Justiça transicional na África subsaariana
De Serra Leoa à África do Sul, pedidos para abertura de processo, busca de verdade, reparações e reforma institucional são cada vez mais comuns à medida que os países procuram tratar dos abusos dos direitos humanos. Embora se acredite que as medidas de justiça transicional (justiça em tempos de transição) podem contribuir para o fim da impunidade e para promover a reconciliação, a eficácia de tais intervenções parece depender muito da capacidade das instituições do Estado, nos níveis administrativo, judicial, político e de segurança. Nos países africanos, apesar de realidades como a deficiência institucional, a precariedade do governo e a pobreza, as medidas de justiça transicional continuam despertando grandes expectativas. Este artigo examina os obstáculos que vêm sendo constatados em diversos países da África, e sugere que sejam alimentadas expectativas mais modestas.
Pedidos de processos, busca da verdade, reparações e reforma institucional são cada vez mais comuns nos países que se dispõem a enfrentar abusos cometidos em direitos humanos. Essas abordagens, argumenta-se, são necessárias para combater a impunidade e promover a reconciliação.2 Atualmente, pelo menos doze países da África Subsaariana vivem algum estágio da implementação de medidas de justiça transicional (justiça em tempos de transição), embora não tenha havido nenhuma análise comparativa sobre as esmagadoras limitações com que esses esforços se defrontam.3 Para aqueles que têm a tarefa de projetar estas estratégias futuramente, uma análise desse tipo seria muito valiosa para ajudar a formar expectativas realistas.
Usando uma lente comparativa, este artigo explora os desafios encontrados durante os esforços para exigir justiça em diversos países da África Subsaariana em transição.4 Por exemplo, em muitos casos os processos domésticos não são nem sistemáticos nem movidos no momento certo, em parte devido à precária capacidade judicial. A busca de verdade e as medidas de reparação, freqüentemente implementadas em contextos de conciliação política e de recursos limitados, podem parecer faltados de boa-fé. Na quase ausência de julgamentos e reparações, muitas vítimas são deixadas sem atendimento, particularmente porque os esforços de coibir os responsáveis por abusos aos direitos humanos continuam a ser lentos e irregulares, e os perpetradores continuam ocupando posições de poder.
Este artigo se baseia principalmente nas experiências da República Democrática do Congo (DRC), Gana, Ruanda, Serra Leoa, África do Sul e Uganda. A seleção de casos é deliberada, motivada pelo fato de os países examinados empregarem um discurso explícito de combate à impunidade e de incentivo à reconciliação, e se auto-definirem (ou serem definidos) como países em transição5 . Similarmente deliberada é a decisão de restringir os casos à África Subsaariana, em parte devido a uma combinação de fatores única que é característica desses Estados.6 Embora as fontes precisas dos desafios à justiça transicional na África devam ser examinadas empiricamente, a fraqueza do Estado africano oferece uma explicação preliminar possível: as medidas talvez não tenham os resultados pretendidos (como o combate à impunidade ou a promoção da reconciliação) porque os pressupostos implícitos na sua implementação (como um Estado legítimo e coerente, uma sociedade civil independente e cidadãos com representação política) não estão presentes.
Além disso, muitos dos conflitos que precederam a transição não estão claramente delimitados por fronteiras. Um dos impactos das fronteiras porosas é que as medidas nacionais de combate à impunidade são com freqüência incompletas. Além disso, a pobreza e/ou a distribuição desigual da renda e recursos têm sido freqüentemente apontadas como fatores contruibuintes, assim como conseqüências, do conflito e da ditadura. As medidas de justiça transicional podem procurar esclarecer, e têm um impacto nessas causas primárias da violência e do abuso. Além disso, as dimensões econômicas do conflito e da repressão podem ter conseqüências para a reivindicação de reparações e para as possibilidades de reconciliação. Finalmente, esses países têm estado em transição desde a década de 1990 até hoje, um período em que o campo dos direitos humanos se mostrou mais intervencionista,7 o que significa que os países geralmente estão sob maior pressão para implementar medidas que corrijam (ou pareçam corrigir) a impunidade.
