Ensaios

O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas

José Reinaldo De Lima Lopes

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RESUMO

A partir das declarações de dois juristas, o texto desvenda o que leva pessoas cultas e formadas em direito a reprovar a concessão de iguais direitos aos homossexuais. Reflete, ainda, sobre a falta de discussão moral e jurídica a respeito desse estigma social no Brasil, de modo geral, e particularmente entre os juristas que, por um lado, são levados a uma compreensão irracionalista ou tradicionalista (outra forma de irracionalismo) dos fundamentos da vida moral, e a adotar argumentos ignorantes e errados do ponto de vista da filosofia e da ciência contemporâneas; por outro lado, impede que os danos físicos e psicológicos causados às crianças e aos jovens homossexuais sejam percebidos como uma forma de violência, estimulada por um ordenamento jurídico que abriga preconceitos religiosos específicos. A partir desses dois eixos, o artigo procura mostrar como o direito pode exigir o fim das discriminações sociais de gays e lésbicas.

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Os homossexuais são uma raça maldita, perseguida como Israel.
E finalmente, como Israel, sob o opróbio de um ódio imerecido por parte das massas, adquiriram características de massa, a fisionomia de uma nação [...]
São em cada país uma colônia estrangeira.

Marcel Proust

01

“O Brasil não está preparado para a união civil. É desnecessária e contraria as bases culturais e religiosas do país.” É assim que o juiz de direito Marcos Augusto Barbosa dos Reis se manifesta, em entrevista concedida à revista Trip (n. 95, nov. 2001), a respeito da união entre pessoas do mesmo sexo. “Nem o direito natural e nem a legislação constitucional e infraconstitucional brasileiras prevêem a união homossexual. […] Essas decisões isoladas jamais significarão que dois, ou duas pessoas, possam encontrar a felicidade e a proteção do direito a partir de uma conduta que é um desvio da natureza das coisas.” E este é o teor da declaração dada pelo advogado Jaques de Camargo Penteado, no jornal Tribuna do Direito (n. 82, fev. 2002). Tais declarações contemporâneas mostram o quanto a discussão jurídica brasileira está contaminada por equívocos e por falta de entendimento adequado do que são o direito, a democracia e a moral. As duas declarações confundem coisas que em sociedades liberais, democráticas e modernas (ou pelo menos pós-tradicionais) já não se poderiam confundir.

Em primeiro lugar, confundem a ordem jurídica com a ordem aceitável para a maioria, o que deixa de lado o aspecto fundamental da democracia: a proteção aos direitos das minorias. Em segundo lugar, confundem o direito com uma ordem moral tradicional: dizer que algo não é aceitável porque vai contra a índole tradicional de um grupo é ignorar o caráter prescritivo e contrafático de qualquer ordem normativa. Em terceiro lugar, confundem religião e Estado: a ordem jurídica de um Estado democrático não se funda em razões religiosas de nenhum dos grupos que compõem a cidadania daquele Estado. Em quarto lugar, apelam para conceitos de direito natural e de natureza no mínimo equívocos. Como deveriam saber os juristas, o direito natural não é um conjunto de comandos ou ordens, mas uma condição de possível organização social da vida. E a natureza, por seu lado, o que é? É o conjunto de necessidades e regularidades cósmicas? Bem, nesse caso, andar de avião e fazer transfusões de sangue são coisas contra a natureza. É um conjunto fixo de funções e finalidades? Então, é o caso de “subjetivizar” a natureza e dizer que ela “quer” algo, o que a rigor ninguém admitiria, a não ser de forma metafórica. Mas o uso metafórico das palavras não produz argumentos convincentes.

Mesmo assim, o fato de juristas se expressarem publicamente com essa naturalidade mostra o quanto é preciso ainda discutir e como se colocam, com ares de seriedade, afirmações que apenas reproduzem o senso comum ou a moral pré-crítica. É uma surpresa decepcionante ver um jurista escudar-se na resposta “a sociedade não está preparada”. Para muita coisa a sociedade não está preparada: não está preparada para abolir a tortura e para repartir a riqueza. Mas não esperamos que ela esteja preparada para condenar a tortura e criar impostos e contribuições sociais. É também decepcionante ouvir alguém dizer que a natureza é prescritiva: operações cirúrgicas, casamentos de pessoas sem capacidade reprodutiva e outros fatos semelhantes nos permitiriam dizer que são coisas proscritas pelo “direito natural”.

Dois argumentos a favor de uma moral crítica para o direito

No início dos anos 60, quando no Reino Unido se discutiu o fim da criminalização dos atos homossexuais consensuais entre adultos, travou-se um importante debate, que deveria ser exemplar para todos os estudantes de direito. O debate deu-se entre Lord Devlin, membro da mais alta instância judicial do reino (seção de justiça da Câmara dos Lordes – os Law Lords) e um dos grandes juristas do século passado, Herbert L. Hart. Mais tarde, o mesmo tema foi abordado por Ronald Dworkin, outro jurista de primeira grandeza, ainda vivo. O debate mostra como, para tratar de questões de dignidade humana e de direitos fundamentais, é preciso ter uma formação moral mínima. É preciso, em resumo, apartar-se do ceticismo relativista, que considera questões morais como se fossem questões de paladar; e apartar-se do puro e simples tradicionalismo, que aborda questões morais apenas como um problema de costumes, que deveriam ser reconhecidos e preservados.

Àquela altura, a Comissão Wolfenden, criada no Reino Unido, concluiu que os atos homossexuais consensuais entre adultos deveriam ser descriminalizados. Parte da opinião pública britânica sentiu-se contrariada, pois isso significava fazer uma escolha de caráter moral, tirar de tais práticas o caráter de algo sujeito a pena, apartá-las da idéia de pecado. Lord Devlin entrou no debate dizendo que é sim função do direito, especialmente do direito penal de um país, determinar ou escolher uma moral, e que esta é ou deve ser a moral da maioria. Dizia ele (Devlin, 1991, p. 74): “A sociedade não é mantida por laços físicos, mas por laços invisíveis de pensamento comum. Se esses laços se afrouxarem, os membros irão à deriva”.

Para esse autor, religião e moral não podem ser separadas de modo completo e os padrões morais aceitos no Ocidente em geral são os padrões cristãos (p. 69). Assim, alguém que vive em uma sociedade cristã não pode ser obrigado a se converter ao cristianismo, mas está obrigado a aderir à moralidade cristã, que é a moralidade social de seu meio. E uma moral comum é tão necessária quanto um governo; por isso, se é legítimo o governo punir atividades subversivas – como formas de traição – é legítimo o Estado punir também os vícios (sic, p. 77). Ele reconhece como natural que a punição jurídica não seja simplesmente a continuação da pena religiosa ou moral; assim, o Estado pode punir certas condutas não por serem pecado, em si, mas por atentarem contra a ordem – a moral em geral aceita. Finalmente, Lord Devlin diz que não se trata de tomar como padrão de julgamento moral apenas a opinião da maioria. Afinal de contas, ele vem da terra de John Stuart Mill, terra que conheceu um intenso debate sobre a liberdade individual.

J. S. Mill, há quase duzentos anos, chamava a atenção para o perigo de a democracia suprimir as liberdades individuais (a liberdade moral dos indivíduos) em nome do processo representativo das maiorias. Dizia ele: “atualmente, a tirania da maioria é normalmente incluída nos males contra os quais a sociedade precisa ser protegida”. E mais: a “maioria pode ser uma parte que deseja oprimir outra parte”. Por isso, concluía Mill, a única liberdade que merece o nome de liberdade é a de buscarmos nosso próprio bem, à nossa própria maneira, desde que não impeçamos ninguém de fazer o mesmo (Mill, 1974, p. 138). Devlin, ao contrário, diz que o critério é o do “homem comum”, da pessoa honesta (right-minded): a imoralidade é, pois, o que a pessoa honesta considera imoral. Logo, não é a moral da maioria, mas a moral do homem comum que deve inspirar o legislador. No caso dos homossexuais, a questão se resolve com simplicidade: tanto a maioria quanto o imaginado “homem comum” condenam as pessoas e as práticas homossexuais.

Como se vê, o argumento de Devlin se baseia na idéia de que a sociedade é frágil e que os indivíduos não são capazes de se desenvolver autonomamente. O desenvolvimento autônomo cria o risco do esfacelamento social. De outro lado, ele não crê em uma moral crítica ou racional. Como grande parte de nossos contemporâneos, acha que a moral é uma questão de tradição, costume, regularidade e conveniência. Assim, não se pode, no debate moral, procurar uma perspectiva crítica – que é sempre universal – mas apenas uma perspectiva conveniente e prática, a do homem comum.

