O Conselho de Direitos Humanos nasceu sob o signo da provisoriedade, pois apenas no prazo de um ano dever-se-á decidir sobre o futuro do sistema de relatores especiais, do procedimento de queixas individuais perante os mecanismos extra-convencionais de proteção, e sobre a Subcomissão para a Promoção e a Proteção de Direitos Humanos. Algumas decisões, contudo, já foram tomadas, como a criação de um “mecanismo universal de revisão periódica” que deve servir para estudar a situação dos direitos humanos em todos os países. Ainda, algumas mudanças deverão ser implementadas no que se refere ao Conselho. Para assegurar às ONGs o seu estatuto consultivo, deverão ser emendados os artigos 68 e 71 da Carta. Dever-se-á reconhecer, ademais disso, a todos os sete Comitês estabelecidos por tratados internacionais o estatuto de observadores permanentes perante o Conselho de Direitos Humanos.
A segunda Cúpula de Chefes de Estado, celebrada nos moldes da Assembléia Geral das Nações Unidas, aprovou em 16 de setembro de 2005 a criação de um “Conselho de Direitos Humanos” que se encarregará de “promover o respeito universal pela proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, sem distinções de nenhum tipo e de forma justa e equitativa”; estudar as situações de “infrações graves e sistemáticas” dos direitos humanos, assim como “fazer recomendações a respeito”; e promover “a coordenação eficaz e a incorporação dos direitos humanos à atividade geral do sistema das Nações Unidas”.1
No entanto, a falta de acordo impediu que fossem mais esclarecidos o mandato, as modalidades, as funções, o tamanho, a composição, a qualidade de membro, os métodos de trabalho e os procedimentos do novo Conselho de Direitos Humanos. Os Chefes de Estado confiaram ao Presidente da Assembléia Geral a tarefa de continuar as negociações sobre todos esses aspectos.2 Tais negociações culminaram, pelo menos parcialmente, em 15 de março de 2006, com a adoção de uma importante resolução da Assembléia Geral, que estabelece o primeiro modelo processual do Conselho de Direitos Humanos3 sobre a base de um acordo acerca de parâmetros mínimos.
Entretanto, as negociações deverão prosseguir porque o Conselho de Direitos Humanos nasce sob o signo da provisionalidade. Dispõe-se agora de um ano para se decidir o que fazer com três questões-chave herdadas da Comissão de Direitos Humanos. O sistema de relatores especiais, o procedimento de queixas individuais perante os mecanismos extraconvencionais de proteção, e o futuro da Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos.4 Além disso, anuncia-se que a Assembléia Geral revisará o estatuto do Conselho de Direitos Humanos “aos cinco anos de sua criação”.5
Segundo a resolução finalmente adotada, o Conselho de Direitos Humanos terá sua sede em Genebra em substituição à Comissão de Direitos Humanos.6 Diferentemente desta, constitui-se como órgão subsidiário da Assembléia Geral à qual informará anualmente, formulando recomendações a respeito da promoção e proteção dos direitos humanos.
Para além da ambigüidade da expressão “formular recomendações”, fica claro que estas se dirigirão unicamente à Assembléia Geral, o que leva a se lamentar a exclusão de toda relação direta entre o novo Conselho de Direitos Humanos e o Conselho de Segurança. Neste sentido, a própria resolução da Assembléia Geral é contraditória porque reconhece que existe uma estreita relação entre as violações massivas dos direitos humanos e a manutenção da paz e segurança internacionais.7
Afastando-se das recomendações que lhe haviam sido formuladas pelo Grupo de alto nível sobre as ameaças, os desafios e a mudança,8 O Secretário Geral recomendou que a Comissão de Direitos Humanos (53 Estados) fosse substituída por um novo Conselho de Direitos Humanos menor e de caráter permanente, cujos membros seriam eleitos por maioria de dois terços da Assembléia Geral.9 Desta maneira, a proposta do Secretário Geral se alinhou com as preferências manifestadas pelos Estados Unidos e por alguns de seus aliados.
Finalmente decidiu-se que o Conselho de Direitos Humanos estará composto por 47 Estados, respeitando-se uma distribuição geográfica equitativa.10 Serão eleitos por períodos de três anos em votação secreta11 e pela maioria dos membros da Assembléia Geral. Não haverá Estados permanentes no Conselho de Direitos Humanos, pois nenhum membro poderá optar pela reeleição imediata depois de dois períodos consecutivos.