Este artigo apresenta uma retrospectiva e uma genealogia da justiça transicional, e depois examina os muitos obstáculos enfrentados na tentativa de implementar a justiça transicional sob a forma de processos, busca de verdade, reparações e reforma institucional. Em seguida, o artigo explora de que maneira o resultado de, e a demanda por, medidas de justiça transicional foram afetados pelas definições de “vítima” e “perpetrador”, pelo uso de anistias, pelas natureza dos programas de desmobilização, desarmamento e reintegração (DDR) e pela compreensão da reconciliação.
Ele conclui que o não atendimento das expectativas em relação aos esforços por justiça transicional deve-se em parte à insistência numa compreensão institucionalmente exigente de justiça transicional que não é congruente com a qualidade e capacidade das instituições estatais em tempos de transição. As medidas de justiça transicional na África continuam a se revestir de altas expectativas, não obstante as realidades desanimadoras das deficiências institucionais, da precária liderança, da pobreza e do abismo entre o governo e o povo.8 Para que elas possam ser mais efetivas, deve-se: encurtar a distância entre as expectativas e a realidade, tendo expectativas mais modestas a respeito do que as medidas de busca de justiça podem proporcionar; avaliar de modo realista as condições institucionais necessárias para sua implementação bem-sucedida; e investir numa reforma institucional significativa (e às vezes na construção de instituições). Por outro lado, devem-se perseguir caminhos alternativos, complementares, não estatais, para promover a reconciliação – incluindo iniciativas localizadas, informais, que exijam pouco das instituições estatais, ou iniciativas regionais na União Africana.
A justiça transicional tem sido definida como “um campo de atividade e de inquirição focalizado na maneira pela qual as sociedades encaminham casos passados de abusos de direitos humanos”,10 num esforço para combater a impunidade e promover a reconciliação durante um período de mudança definitiva no panorama político. A mudança de regime pode ocorrer por negociação com o regime anterior, e nesse caso o novo governo sacrifica metas mais ambiciosas nas questões de combate à impunidade em nome de facilitar a paz, a estabilidade e a reconciliação. No entanto, os regimes novos estão cada vez mais tomando a decisão de tratar do passado, e com freqüência usam medidas que incluem processos, mecanismos de busca da verdade, reforma institucional e programas de reparações.
Os processos são considerados o esteio da justiça. Por sua natureza punitiva, os processos podem ajudar a restaurar a primazia da ordem e da lei e deixar claro que a quebra dessa primazia acarreta conseqüências. A punição de criminosos é uma maneira de oferecer “efetiva reparação” às vítimas, e basicamente essa obrigação recai sobre os tribunais domésticos. Nos casos em que o judiciário doméstico não se dispõe ou é incapaz de abrir processo, os processos judiciais internacionalizados podem constituir um recurso alternativo.11 No entanto, em contextos de abusos amplamente disseminados dos direitos humanos, os processos podem ser insuficientes para se alcançar a responsabilização, em parte porque eles abordam os abusos de direitos humanos em termos litigiosos, caso a caso, e podem ser onerosos e demorados. No melhor dos casos, os julgamentos pintam um quadro incompleto do passado e oferecem uma justiça igualmente incompleta.12 Além disso, enfatizar perpetradores e crimes pode deixar de lado vítimas não reconhecidas como tais. Para sanar algumas dessas dificuldades, os processos podem ser complementados por outras medidas, mais centradas nas vítimas.
