nenhum império plurilíngüe do Velho Mundo se atreveu a ser tão impiedoso para impor uma única língua a todo o conjunto da população, algo que faz sim a República liberal, ‘que defende o princípio de que todos os homens foram criados iguais’.44
Conforme o artigo 13 da CADH, a liberdade de pensamento e de expressão compreende o direito “de procurar, receber e difundir informações e idéias de todo tipo, sem consideração de fronteiras, seja oralmente, por escrito ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio”. Este direito pode ser interpretado como o poder de manifestar a própria cultura e identidade.
Uma das principais formas de expressão da cultura é a linguagem, de tal maneira, que nossos Estados liberais adotaram por muitos anos a máxima: uma só nação, uma só língua, o que significou a perda paulatina dos idiomas indígenas e o conseqüente desprezo pelas identidades culturais. Do mesmo modo, “a escolha de uma língua como língua nacional e oficial colocou necessariamente em situação de desvantagem aqueles cuja língua materna não é a escolhida e conferiu um privilégio aos que falam o idioma escolhido”.45
A Corte IDH teve oportunidade de se pronunciar sobre a proteção que a liberdade de expressão dá ao direito de falar a língua materna no caso López Álvarez versus Honduras. A vítima, neste caso, era um indígena garífuna que estava detido num centro penitenciário hondurenho. As autoridades proibiram a todos os garífunas de utilizar sua língua materna “por questões de segurança”. A Corte IDH declarou que o Estado havia violado o direito à liberdade de expressão e o direito à igualdade de López, porque a proibição “afetava sua dignidade pessoal como membro da comunidade garífuna”, pois “o idioma materno representa um elemento de identidade”.46 A Corte considerou que “a língua é um dos mais importantes elementos de identidade de um povo, precisamente porque garante a expressão, difusão e transmissão de sua cultura”.47
Todavia, a liberdade de expressão não se reduz somente à palavra. O próprio artigo 13 da CADH fala de “formas artísticas” de expressão e estende este direito “a qualquer procedimento” pelo qual uma pessoa se expressa. Este ponto é de vital importância para os povos indígenas, pois “se o homem ocidental pensa em palavras, o homem indígena pensa em símbolos, atos e ritos”.48 Em conseqüência, todas as formas pelas quais uma cultura expressa sua identidade são válidas e merecem a proteção internacional.
Penso que a proteção do artigo 14 (direito de resposta) da CADH reside no direito dos grupos étnico-culturais de corrigir ou solicitar a correção de qualquer informação inexata ou incorreta sobre sua cultura e história, que apareça em qualquer texto educativo, página eletrônica, documento público ou privado, publicação jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão, e inclusive na história oficial.
Nós conhecemos as leis, para uma boa saída, devem-se consultar os povos indígenas.49
Segundo o artigo 23 da CADH, os direitos políticos se dividem três grandes grupos: (a) a participação na direção de assuntos públicos; (b) o direito de eleger e ser eleito em condições livres e democráticas; e (c) ter acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do país.A garantia desses direitos não depende exclusivamente da publicação de leis que os reconheça formalmente. Requer que o Estado adote as medidas necessárias para sua real vigência e exercício e levem em conta as particularidades próprias de cada grupo populacional.
Neste sentido, os Estados devem considerar que os povos indígenas necessitam de um amplo grau de auto-determinação e controle sobre seu destino político para a preservação de sua cultura. O direito de eleger seus representantes e de participar de todo tipo de decisão que lhes afete, ou possa afetar, significa para os povos indígenas uma forma de sobrevivência cultural e requer medidas estatais para garantir que essa participação seja significativa e efetiva. Sobre o assunto, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU (adiante como CERD) destacou que os Estados devem tomar as medidas necessárias para permitir que membros das comunidades indígenas sejam escolhidos nas eleições,50 porque a população indígena tem índices muito baixos de representação política51 e não está em igualdade de condições para participar de todos os níveis de poder.52 Assim, o CERD recomendou a criação de diversos mecanismos para coordenar e avaliar as políticas de proteção aos direitos das comunidades indígenas, que permitam uma real e adequada participação na vida pública da nação.53
A falta de representação política teve um efeito direto nas decisões tomadas no nível estatal sobre o uso e manejo dos recursos públicos. De fato, uma das principais razões pelas quais os povos indígenas são marginalizados e pobres é justamente a violação de seus direitos de auto-determinação e participação política nos níveis local, regional e nacional.54