Embora a participação no Conselho de Direitos Humanos passe a estar formalmente aberta a todos os Estados-membros das Nações Unidas, a dita resolução inova ao introduzir três mudanças que tentam impedir os problemas de politização excessiva na composição da antiga Comissão de Direitos Humanos. Entretanto, essas mudanças parecem ter uma eficácia duvidosa.
Em primeiro lugar, ao escolher os membros do Conselho de Direitos Humanos “os Estados-membros deverão levar em conta a contribuição dos candidatos à promoção e proteção dos direitos humanos e às promessas e compromissos voluntários que tenham feito a respeito”.12 Esta cláusula está redigida em termos excessivamente ambíguos,13 pois é o resultado de uma longa negociação no curso da qual foram propostos critérios mais objetivos e definidos, como o de exigir dos Estados candidatos a ratificação dos sete tratados básicos de direitos humanos.
Em segundo lugar, prevê-se que a Assembléia Geral poderá suspender por maioria de dois terços todo membro do Conselho “que cometa violações graves e sistemáticas dos direitos humanos”.14 Embora a cláusula seja inovadora, sua eficácia prática será reduzida porque deixa-se a cargo de uma maioria qualificada da Assembléia Geral – muito difícil de conseguir – a determinação de que um Estado tenha ou não cometido violações sistemáticas dos direitos humanos. Seria preferível que esta determinação fosse confiada ao ditame de um especialista independente (relator especial por país), o que evitaria a ineludível politização que uma votação dessa natureza produzirá no seio da Assembléia Geral.
Em terceiro lugar, os membros do Conselho “deverão defender as mais altas exigências na promoção e proteção dos direitos humanos, cooperar plenamente com o Conselho e ser examinados com vistas ao mecanismo de exame periódico universal durante seu período como membro”.15 Na realidade esta cláusula é redundante pois impõe aos Estados-membros do Conselho de Direitos Humanos as mesmas obrigações de comportamento genéricas que já tinham todos os Estados pelo fato de serem Membros da Organização das Nações Unidas. Além disso, como se destaca mais adiante, o mecanismo de exame periódico corre o risco de se converter em puro exame retórico realizado entre pares (ou seja, entre os próprios Estados).
Embora houvesse a pretensão de que o Conselho de Direitos Humanos tivesse a categoria de órgão principal e permanente da Organização, com a mesma visibilidade política do Conselho de Segurança, do ECOSOC ou da Assembléia Geral, as extensas negociações levaram a rebaixar sua importância. Com efeito, já assinalamos que o Conselho de Direitos Humanos se configura como um órgão subsidiário da Assembléia Geral.16 Tampouco será permanente pois “se reunirá periodicamente ao longo do ano e celebrará no mínimo três períodos de sessões ordinárias por ano – incluindo um período de sessões principal –, com uma duração total não inferior a dez semanas”.17 Além disso, como já ocorria com a Comissão de Direitos Humanos, o Conselho de Direitos Humanos poderá celebrar períodos extraordinários de sessões, nesta ocasião “por solicitação de um membro do Conselho, com o apoio de um terço dos membros”.18
Como já havia sido adiantado pela Cúpula de Chefes de Estado, a Assembléia Geral reitera agora que o Conselho de Direitos Humanos “será responsável por promover o respeito universal pela proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, sem distinções de nenhum tipo e de uma maneira justa e equitativa”.19 Mais precisamente, o Conselho de Direitos Humanos se ocupará de:
• as situações em que se infrinjam os direitos humanos, incluídas as infrações graves e sistemáticas;
• coordenar e incorporar os direitos humanos à atividade geral do sistema das Nações Unidas;
• impulsionar a promoção e proteção de todos os direitos humanos, inclusive do direito ao desenvolvimento;
• promover a educação em direitos humanos;
• prestar serviços de assessoria por solicitação dos Estados interessados;
• servir de fórum para o diálogo sobre questões temáticas relativas a todos os direitos humanos;
• contribuir para o desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos;
• promover o cumprimento das obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos;
• facilitar o acompanhamento dos objetivos e compromissos sobre direitos humanos emanados das conferências e cúpulas das Nações Unidas;
• prevenir as violações dos direitos humanos;
• responder com prontidão às situações de emergência em matéria de direitos humanos; e
• supervisionar o trabalho do Escritório da Alta Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas.20
Deve-se lembrar que todas estas funções já eram desempenhadas de jure ou de facto pela Comissão de Direitos Humanos; portanto, o valor agregado do Conselho de Direitos Humanos limita-se à sua previsível maior visibilidade política (ao ser um órgão subsidiário da Assembléia Geral em vez de depender do ECOSOC) e ao seu maior número de períodos de sessões ordinárias (pelo menos três por ano). As sessões ordinárias irão supor também um incremento de seis a dez semanas por ano.