Os mecanismos de busca da verdade podem operar paralelamente aos julgamentos, pois dão à sociedade a oportunidade de ganhar um entendimento mais amplo sobre as atrocidades passadas. Com uma longa história na América Latina e popularizadas na África pela Comissão Sul-africana de Verdade e Reconciliação (TRC), as comissões de verdade podem dar às vítimas uma oportunidade de falar sobre suas experiências, e permitir que os perpetradores admitam sua responsabilidade. Os esforços de busca da verdade podem deixar patente que as vítimas têm o direito de saber a verdade a respeito dos abusos que sofreram, e que o governo tem o dever de facilitar um processo criando um registro histórico. Comissões de verdade sancionadas pelo governo tornaram-se mecanismos muito comuns para estabelecer uma versão socialmente aceitável da história, validando as experiências de muitas vítimas.13 Há ainda comissões ou projetos não oficiais, conduzidos pela sociedade civil com objetivos semelhantes, que podem ter o papel de “substitutos, complementos ou precursores” das comissões oficiais.14
Mecanismos de busca de verdade podem desenvolver uma definição amplamente aceita de “vítima”, o que às vezes facilita a aplicação de outros mecanismos, por exemplo, os programas de reparações. Como mencionado, o Estado tem o dever de lembrar a vitimização de seus cidadãos. Esta memória pode constituir uma reparação simbólica. No entanto, programas mais amplos de reparações – restituição, compensação e reabilitação – são, segundo a lei internacional, uma obrigação do Estado para com as vítimas, uma espécie de “materialização da admissão de responsabilidade”.15
Tanto os julgamentos como os mecanismos de busca da verdade podem lançar luz sobre as deficiências institucionais que levaram aos abusos, e desse modo deixar à nova administração tarefas como o vetting (um levantamento de antecedentes, definido como “processo formal para identificação e remoção dos cargos públicos de indivíduos responsáveis por abusos”), além de questões mais amplas de reforma institucional. Como parte de medidas mais amplas de reforma institucional, o vetting deve envolver a apreciação de méritos individuais, caso a caso, mais do que a demissão coletiva de pessoas em razão de sua associação, ou de questões políticas. Em outras situações, instituições comprometidas podem ser significativamente alteradas ou mesmo abolidas, criando-se novos órgãos como uma maneira de prevenir recorrências.
As medidas de justiça transicional podem estar intimamente relacionadas. Por exemplo, provas colhidas a partir de processos de busca da verdade podem ser usadas para apoiar processos e determinar beneficiários em programas de reparação. Para o máximo impacto, alguns observadores recomendam implementar medidas de justiça transicional num pacote integrado, em vez de fazê-lo como esforços não relacionados. Se isso não é feito, pode ocorrer uma minimização na credibilidade das medidas: já foi sugerido que programas de reparação executados sem uma exploração detalhada das causas e efeitos dos abusos de direitos humanos podem ser insatisfatórios, do mesmo modo que reparações concedidas sem qualquer tentativa de responsabilização judicial podem ser vistas como corrompidas.16
Ao longo dos anos, iniciativas de justiça transicional vêm exibindo prioridades diferentes.17 Na chamada “Fase I” da justiça transicional – o período pós-Segunda Guerra Mundial, e dos julgamentos de Nurembergue –, o foco da justiça transicional era a criminalização internacional e os subseqüentes processos criminais.18 Vários instrumentos, como a Convenção do Genocídio, foram implementados, instaurando o precedente de que os indivíduos não podiam mais justificar abusos de direitos humanos em nome da cultura institucional ou do cumprimento de ordens. Nesta fase, o perpetrador estava no centro da busca de justiça.19
Durante a Guerra Fria, a procura de justiça transicional ficou muito estagnada.20 Isso durou até a “Fase II”, que abrange as transições ocorridas após o declínio da União Soviética. Nos vários levantes políticos nos países do Cone Sul, na abertura dos Arquivos Stasi na Alemanha, e na purificação na Checoslováquia, conceitos de justiça locais e politizados, associados com a construção do Estado, foram implementados. A justiça foi além dos processos e incluiu mecanismos pouco explorados, como as comissões de verdade, reparações, vetting e outras medidas de restauração da justiça, tornando a justiça transicional mais “comunitária” e mais voltada a um “diálogo” entre perpetradores e vítimas.21 Neste período, a experiência das comissões de verdade na Argentina logo se estendeu à América Latina e mais tarde tornou-se popular na África do Sul.
