IN MEMORIAM
Professor, advogado atuante e ativista, Kevin Boyle faleceu em 25 de dezembro de 2010, em Colchester, Reino Unido, onde formou muitas gerações de advogados e ativistas 2 de direitos humanos ao longo dos últimos 25 anos. Afetuosamente lembrado por seus alunos como um professor excepcionalmente apaixonado e encorajador, Kevin foi sobretudo um criador de instituições, além de extraordinário facilitador e colega. Como Diretor fundador da Artigo 19 (em 1986), uma importante força impulsionadora do mundialmente renomado Human Rights Centre de Essex, Presidente do Minority Rights Group International (2007-2010), e um jurista que expandia as fronteiras das práticas de direitos humanos, Kevin, nas palavras de um amigo, “conciliou magistralmente política, prática jurídica e vida acadêmica”.
Descrito por um de seus colegas mais próximos como um “gigante da comunidade de direitos humanos”, a vida profissional de Kevin Boyle confunde-se com a história do movimento de direitos humanos das últimas décadas – do crescimento extraordinário das normas e instituições de direitos humanos desde o meio dos anos 60 e do crescente uso dos direitos para mudança social até o desapontamento com o ritmo lento desse desenvolvimento e seu baixo impacto sobre as vítimas.
Acima de tudo, a vida de Kevin Boyle confunde-se com a história das origens dos direitos humanos nas lutas por justiça – e um exemplo perfeito do espírito combativo e de qualidades humanas e intelectuais que estão na raiz de sua trajetória vencedora, a despeito de alguns desvios e retrocessos temporários. Uma história de humildade e profunda bondade (“tratava os faxineiros e os chefes de Estado da mesma maneira”), uma “uma mistura cativante de nobreza de espírito, jovialidade, princípios e charme – envoltos por bom astral e afetividade”, nas palavras de um de seus mais velhos amigos e colegas.
Muitas das homenagens publicadas nos principais meios descreveram extensivamente a carreira e as realizações de Kevin. Contudo, para seus estudantes em particular e para seus colegas da área de direitos humanos ao redor do mundo, algumas lembranças se destacam especialmente3.
Ao lidar com regras técnicas e circular por instituições cada vez mais complexas e numerosas, nós – advogados especialmente – podemos às vezes esquecer que, no fim das contas, o que importa é a justiça para o indivíduo que foi vítima de injustiça. Os gays durante a década de sessenta na Irlanda do Norte, os imigrantes na Irlanda, os camponeses arrancados de suas terras no leste da Turquia, ativistas perseguidos pelo que acreditavam, jornalistas perseguidos pelo que diziam ou pelo que veiculavam (ou que sofreram atentados em suas redações4 ), escusadores de consciência: todos foram “clientes” de Kevin nos numerosos casos em que trabalhou nos últimos quase quarenta anos. Como expressou Conor Gearty, “aqui parecia haver uma nova maneira de exercer o direito: reunir todo o material, as causas, as leis parlamentares, as complexidades doutrinárias – tudo aquilo a que o direito recorre para insular-se e proteger-se de escrutínio externo – e valer-se disso tudo não para desconcertar ou sufocar as pessoas, mas sim para empoderá-las e, assim, fortalecê-las”. 5
Para uma geração que por vezes se depara com um desconcertante conjunto de normas e instituições, é difícil imaginar o que era ser um advogado de direitos humanos em 1966, quando Kevin se tornou um jovem professor de Direito na Irlanda do Norte – a Convenção contra o Genocídio (em vigência desde 1951) era o único tratado internacional de direitos humanos que vigia à época (apesar da Convenção contra a Discriminação ter sido assinada em 1965, ela só entrou em vigor em 1969). A Corte Européia de Direitos Humanos não emitiu nenhuma sentença em 1966, e em 1972, quando Kevin assumiu um de seus primeiros casos ante a então Comissão, a Corte emitiu duas sentenças (ambas sobre reparação razoável e não sobre mérito) 6. Nesse contexto, a idéia de dar aos peticionários acesso direto à Corte – que em 2010 emitiu 1499 sentenças em um universo de 2607 petições – teria soado extravagante e pouco realista.
Associado com mais de 100 casos, a carreira jurídica de Kevin se caracterizou pela tentativa de expansão das fronteiras do Direito com o intuito de que ele transcendesse “o teórico e o ilusório” e se tornasse mais “prático e efetivo” 7.
Como reivindicar direitos individuais em situações nas quais as políticas e as práticas (um padrão de violações, uma “prática administrativa”) tornam as violações rotineiras e os recursos jurídicos ilusórios foi o tema dominante dos casos assumidos por Kevin – relacionados à Irlanda do Norte e à Turquia, em particular. Isso continua sendo um grande desafio para os sistemas de proteção de direitos humanos baseados em petições individuais, a despeito das reformas das instituições e dos avanços jurisprudenciais.
Essa linha de trabalho começou com um caso assumido por Kevin aproximadamente quarenta anos atrás, a partir do qual a então Comissão Européia de Direitos Humanos estabeleceu (mesmo tendo declarado o caso inadmissível) que não seria necessário esgotar os recursos domésticos se pudesse ser evidenciado que os alegados abusos faziam parte de uma prática administrativa 8. Desenvolvida através de uma série de casos desde então 9, esta questão – ainda sensível em uma série de países, tais como a Rússia, e familiar aos leitores de todo o mundo – foi obviamente central nos mais de sessenta casos que Kevin (juntamente com colegas de Essex e de ONGs em Londres e na Turquia) levou à Corte em um período de aproximadamente dez anos. Segundo o Presidente da Corte Européia de Direitos Humanos, Kevin e seus colegas deram uma “importante contribuição aos direitos humanos em áreas cruciais como tortura, desaparecimentos, execuções e detenções arbitrárias” 10.