A participação direta dos povos indígenas na direção de assuntos públicos deve acontecer a partir de suas próprias instituições e de acordo com seus valores, usos, costumes e formas de organização. Em um caso submetido à Corte IDH, a organização indígena Yatama, da Costa Atlântica da Nicarágua reclamava da violação da CADH, entre outras razões, pela restrição legal de participar das eleições unicamente através de partidos políticos. O tribunal internacional considerou que a figura do partido político era alheia aos usos, costumes e tradições das organizações indígenas desse país e implicava “um impedimento para o exercício pleno do direito a ser eleito” (par. 218).55 A Corte IDH dispôs que os requisitos para participação política que só podem ser cumpridos por partidos e não por agrupamentos com organização diferente – entre elas os povos indígenas – são contrários ao Direito, à igualdade e aos direitos políticos, “na medida em que limitam, além do estritamente necessário, o alcance pleno dos direitos políticos e se transformam em impedimento para que os cidadãos participem efetivamente da direção de assuntos públicos” (par. 220).56
Neste caso também se discutiu o tema dos distritos eleitorais. A lei eleitoral nicaragüense prevenia que todo agrupamento político deveria apresentar candidatos em pelo menos 80% das circunscrições eleitorais municipais. Assim, Yatama se viu forçada a apresentar candidatos em municípios nos quais não existia a presença indígena e com os quais não tinham “nem vinculação, nem interesse” (par. 222).57 A Corte IDH considerou desproporcional esta exigência, “que limitou indevidamente a participação política” e que não levou em conta que os indígenas não contariam com apoio para apresentar candidatos em certos municípios ou não teriam interesse em buscar esse apoio (par. 223).58
A fim de evitar este e muitos outros problemas similares, penso que os Estados deveriam traçar as fronteiras eleitorais de tal forma que as minorias étnico-culturais constituíssem uma maioria em seus territórios. Vários povos indígenas, além de estarem divididos entre fronteiras nacionais, encontram-se em diferentes províncias, departamentos ou municípios de um mesmo estado e em cada divisão política constituem uma minoria.
Na verdade, alguns esforços foram feitos para evitar tal situação. Os Estados Unidos traçaram circunscrições (em alguns casos um pouco estranhas) com a única finalidade de criar maiorias latinas ou afros-descendentes. A Corte Suprema desse país avalizou estas circunscrições “considerando a discriminação política que historicamente existiu contra negros e hipano-americanos […] e os efeitos residuais de tal discriminação sobre esses grupos”.59
Outros países também reservaram cadeiras para assegurar a representação no Parlamento de grupos minoritários específicos. Por exemplo, na Jordânia, para cristãos e circassianos. No Paquistão, para as minorias não- muçulmanas. Na Nova Zelândia, para os maoris. Na Colômbia, para os povos indígenas e afros-descendentes. Na Eslovênia, para húngaros e italianos, entre outros.
Além disso, deve ser garantida a representação dos grupos étnico-culturais em todos os órgãos que possam interpretar ou modificar suas competências ou direitos. O CERD mostrou sua preocupação pela insuficiente representação dos povos indígenas e das minorias na polícia, no sistema judiciário e em outras instituições públicas argentinas.60
Finalmente, a participação política dos povos indígenas e seus membros não se esgota com representação, por designação ou eleição, nos organismos do Estado. É claro que essa representação, naturalmente necessária, é, em maior ou menor medida, insuficiente para a proteção de seus interesses e direitos. Por esta razão, os povos indígenas têm o direito a dar seu consentimento prévio, livre e informado sobre todos os assuntos de seu interesse. Só desta forma lhes será permitido “falar por si mesmos, participar do processo da tomada de decisões […] e dar uma contribuição positiva ao país em que vivem”. 61
O CERD vinculou o direito à consulta ao direito de participação política,62 e fez um apelo aos Estados para que “garantissem que os membros das populações indígenas gozem de direitos iguais e de participação efetiva na vida pública e que não se adote nenhuma decisão diretamente relacionada a seus direitos e interesses, sem seu consentimento informado”.63 Da mesma forma, a CCC destacou que o direito à consulta constitui “o meio através do qual será protegida […] sua integridade física e cultural”.64
Em conseqüência, o DIC dos grupos étnico-culturais e seus membros, visto através do artigo 23 (direitos políticos) da CADH, abrange (a)o direito de participar livremente em todos os níveis de decisões em instituições públicas responsáveis por políticas e programas que os afete. O direito de ser consultado cada vez que se prevejam medidas legislativas, administrativas ou de qualquer outro tipo que possa afetá-los; (b) o direito de decidir sobre suas próprias prioridades de desenvolvimento, bem como sobre qualquer questão relacionada a seus assuntos internos; (c) o direito de manter e desenvolver seus próprios sistemas políticos e econômicos e de manter e desenvolver suas próprias instituições decisórias. Em conjunto com o artigo 13 (liberdade de pensamento e de expressão) da CADH, está também protegido o seu direito de receber informação oportuna, clara e veraz de todos os fatos que lhes digam respeito para que, assim, possam se pronunciar individual ou coletivamente.