A criação do Tribunal Criminal Internacional para a antiga Iugoslávia (ICTY) em 1993 assinalou o início de outro panorama político, a “Fase III”, na qual uma freqüência maior de conflitos fez com que a aplicação de justiça transicional e a necessidade de combater a impunidade passassem de exceção a norma. O ano de 1994 assistiu à criação do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (ICTR), e logo após foi promulgado o Estatuto de Roma para o Tribunal Penal Internacional (TPI). Os efeitos em cascata desses três mecanismos se fizeram sentir mundo afora, particularmente num número de acordos de paz que foram atribuídos a julgamentos e tribunais internacionais. O Acordo Arusha para o Burundi, o acordo Linas-Marcoussis para a Costa do Marfim, o acordo entre o governo de Serra Leoa e as Nações Unidas para a Corte Especial, e o Diálogo Intercongolês (ICD) para a República Democrática do Congo, todos eles exigiram a criação de mecanismos processuais internacionais ou híbridos.22 Nesta fase, há constante referência a leis humanitárias ou de direitos humanos, assim como a um “fortalecimento do modelo de Nuremberg”, particularmente pela criação do TPI como uma corte permanente para processos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.23
Diferentemente do que ocorreu em países como Chile e Argentina, onde as medidas de justiça transicional foram administradas após situações relativamente claras de mudança de regime, na maioria dos casos em exame na África essas medidas foram implementadas após transições negociadas, sem uma ruptura clara com os conflitos passados e/ou presentes.24 O Acordo Lomé de 1999 para Serra Leoa foi o terceiro acordo de paz feito com o objetivo de encerrar o conflito e estabelecer a democracia. De modo similar, a Comissão Nacional de Reconciliação de Gana (NRC) foi a última na sucessão de medidas de responsabilização implementadas por vários governos a partir do golpe de Estado que depôs Kwame Nkrumah em 1966. A República Democrática do Congo e Uganda vivem atualmente diferentes graus de conflito, e estão em processo de implementar várias medidas de justiça transicional.
Surgem várias questões importantes: o que constitui uma “transição” na África? Será que a transição é marcada simplesmente pela decisão política de usar a retórica da justiça e da reconciliação, mesmo num contexto de ruptura mínima com o passado, talvez a fim de “criar a possibilidade democrática de re-imaginar os caminhos e metas específicos da democratização”?25 Pode um país ter uma sucessão de transições e aplicar medidas de justiça transicional a cada nova transição?26 São essas medidas adequadas mesmo em contextos de Estados precariamente institucionalizados, sem um histórico de tradição democrática no estilo ocidental?27 Ou é possível que novos governos adotem a agora linguagem comum da justiça transicional para pleitear recursos num nível internacional? Sem oferecer respostas a tais questões, esta discussão aponta para a possibilidade de que o “momento de transição” fique mais claro na análise acadêmica do que na realidade. Isso pode aumentar a dificuldade de avaliar se o país está “maduro” para a justiça transicional. Quando as medidas são usadas em condições inadequadas, pode haver um (indesejável) aumento na probabilidade de recorrência, que pode desvalorizar as medidas.28
Não obstante essa falta de clareza a respeito de quando implementar a justiça transicional (e de saber se o Estado possui instituições adequadas para tal implementação), os Estados têm obrigação de combater a impunidade e “dar às vítimas uma reparação eficaz”.29 Os países examinados neste artigo tomaram diversas medidas de justiça transicional aparentemente para cumprir com essa obrigação, embora a impunidade continue amplamente disseminada já que a implementação dessas medidas enfrenta vários obstáculos. Embora os desafios discutidos a seguir possam não ser exclusivos dos Estados africanos, eles parecem mais acentuados, em parte devido à concorrência de fatores diversos como Estados fracos, transições nebulosas e um recurso freqüente a medidas de justiça transicional.30
Responsabilizar os perpetradores é crucial para lutar contra a impunidade. Além de atuar como um desestimulador potencial de futuros abusos, os processos podem constituir uma reparação às vítimas, reafirmar o predomínio da lei, e contribuir para a reconciliação.31 Em tese, os processos nos tribunais domésticos devem assumir a principal responsabilidade por lidar com os perpetradores, enquanto outras medidas de justiça transicional, como reparações, comissões de verdade e reformas institucionais, são destinadas a complementar esses julgamentos. Em casos de abuso amplamente disseminado dos direitos humanos, são mais importantes ainda – apesar de o judiciário estar em seu nível mais fraco – para demonstrar que a impunidade não é tolerável. Com esta finalidade, processar os maiores responsáveis e denunciar os casos que ilustram padrões de abuso pode ser importante para mostrar a gravidade dos abusos de direitos humanos, assim como sua perpetração sistemática.32