Contra esse argumento levantou-se, em primeiro lugar, Herbert Hart. Sob o título de “Imoralidade e traição”, um primeiro e breve texto polêmico, ele argumenta que Devlin tenta mostrar a imoralidade como resultado de uma atividade intelectual que combina nojo, intolerância e indignação: se certos fatos e atitudes despertarem tais sentimentos no homem comum estaremos certamente diante de algo imoral, que deve ser punido pelo direito. Nesses termos, conclui Hart, a moral proposta por Devlin é acrítica, não se baseia em uma discussão racional dos fundamentos da escolha moral, mas na impressão e nos sentimentos. Também ressalta o equívoco da comparação feita por Devlin com o caso de traição: nem toda atividade contra o governo é traição, pois pode não buscar destruí-lo e sim apenas modificá-lo. O risco de decisões equivocadas das maiorias – e de seus representantes –, diz Hart, é um risco inerente ao governo representativo democrático. Mas não deve ser ampliado, alçando o “homem comum” a uma posição tal em que baste ele manifestar repulsa ou nojo para que adeqüemos as leis a esse sentimento, sem fazer críticas teóricas a suas exigências.

Em um ensaio mais amplo (1963), Hart desenvolveu sua resposta concluindo que o princípio (crítico) central da discussão moral é que a miséria, o sofrimento humano e a restrição à liberdade são maus. Assim, o direito de uma sociedade livre e democrática começa a se fundamentar nesse critério, ou seja, na diminuição da miséria, do sofrimento e das restrições à liberdade. A preservação da ordem e da sociedade, bem como a manutenção de uma moralidade comum, não podem ser avaliadas em si mesmas, mas sim submetidas ao princípio de uma moral crítica.

Na mesma linha de raciocínio há o ensaio de Ronald Dworkin (1977, pp. 240-258). Também para ele, o que está em jogo no debate é uma controvérsia entre uma moral convencional (segundo a qual as regras morais se fundam em convenções) e uma moral crítica (em que as regras morais devem ser submetidas a certos crivos da razão). Naturalmente, Dworkin não nega que moralidades históricas podem resultar da aceitação de facto de certas práticas. O que ele nega é que essa existência de facto equivale a sua justificação ou fundamentação. Fazemos muitas coisas sem perguntar o porquê, mas se for colocada a questão do fundamento, a resposta moral não pode ser “porque sempre se fez assim”, ou “porque todos fazem assim”. Dworkin propõe, então, alguns crivos para as opiniões morais:

• os preconceitos não são razões válidas (acreditar que os homossexuais são inferiores porque não realizam atos heterossexuais não se justifica como julgamento moral de superioridade ou inferioridade);

• o sentimento pessoal de nojo ou repulsa não é razão suficiente para um julgamento moral;

• o julgamento moral baseado em razões de facto, que são falsas ou implausíveis, não é aceitável (por exemplo, é factualmente incorreto dizer que os atos homossexuais debilitam, ou que não há práticas homossexuais na natureza – ou seja, em outras espécies animais sexuadas);

• o julgamento moral baseado nas crenças alheias (“todos sabem que a homossexualidade é um mal”) também não está suficientemente justificado.

Em resumo, o direito de uma sociedade democrática, ao contrário do que imaginam os menos preparados, não é um direito sem moral, mas um direito que assume em sua base uma moral de caráter crítico. O sistema constitucional – que estatui o tratamento igualitário, o respeito à dignidade da pessoa e à liberdade moral dos cidadãos – é um sistema jurídico com uma agenda moral crítica. Isso o distingue dos trágicos regimes autoritários dos últimos dois séculos. As práticas sociais podem ser autoritárias, mas o direito é – ou deve ser – um antídoto contra tais práticas.

Há dois equívocos nas discussões contemporâneas do tema dos direitos dos homossexuais, quando a questão é colocada em termos morais, como querem alguns. O primeiro consiste em identificar a moral de uma sociedade democrática com a moral tradicional, ou da maioria. O segundo está na afirmação de que o direito moderno não inclui uma certa moral. Os argumentos acima resumidos ajudam a desfazer esses dois equívocos. A moral de uma sociedade democrática é crítica, e não simplesmente tradicional, ou apoiada na maioria. A maioria parlamentar não pode tudo, e se mantiver formas discriminatórias de tratamento incorre em inconstitu-cionalidade, pois o Artigo 5o da Constituição Federal impede que tratamentos discriminatórios sejam perpetuados. Se a questão se deslocar para o Judiciário, vamos nos encontrar no foro daquele poder que, por definição, é antimajoritário, ou seja, é o guardião dos interesses da minoria.

Mas a sociedade democrática tem uma moral, que consiste em estabelecer como princípio a dignidade igual e universal das pessoas, e essa dignidade inclui a liberdade de fazer tudo aquilo que não causa dano a outrem. Como diz Dworkin, o “dano” que se causa a outrem não pode ser um mal-estar ou uma indisposição fundada apenas na tradição e no preconceito. Logo, a moral de uma sociedade democrática deve ser crítica; mas há, sim, princípios morais fundamentais por trás de uma ordem jurídica.

02

A reivindicação do reconhecimento e o estigma como ilícito jurídico

O movimento gay levou a público – em novos termos e novas circunstâncias – a velha questão da justiça. Junto com muitos outros grupos sociais, também os gays passaram a reivindicar, sob o nome de direito, o respeito a sua identidade, sua liberdade e tratamento não-discriminatório. Essa luta teve uma história peculiar, como qualquer movimento, mas insere-se em um grande processo que pode ser identificado como de expansão da democracia e afirmação de direitos universais.

Na expansão da democracia incluem-se os direitos às liberdades civis e políticas, cujos marcos mais salientes foram a liberdade de expressão (o fim dos delitos de opinião), a liberdade de associação (o fim dos delitos de sedição) e a extensão do sufrágio (para abranger todos os indivíduos adultos). Incluem-se também os direitos sociais – trabalhistas, de bem-estar e de proteção social –, cuja ampliação se deve exclusivamente às dolorosas e sangrentas lutas da classe operária. Na afirmação universal de direitos é preciso contar com a constituição de um sujeito humano universal, que incorpora um valor que não pode ser trocado, e por definição não tem preço: a dignidade. Essas duas correntes – expansão democrática do ponto de vista institucional e afirmação dos sujeitos do ponto de vista moral – confluem no movimento gay de forma exemplar. E são tanto mais importantes quanto menos democrático e menos universalista é o contexto social em que se afirmam.

A afirmação do direito dos homossexuais não ocorre de forma linear e simples, mas sim de maneira problemática. Esses direitos não são sempre e necessariamente reconhecidos ou apoiados por aqueles que se dizem convencidos da bondade moral – seja da democracia ou dos direitos humanos universais. De fato, não foi apenas contra visões tradicionalistas do mundo que os homossexuais tiveram de lutar. Não poucas vezes tiveram de lutar contra grupos de aparente inclinação pela liberdade. Isso é particularmente evidente no Brasil, onde liberalismo muitas vezes significa apenas a defesa do livre comércio e da livre iniciativa empresarial. Não são todos os liberais que estendem seu liberalismo às liberdades individuais, ou à defesa da autodeterminação dos sujeitos humanos. A esquerda, em boa parte responsável, no século passado, pela democratização do país, no que diz respeito à extensão de direitos a todos sem distinção de classe social, com freqüência se opôs ao reconhecimento dos homossexuais, quando não perseguiu ostensivamente aqueles que viviam debaixo do socialismo real.

No campo do direito propriamente dito, no que se refere aos ordenamentos jurídicos e ao caleidoscópio de obrigações e direitos que se distribuem entre as pessoas, a afirmação de um direito ao reconhecimento também encontra dificuldades. Para esclarecer o statusdos homossexuais no direito, tomo como ponto de partida uma importante distinção feita por Nancy Fraser (1997) entre direitos de distribuiçãoe direitos de reconhecimento. Gays e lésbicas, assim como minorias nacionais e culturais, pedem direito ao reconhecimento.

Os direitos de distribuiçãosão tradicionalmente chamados direitos sociais e têm uma função especial: desfazer as injustiças estruturais e inevitáveis do sistema de classes existente no capitalismo. Para que haja direitos sociais ou direitos à redistribuição é preciso admitir de início algumas coisas: (a) que existem classes sociais; (b) que as classes sociais não são um fenômeno cósmico, mas institucional e histórico; (c) que as classes sociais geram situações de injustiça; (d) que a produção social da riqueza é um empreendimento social comum; (e) que a injustiça das classes consiste na apropriação desigual dos resultados sociais da produção da riqueza; (f) que mesmo aqueles menos capazes e menos produtivos, se ainda assim forem reconhecidos como membros da sociedade, têm direito a ser mantidos dentro dela por mecanismos de distribuição da riqueza.