Meu povo venera cada canto desta terra, cada brilhante espinho de pinheiro, cada praia arenosa, cada nuvem de névoa nas selvas sombrias, cada clareira, cada inseto que zune. No pensamento e na prática de meu povo, todas estas coisas são sagradas.65
A terra e os recursos naturais nela existentes são a própria essência da identidade cultural dos povos indígenas e seus membros, a tal ponto que a relatora especial sobre populações indígenas da ONU destacou que “o conceito de ‘indígena’ compreende a idéia de uma cultura e um estilo de vida distintos e independentes, baseados em antigos conhecimentos e tradições, vinculados fundamentalmente a um território específico”.66 A relatora acrescentou que:
a proteção da propriedade cultural e da identidade está fundamentalmente vinculada à realização dos direitos territoriais e da livre determinação dos povos indígenas. Os conhecimentos tradicionais sobre valores, autonomia ou auto-governo, organização social, gestão dos ecossistemas, manutenção da harmonia entre os povos e respeito à terra estão enraizados nas artes, canções, poesia e literatura que cada geração de crianças indígenas deve aprender e renovar. Estas ricas e variadas expressões da identidade específica de cada povo indígena passam a informação necessária para manter, desenvolver e, se necessário, restabelecer as sociedades indígenas em todos os seus aspectos.67
Em um relatório posterior, a relatora informou que a deterioração gradativa das sociedades indígenas pode ser atribuída à falta de reconhecimento de sua relação com terra, ar, água, costa, gelo, flora, fauna e demais recursos naturais vinculados a sua cultura.68
Muitos outros especialistas de distintos organismos supranacionais (universais e regionais), bem como diversos tratadistas e peritos analisaram profundamente as implicações que a terra possui para os povos indígenas. Por essa razão, e pela brevidade do presente trabalho, não trataremos em profundidade este tema. No entanto, revisaremos, pela sua importância, algumas decisões de organismos do Sistema Interamericano.
A Corte IDH conheceu os casos das Comunidades Awas Tingni versus Nicarágua, Yakye Axa versus Paraguai e Moiwana versus Suriname, nos quais reconheceu a estreita relação que os indígenas mantêm com a terra e os recursos naturais. Essa terra e esses recursos foram qualificados como a base fundamental de sua cultura, vida espiritual, integridade e sobrevivência econômica, necessária inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às futuras gerações. A essa conclusão, chegou-se depois da interpretação evolutiva do artigo 21 (direito à propriedade privada) da CADH. A Corte, nos citados casos, considerou que esse artigo não se refere unicamente à concepção civilista de propriedade, mas também pode (e deve) ser interpretado, de tal forma, que a propriedade comunal da terra e os recursos naturais sejam protegidos. Vale dizer que no caso Yakye Axa, a Corte IDH interpretou que o artigo 21 da CADH também salvaguarda “os elementos incorpóreos” que emanam da relação dos indígenas com seus territórios, bem como todo bem móvel ou objeto, corpóreo ou incorpóreo, suscetível de valor não só econômico. Entre estas categorias está, basicamente, todo o patrimônio cultural tangível e intangível dos povos indígenas.
Em conseqüência, poderíamos interpretar que a proteção que o artigo 21 da CADH dá ao DIC compreende o direito dos povos indígenas do uso e gozo de seus bens, tanto materiais como imateriais. Isso implica o direito de conservar, utilizar, controlar, reivindicar e proteger seu patrimônio cultural material e imaterial, bem como todo tipo de produto ou fruto de sua atividade cultural e intelectual, seus procedimentos, tecnologias e instrumentos próprios e lugares onde sua cultura se expressa e desenvolve.
A proteção do artigo 21 é reforçada pela do artigo 12 (liberdade de consciência e religião) da CADH, se os bens em referência tiverem um significado religioso ou espiritual. É reforçada ainda pela proteção dos artigos 5 (direito à integridade pessoal) da CADH e 10 (direito à saúde) do PSS, se os bens forem utilizados em práticas curativas ou na medicina tradicional.
Finalmente, ao interpretar o artigo 11 (proteção da honra e da dignidade) da CADH, que confere o direito a não sofrer ingerências arbitrárias na vida privada, na família e no domicílio, em conjunto com o artigo 21 do mesmo instrumento, concluímos que os povos indígenas podem rejeitar a presença, em seus territórios, de terceiros, alheios às suas comunidades, sobretudo se afetam sua cultura, identidade, forma de vida ou recursos. A esta interpretação se somam os artigos 4 (direito à vida) e 5 (direito à integridade pessoal) da CADH e o artigo 10 (direito à saúde) do PSS, se a presença de estranhos colocar em risco a saúde e a vida dos membros das comunidades.69
Nossa produção é o artesanato, a de vocês é a indústria.