Diferentemente do que ocorreu em casos como o da Grécia, onde houve processos sistemáticos após uma transição, na África foram realizados poucos julgamentos por abusos de direitos humanos, e quando ocorreram enfrentaram muitas dificuldades, notadamente na Etiópia e no Chade.33 Com freqüência, a precariedade na capacidade legal pode ser um grande impedimento para os processos domésticos. Na República Democrática do Congo, a história do judiciário durante toda a fase pós-colonial foi marcada por uma falta de independência, integridade e infra-estrutura. A isso soma-se o agravante de que a lei congolesa não condena genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade: essas violações são encaminhadas apenas a tribunais militares, onde suas definições não se ajustam aos padrões internacionais.34 Mesmo com a recente implantação do programa de justiça criminal em Bunia, a Human Rights Watch descreveu uma situação na qual os perpetradores de graves abusos dos direitos humanos são processados por crimes menores, num contexto caracterizado por “inadequação da lei criminal existente [e] falta de recursos policiais necessários para a investigação”.35
Na Ruanda pós-genocídio foram encontrados muitos profissionais da lei mortos ou no exílio, além de um vácuo nas estruturas judiciárias. A incapacidade do tribunal de empreender processos foi (e continua sendo) agravada pelo imenso número de perpetradores. Em 2000, encomtravam-se em Ruanda mais de 125 mil pessoas detidas – um número que seria excessivo para qualquer judiciário, mesmo no mundo desenvolvido. Muitos desses indivíduos podem ter de facto cumprido penas de detenção sem jamais terem sido condenados, um problema que levanta grandes preocupações sobre o estado da justiça. Num esforço para agilizar os processos relativos a dezenas de milhares de detentos que estão aguardando julgamento, os tradicionais tribunais Gacaca foram instituídos para realizar audiências de casos de várias categorias de perpetradores, e determinar adequadamente as penas.36 No entanto, muitos padrões de justiça internacional consideram o sistema falho e mal equipado para tratar de casos de crimes internacionais de genocídio.37
Em Serra Leoa, o judiciário doméstico pós-guerra estava muito fraco e sectário. Segundo um relatório, depois da guerra civil o judiciário havia “entrado em colapso e as instituições responsáveis pela administração da justiça, tanto civil como criminal, [estavam apenas] precariamente funcionais [-] a administração de justiça fora de Freetown [era] quase inexistente”.38 O estabelecimento do Tribunal Especial para Serra Leoa foi parcialmente responsável por esta desintegração do sistema judiciário doméstico.
Em diversos Estados onde a necessária competência técnica e vontade política não existem, nota-se uma constante reivindicação por julgamentos internacionais, mesmo quando há uma clara indicação de que a possibilidade de instalar esses tribunais – de acordo com o então Secretário Geral Assistente para Assuntos Legais junto à ONU – não existe.39 Na República Democrática do Congo, o ICD decidiu requerer ao Conselho de Segurança da ONU a formação de uma Corte Criminal Internacional para a República Democrática do Congo, para examinar as atrocidades ocorridas durante o conflito que acometeu o país.40
Em Ruanda e Serra Leoa, o alcance dos tribunais internacionais também tem sido limitado devido a restrições técnicas e políticas de natureza diferente. Por exemplo, a ICTR, mesmo sendo uma louvável plataforma processual comprometida a processar o maior número possível de líderes do genocídio, indiciou apenas 80 pessoas, sentenciou 20, e inocentou 3. Com um mandato de tempo limitado, o Tribunal recentemente entrou em acordo com o governo de Ruanda para repatriar alguns sentenciados e julgá-los, em meio a muita controvérsia. Esse problema do alcance limitado dos processos internacionais também se constata no experimento de tribunal híbrido de Serra Leoa, que objetiva sentenciar os “principais responsáveis” pelo conflito e pelos abusos de direitos humanos, e indiciou 13 pessoas. Outros problemas afetam esses dois esforços, como a dificuldade de assegurar que esses tribunais tenham um impacto significativo no sistema judiciário doméstico.41
Enquanto isso, os governos da República Centro-Africana, da República Democrática do Congo e de Uganda, e o Conselho de Segurança na questão do Sudão, fizeram encaminhamentos ao Tribunal Penal Internacional, mas o Tribunal conseguiu examinar apenas crimes cometidos depois de 1 de julho de 2002, data em que o Estatuto de Roma entrou em vigor, deixando potencialmente muitas queixas sem atendimento e desapontando as vítimas.42 Além disso, as investigações do TPI podem ser afetadas por fatores como a limitação da capacidade do próprio tribunal, a segurança do país, e a possibilidade de cooperação do Estado. Outro fator que limita a jurisdição do TPI é a Lei de Proteção aos Servidores Norte-Americanos, de 2002, que proíbe a assistência militar a Estados-membros do TPI a não ser que esses Estados assinem acordos bilaterais (acordos do “Artigo 98”) com os Estados Unidos, removendo a jurisdição do TPI sobre o pessoal dos Estados Unidos presente em seus países.