A pedra de toque segundo a qual o Conselho de Direitos Humanos examinará o cumprimento por parte de cada Estado de suas obrigações e compromissos em matéria de direitos humanos será um “mecanismo universal de revisão periódica”. Segundo a resolução que aqui se comenta, o citado mecanismo estará “baseado em informação objetiva e fidedigna”, e será realizado pelos próprios Estados-membros do Conselho de Direitos Humanos. Além disso, o procedimento garantirá “a universalidade do exame e a igualdade de tratamento em relação a todos os Estados”; e será baseado num “diálogo interativo, com a plena participação do país de que se trate e levará em consideração suas necessidades em relação ao fomento da capacidade”.21
O mecanismo assim desenhado não resolve quatro aspectos básicos:
Em primeiro lugar, não está indicado como será medido o cumprimento por parte dos Estados de suas obrigações em matéria de direitos humanos. Teria sido lógico que se indicasse, pelo menos, que o exame fosse realizado sobre a base das obrigações emanadas da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das obrigações específicas contraídas por cada Estado mediante a ratificação dos tratados de direitos humanos. Dessa maneira teria sido respeitada uma prática bem consolidada nos trabalhos da Comissão de Direitos Humanos.
Em segundo lugar, tampouco fica claro como se proporcionará ao Conselho de Direitos Humanos a “informação objetiva e fidedigna” sobre a situação real em cada país. Por exemplo, a Alta Comissária sugeriu em seu plano de ação que essa informação fosse proporcionada por seu próprio Escritório, mas nos moldes de um “informe temático mundial anual sobre direitos humanos”.22
Na nossa opinião, seria preferível que tal informação estivesse contida num relatório anual sobre a situação dos direitos humanos em todos os Estados-membros da Organização, que este fosse apresentado perante o Conselho de Direitos Humanos por uma comissão de especialistas independentes23 (quem sabe a própria subcomissão) e que trabalhasse em estreita coordenação com o sistema de relatores especiais e grupos de trabalho atualmente existente nos moldes da Comissão de Direitos Humanos, assim como com os órgãos de proteção estabelecidos em tratados internacionais de direitos humanos.
A citada comissão deveria contar também com o apoio técnico não só do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, mas também dos demais organismos especializados24 e subsidiários25 do sistema das Nações Unidas, assim como dos departamentos da Secretaria26 que gozam de uma ampla presença em todos os países do mundo.Um relatório anual elaborado desta forma evitaria definitivamente a seletividade entre países, garantiria um exame de todos os Estados em regime de igualdade e avançaria substancialmente na coordenação real de todo o sistema das Nações Unidas em matéria de direitos humanos.
Em terceiro lugar, a resolução mencionada limita-se a dizer que o exame será realizado “pelos próprios Estados-membros do Conselho de Direitos Humanos”, mas não especifica se o farão em sessão pública (submetida ao escrutínio dos observadores credenciados, incluídas as organizações não governamentais de direitos humanos) ou privada. Se, na prática, o Conselho de Direitos Humanos se inclinasse à realização desse exame crucial a portas fechadas, o procedimento seria uma mera repetição do tristemente célebre “procedimento 1503”, que havia sido estabelecido pelo ECOSOC em 1970 para “dialogar” a portas fechadas com os Estados violadores dos direitos humanos sem nenhum resultado efetivo.
Por último, em quarto lugar, o mecanismo projetado insiste que o exame seja feito com a finalidade de identificar as necessidades de cada Estado em relação ao fomento de sua capacidade institucional, ao invés de identificar o grau de cumprimento real de suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Desse modo, a comunidade internacional estaria renunciando a um mecanismo de fiscalização internacional, que já havia sido assumido pela Comissão de Direitos Humanos em sua prática, apesar de imperfeita, por meio do sistema de relatores temáticos e de relatores por país.