Nossa música é folclore, a de vocês é arte.
Nossas normas são costumes, as de vocês são direito.70
O artigo 8 (garantias judiciais) da CADH consagra os contornos do chamado “devido processo legal”, que consiste no direito de toda pessoa de ser ouvida com as devidas garantias e num prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido previamente pela lei, que substancie qualquer acusação formulada contra si ou que determine seus direitos e obrigações.
Até agora, a Corte IDH interpretou este artigo, no que se refere a povos indígenas, destacando que “é indispensável que os Estados outorguem uma proteção efetiva que leve em conta suas particularidades, características econômicas e sociais, assim como sua situação de especial vulnerabilidade, seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes”.71 No entanto, para o presente estudo, interpretaremos o artigo 8 da CADH, de tal forma que o DIC dos indígenas fique protegido por meio do reconhecimento do direito consuetudinário indígena.
O direito é parte integrante da cultura dos povos e elemento central da identidade étnica, a tal ponto que autores como Sierra72 chegam a afirmar que “um povo que perdeu seu direito, perdeu parte importante de sua identidade”.
O direito indígena compreende os sistemas de normas, procedimentos e autoridades que regulam a vida social das comunidades e lhes permite resolver seus conflitos de acordo com seus valores, perspectiva de mundo, necessidades e interesses.73 Não se pode perder de vista que as práticas culturais indígenas, como o sistema de parentesco, as concepções religiosas e o vínculo com a terra estão presentes na administração da justiça.
A falta de atenção dos indígenas a seu direito consuetudinário e a sujeição de seus casos à justiça do Estado pode acarretar a violação de várias garantias judiciais estabelecidas no artigo 8 da CADH. Este artigo consagra o direito de ser ouvido por um tribunal competente. A competência se refere ao âmbito especial, temporal, material e pessoal, definido previamente pela lei. O direito consuetudinário de vários povos indígenas determina previamente as autoridades encarregadas de resolver os conflitos, em qualquer matéria, entre os membros de cada comunidade. Desconhecê-lo seria submeter os indígenas a um tribunal diferente do seu “juiz natural”.
Finalmente, o processo de um indígena que já foi julgado pela sua própria justiça constituiria uma violação ao direito de não ser julgado duas vezes pelo mesmo delito. No Equador ocorreu um caso em que três indígenas da comunidade La Cocha assassinaram outro membro da comunidade. Eles foram julgados por um tribunal indígena, que os considerou culpados, impondo-lhes as penas de castigos corporais (urtigamento),74 desterro da comunidade por dois anos, pagamento de uma indenização de seis mil dólares americanos e caminhar sobre pedras. Algum tempo depois, o Ministério Público tomou conhecimento do crime cometido pelos indígenas e, desconhecendo o julgamento feito por seus pares, interpôs uma acusação na Justiça. No entanto, o juiz considerou que o processo penal instaurado não tinha propósito, pois violentava o princípio non bis idem e decretou a nulidade do processo penal.75
Já não sei se isto é discriminação, porque é o que vivo desde que me conheço.
Certamente me discriminam desde que estava na barriga da minha mãe.76
O direito à igualdade, segundo os critérios da Corte IDH,
emana diretamente da unidade de natureza do gênero humano e é inseparável da dignidade essencial da pessoa, frente a qual é incompatível toda situação que, por considerar superior um determinado grupo, conduza a tratá-lo com privilégios. Ou que, ao contrário, por considerá-lo inferior, trate-o com hostilidade ou de qualquer forma, o discrimine no gozo de direitos dados a quem não se considera em tal situação de inferioridade. Não é admissível dar tratamento diferente a seres humanos de única e idêntica natureza.77
Da mesma forma, a Corte em sua recente Opinião Consultiva 18 considerou “que o princípio de igualdade perante a lei, igual proteção perante a lei e de não-discriminação pertence ao jus cogens, pois sobre ele descansa todo o arcabouço jurídico da ordem pública nacional e internacional. Trata-se de um princípio fundamental que permeia todo ordenamento jurídico”. 78
Por seu lado, a CIDH destacou que:
no direito internacional em geral, e no direito interamericano especificamente, se requer proteção especial para que os povos indígenas possam exercer seus direitos de forma plena e eqüitativa, com o resto da população. Além disso, talvez seja necessário estabelecer medidas especiais de proteção aos povos indígenas, para garantir sua sobrevivência física e cultural – um direito protegido em vários instrumentos e convenções internacionais.79
Estas “proteções” ou “medidas especiais” têm a finalidade de superar os obstáculos e as condições concretas que impossibilitam o alcance efetivo da igualdade dos grupos étnico-culturais para garantir sua sobrevivência física e cultural.80 Por isso, “a legislação por si só não pode garantir os direitos humanos”, porque mesmo quando existe marco jurídico favorável, este “não é suficiente para dar a devida proteção de seus direitos se não estiver acompanhado de políticas e ações estatais ”.81
No que se refere ao DIC, o artigo 24 da CADH obriga os Estados a oferecerem as mesmas possibilidades de preservação da cultura dos grupos culturais existentes em suas fronteiras. Vimos que a escolha de uma língua oficial traz desvantagens para os que não falam a língua escolhida. O mesmo se aplica a outros aspectos, como o direito, o vestuário, a religião, o modelo de desenvolvimento, etc. A cultura majoritária é a que se reflete nos símbolos pátrios, feriados nacionais, instituições públicas e meios de comunicação. As demais culturas são ofuscadas.