Além das limitações técnicas e legais discutidas acima, também foram citados fatores culturais como motivo de alguns Estados pós-conflito procurarem evitar os processos. Em alguns casos, as preferências expressas por mecanismos de responsabilização locais não incluem processos movidos por tribunais formais.43 Em Uganda, por exemplo, os líderes Acholi não dão apoio ao cronograma das citações do TPI, temendo que a decisão de abrir processos possa remover os incentivos dos rebeldes do LRA em relação ao desarmamento.44 Em vez disso, eles querem usar medidas tradicionais para trazer a reconciliação à região devastada pelo LRA. No entanto, uma pesquisa recentemente concluída junto à população do norte de Uganda indica que as vítimas não encaram justiça e paz como mutuamente excludentes. Embora elas desejem o término da guerra, não querem que os perpetradores do LRA saiam impunes.45
Mecanismos de busca da verdade tentam satisfazer o direito das vítimas à verdade e dar à comunidade a versão mais completa possível dos fatos. Embora não seja possível processar todos os perpetradores devido aos muitos desafios identificados acima, instituições como as comissões de verdade são freqüentemente estabelecidas para ajudar a reparar esse “lapso de impunidade”.46 Além de reconhecer as vítimas como tais, as comissões de verdade podem ajudar a identificar os perpetradores, estabelecer um relato preciso dos fatos ocorridos e recomendar reparações, reforma institucional e processos. Com freqüência elas também dão à vítima uma oportunidade de acareação com os perpetradores e às vezes oferecem aos perpetradores uma oportunidade de vir a público e oferecer seu relato dos eventos, confessar suas atrocidades e, em raros casos, pedir desculpas.
A capacidade das comissões de verdade de atingirem suas metas (uma das quais freqüentemente é a reconciliação) pode se manifestar tanto no processo de busca da verdade como no relatório final. Por essa razão, as comissões devem se mostrar como morais, justas, representativas, consultivas, com credibilidade e abertas ao exame público. Isso vale para todos os aspectos do trabalho da comissão e para todos os estágios, incluindo a preparação preliminar de legislação, a escolha de membros da comissão e da equipe, e a apresentação do relatório final.47
O primeiro desafio em muitas situações pós-conflito é que os processos de busca da verdade cada vez mais são elaborados durante a negociação de paz, marginalizando a voz das vítimas e das organizações da sociedade civil, e possivelmente reduzindo a propriedade e a credibilidade.48 Na República Democrática do Congo a comissão de verdade foi proposta por membros do ICD como parte das negociações de paz.49 A instituição proposta, com todas as suas aspirações de longo alcance, nasceu de uma consulta (talvez moralmente questionável) entre a elite, da qual as vítimas não participaram amplamente, com potenciais conseqüências de excluir partes do país do processo embrionário.50
O segundo desafio é quanto à escolha dos membros da comissão, que idealmente deveriam ser pessoas muito respeitadas, de moral inatacável, escolhidas através de um processo transparente.51 Em muitos casos, no entanto, o processo envolve concessões. Para a República Democrática do Congo, a resolução do ICD declarou que os membros da comissão deveriam ser “congoleses de grande probidade moral e intelectual e que possuíssem as competências necessárias para levar adiante as atribuições da comissão”, selecionados “por consenso a partir das qualificações dos componentes de acordo com critérios estabelecidos pelo Diálogo: probidade moral, credibilidade […]”.52 Apesar dessas disposições, os membros da comissão foram nomeados por seus partidos políticos sem que fossem observados os critérios do ICD ou o consenso descrito na resolução da comissão de verdade.53 Em Serra Leoa, os membros nacionais da comissão de verdade foram vistos como simpatizantes do Partido do Povo de Serra Leoa (SLPP) no poder. Isso foi reforçado quando, contrariando a recomendação da comissão de verdade de que o presidente da república “pedisse desculpas sem reservas ao povo por todas as ações e inações de todos os governos a partir de 1961”,54 o bispo Joseph Humper apoiou a recusa do presidente em pedir desculpas. Além disso, a certa altura, o bispo agradeceu a milícia da Força de Defesa Civil (CDF), conhecida por amplos abusos dos direitos humanos, por seu trabalho na defesa do país.55 Todas essas tendências políticas podem ter levado os observadores a encarar a Comissão como parcial.