O Conselho de Direitos Humanos projetado na resolução 60/251 da Assembléia Geral não preserva suficientemente o acervo de experiências positivas acumuladas pela Comissão de Direitos Humanos ao longo de sua dilatada existência de mais de sessenta anos. Os próximos anos deveriam ser aproveitados para revisar o estatuto do Conselho de Direitos Humanos de maneira a recolher e melhorar esse acervo em quatro aspectos:
em primeiro lugar, a Comissão de Direitos Humanos desenvolveu uma extraordinária atividade em matéria de codificação e desenvolvimento progressivo do Direito Internacional de Direitos Humanos, que o futuro Conselho de Direitos Humanos deveria continuar e até superar. Devemos lembrar que apenas em 2005 a Comissão de Direitos Humanos havia concluído com êxito a codificação dos “Princípios e diretrizes básicos sobre o direito das vítimas de violações manifestas das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário de interpor recursos e obter reparações”.27 A Comissão de Direitos Humanos também tomou nota do “Conjunto de princípios para a proteção e a promoção dos direitos humanos mediante a luta contra a impunidade”, como diretrizes para ajudar os Estados a desenvolver medidas efetivas para combater a impunidade.28 Por último, um Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos aprovou em 23 de setembro de 2005 o projeto de “Convenção Internacional para a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados”.29
Espera-se que o Conselho de Direitos Humanos conceda prioridade à aprovação definitiva desse importante projeto de convenção contras os desaparecimentos, pois entre suas funções figura a de formular recomendações à Assembléia Geral “para continuar desenvolvendo o direito internacional na esfera dos direitos humanos”.30
Contudo, é preocupante que a res. 60/251 não preserve a atual arquitetura codificadora da Comissão de Direitos Humanos, na qual a Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos desempenha um papel vital ao atuar como o órgão de especialistas independentes que, em estreito contato com as necessidades da sociedade civil, deve assessorar o órgão intergovernamental (antes a Comissão de Direitos Humanos, agora o Conselho de Direitos Humanos) sobre as prioridades e as matérias a serem codificadas e desenvolvidas progressivamente no campo do Direito Internacional de Direitos Humanos.31 A fraca referência de que o Conselho de Direitos Humanos manterá um “assessoramento especializado”32 é claramente insuficiente para assegurar a continuidade dos trabalhos da Subcomissão.
Em segundo lugar, não se deveria submeter à discussão a continuidade do valioso sistema de relatores especiais e grupos de trabalho (atualmente são 17 relatores por país e 31 relatores temáticos) da Comissão de Direitos Humanos, nem, tampouco, o procedimento de queixas individuais pacientemente construído no âmbito extraconvencional de proteção. Esse procedimento foi criado ao calor da prática dos diferentes relatores especiais e grupos de trabalho, especialmente os temáticos, inspirando-se na atuação eficaz do Grupo de Trabalho sobre as Detenções Arbitrárias. Perante a falta de acordo entre os Estados prolongou-se a negociação por mais um ano,33 fazendo com que a incerteza continue a pairar sobre estes aspectos nevrálgicos do sistema extraconvencional de proteção.34
Em terceiro lugar, depois de árduas negociações, a Assembléia Geral reconhece a importância crucial das ONGs em matéria de direitos humanos. Dessa forma, elas continuarão desfrutando pelo menos das mesmas facilidades de acesso ao futuro Conselho de Direitos Humanos que agora têm perante a Comissão de Direitos Humanos. Até agora o estatuto consultivo vinculava as ONGs ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) por imperativo dos Artigos 68 e 71 da Carta ONU. Os aspectos práticos eram regulados conforme o estabelecido na resolução 1996/31 do ECOSOC.35
Subsiste ainda o problema referente à técnica legislativa empregada pela Assembléia Geral em sua res. 60/251, que está em manifesto desacordo com o estabelecido nos Artigos 68 e 71 da Carta ONU. Com efeito, ao se configurar o Conselho de Direitos Humanos como um órgão subsidiário da Assembléia Geral, será necessário modificar essas disposições da Carta para estender o estatuto consultivo das ONG à própria Assembléia Geral e seus órgãos subsidiários. Em qualquer caso, as Nações Unidas necessitam da legitimação da sociedade civil e, portanto, seus representantes genuínos devem ser incorporados com urgência aos trabalhos não só da Assembléia Geral e por extensão de seu novo Conselho de Direitos Humanos, mas também do Conselho de Segurança.