Os últimos 25 anos da vida de Kevin estiveram estreitamente ligados ao Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex no Reino Unido, alguns anos depois de ele ter fundado o Centro Irlandês de Direitos Humanos em Galway. O Centro de Essex, criado por sugestão de Kevin ao então Decano de Direito de Essex em 1983, ganhou força depois que Kevin e Nigel Rodley, que foi durante muito tempo Diretor Jurídico da Anistia Internacional, se incorporaram em 1989 e 1990, transformando-o em um centro multidisciplinar de pesquisa, ensino e apoio às atividades de litígio. Kevin dirigiu o Centro durante metade de sua existência, período durante o qual o Centro ampliou a oferta de cursos, empreendeu vários e interessantes projetos de colaboração, mas, sobretudo, se converteu em uma espécie de lar para toda uma rede mundial de militantes de direitos humanos, para seus mais de 1700 alunos de várias dezenas de países que se encontram presentes em praticamente todas as organizações de direitos humanos.
Sobre a mesa da recepção do funeral de Kevin havia duas fotografias: uma de um coroinha cujo olhar revelava uma determinação silenciosa, e outra, de um jovem com um megafone, rodeado de policiais, dirigindo-se a alguns manifestantes na Irlanda do Norte. Kevin era um líder nato – quando criança foi apelidado de “rei” – mas um líder amante do consenso e do empoderamento, na fundação ou transformação do Centro Irlandês de Direitos Humanos e do Centro de Direitos Humanos de Essex, na direção do Artigo 19 e na presidência do Minority Rights Group International. Em todas essas funções, como disseram alguns de seus colegas dessas ONGs, “levava seu conhecimento e seu talento com simplicidade” e era querido por todos que o rodeavam. Acompanhava os estudantes em suas marchas na Irlanda do Norte, pagava as multas das mulheres negras pobres sul-africanas cujas sentenças, em virtude das leis aprovadas, ele observava, se detinha e incentivava as pessoas na angariação de fundos para boas causas, e disponibilizava seu tempo para aconselhar colegas que tentavam formar novas organizações. Não é surpreendente que ele tenha conseguido criar relações de trabalho extraordinárias ao longo de toda a sua vida com vários colegas distintos (e provavelmente bastante obstinados), como Tom Hadden, com quem escreveu vários livros sobre a Irlanda do Norte, Françoise Hampson, com quem trabalhou em muitos casos do sudoeste da Turquia, e Sir Nigel Rodley, querido colega do Centro de Direitos Humanos de Essex.
Kevin também era um firme defensor dos ativistas do Sul Global que chegavam à Essex com variadas formações jurídicas e políticas. Tinha a capacidade de entender os vários desafios e ajudar seus alunos a valorizar suas próprias experiências e de maneira a encarar tais desafios. Kevin era criativo, generoso e aberto a novas iniciativas. Auxiliou toda uma nova geração de estudantes brasileiros em Essex, e visitou o Brasil em várias oportunidades para apoiar o estabelecimento de novas instituições – como o Mestrado em Direitos Humanos no Estado do Pará, e o Centro de Direitos Humanos na Universidade de Brasília –, para assessorar acadêmicos e organizadores e para ministrar aulas. Seu legado é um sólido grupo de acadêmicos e ativistas comprometidos a seguir seu caminho.
1. Título retirado de uma dedicatória de Seamus Heaney para Kevin escrita na folha de rosto de uma cópia de sua coleção de poemas “ Human Chain”.
2. Muitos dos quais poderiam certamente dizer que devem suas carreiras no campo dos direitos humanos a ele.
3. Ver http://www.ehraa.org/index.php?page=memorial&page_ref=19; http://www.guardian.co.uk/law/2011/jan/02/kevin-boyle-obituary; http://www.ruthdudleyedwards.co.uk/journalism11/IrInd11_2.html.
4. Ver European Court of Human Rights, Bankovc and Others v. Belgium and 16 Other Contracting States (application no. 52207/99), Decisão de 12 de dezembro de 2001. 5. http://therightsfuture.com/common-tracks/in-honour-of-kevin-boyle/, acessado em 15 de Maio de 2011.
6. Ver 10.3.1972 – De Wilde, Ooms and Versyp c. Belgique/v. Belgium (article 50); e 22.6.1972 -Ringeisen c. Autriche/v. Austria (article 50); ver também http://www.echr.coe.int/ECHR/EN/Header/Case-Law/Decisions+and+judgments/Lists+of+judgments/.
7. Citado em uma famosa sentença da Corte Européia de Direitos Humanos. Ver, por exemplo,Artico v. Itália , 1980, 3 EHRR 1, pará. 33.
8. Kevin Boyle & Hurst Hannum, The Donnelly Case, Administrative Practice and Domestic Remedies Under the European Convention: One Step Forward and Two Steps . The American Journal of International Law, Vol. 71, No. 2, pp. 316-321 (1977).
9. O entendimento atual exime o peticionário da necessidade de esgotar os recursos domésticos se há “repetição de atos incompatíveis com a Convenção e tolerância oficial evidenciada das autoridades estatais” e se a natureza do caso torna os procedimentos internos fúteis ou inefetivos ( Aksoy v. Turkey , § 52), ver Practical Guide on Admissibility Criteria , http://www.echr.coe.int/ECHR/EN/Header/Case-Law/Case-law+information/Key+case-law+issues/
10. Kevin listou alguns desses casos em Twenty-Five Years of Human Rights at Essex . Essex Human Rights Review, 2008; ver também Reidy, Hampson& Boyle. Gross violations of human rights: invoking the ECHR in the case of Turkey . Netherlands Quarterly of Human Rights, vol. 15, number 2, pp. 161-73 (1997).