Os direitos de reconhecimento, por seu turno, também precisam de pontos de partida, e pode-se dizer que partem dos seguintes pontos: (a) que existem na sociedade grupos estigmatizados;1  (b) que os estigmas são produtos institucionais e históricos, e não cósmicos; (c) que os estigmas podem não ter fundamentos científicos, racionais ou funcionais para a sociedade; (d) que as pessoas pertencentes a grupos estigmatizados sofrem a usurpação ou a negativa de um bem imaterial (não mercantil, nem mercantilizável), mas básico: o respeito e o auto-respeito; (e) que a manutenção social dos estigmas é, portanto, uma injustiça, provocando desnecessária dor, sofrimento, violência e desrespeito; (f) que os membros de uma sociedade, para continuarem pertencendo a ela, têm direito a que lhes sejam retirados os estigmas aviltantes.

Ora, se os estigmas são produzidos socialmente, alguns podem objetar que o direito seria impotente contra tais “preconceitos” de caráter social e cultural. E que o máximo a se fazer é, às vezes, apenar as condutas que gerem violência sobre as pessoas pertencentes ao grupo estigmatizado. Essa objeção não se sustenta nem em termos jurídicos nem em termos históricos.

Comecemos pelos exemplos históricos. Várias formas de estigmatização já foram eficazmente combatidas pelo direito. Para citar poucos exemplos, pode-se dizer que os grupos de identidade que se formaram ao longo dos últimos séculos e conseguiram superar os estigmas sociais por meios jurídicos foram as mulheres e, em parte, os negros, os estrangeiros e os deficientes físicos. Do ponto de vista da cultura majoritária, as formas de inferiorização desses grupos eram respaldadas pelo direito. As mulheres não votavam, podiam receber salários inferiores aos dos homens, em certas circunstâncias não tinham acesso ao Judiciário sem autorização do marido e assim por diante. Foram movimentos emancipacionistas e feministas que construíram pouco a pouco uma imagem mais positiva e afirmativa das mulheres, “desnaturalizando” o tratamento jurídico diferenciado, e que introduziram no direito a igualação de mulheres e homens, que antes se concebia como impossível, dada a diferença de gênero. A diferença é, pois, um constructo histórico; e o direito não joga um papel neutro nessa construção: ao contrário, o direito – os ordenamentos jurídicos – ajuda a naturalizar as diferenças e as desigualdades comuns na cultura. A mudança no direito não apenas se segue às mudanças culturais, mas ajuda a promovê-las.

Logo, o direito pode promover mudanças e remover injustiças historicamente consolidadas, requerendo para isso que algumas instituições jurídicas sejam mobilizadas. A primeira delas é a ação coletiva, ou ação civil pública, que oferece um meio eficaz para que alguns membros do grupo consigam o reconhecimento de direitos que se estenderão a todos. Assim, membros isolados ou grupos de pessoas estigmatizadas com maiores recursos – especialmente psicológicos – poderão exercer o papel indispensável do herói ou do desbravador, sem que seja preciso cada membro arcar solitariamente com os custos altíssimos da exposição e da luta.

Um segundo elemento importante é o desmascaramento do senso comum vigente. As declarações do início deste texto evidenciam que palavras ofensivas e injuriosas são utilizadas em relação a um grupo determinado de cidadãos sem que isso traga graves conseqüências. No entanto, se tal manifestação pública for seguida de interpelações por seu caráter discriminatório e inconstitucional, é certo que o direito contribuirá para a diminuição do estigma em seu lugar próprio, que é o espaço público. No espaço meramente privado ninguém está obrigado a conviver com gays: fuja deles, se puder, pois costumam estar em toda parte, inclusive nas famílias heterossexuais. Aliás, nascem e vivem em famílias, ainda que muitas vezes sob torturas físicas e psicológicas. Uma das palavras de ordem do movimento gay internacional é: “we’re queer, we’re here, get used to it” (“somos bichas, estamos aqui, aceite o fato” – uma tradução limitada, pois “queer” é um termo comum de dois gêneros e “get used to it” é um pouco mais provocativo do que a tradução sugere).

Em terceiro lugar, o direito pode descobrir o tratamento diferenciado das mais variadas maneiras: infiltram-se critérios pseudocientíficos nas avaliações de adoção, de guarda de crianças, de distribuição de benefícios-saúde (direitos sociais, aliás) e de ocupação de cargos públicos. Expor esse tratamento diferenciado ajuda a quebrá-lo, a colocar em praça pública as muitas violências que um grupo de cidadãos sofreu, sofre e ainda continuará a sofrer por algum tempo.2

Tomemos apenas pequenos exemplos de sofrimentos impostos a um grupo particular de cidadãos, para termos uma idéia de quanto o direito encobre práticas violentas e francamente inconstitucionais.

Herrero Brasas (2001, p. 323) expõe um retrato da violência a que desde muito cedo, na infância ou na juventude, se submetem os homossexuais, homens e mulheres. Diz ele que há uma violência ativa, que todos percebem, e uma passiva ou, diria eu, disfarçada e psicológica. Esta se dá “no insulto público, nos gestos de chacota e ridicularização, como manifestações de acosso a um grupo social”. Ao lado dela, é também violência social e silenciosa “a falta de proteção judicial contra essas ações simbólicas”, que estão nos discursos, nos símbolos, na cultura de forma geral. A falta de ação jurídica é um consentimento, uma cumplicidade com essa violência diuturna – uma evidência da “denegação de igualdade plena”. E é preciso acrescentar ainda o que Herrero Brasas (p. 324) descreve como

[…] abandono e terror que sofre o adolescente que descobre sua orientação gay ou lésbica, que se submete sem alternativa à degradante chantagem emocional de sua família. […] A pessoa mais jovem e vulnerável fica condenada ao silêncio e à tortura psicológica e emocional sem que as autoridades levem a cabo nenhuma campanha de conscientização sobre a realidade gay ou lésbica e nem fomentem programas informativos para suas famílias. Tudo isto causa sofrimento concreto […], vive-as como expressão de ódio a sua pessoa.

Tal passividade estatal e jurídica mostra o quanto se naturalizou a violência contra esse grupo particular de cidadãos: fala-se na defesa de crianças e adolescentes, mas quanto se fez a favor de um grupo que justamente na infância e na adolescência é dos que mais sofre a violência e a degradação? Não há aí um papel para o direito?

Em paralelo a essas observações pode-se acrescentar a tipologia desenvolvida por Axel Honneth (1996, pp. 129-134), segundo a qual a negativa de reconhecimento gera uma violência física (o abuso físico), que é o impedimento de alguém estar fisicamente seguro no mundo, e uma violência não-física. Esta se desdobra em duas formas típicas. A primeira é a exclusão de alguém de uma esfera de direitos, negando à pessoa autonomia social e possibilidade de interação. A isso ele chama ostracismo social: “A forma de reconhecimento de que esse tipo de desrespeito priva uma pessoa é o respeito cognitivo pelo estatuto de responsabilidade moral que tão custosamente teve de ser adquirido no processo de interação social” (p. 134).

A segunda forma de violência não-física, propriamente, é a negativa de valor a uma forma de ser ou de viver, e é ela que está por trás das formas de tratamento degradante e insultuoso a certas pessoas e grupos, pois promove o desrespeito por formas individuais ou coletivas de viver. Ainda segundo Honneth (p. 134):

Para os indivíduos, portanto, a experiência dessa desvalorização social traz consigo normalmente uma perda da auto-estima, da oportunidade de se enxergarem como seres cujos traços e habilidades devem ser estimados. Portanto, a espécie de reconhecimento de que esse tipo de desrespeito priva a pessoa é a aprovação social de uma forma de auto-realização que ele ou ela teve de descobrir, a despeito de todos os obstáculos, com o encorajamento da solidariedade de grupo. Naturalmente, cada um só pode relacionar essas espécies de degradação social consigo enquanto pessoa individual, já que os padrões estabelecidos e institucionalizados de auto-estima foram historicamente individualizados, isto é, porque esses padrões se referem valorativamente às habilidades individuais antes que coletivas. Por isso, essa experiência de desrespeito, como a de negativa de direitos, está ligada a um processo de mudança histórica.

É a mesma violência denunciada por Didier Eribon (2000):

O que a injúria me diz é que sou alguém anormal ou inferior, alguém sobre quem o outro tem poder e, antes de tudo, o poder de me ofender. A injúria é, pois, o meio pelo qual se exprime a assimetria entre os indivíduos. […] Ela tem igualmente a força de um poder constituinte. Porque a personalidade, a identidade pessoal, a consciência mais íntima, é fabricada pela existência mesma dessa hierarquia e pelo lugar que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do outro, do “dominante”, e a faculdade que ele tem de inferiorizar-me insultando-me, fazendo-me saber que ele pode me insultar, que sou uma pessoa insultável e insultável ao infinito (p. 57).