Por último, em quarto lugar, o grande esquecido do novo Conselho de Direitos Humanos – diferentemente, por exemplo, das instituições nacionais de direitos humanos – é o sistema convencional de proteção de direitos humanos. De fato, na res. 60/251 faz-se apenas uma referência a este importante sistema de proteção e em sentido negativo: o mecanismo universal de revisão periódica “não repetirá o trabalho dos órgãos criados em virtude de tratados”.36
Ao contrário, seria altamente desejável que na futura revisão do estatuto do Conselho de Direitos Humanos fosse contemplada a coordenação de seus trabalhos com o dos diversos Comitês. Nessa linha, seria desejável que se estabelecessem relações institucionais permanentes de trabalho que incluíssem o reconhecimento de um estatuto de observadores permanentes perante o Conselho de Direitos Humanos para os sete Comitês estabelecidos em tratados, já que ambos os sistemas de proteção (convencional e extraconvencional) são complementares e convergem no mesmo objetivo: a proteção internacional dos direitos da pessoa humana.
É evidente que o Conselho de Direitos Humanos já nasceu com um caráter provisório, pois após o prazo de um ano deverá decidir a respeito de três questões básicas herdadas da Comissão de Direitos Humanos, a saber: o futuro do sistema de relatores especiais, do procedimento de queixas individuais perante os mecanismos extra-convencionais de proteção e da Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. Além disso, tanto a Assembléia Geral como o próprio Conselho de Direitos Humanos deverão revisar o estatuto deste último dentro de cinco anos.
Conseqüentemente, nos próximos anos devem-se aproveitar estas oportunidades para conseguir que:
• o Conselho de Direitos Humanos tenha a categoria de órgão principal e permanente da Organização; contenha uma composição universal; e desfrute da mesma visibilidade política que o Conselho de Segurança, do ECOSOC ou da Assembléia Geral.
• o Conselho de Direitos Humanos e o Conselho de Segurança tenham uma relação de trabalho direta, horizontal e fluida, em virtude do reconhecimento da estreita relação existente entre as violações massivas dos direitos humanos e a manutenção da paz e da segurança internacionais.
• transitoriamente, enquanto não for alcançado o objetivo de que o Conselho de Direitos Humanos tenha uma composição universal, deverá ser exigido dos Estados candidatos que tenham ratificado, pelo menos, sete tratados básicos de direitos humanos e seus correspondentes protocolos facultativos.
• a determinação de se um Estado cometeu ou não violações sistemáticas dos direitos humanos, para os efeitos de sua suspensão como Estado-membro do Conselho de Direitos Humanos, deveria ser confiada ao ditame de um especialista independente (relator especial por país).
Quanto ao “mecanismo universal de revisão periódica”, dever-se-ia especificar que:
• a avaliação de cada Estado se realizará sobre a base das obrigações emanadas da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos e das obrigações específicas contraídas por meio da ratificação dos tratados de direitos humanos.
• a fonte de informação será o relatório anual sobre a situação dos direitos humanos em todos os Estados-membros da Organização, a ser preparado sob a autoridade de uma comissão de especialistas independentes, que poderia ser a própria Subcomissão convenientemente renovada.
• o Conselho de Direitos Humanos fará sessões em reunião pública, submetido ao escrutínio das organizações não governamentais de direitos humanos.
• o objetivo principal da revisão periódica entre pares será avaliar a situação dos direitos humanos em cada país e, subsidiariamente, assinalar medidas idôneas de capacitação técnica e desenvolvimento institucional.
Adicionalmente, o Conselho de Direitos Humanos deve esclarecer as dúvidas sobre quatro aspectos essenciais:
Primeiro, a codificação e desenvolvimento progressivo do Direito Internacional de Direitos Humanos. Deve ser aprovado imediatamente o projeto de Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados. Também devem ser acelerados os trabalhos de codificação do projeto de Declaração Universal sobre os Direitos Humanos dos Povos Indígenas e do projeto de protocolo facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Em relação ao futuro, deve-se preservar a arquitetura codificadora herdada da Comissão de Direitos Humanos, na qual a Subcomissão de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos desempenhava um papel vital ao manter um estreito contato com a sociedade civil.