Há que se reconhecer que houve avanços nos últimos anos e que hoje ao menos se fala em relações interculturais. Contudo, essas relações são ainda assimétricas; não basta que se reconheça a existência de uma cultura diferente, se não se reconhece seu valor ou se dá um falso reconhecimento e não se permite seu desenvolvimento em condições igualitárias.
Gostaria de sugerir brevemente o DIC dos grupos étnico-culturais e seus membros de também poder encontrar proteção nos artigos 17 (direito à família) e 18 (direito ao nome) da CADH.
A proteção do artigo 17 (direito à família) da CADH reside no direito desses grupos e seus membros de conservar suas próprias formas de organização familiar e de filiação. Direito de não ser objeto de ingerências arbitrárias na vida cultural de sua família e comunidade. Direito de exigir do Estado que execute “programas especiais de formação familiar que contribuam para a criação de um ambiente estável e positivo, no qual as crianças, sejam ou não indígenas, conheçam e desenvolvam valores de compreensão, solidariedade, respeito e responsabilidade”.82
A proteção do artigo 18 (direito ao nome) da Convenção compreende o direito de atribuir nomes a suas comunidades, lugares e pessoas, em seu próprio idioma e de mantê-los. A atribuição ou a mudança não consentida de nomes tradicionais por outros pertencentes a uma cultura diferente “constituem, no mínimo, atos de imposição e de agressão cultural”.83
Estou consciente de que o catálogo de direitos humanos da CADH não é suficiente para acolher todas as demandas dos povos indígenas e das minorias nacionais. Todavia, sendo realista, acho que ainda estamos longe de adotar um tratado vinculante no âmbito americano que desenvolva cabalmente seus direitos. O Projeto de Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas e seu similar das Nações Unidas estão ainda em discussão e tudo faz crer que continuarão assim por um bom tempo. E mais: supondo, em uma visão otimista, que essas declarações sejam aprovadas prontamente, elas terão o caráter de um enunciado de direitos, certamente muito válido, mas insuficiente; não serão um tratado ou acordo plenamente vinculante. Em suma, o Convênio 169 da OIT continuará sendo o único instrumento vinculante sobre povos indígenas. Uma situação similar é a dos direitos das minorias nacionais e seus membros, reconhecidos unicamente em declarações, salvo o artigo 27 do PIDCP.
Neste panorama, devemos buscar caminhos alternativos em nível internacional para cuidar da plena vigência dos direitos dos grupos étnico-culturais. O caminho que analisamos neste trabalho é, a meu ver, o mais próximo que temos em nossa América, e o que melhores resultados mostrou até o momento no que se refere a casos contenciosos, tanto na discussão jurídica, quanto nas reparações feitas. No entanto, nada nos garante que os órgãos do Sistema possam e estejam dispostos a seguir “alongando” a CADH e os demais tratados americanos para cobrir todas as dimensões do DIC. Tampouco podemos considerá-lo um processo sólido e acabado. Resta-nos, então, seguir construindo os direitos diferenciados em função do grupo, a partir das legislações nacionais, utilizando, na medida do possível, os organismos internacionais de direitos humanos e exigindo sua positivação universal. O direito à identidade cultural não será plenamente reconhecido enquanto não concluirmos este processo.
1. C. Lévi-Strauss,”Raza e historia” en Raza y cultura, Ediciones Cátedra, Madrid, [1952], 2000, p. 96.
2. Preâmbulo da Declaração Universal da Unesco sobre a diversidade cultural (2001).
3. Unesco, recomendação relativa à participação e à contribuição das massas populares na vida cultural (26 de novembro de 1976), em Janusz Symonides, “Derechos culturales: una categoría descuidada de derechos humanos”, Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 158, dezembro de 1998, disponível em: <http://www.unesco.org/issj/rics158/titlepage158spa.html>, acesso em 12 de agosto de 2006.