A injúria homofóbica inscreve-se em um contínuo que vai desde a palavra dita na rua que cada gay ou lésbica pode ouvir (veado sem-vergonha, sapata sem-vergonha) até as palavras que estão implicitamente escritas na porta de entrada da sala de casamentos da prefeitura: “proibida a entrada de homossexuais” e, portanto, até as práticas profissionais dos juristas que inscrevem essa proibição no direito, e até os discursos de todos aqueles e aquelas que justificam essas discriminações nos artigos que se apresentam como elaborações intelectuais (filosóficas, sociológicas, antropológicas, psicanalíticas etc.) e que não passam de discursos pseudocientíficos destinados a perpetuar a ordem desigual, a reinstituí-la, seja invocando a natureza ou a cultura, a lei divina ou as leis de uma ordem simbólica imemorial. Todos esses discursos são atos, e atos de violência (p. 62).

Ora, é sobre o fato básico da injúria e da violência que certos dispositivos do ordenamento jurídico silenciam, ou permitem sua ocorrência ao aceitar o discurso de alguns juristas. É esse silêncio, ou essa omissão, que os direitos de reconhecimento pretendem abolir. De fato, há certa contradição cultural ao se pregar a tolerância e se assustar com a violência gratuita e cruel de que são vítimas os homossexuais, mas manter como discurso oficial e bem comportado a violência generalizada da ofensa e, dentro das famílias, a “chantagem” mencionada por Herrero Brasas. Falar em direito ao reconhecimento é falar em abolir tais práticas sociais, ou pelo menos tirá-las do silêncio que pode servir para manter sua existência.

03

Eribon e Honneth dizem que as injúrias são formas de ofensa e violência. Pode-se até dizer que as injúrias consistentes na negação de direitos permitem propagar uma visão negativa dos homossexuais. A negação de direitos, os discursos que publicamente afirmam que não se pode condenar os homossexuais, mas que também não se deve estimulá-los, têm como resultado o estímulo contrário, isto é, o estímulo a violências físicas e morais contra eles. Já que não podem ter direitos iguais, a mensagem enviada pelos juristas que assim se pronunciam é de reforço dos preconceitos e idéias pseudocientíficas divulgadas aqui e ali. É uma mensagem de desigualdade.

A descrição dos insultos e da violência de que são vítimas os homossexuais revela uma violação de seus direitos fundamentais. Não é difícil perceber que o tratamento dispensado socialmente aos homossexuais – às vezes pelos próprios serviços do Estado ou por serviços de relevância pública, como em hospitais e escolas – constitui tratamento degradante, vedado pelo Artigo 5o, inciso III, da Constituição Federal. Outras tantas pretensões de grupos sociais consistiriam em violações da consciência e da crença dessa parcela de cidadãos (mesmo Artigo, inciso VI). Além disso, a honra e a intimidade das pessoas foi tratada constitucionalmente como bem inviolável (inciso X), e várias formas de comunicação pública e expressão social de desprezo dirigidas a gays e lésbicas são seguramente violações a sua honra e a sua intimidade. Isso para não falar que a própria Constituição prevê um mandamento ao legislador (e a todo órgão público com poderes semilegislativos, pode-se acrescentar) de punir “qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI). Esses direitos individuais, tratados como direitos fundamentais de qualquer membro da sociedade brasileira, já seriam suficientes para indicar o quanto há de ilícito jurídico na continuidade institucionalizada dos estigmas antigays.

Mas é certamente o princípio da dignidade da pessoa que fundamenta, afinal, as reivindicações contra o tratamento desigual e discriminatório e a reação a expressões públicas de desprezo. O Estado brasileiro – a instituição da vida pública e comum da sociedade brasileira – funda-se sobre a “dignidade da pessoa humana” e sobre o “pluralismo político” (Constituição Federal, Artigo 1o, incisos III e V). A dignidade da pessoa pode ser bem expressa pela fórmula kantiana: o valor de cada ser humano, que não pode ser trocado por nada, não pode ser comprado por nada e não pode ser instrumento de nada. Nenhum ser humano pode ser usado por outro ou pela coletividade e não pode ser usado nem mesmo como um exemplo, como um bode expiatório. O pluralismo, por seu turno, diz que o fundamento da convivência política no Brasil é a tolerância recíproca. Estas são indicações básicas (até elementares) de que a democracia brasileira, vale dizer, o sistema jurídico público no Brasil, adota as precauções necessárias para que não seja permitida entre grupos sociais a intolerância ou a opressão social. Nosso sistema jurídico garante e valoriza a pluralidade de formas de vida e de pensamento, e não legitima que o Estado patrocine a uniformização, o conformismo e a submissão.

A negativa de direitos, somada ao tradicionalismo do statu quo, é mantenedora e fomentadora das formas mais evidentes de violência física e é em si mesma uma ofensa ao regime democrático de iguais liberdades. Não é de admirar que, sob o silêncio do sistema jurídico – tal como entendido pelas expressões não-democráticas mais comuns –, se cultive a intolerância. Em uma ordem democrática, essa discriminação sexual é juridicamente ilícita. Em um Estado democrático, a defesa da ordem social restringe-se à defesa de instituições que possam passar pelo teste da universalização e da crítica, e isso sustentaria os tratamentos diferentes, justificados pela necessidade de manutenção das condições de convívio social com liberdade igual para todos. Mas por esse teste não passam hoje as idéias preconcebidas sobre as relações afetivas e eróticas entre pessoas do mesmo sexo.

Dizer que tais relações não devem ser reconhecidas, por contrariarem a índole religiosa e a moral universal, incide na proibição constitucional de o Estado aplicar coercitivamente a todos os cidadãos um conjunto determinado de convicções religiosas. Os argumentos de convicção religiosa não podem ser usados com legitimidade no espaço democrático quando fundados em si mesmos, pois nenhuma religião determinará obrigações, deveres e direitos para todos os cidadãos, já que nem todos compartilham a religião que se faz, ou que é, dominante. A liberdade de crença, uma das marcas da democracia, impede que sejam impostos a todos deveres que se justificam apenas para os seguidores de determinado credo. Fundar-se na revelação cristã, judaica ou islâmica não é suficiente – cito expressamente estas tradições porque as relações homossexuais não são objeto do mesmo tabu em muitas outras religiões e culturas.3

A liberdade de convicção religiosa é, portanto, uma barreira democrática e constitucional a argumentos nessa direção, quando se trata da legislação estatal. O Artigo 5o, inciso VI da Constituição brasileira é expresso: “É inviolável a liberdade de consciência e crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Ora, se a liberdade de consciência é inviolável, aqueles que não partilham das convicções religiosas dos outros (mesmo que os outros sejam a maioria) não podem se submeter a leis cuja razão de ser se justifica apenas pela crença religiosa.

A Constituição Federal acrescenta ainda à liberdade de consciência outro elemento importantíssimo para o debate: “Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (Artigo 5o, inciso VIII).

A convicção religiosa alheia não pode, portanto, privar de direitos um grupo social que não se recusa a cumprir os deveres gerais de cidadania. Além de serem livres para crer, os cidadãos brasileiros são livres para não serem privados de direitos por grupos religiosos terem feito leis fundadas em suas convicções religiosas. Dizer, portanto, que não se estendem a certos grupos (como gays e lésbicas) direitos que existem para outros pela “índole religiosa” da maioria ou pelo “direito natural” de caráter revelado ou pseudocientífico (e se não é científico é uma crença, uma questão de consciência) é contrariar diretamente o direito constitucional.

O mesmo vale para uma afirmação como a de que “ninguém será feliz assim”. Bem, o direito moderno e democrático não pretende fazer a felicidade das pessoas. As pessoas podem ser felizes como quiserem, desde que não causem dano e não impeçam outros de igualmente buscar a felicidade. Esse é o sentido da liberdade civil e da tolerância entre cidadãos de um Estado democrático. Não é responsabilidade do Estado fazer seus cidadãos felizes na vida privada, e a felicidade alheia deve ser um problema alheio. Em uma frase muito pertinente, J. R. Lucas (1989, p. 262) diz que a expressão “cuide de sua vida” é um bom resumo de um princípio de justiça e de tolerância: “‘Cuide de sua vida.’ Embora seja uma definição inadequada de justiça, ainda assim é um corretivo importante para uma exagerada solicitude com os outros. Há […] uma ligação conceitual entre a justiça e a liberdade, na medida em que faz parte das exigências de justiça que cada indivíduo possa fazer sua própria vida”.

A solidariedade social em sociedades de massa, burocráticas e democráticas, tolerantes e, em uma palavra, justas, não equivale ao controle público das felicidades particulares. Não equivale nem mesmo ao controle social: a liberdade contra a interferência alheia é um dos grandes benefícios da democracia, um aspecto que a torna desejável.