Segundo, a continuidade do valioso sistema de relatores especiaiss e grupos de trabalho da Comissão de Direitos Humanos (17 relatores por país e 31 temáticos). Imediatamente, o Conselho de Direitos Humanos deve renovar em 2006 o mandato de 21 desses procedimentos especiais, muitos dos quais estão habilitados a receber queixas individuais no âmbito extraconvencional de proteção.
Terceiro, deve-se assegurar às organizações não-governamentais em matéria de direitos humanos que continuarão desfrutando das mesmas facilidades de acesso ao Conselho de Direitos Humanos. Para isso devem-se emendar os Artigos 68 e 71 da Carta ONU.
Quarto, deve-se reconhecer aos sete Comitês estabelecidos em tratados internacionais de direitos humanos o estatuto de observadores permanentes perante o Conselho de Direitos Humanos, de modo que fiquem asseguradas relações permanentes e institucionalizadas de trabalho entre os dois sistemas (convencional e extraconvencional) de proteção internacional dos direitos humanos.
1. Assembléia Geral, Resolução 60/1 intitulada “Documento Final da Cúpula Mundial 2005”,de 16 de setembro de 2005, parágrafos 157-159.
2. Ibid., parágrafo 160.
3. Assembléia Geral, Resolução 60/251, aprovada em 15 de março de 2006 por 170 votos a favor, 4 contra (Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Palau) e 3 abstenções (Bielorrússia, Irã e Venezuela). As conseqüências orçamentárias desta resolução foram reduzidas a atribuição adicional de 4.328.700 dólares (Assembléia Geral, doc. A/60/721, de 15 de março de 2006, parágrafo 4).
4. Assembléia Geral, Res. 60/251, Parágrafo 6.
5. Ibid., parágrafo 1 in fine. Por sua vez, o próprio Conselho de Direitos Humanos também “irá rever seu trabalho e seu funcionamento cinco anos após o seu estabelecimento e informará a Assembléia Geral a respeito” (parágrafo 16).
6. A Comissão de Direitos Humanos será abolida pelo ECOSOC em 16 de junho de 2006 (parágrafo 13 da Res. 60/251). Segundo o parágrafo 15, as primeiras eleições para o Conselho de Direitos Humanos serão realizadas em 9 de maio de 2006 e a primeira sessão do mesmo começará em 19 de junho de 2006.
7. Assim estabelece o parágrafo preambular 6 da Res. 60/251: “Reconhecendo que a paz e a segurança, o desenvolvimento e os direitos humanos são os pilares do sistema das Nações Unidas e os alicerces da segurança e bem-estar coletivos e que o desenvolvimento, a paz e a segurança e os direitos humanos estão vinculados entre si e se reforçam mutuamente […].”
8. O conhecido como “informe Panyarachun” defendeu que a Comissão de Direitos Humanos continuasse existindo, mas com uma composição universal, isto é, com os 192 Estados-membros da Organização. Cfr. Assembléia Geral, Doc. A/59/565, de 2 de dezembro de 2004, parágrafo 285. A longo prazo, o próprio Grupo considerou que a Comissão deveria converter-se num Conselho de Direitos Humanos que fosse um órgão principal da Carta, assim como o Conselho de Segurança (Ibid., parágrafo 291).
9. Assembléia Geral, Doc. A/59/2005, “Um conceito mais amplo da liberdade: desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos”, de 21 de março de 2005, pág. 67, parágrafo 8 (e).
10. O parágrafo 7 da resolução 60/251 estabelece a distribuição geográfica. Conforme a primeira eleição praticada a 9 de maio de 2006, o Conselho de Direitos Humanos fica configurado como segue: Grupo de Estados de África: 13 lugares (Argélia, Camarões, Djibuti, Gabão, Gana, Máli, Marrocos, Maurício, Nigéria, Senegal, África do Sul, Tunísia e Zâmbia); Grupo de Estados da Ásia: 13 lugares (Arábia Saudita, Bahrein, Bangladesh, China, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão, Jordânia, Malásia, Paquistão, República da Coréia e Sri Lanka); Grupo de Estados da Europa oriental: 6 lugares (Azerbaidjão, Federação Russa, República Checa, Polônia, Romênia e Ucrânia); Grupo de Estados da América Latina e do Caribe: 8 lugares (Argentina, Brasil, Cuba, Equador, Guatemala, México, Peru e Uruguai); Grupo de Estados da Europa ocidental e outros Estados: 7 lugares (Alemanha, Canadá, Finlândia, França, Países-Baixos, Reino Unido da Grã Bretanha, Irlanda do Norte e Suíça).