4. Unesco, Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, art. 4.1, 2005.
5. Unesco, Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, 2001, art. 1.
6. Ibid., art. 2.
7. Ibid., art. 2.
8. Projeto de Declaração sobre Direitos Culturais, 1998, art. 1.
9. Villoro citado em A. Donoso Romo, “Comunicación, Identidad y Participación Social en la Educación Intercultural Bilingüe”, Revista Yachaykuna, Instituto Científico de Culturas Indígenas, 2004, nº 5, Quito, p. 6-38, disponível em <http://icci.nativeweb.org/yachaikuna/>, acesso em 17 de agosto de 2006.
10. E.I. Daes, Estudio sobre la Protección de la Propiedad Cultural e Intelectual de los Pueblos indígenas, Subcomisión de Prevención de Discriminaciones y Protección a las Minorías, Comisión de Derechos Humanos, E/CN.4/Sub.2/1993/28, 1993, par. 24.
11. Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, 1954, art. 1.
12. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, 2003, art. 2.1.
13. Vide a respeito, Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989) e Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003).
14. W.Assies, “Pueblos Indígenas y Reforma del Estado en América Latina”, in Assies, Willem, van der Haar, Gemma y Hoekema, André, El reto de la diversidad, Colegio de Michoacán, México, 1999, p. 26.
15. Deve-se levar em conta as advertências de Lévi-Strauss (Strauss, “Raza y cultura” en Raza y cultura, Ediciones Cátedra, Madrid, [1983] 2000, pp. 105-142) no sentido de que cada cultura deve opor resistência ao intercâmbio com outras culturas, pois, do contrário, nada restará de seu para intercambiar.
16. L. Villapolo Herrara, “Indígenas modernos. La Identidad cultural frente a la Interculturalidad y la Globalización”, en Encuentro Sudáfrica-Guatemala. Sociedades en Transición, Experiencias en Salud Mental, Niñez, Violencia y Post Conflicto, ECAP, Guatemala, 1ra. Ed., 2001.
17. Sobre o assunto, o art. 4 da Declaração Universal da Unesco sobre a diversidade cultural dispõe que “a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa. Implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular, os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os direitos dos povos autóctones”. No mesmo sentido, a CIDH considerou que “para que um grupo étnico possa subsistir preservando seus valores culturais, é fundamental que seus componentes possam gozar de todos os direitos reconhecidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pois dessa forma, garante seu efetivo funcionamento como grupo, o que inclui a preservação de sua identidade cultural”. (Informe sobre la población nicaragüense de origen miskito, par. 14). Finalmente, o artigo 2.1 da Convenção sobre a Proteção e Promoção la Diversidade das Expressões Culturais (Unesco, 2005) dispõe: “Só se poderá proteger e promover a diversidade cultural se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades fundamentais.”
18. Em um caso sobre a isenção dos indígenas do serviço militar, o tribunal colombiano sentenciou que, para efeitos do serviço militar “não se dá proteção ao indígena individualmente, mas ao indígena no contexto territorial e de identidade determinados. Dessa forma, conclui-se que a proteção introduzida por lei se dirige à comunidade étnica”. A Corte destacou que a finalidade da isenção era “proteger o grupo indígena como tal e, portanto, proteger os indígenas que vivem com os indígenas e como os indígenas” (Sentença C-058/95).
19. Vide, por exemplo, a dimensão social do direito à liberdade de expressão em: Corte IDH Caso Canese versus Paraguai, Sentença de 31 de agosto de 2004, Série C nº 111, par. 77; Caso Herrera Ulloa versus Costa Rica, Sentença de 2 de julho de 2004, Série C nº 107, par. 108, e Caso Ivcher Bronstein versus Peru, Sentença de 4 de setembro de 2001, Série C nº 84, par. 146 e a dimensão coletiva da liberdade de associação na Corte IDH, Caso Huilca Tecse versus Peru, Sentença de 03 de março de 2005, Série C nº 121, par. 69.
20. CADH.- “Para os efeitos desta Convenção, ‘pessoa’ é todo ser humano”, art. 1.2 .
21. Caso Yatama versus Nicarágua, voto juiz García Ramírez, Sentença de 23 de junho de 2005. Série C nº 127, par. 6.
22. Isto forçou a Corte IDH a “deixar a porta aberta” para que outros membros da comunidade possam ser individualizados no futuro.
23. Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, art. 1.
24. Corte IDH, Caso de 19 Comerciantes versus Colômbia, Sentença de 12 de junho de 2002, Série C nº 93, par. 140.
25. W. Kymlicka, Ciudadanía multicultural, Buenos Aires, Paidós, 1995/1996.
26. O autor citado reconhece que existem casos como o dos refugiados, que saíram involuntariamente de seus países de origem. Sobre o assunto, destaca que “o melhor que os refugiados podem esperar, sendo realistas, é serem tratados como imigrantes […] Isto significa que, a longo prazo, os refugiados são vítimas de uma injustiça, pois não renunciaram voluntariamente a seus direitos nacionais. Mas esta injustiça foi cometida pelo governo de seu país e não está claro que possamos pedir, de uma maneira realista, que os governos hóspedes a reparem” ( W. Kymlicka, Ciudadanía multicultural, Buenos Aires, Paidós, 1995/1996, p.140).