Outra linha de argumentos para que o sistema jurídico ignore os direitos dos homossexuais e não os “estimule” tenta fundar-se em razões de ordem científica de duas naturezas. Uma afirma que o natural é o que existe empiricamente, e o antinatural é o que não se encontra em outras espécies animais. A segunda mistura as funções e regularidades da natureza com a finalidade da ação humana e transforma funções naturais em prescrições morais (deriva odever do ser, como disse Hume).

Na primeira linha, argumenta-se que é antinatural a convivência de pessoas do mesmo sexo e que não existem ligações desse tipo na natureza. Nesse sentido, o fundamento alegado para a legislação é simplesmente errado: falar que as uniões erótico-afetivas entre seres humanos do mesmo sexo são “antinaturais”, porque não existem na natureza, demonstra apenas ignorância de fatos. E se existem fatos na “natureza”, o argumento não se sustenta, como está provado pelas evidências empíricas: já se constatou em vários mamíferos o estabelecimento de relações entre indivíduos do mesmo sexo.

Na segunda linha de raciocínio, antinatural quer dizer contra as finalidades da natureza, e nesse sentido o argumento apresenta dois problemas. O primeiro diz respeito à finalidade da natureza, que não pode ser determinada pela ciência. Para isso seria preciso supor a existência de um sujeito, ou uma consciência por trás das regularidades naturais; equivaleria a personificar a natureza. Por isso mesmo, na ciência moderna a funcionalidade dos eventos não se confunde com sua finalidade. Transformar as funções naturais em fins é um erro da ordem das categorias e invalida o raciocínio. Embora os contatos sexuais sejam funcionais para a reprodução das espécies, não se pode derivar daí que a finalidade desses contatos entre os seres humanos seja, ou deva ser, a reprodução da espécie.

A moral e a ética são o campo em que se constroem e se interpretam as condutas humanas que independem das determinações naturais. Os seres humanos valem como pessoas justamente porque são capazes de se dar fins (a isso se chama autonomia) e só podem fazê-lo em contraste com as regularidades determinantes da natureza. Valem porque são sujeitos e não objetos. O fim não é o cumprimento de um determinismo natural. Ninguém tem por finalidade morrer: isso é dispensado, já que todos morreremos mesmo. Em argumentos morais, não é simples invocar a natureza como determinadora de prescrições: a natureza não é prescritiva, é determinante, coisa muito diferente.

Mesmo a teologia cristã abriu mão no século passado de uma afirmação tão simplista como essa. Especificamente na tradição católico-romana, a constituição Gaudium et Spes, de 1965, expressa: “O matrimônio, porém, não foi instituído apenas para o fim da procriação” (GS, 50). E acentua que o matrimônio consiste na expressão de um amor: “Essa afeição se exprime e realiza de maneira singular pelo ato próprio do matrimônio. Por isso, os atos pelos quais os cônjuges se unem íntima e castamente são honestos e dignos” (GS, 49). Na mesma linha, passados já os anos do grande debate em meados do século 20, o Catecismo oficial (de 1992) estipulou que, para além da transmissão da vida, uma finalidade tão importante do matrimônio, é o “bem dos cônjuges” (Parte III, Sec. II, Cap. II, Art. 6).

Se não fosse assim, todos os seres humanos inférteis, por exemplo, deveriam ser proibidos de manter relações sexuais (e afetivas) e de se casar. Mas desde sempre se descartou a simples impotência generandi como causa de anulação de casamentos. O Código de direito canônico, vigente desde 1983 para a igreja romana, consolida a longa tradição a respeito: o cânon 1.084, parágrafo 1o, trata a impotência coeundi como impedimento ao matrimônio, mas diz expressamente no parágrafo 3o: “A esterilidade não proíbe nem dirime o matrimônio […]”.4

Fundado nessa valorização do bem recíproco dos cônjuges, Michael Sandel (1996, p. 104) critica a defesa dos direitos dos indivíduos homoeróticos apenas com base na liberdade negativa (uma tolerância negativa). Para ele, pode-se propor também um argumento positivo, dizendo que as relações de amor entre indivíduos do mesmo sexo são boas, como é boa toda relação de amor. Logo, não apenas em respeito à liberdade, mas também em respeito à idéia de bem, não deveria ser difícil para os tribunais valorizar positivamente essas relações.

Finalmente, o argumento dito científico contra o “estímulo” às relações eróticas e afetivas entre pessoas do mesmo sexo parece enredado em forte contradição. Ao mesmo tempo que afirma ser a orientação homoerótica contrária à natureza, porque na natureza não haveria homoerotismo (informação que já não se sustenta), sugere tratar-se de uma escolha orientada pela convivência e pela educação. O argumento presume simultaneamente que a “natureza” determina coisas para todos os seres, menos para os humanos (para os quais a orientação sexual dependeria de estímulos, e não de determinismos naturais); e que o direito deveria, caso a natureza falhasse, agir para substituí-la. Passa a ver o problema como “doença” do comportamento e, pior, doença contagiosa.

A afirmação é de duvidosa coerência. Como se sabe, a imensa maioria dos gays e lésbicas nasce em famílias de heterossexuais e convive a maior parte de sua vida com heterossexuais (população majoritária) – aliás, em ambientes nos quais são submetidos a toda sorte de violência moral e física, como se sabe. Como, por que e por quem se sentiriam estimulados a pertencer a esse grupo vulnerável e sujeito a tantas limitações de ordem social, a tanta violência e humilhação ao longo da história? O argumento parece supor que o reconhecimento público de tais relações estimularia os heterossexuais a se converter em gays e lésbicas. Que espécie de contágio é esse, que pode transformar alguém em gay, mas não pode transformar um gay em hétero? Conclui, assim, que a orientação sexual é cultural e social – logo, não é natural. Se fosse determinada pela natureza, não poderia ser mudada. Mas se não é natural, o argumento de que se está proibindo uma conduta com base na natureza, fica prejudicado.

Logo, a proibição de dar a gays e lésbicas os mesmos direitos deve ser fundada exclusivamente em argumentos morais e, ao se pretender manter uma sociedade livre e democrática, precisam ser utilizados argumentos de moral crítica e não tradicional. Claro, nada disso vale se a concepção de espaço público, de direito e de política é intolerante, tradicionalista e assimilacionista. Se o que está em jogo é realmente a imposição da homogeneidade (étnica, religiosa, política ou sexual), então a diferença de orientação sexual é tão maléfica quanto outra qualquer, e não é de se estranhar que durante o regime nazista os homossexuais também fossem enviados aos campos de concentração.

Os argumentos laicos e críticos deveriam, pois, ser fundamentais. E entre os argumentos laicos e críticos não há um que consiga invalidar o princípio de que, entre adultos livres, certas interferências do Estado não podem ser aceitas.

04

O direito ao reconhecimento: como se dará?

O reconhecimento consiste na afirmação e na valorização positiva de certas identidades. O direito ao reconhecimento, portanto, deve afirmar- se como um direito em primeiro lugar, e precisará traduzir-se em esforços públicos – estatais e não-estatais – que retirem de um grupo estigmatizado as conseqüências jurídicas de um estigma social.

Como seria possível converter em deveres esse direito ao reconhecimento, e a quem ele deveria beneficiar? Retomo brevemente o tema do direito subjetivo. A partir do século 16, o exemplo mais evidente de direito subjetivo é o de dominium, que ao longo do tempo se resumiu à propriedade – como a imaginamos hoje –, mas antes abarcava uma série de outros poderes, como a própria jurisdição. Príncipes e pais de família tinham não apenas o dominiummercantil e econômico das coisas, mas poderes de senhorio sobre seus súditos e parentes.

Bem, o importante é que o direito subjetivo terminou por ser tratado exemplarmente no campo da propriedade, sob dois aspectos. Em primeiro lugar, quanto a seu conceito: tem a propriedade quem a pode usar, gozar e dela dispor. Em segundo lugar, as formas de transferência de poder vieram a compor o grande campo das obrigações. Logo, definir os poderes e dizer como circulam entre as pessoas resume bem a reflexão sobre os direitos subjetivos. Porém, a discussão dos direitos subjetivos, dessa forma, ocorre dentro das regras da comutaçãoou troca. Pressupõe que o importante é definir como as coisas mudam de mãos e como vão parar nas mãos de seus detentores.