11. O voto secreto é uma novidade importante porque permite que os Estados votem conscientemente, livres da pressão política usual das grandes potências. O risco de se ver politicamente deslegitimado pela comunidade internacional é o que, presumivelmente, levou os Estados Unidos a anunciar que não apresentará sua candidatura, embora este anúncio seja coerente com seu voto contra a criação Conselho de Direitos Humanos (Assembléia Geral, Res. 60/25).
12. Assembléia Geral, Res. 60/251, Parágrafo 8.
13. Ambigüidade que foi aproveitada pelos Estados candidatos à primeira eleição, que se limitaram a publicar suas “conquistas” em matéria de direitos humanos e a realizar promessas de pouca profundidade.
14. Ibid. parágrafo 8 in fine. Pelo menos em 26 dos Estados eleitos em 9 de maio de 2006 (vid. supra, nota 10), podem-se constatar violações graves e sistemáticas de um bom número de direitos humanos.
15. Ibid., parágrafo 9.
16. Ibid. Parágrafo 1. Também nasce o Conselho de Direitos Humanos com certo caráter provisório pois, como já indicamos, anuncia-se que “a Assembléia irá rever seu estatuto ao completar cinco anos de sua criação”.
17. Ibid. Parágrafo 10. Contudo, isso significa um certo progresso em relação à Comissão de Direitos Humanos, que estava autorizada a reunir-se durante um só período de sessões ordinárias ao ano, com seis semanas de duração.
18. Ibid. parágrafo 10 in fine.
19. Ibid. Parágrafo 2.
20. Ibid. Parágrafos 3-5.
21. Ibid. Parágrafo 5.e). Prevê-se também que o Conselho de Direitos Humanos determinará as modalidades e a atribuição de tempo necessária do mecanismo universal de revisão periódica no prazo de um ano depois da realização de seu primeiro período de sessões.
22. Vid. doc. A/59/2005/Add.3, de 26 de maio de 2005, parágrafo 86.
23. Um antecedente muito valioso é constituído pela Comissão de Especialistas em Aplicação de Convênios e Recomendações da OIT, composta por 20 especialistas independentes. Ela informa anualmente a Conferência Internacional do Trabalho sobre o cumprimento dos convênios internacionais do trabalho por parte de cada um de seus Estados-partes.
24. OIT, Unesco, FAO, OMS.
25. PNUD, Unicef, ACNUR, PMA, a Comissão de Construção da Paz.
26. Especialmente o departamento de operações de manutenção da paz ou o departamento de assuntos humanitários.
27. Comissão de Direitos Humanos, Res. 2005/35, de 19 de abril de 2005, Anexo. Estes princípios foram confirmados pelo ECOSOC e pela Assembléia Geral em fins de 2005.
28. Comissão de Direitos Humanos, Res. 2005/81, Parágrafo 20,de 21 de abril de 2005. A atualização desses princípios havia sido realizada pela professora Diane Orentlicher, especialista independente. Os princípios podem ser consultados no doc. E/CN.4/2005/102/Add.1 (ECOSOC), de 8 de fevereiro de 2005.
29. O texto da futura Convenção está disponível no site da Alta Comissão: , acesso em 15 de agosto, 2006. O citado projeto deverá ser aprovado formalmente pelo Conselho de Direitos Humanos em junho de 2006 e posteriormente pela Assembléia Geral em dezembro de 2006.
30. Assembléia Geral, Res. 60/251, Parágrafo 5.c).
31. Ver, por exemplo, a decisão 2005/114 da Sub-Comissão.
32. Assembléia Geral, Res. 60/251, parágrafo 6.
33. Ibid., parágrafo 6 in fine.
34. Cabia à Comissão de Direitos Humanos renovar em 2006 o mandato de 21 desses procedimentos especiais, mas a prematura suspensão de seu período de sessões em março de 2006 impediu-a de se pronunciar sobre este extremo crucial, deixando a decisão nas mãos do Conselho de Direitos Humanos.
35. Ibid., parágrafo 11 in fine.
36. Ibid., parágrafo 5.e).