27. W.Kymlicka, op. cit., p. 26.
28. Embora possa utilizá-la para interpretar os direitos consagrados na CADH (tratado sobre o qual tem plena competência).
29. Vide artigo 19.6 do PSS. No entanto, existem certas estratégias alternativas de litígio, como as que aborda Melish (T. Melish, La Protección de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Manual para la Presentación de Casos, Orville H. Schell, Jr. Center for International Human Rights, Yale Law School, Centro de Derechos Económicos y Sociales, Quito, 2003.), que por motivo de espaço não serão tratadas.
30. Corte IDH, Opinião Consultiva OC-16/99, par. 114.
31. Opinião Consultiva OC-18/03, par. 120.
32. Opinião Consultiva OC-5/85, par. 52.
33. Especialmente a Corte IDH utilizou o acordo nº 169 da OIT (Casos Yatama versus Nicarágua, Yakye Axa versus Paraguai e Moiwana versus Suriname), a Convenção sobre os direitos da criança (Casos Villagrán Morales e outros versus Guatemala e Gómez Paquiyauri versus Peru), as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Casos Tibi versus Equador e Instituto de Reeducación del Menor versus Paraguai), entre outros instrumentos internacionais que não fazem parte do SIDH.
34. C. Medina Quiroga, Convención Americana: Teoría y Jurisprudencia. Vida, Integridad Personal, Libertad Personal, Debido Proceso y Recurso Judicial, Centro de Derechos Humanos, Facultad de Derecho, Universidad de Chile, Santiago, 2003.
35. Galdino Hernández Castellanos, médico mixteco tradicional. Disponível em< http://cdi.gob.mx/index.php?id_seccion=743>, acesso em 21 de setembro de 2005.
36. Sentença da Corte IDH, Caso da Comunidade Moiwana versus Suriname, Sentença de 8 de fevereiro de 2006, Série C, nº 145, par. 95.
37. Ibid., par. 99.
38. Ibid., par. 96.
39. CIDH, Informe sobre Brasil, 1997.
40. Atahualpa, dirigindo-se ao Cura Valverde, por meio do intérprete Felipillo, Garcilaso de la Vega, citado em César Leonidas Ruiz, “La antidisciplinariedad en el saber andino”, Revista Yachaykuna, Instituto Científico de Culturas Indígenas, No. 5, Quito, 2004, pp. 39-52, disponível em http://icci.nativeweb.org/yachaikuna/.
41. Sentença T-1022/01.
42. Ibid.
43. Por exemplo, a Virgem é vestida como uma mulher da comunidade, tem casa, gado e bens administrados por um capataz e nas costas de seus fiéis, sai para trabalhar e “ela mesma vai arrecadar dinheiro para sua festa” (CCC, Sentença T-1022/01).
44. Jonson citado em W. Kymlicka, Ciudadanía multicultural, Buenos Aires, Paidós, 1995/1996, p. 31.
45. J. Martínez Cobo, Conclusiones, Propuestas y Recomendaciones del Estudio del Problema de la Discriminación contra los Pueblos Indígenas, Naciones Unidas, New York, 1987, par. 125.
46. Corte IDH , Caso López Álvarez versus Honduras, Sentença de 1 de fevereiro de 2006, Série C, nº 141, par. 169.
47. Ibid., par. 171.
48. N. Pacari, “Pluralidad Jurídica: Una Realidad Constitucionalmente Reconocida”, em Justicia Indígena. Aportes para un Debate, Judith Salgado comp., Universidad Andina Simón Bolívar, Quito, 2002.
49. Esteban López, líder comunitário, Corte IDH, Caso Comunidad Indígena Yakye Axa versus Paraguai, Sentença 17 de junho de 2005, Série C, nº 125, par.152.
50. Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), Observaciones Finales del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial, 50º periodo de sesiones, México, A/52/18,1997, par. 319.
51. Assembléia Geral, Informe del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial, 52° periodo de sesiones, Nueva York, Panamá, A/52/18, 1997, par. 342.
52. Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), Observaciones Finales del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial, 46° periodo de sesiones, Guatemala, A/50/18, 1995, par. 305.
53. Assembléia Geral, Informe del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial, 51° periodo de sesiones, Nueva York, Colombia, A/51/18, 1996, par. 51.