Uma esfera distinta é a da reflexão sobre a distribuição. Nela, o problema não consiste em defender direitos já existentes, mas em atribuir direitos imaginando-se que ainda não estão distribuídos. Não se trata de reflexão histórica, mas de reflexão crítica sobre quem deve ter o quê. As regras de distribuição têm uma dificuldade particular: não presumem que já existam titulares de direitos subjetivos, presumem apenas que todos devem ter acesso a certo bem. Regras de distribuição diferem de regras de comutação porque não atribuem direitos de uns frente a outros (a outro, como direito pessoal; a todos os outros, como direito real), mas direitos de todos frente a todos. Os exemplos mais evidentes de distribuição são as regras societárias. Há direitos que são de todos os sócios antes de serem direitos de um sócio contra outro sócio, ou contra a sociedade.5

Creio que, de início, os direitos ao reconhecimento precisam ser colocados nessa esfera. A luta por direitos ao reconhecimento é luta por distribuição, a distribuição de um bem que só existe e só se produz socialmente: o respeito. Não se trata, aqui, de um respeito comutativo, mas de um respeito distributivo e, portanto, universal. Quando uma sociedade se organiza de maneira hierárquica e desigual, não se pode distribuir o respeito de forma igual e universal. Na linguagem política antiga, a honra consistia exatamente no respeito desigual: alguns tinham, outros não; alguns tinham mais (maior honra) e outros menos (menor honra); nesses termos, era tratada como um bem escasso, que não poderia ter distribuição igualitária para todos. O respeito, por seu turno, é a contrapartida da dignidade universal.

O respeito mesmo, a valoração ou valorização igual dos seres humanos, fica condicionado à produção social de uma imagem positiva ou negativa, de um traço que identifica um grupo – a cor da pele, o nível de educação, a procedência étnica, o gênero ou a orientação sexual. E a produção desse respeito às vezes depende de como é a percepção social da característica responsável pela imagem socialmente criada: é visível ou invisível, mutável ou imutável? Falo também de respeito distributivo, levando em conta que o “respeito” é um bem indivisível, produzido socialmente. Assim, se a imagem de certo grupo é negativa, essa distinção é produção social.

O problema jurídico novo é a disputa pela imagem pública. A reparação da injustiça, nesse caso, não é de caráter apenas individual, mas social. A luta pelo reconhecimento é uma disputa pelo reconhecimento da dignidade da pessoa aviltada ou ofendida pela maioria; e é também uma luta contra a injustiça, que consiste em aviltar um grupo inteiro. Dessa forma, não é uma luta pelo convencimento da maioria quanto ao valor de uma minoria, mas uma luta pelo pluralismo.

Naturalmente, o pluralismo e a tolerância têm limites: os intolerantes, por exemplo, podem às vezes ser contidos. Para que gays e lésbicas sejam reconhecidos e tolerados nesses termos, é preciso que não se confundam, sendo eles mesmos intolerantes ou colocando-se como um grupo que deseja dominar o espaço social. Esse é um dos temas subjacentes a vários discursos contrários ao reconhecimento de gays e lésbicas (percebidos como “corruptores”, traidores da vida social). Não se trata de dar a cada ser humano que se encaixa naquele grupo estigmatizado a oportunidade de simplesmente se desfazer do estigma. Trata-se de desestigmatizar todo o grupo, demonstrando que o estigma está fundado em preconceitos e discriminações inaceitáveis no espaço público democrático.

Os direitos subjetivos tradicionais eram assimilados à propriedade: a propriedade de si mesmo e de suas coisas compunham o núcleo da idéia de direito subjetivo. Ter direitos significava ser dono de si e de suas coisas. Por conseqüência, ter direitos significava dispor de proteção judicial contra atos que violassem a pessoa e a propriedade de cada um. De modo geral, isso era feito pela criminalização ou sanção civil de condutas, dando às vítimas a possibilidade de buscar a coisa, ou seu equivalente em dinheiro, a título de indenização. A garantia de um direito subjetivo dava-se pelos instrumentos da justiça comutativa (corretiva ou retributiva): devolver a alguém a coisa que lhe pertence, recompor o dano causado, aplicar uma pena proporcional à lesão infligida a outrem.

É natural que a defesa jurídica do direito de propriedade ou da liberdade se dê quando alguém já é proprietário ou livre. O não-proprietário e o escravo não têm o que defender. Para que passem a ter algo é preciso que afirmem um direito à distribuição das coisas e à liberdade. Nesses termos, a distribuição é um antecedente lógico de todos os direitos. Essa distribuição foi objeto de luta pelos direitos sociais nos séculos 19 e 20. Os direitos sociais foram, pois, direitos de distribuição ou de redistribuição.

Na distribuição não acontece de cada um ter uma coisa: cada um tem um direito a parte de alguma coisa, que é comum. Os direitos dos acionistas aos dividendos são exatamente dessa natureza. Ninguém dirá que os acionistas, enquanto não for feita a distribuição dos dividendos, não têm direito a eles. Enquanto não for feita a divisão, não têm direito a parte determinada dos dividendos, mas já têm direito aos dividendos. Tanto é assim que certos atos não podem ser praticados pela diretoria da sociedade por ferirem um direito (de conteúdo ainda indeterminado). Os acionistas gozam, por isso mesmo, de remédios que podem ser ditos “coletivos” ou “difusos”, porque têm direito a algo que permanece indiviso: enquanto o lucro não for “distribuído” cada acionista tem um direito seu e próprio a uma parte do fundo comum (o resultado positivo da atividade social).

Ao falar em direito de reconhecimento, estamos falando em algo além do respeito devido a cada indivíduo debaixo das regras democráticas universais de tolerância e liberdade. É certo que o fundamento último do direito ao reconhecimento, ou direito à diferença, como dizem alguns, é o direito subjetivo universal de liberdade. Tem razão Sérgio Paulo Rouanet, quando afirma que a defesa de certos grupos funda-se na defesa do direito dos indivíduos daquele grupo de conduzirem suas vidas, de serem tratados como seres humanos independentemente de pertencerem àquele grupo. As mulheres querem ser respeitadas como seres humanos tão completos e valiosos como os homens, e esse é o objeto final da defesa dos direitos das mulheres. Se para lhes dar total e tão grande respeito for preciso reconhecer as diferenças, assim se faça.

Nessa linha de raciocínio, pode-se chegar a dizer que a diferença jurídica é apenas instrumental para a igualdade moral, e que as diferenças específicas de gays e lésbicas permitem diferenciá-los, negando-lhes algum direito. Por isso, o direito ao reconhecimento pede que sejam levantadas, do ponto de vista social e jurídico, as valorações negativas dadas historicamente a certa identidade. Pertencer a um grupo de identidade não é o mesmo que pertencer a uma associação voluntária. Dessa forma, a tolerância para com os grupos de identidade é diferente da tolerância para com os grupos de opinião. Os grupos de opinião são aceitos porque não se obriga ninguém a pensar de uma forma ou de outra, e o confronto das opiniões pode gerar mais luzes e melhores decisões. Já dos grupos de identidade nem sempre é possível sair e entrar livremente: não se muda de etnia e orientação sexual como se muda de opinião.

Falar de “dissidentes” é uma coisa; de “diferentes”, outra. A tolerância estendida aos dissidentes é a mesma aplicada aos diferentes? No fundo há muitas semelhanças: a tolerância para com os dissidentes parte da compreensão de que a simples diferença de opinião não transforma ninguém em traidor ou assassino. Dessa forma, a simples diferença de opinião não justifica a eliminação do dissidente e nem a negativa de seus direitos civis ou políticos. Mas certas atitudes indicam que o discurso a sustentar a rejeição de direitos aos diferentes é o mesmo discurso que prega a eliminação dos diferentes. Estrangeiros ou homossexuais só poderiam ser aceitos como iguais se renunciassem a suas respectivas identidades. Para eles, sobrariam duas opções: ou assimilar-se (converter-se), ou esconder-se (disfarçar-se, ocultar-se). O direito de reconhecimento é um direito à manutenção de sua identidade, desde que esta não impeça a existência simultânea de outras identidades. É um desdobramento ou uma especialização da tolerância – a tolerância do diferente.

Talvez isso seja mais problemático do que parece, pois a diferença pode ser justamente aquilo que se quer preservar, e não abolir. É nesses termos que se dá a discussão do direito à diferença, o direito de reconhecimento, com dois significados distintos.

Em primeiro lugar, o direito à diferença pode significar exatamente o mesmo que os direitos fundamentais implicam como programa democrático: que nenhuma característica individual seja levada em conta pelo legislador e pelos tribunais para restringir os direitos de alguém, sempre que essa característica não se justifique como diferenciador suficiente. Diferenças de nascimento, de etnia, de gênero e assim por diante são proscritas do ordenamento jurídico. Tratar alguém de forma diferente nesses termos significa não reconhecer a pessoa individualmente pelo que ela é. O remédio jurídico para a falta de reconhecimento individual é a proibição de tais atos pela regra da isonomia. E vale a pena lembrar que essa isonomia é sempre criada socialmente – como se sabe, equiparar homens e mulheres em todos os sentidos é construção até certo ponto recente. Respeito à diferença quer dizer aqui, apenas, a proposital irrelevância da diferença, um intencional deixar de lado a diferença empírica.

Em segundo lugar, o reconhecimento pode significar a retirada da valoração negativa de certa identidade, seja para afirmá-la positivamente, seja, sobretudo, para afirmar que essa identidade, no que diz respeito à vida social e político-jurídica, é irrelevante. Nesses termos, não basta o indivíduo ter direito de ser tratado como todos os outros; ele precisa provar – por esforços heróicos – que é exatamente igual aos outros. Sob essa segunda perspectiva, passa a ser seu direito ver sua diferença específica não desrespeitada publicamente. O direito ao reconhecimento, nesse momento, adquire o aspecto distributivo que mencionei, já que essa identidade não é exclusiva de um indivíduo, mas pertence a um grupo. É esse bem comum (uma identidade) que merece o respeito público, que não significa nem admiração nem concordância. Ninguém é obrigado a se converter aos cultos afro-brasileiros, ao islão ou ao cristianismo para respeitá-los publicamente. Assim como o direito não obriga ao amor, o respeito ao pluralismo social não se confunde com o direito à mudança da convicção alheia.

Disse Kant, de modo muito inspirado, que o amor universal não pode significar afeição ou afeto universal, mas pode significar e significa respeito universal. O direito ao reconhecimento significará, então, o respeito a certa identidade coletiva. Martha Minow usou um título muito significativo em seu trabalho sobre os direitos das minorias (1997): Not only for Myself. Os direitos requeridos sob essa forma de reconhecimento não são exclusivamente individuais, não são apenas para mim. O reconhecimento que se exige, sob a forma de direito, é para “qualquer um”, é universal.

Ora, essa construção da diferença de modo positivo – ou a desconstrução da diferença negativa – estabelece um conflito em dois sentidos: no sentido de que a distribuição do valor das identidades precisa ser questionada e no sentido de que a identidade de cada grupo é algo que se distribui universalmente entre todos seus membros.

No primeiro sentido, o remédio à discriminação, passada e presente, deve incorporar-se em práticas que visem alterar, para o futuro, as condições históricas herdadas: a divulgação de informações e o ensino da tolerância passam a ser direitos de todos e a beneficiar os grupos submetidos tradicionalmente à violência física e moral e tradicionalmente tratados, como diz o direito constitucional norte-americano, como “classe suspeita” (Gerstmann, 1999, passim). O remédio à discriminação passada não é um privilégio, ou direito especial de um grupo, mas sim o remédio para uma injustiça especial da qual o grupo é vítima. Sem esse remédio, a tendência seria a perpetuação de situações históricas de injustiça.

No segundo sentido, a violência feita a alguém por ser membro do grupo pode ser considerada violência ou ofensa a todos. Ou seja, se a integridade física ou moral de um membro do grupo está sob risco pelo fato de ele pertencer a esse grupo, sua segurança e o respeito que lhe é devido se convertem em bem comum (indivisível), que pertence a todos. A intolerância, uma vez aceita na vida social, não conhece limites, criando-se um círculo vicioso de exclusões. Por isso, as ações civis públicas também aqui se revelam importantes, já que, por definição, beneficiam a todos os membros de uma classe ou grupo. A distribuição se dá pelo próprio resultado do processo: todos os membros do grupo se beneficiam de um resultado positivo, diminuindo o risco de exposição dos mais vulneráveis.6

05

O STJ e o reconhecimento de homossexuais

Diversos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça mostram o que é o direito ao reconhecimento no sentido da tolerância, da liberdade negativa e da não-discriminação. A decisão do Recurso Especial 154.857/DF, publicada em 26 de outubro de 1998, talvez seja a mais exemplar (relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro). Haviam impugnado a capacidade de um homossexual testemunhar, alegando entre outras coisas seu “desvio ético” (sic). O STJ aceita o recurso para restabelecer a capacidade da testemunha. O argumento do STJ é tipicamente de tolerância e não-discriminação: a orientação sexual de alguém não interfere em sua capacidade de testemunhar, e por isso não pode ser justificativa para não ouvi-la. “Assim se concretiza o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San José de Costa Rica”.

O importante na decisão é que a discriminação por orientação sexual é considerada incompatível com a Constituição da República (por ser violadora dos direitos fundamentais) e com o Pacto Interamericano de Direitos Humanos (como violadora dos direitos humanos, na órbita internacional). Significa que uma regra constitucional impede que a orientação sexual seja tomada como critério para diferenciar os cidadãos.7  Chamo apenas a atenção, nesse caso, para o fato de as instâncias locais da justiça terem sido capazes de invocar a orientação sexual da testemunha como um “desvio ético”, e só na instância especial esse “desvio” ter sido declarado irrelevante.

Outros casos tratam do reconhecimento de direito a partilha ou meação, em suma, ao reconhecimento de uma sociedade de fato entre companheiros de mesmo sexo. Aqui a questão é ligeiramente diferente. Pode-se dizer que há uma forma de reconhecimento das uniões de mesmo sexo, pois utiliza fundamento (a existência de um esforço comum na construção do patrimônio) idêntico ao adotado décadas atrás, quando o vínculo do matrimônio era considerado indissolúvel e a lei impedia mais de um casamento. Naquela altura, a convivência entre heterossexuais à moda de casamento (more uxorio) não podia ser aceita formalmente, mas os tribunais davam aos parceiros direitos patrimoniais recíprocos. Era um meio caminho para a aceitação da sociedade conjugal. Ao recorrer a argumento equivalente, o STJ abre também uma perspectiva no reconhecimento da união. Mas há um importante limitador: trata-se do reconhecimento das questões patrimoniais, e não de um reconhecimento positivo, como disse Sandel (1996), que inclua as relações afetivas estabelecidas entre parceiros do mesmo sexo.

Esse reconhecimento está implícito, porém, no Recurso Especial 148.897/MG. Ali o Tribunal reconhece que o parceiro tem direito à partilha de um bem comum havido durante a convivência, mas nega ao sobrevivente a indenização – pedida contra o pai do falecido – por dano moral por ter suportado sozinho os encargos da doença do morto. Por essa ordem de idéias, vê-se que o Tribunal aplicou raciocínio igual ao que aplicaria a um casal de heterossexuais: o marido ou a mulher que sobrevive, no atual sistema jurídico brasileiro, não é indenizado pelas famílias por ter sofrido com a doença do cônjuge falecido. É que essa convivência, “na saúde e na doença”, faz parte do “estado” conjugal, segundo os termos até hoje aceitos. Por isso, ao partilhar o bem, mas negar a indenização, o STJ deu mais um passo na aproximação da convivência gay e lésbica à convivência de parceiros de sexos diferentes.

Conclusão – o que, afinal, é devido aos gays e lésbicas como direito fundamental?

Questões de direito precisam ser resolvidas de tal maneira que se possa dizer o que é o “seu de cada um”. Quando se fala dos direitos sociais, para que haja um “seu de cada um” é preciso que se defina, em primeiro lugar, o que é a parte comum, da qual cada um terá o “seu”. Em sociedades capitalistas foi dissolvida a propriedade comum e tudo foi transformado em objeto de apropriação individual. Nessas circunstâncias, tornou-se necessário impor a contribuição de todos – de forma proporcional – à formação de fundos comuns: por meio de impostos e contribuições sociais. Desses fundos comuns sai, ou deve sair, a provisão dos direitos sociais – saúde, educação, aposentadorias e assim por diante. Vivemos hoje um período de crítica a esse modelo de constituição de fundos comuns, crítica orientada tanto à ineficiência de sua gestão (em nome da privatização), quanto à possibilidade mesma de sua existência (em nome da concorrência entre agentes econômicos).

Parece-me certo, de todo modo, que a satisfação dos direitos sociais ocorreu, do ponto de vista do direito, por estes dois mecanismos: criação de fundos e distribuição de fundos comuns. Esses fundos permitiram “comodificar” (reificar, transformar em mercadoria ou crédito) as expectativas de acesso aos resultados sociais da produção econômica. Ao mesmo tempo, possibilitaram medir (ainda que imperfeitamente) os acessos permitidos a tais fundos. Ao “comodificar” o acesso, o sistema jurídico criou tensões muito específicas. Introduziu um gestor do fundo – o Estado – que parece ser na realidade o “dono” do fundo. Isso foi determinante para permitir a universalização dos fundos, impedindo que fossem apenas setoriais ou corporativos. Ao mesmo tempo desvinculou, na percepção dos juristas, as duas pontas do sistema: a contribuição e a distribuição. Parece que tais fundos podem existir sem a contribuição de ninguém, e os conflitos jurídicos de contribuição são discutidos em uma esfera, enquanto os conflitos de distribuição são discutidos em outra. A jurisdição tributária regula apenas as relações do Estado com os contribuintes (muito particularmente, claro, o capital) e adota, nessa esfera, uma atitude claramente restritiva e protetiva do contribuinte.8  Os conflitos pela distribuição processam-se de forma independente, e permitem atitudes generosas para com o beneficiário. Ao final, as contas tenderão a não fechar.