54. Minority Rights. Indigenous Peoples and Poverty: The Cases of Bolivia, Guatemala, Honduras and Nicaragua <http://www.minorityrights.org/Dev/mrg_dev_title12_LatinAmerica/mrg_dev_title12_LatinAmerica_pf.htm>, acesso em 22 de setembro de 2005.
55. Caso Yatama versus Nicaragua, Sentença de 23 de junho de 2005, Série C, nº 127.
56. Ibid. Algo similar aconteceu em um caso submetido à CCC, no qual se alegava que a exclusão por motivos de idade de uma candidata indígena era incompatível com a identidade cultural do povo indígena ao qual pertencia. Na visão do seu povo, sua idade era suficiente para exercer seus direitos, inclusive o de representação política (Sentença T-778/05).
57. Ibid.
58. Ibid.
59. White v. Register (412 U.S. 755), citado em CIDH, Informe anual, 1973.
60. CERD/C/65/CO/1, 10/12/2004, par. 17.
61. Guia para a aplicação do Acordo 169 da OIT.
62. Botswana A/57/18, 01/11/2002, par. 292-314.
63. Recomendação Geral XXIII relativa aos direitos das populações indígenas, A/52/18, 1997.
64. C-169-01.
65. Citado em F. Zohra Ksentini, «Los derechos humanos y el medio ambiente», Informe de la Relatora Especial, Subcomisión de Prevención de Discriminaciones y Protección a las Minorías, Comisión de Derechos Humanos, E/CN.4/Sub.2/1994/9, 1994.
66. E. I. Daes, Estudio sobre la Protección de la Propiedad Cultural e Intelectual de los Pueblos Indígenas, Subcomisión de Prevención de Discriminaciones y Protección a las Minorías, Comisión de Derechos Humanos, E/CN.4/Sub.2/1993/28, 1993, par. 1.
67. Ibid., par.4.
68. E. I. Daes, Las Poblaciones Indígenas y su Relación con la Tierra, Subcomisión de Prevención de Discriminaciones y Protección a las Minorías, Comisión de Derechos Humanos, E/CN.4/Sub.2/2000/25, 2000.
69. Por exemplo, em 1976 foi divulgado no Brasil que 15 mil indígenas Yanomami (15% da população) morreram por causa de doenças transmitidas pelos garimpeiros, contra as quais não tinham defesas naturais (CIDH, Informe sobre Brasil, 1997).
70. Citado em O. Correas, “La Teoría General del Derecho frente al Derecho Indígena” em Crítica Jurídica, Instituto de Investigaciones Jurídicas, UNAM, n. 14, 1994.
71. Caso Comunidade Indígena Yakye Axa versus Paraguai, Sentença 17 de junho de 2005, Série C, nº 125, par. 63.
72. M.T. Sierra, “Autonomía y Pluralismo Jurídico: El Debate Mexicano”, em América Indígena, Instituto Indigenista Interamericano, Volumen LVIII, nº 1-2, México, 1998, p. 25.
73. R. Yrigoyen Fajardo, Raquel “El Debate sobre el Reconocimiento Constitucional del Derecho Indígena en Guatemala”, em América Indígena, Instituto Indigenista Interamericano, volumen LVIII, nº 1-2, México, 1998, pp. 81-114.
74. A urtiga é uma planta que causa comichão e ardor em contato com a pele. É freqüentemente usada nas penas indígenas do Equador.
75. Julgado Terceiro do Penal de Cotopaxi, em 10 de setembro de 2002.
76. Depoimento de um indígena Wichi. Disponível em Aranda D., “El Apartheid de lo Impenetrable”, <http://argentina.indymedia.org>, acesso em 21 de junho de 2004.
77. Opinião Consultiva, OC-4/84, par. 55.
78. OC-18/03, par. 101.
79. Informe sobre Equador, 1997, p. 122.
80. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965) reconhece este aspecto ao destacar em seu artigo 2 (2).- “Os Estados-partes tomarão, quando necessário, medidas especiais e concretas, nas esferas social, econômica, cultural e outras, para assegurar o adequado desenvolvimento e proteção de certos grupos raciais ou de pessoas desses grupos e garantir, em condições de igualdade, o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais […]”. O artigo VI.1 do Projeto de Declaração Americana sobre os direitos dos Povos Indígenas e os artigos 6.3 e 9.2 da Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais (1982) chegam à mesma conclusão.
81. CIDH, Informe sobre Paraguai 2001, par. 28. Vide também, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Observação Geral nº 3: “a adoção de medidas legislativas, como está previsto concretamente no PIDESC, não esgota, por si mesma, as obrigações dos Estados- partes” (par. 4).
82. PSS, artigo 15.
83. J. Martínez Cobo, Conclusiones, Propuestas y Recomendaciones del Estudio del Problema de la Discriminación contra los Pueblos Indígenas, Naciones Unidas, New York, 1987, par. 470.