Claus Offe (1991) observa que há aí evidências de regras distintas: uma é a regra da solidariedade, e outra, a do interesse. No que diz respeito aos direitos sociais há uma “comodificação” que permite separar a solidariedade do interesse. O interesse aparece como se não tivesse contrapartida, e se afirma, pois, à moda do direito civil individual. O direito civil individual, mais ou menos como os direitos absolutos de Dworkin, é irresponsável, diz Offe (p. 84), pode ser exigido pelo titular, sem que ele dê contrapartida a ninguém. O direito social clássico, por seu turno, pressupõe que há solidariedade e que existe a contrapartida de um fundo social de solidariedade: sua concessão depende de haver esse fundo e das respectivas regras de acesso.

O direito ao reconhecimento distingue-se do direito social em uma esfera importante. Pode ser de difícil “comodificação”. O reconhecimento, como diz Fraser (1997), não visa reparar uma injustiça relativa a bens materiais, mas a um bem imaterial (moral, se quiser), que é o respeito, a imagem pública de uma pessoa e de um grupo. Esse direito ao reconhecimento dificilmente se estabelece com a criação de um fundo de indenização, pura e simplesmente.

Por isso, conforme mencionei, o direito ao reconhecimento se refere a um bem, o respeito recíproco e universal, que é o produto comum (social) da vida em sociedade. A imagem social de um grupo, como bem comum, não pode ser distribuída de forma mercantil. É distribuída universal e igualmente e, portanto, assemelha-se aos direitos absolutos de Dworkin e aos direitos irresponsáveis de Offe.

Quem pede direito ao reconhecimento pede que a distribuição da identidade social não seja hierarquizante em função do traço de identidade específico. Pede que todas as identidades sejam tratadas jurídica e politicamente como equivalentes. Trata-se de afirmar o direito a ser diferente, e a que essa diferença se torne irrelevante. É uma combinação de universalismo moderno e iluminista, com pluralismo: reivindicação simultânea de universalismo e percepção social de queer theory. A dissolução das identidades sexuais, a afirmação de toda sexualidade, é feita em nome do universal. Rouanet (2001, p. 89) lembra que o universalismo é crítico justamente porque impede que as formas paroquiais de pensamento e julgamento pretendam uma universalidade que não podem ter. Assim, diz ele, quem defende o universalismo “condena o sexismo, não por se identificar com o estatuto feminino particularista, mas por negar a validade de todos os estatutos particulares e por considerar que esses estatutos são quase sempre criações imaginárias, destinadas a privar os indivíduos empíricos de suas prerrogativas como titulares de direitos universais”.

Essa pretensão pode ser protegida pelo direito, por exemplo, quando se demonstra, em casos particulares, como pessoas gays e lésbicas são inferiorizadas no tratamento que recebem do sistema jurídico: apenas em função do sexo de seus parceiros eróticos e afetivos, vêem-se privadas de benefícios estendidos a outros cidadãos, como o simples direito de testemunhar, o direito de contribuir para a previdência social, de obter deduções do imposto de renda e assim por diante. Mais do que isso, pode-se dizer que os homossexuais têm direito a ser tratados com respeito universal nas manifestações públicas de todos, e assim como já não se toleram discursos que incitem ao ódio entre grupos sociais, o direito também serve para coibir as manifestações públicas ultrajantes. Não se trata de falar da criminalização do tratamento ofensivo dispensado à pessoa gay ou lésbica, mas de crime contra a paz pública. Essa espécie de crime tem como vítima a coletividade, pois atenta contra a convivência democrática.

Em resumo, muito pode ser dito e feito pelo direito; mas, dado o caráter ainda oneroso para os indivíduos publicamente inferiorizados, é juridicamente necessário, em muitas oportunidades, que as ações sejam tomadas por substitutos processuais. E assim também porque a inferiorização de que se trata tem um caráter difuso (atinge a qualquer um) e antidemocrático.

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Notas

1. O assunto mereceu tratamento extenso na obra de Erving Goffman (1975). Para ele, o estigma é fenômeno social, um atributo depreciativo que permite preestabelecer certas relações. Os estigmatizados podem ser divididos inicialmente em dois grupos: aqueles cujo estigma é evidente, e por isso se dizem pessoas desacreditadas; e aqueles cujo estigma não é imediatamente perceptível, ditas pessoas desacreditáveis.

2. Vale a pena lembrar a tipologia do tratamento discriminatório elaborada por Kenji Yoshino (1999). A discriminação desrespeita as identidades, forçando os grupos diferentes a se converter ou a se esconder. Converter-se (converting) é uma exigência explicitamente antidemocrática em várias circunstâncias e diz respeito àquelas identidades que resultam de livre aceitação de pertença a um grupo (religioso, por exemplo). Disfarce (passing) é outra exigência, que se presume compatível com alguma tolerância: o indivíduo pode continuar com sua identidade, mas não pode expô-la publicamente (a liberdade de consciência, não acompanhada de liberdade de culto público, por exemplo). Aqui, ao se ocultar (passing) o indivíduo pode continuar a ser o que é, mas publicamente passa pelo que não é (o traço de identidade não é visível). Por fim, o indivíduo pode não ser obrigado a disfarçar sua identidade, mas a encobri-la (covering): é permitido reter sua identidade e até torná-la pública, mas não é permitido orgulhar-se dela, exibi-la ou ostentá-la. Segundo Yoshino é o caso do negro obrigado a usar um corte de cabelo convencional entre brancos, a não ostentar um corte black power.

3. Aqui não é o lugar adequado tampouco para colocar em dúvida a própria fundamentação religiosa do tabu. Como diversos teólogos têm dito, é um sinal evidente de má-fé que as religiões escolham seletivamente o que sobrevive de sua própria tradição e queiram impor essa seleção a todos. Assim, há não poucos grupos inspirados nos textos sagrados do judaísmo e do cristianismo que ignoram as obrigações de sacrifícios animais, os ritos de limpeza e de segregação de doentes e mulheres, os tabus alimentares e assim por diante. Por qual critério continuariam a ser abomináveis as relações entre pessoas do mesmo sexo e não os tabus alimentares?

4. No Código de direito canônico de 1917, as mesmas regras estavam no cânon 1.068, parágrafos 1o e 3o.

5. Iris M. Young (1996) discordaria dessa análise. Para ela, a distribuição ocorre com bens que podem ser individualizados (renda, oportunidades etc.), o que não é o caso do respeito, e a política de identidades não visa distribuir coisa alguma, mas desfazer sistemas de opressão (a distribuição desfaria a exploração?). Mesmo assim, creio que se pode falar de distribuição se imaginarmos que a imagem de grupos sociais constitui um produto social, algo comum (indivisível) e que pode ser mudado. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta a honra como exemplo de objetos que se distribuem de maneira proporcional. É certo que a honra em uma sociedade
não­-­igualitária é diferente do respeito em uma sociedade democrática; mas o respeito existe justamente na medida em que é universal e igualmente distribuído. Tratar o tema sob a forma de justiça distributiva também me parece importante, por ser juridicamente relevante: as relações comutativas permitem soluções jurídicas de adjudicação simples e bilateral, enquanto as relações distributivas exigem soluções de adjudicação plurilateral ou administrativa.

6. A ação civil pública tem também problemas jurídico-políticos específicos, dos quais aponto apenas dois: (1) pode ser usada de maneira paternalista, pois possui alguns fundamentos claramente paternalistas, como a idéia de que os grupos por ela defendidos são hipossuficientes e necessitam de um representante, porque são incapazes de se defender a si mesmos; e (2) pode ser desmobilizadora, ao estimular o efeito carona, ou comportamento predatório, permitindo que um beneficiário da ação não arque com os custos. Esses dois “defeitos” da ação devem ser lembrados pelos que dela fazem uso, mas é inquestionável que problemas distributivos precisam de remédios judiciais específicos, como é a ação civil pública.

7. O argumento central do trabalho de Roger R. Rios (2000) é exatamente nessa linha: a despeito de não constar expressamente na Constituição, a discriminação por orientação sexual é inconstitucional e violadora dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

8. A pesquisa de Marcus Faro de Castro (1997) mostra que em 75,57% dos conflitos entre autoridades públicas e particulares as decisões do Supremo Tribunal Federal foram favoráveis aos particulares, o que lhe permite dizer que “o STF, mesmo em sua atuação rotineira, tem julgado contrariamente à prevalência das iniciativas do poder público, o que inclui a implementação de políticas públicas” (p. 153).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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José Reinaldo De Lima Lopes

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, Brasil.