Existe uma expectativa comum de que uma comissão de verdade irá contribuir para a restauração da dignidade das vítimas. Mas esse nem sempre é o caso: dependendo de como são estruturados, os processos de busca da verdade podem ser traumáticos ou mesmo inculpar de novo as vítimas. As audiências judiciais do NRC em Gana provocaram muita discussão: as vítimas deram testemunho sob juramento, o que foi seguido por perguntas dos membros da comissão, e depois por acareação com os acusados de serem os perpetradores (quando presentes). Após esta acareação (com o acusado de ser o perpetrador ou com seu advogado), o acusado tinha a oportunidade de contar sua versão da história. Embora o processo desempenhasse um papel importante na tentativa de alcançar a verdade objetiva, alguns observadores comentaram que dar a perpetradores poderosos a oportunidade de uma acareação com as vítimas e a possibilidade de discordar de suas versões poderia não contribuir para o processo de dignificação das vítimas.56 De modo similar, o Oputa Panel da Nigéria também deu aos acusados a oportunidade de uma acareação com as vítimas.
Outro desafio com o qual se deparam as comissões de verdade – e as medidas de justiça transicional em geral – é o da ambição elevada demais, que pode levar as vítimas a se sentirem desapontadas em suas expectativas. As comissões de verdade com freqüência articulam metas grandiosas, além de seus recursos, e que às vezes não são politicamente exeqüíveis. Cada vez mais, as comissões de verdade buscam muitos objetivos diversos. Basta comparar as atribuições da comissão de verdade chilena, que buscava resolver apenas casos de desaparecimentos e assassinatos, com as atribuições da comissão de verdade da República Democrática do Congo, de decidir “o destino das vítimas de tais crimes, ouvi-las e tomar todas as medidas necessárias para compensá-las e restaurar completamente sua dignidade”.57
Relacionado com este está o fato de que, na emissão de um relatório final, a comissão de verdade cessa de existir, e com freqüência não deixa meios pelos quais se possa conhecer amplamente as aspirações contidas nas recomendações, e menos ainda que estas possam ser acompanhadas pelo governo. Tanto em Gana como em Serra Leoa, os relatórios finais, em vários volumes, não foram tornados públicos imediatamente, o que despertou preocupação. Se a população não tem acesso ao relatório e não é informada sobre tudo, é difícil para ela responsabilizar o governo em relação às recomendações feitas.58 A própria forma do relatório como documento escrito pode ser inacessível em comunidades vitimadas que tenham altos índices de analfabetismo.59 Mesmo quando o relatório é divulgado, como na África do Sul, muito poucos membros do público em geral o lêem.60
Segundo a lei internacional, os Estados têm a obrigação de dar “pronta reparação” às vítimas de violações de direitos humanos internacionais, proporcionais aos danos sofridos.62 As reparações atendem pelo menos a três objetivos: reconhecer as vítimas como cidadãos detentores de direitos específicos, comunicar uma mensagem de que a violação desses direitos merece uma ação por parte do Estado; contribuir para estabelecer confiança cívica entre os cidadãos e entre estes e as instituições do Estado; e construir solidariedade social à medida que a sociedade demonstra empatia com as vítimas.63
É importante destacar que as reparações nunca são capazes de trazer as vítimas totalmente de volta ao status quo ante, e são apenas parte de um pacote de medidas de justiça transicional que podem incluir reformas institucionais, processos e busca da verdade. Na ausência de uma abordagem integrada como esta, observadores têm destacado que as reparações podem muitas vezes ser vistas como uma tentativa de comprar a aquiescência (se não forem acompanhadas por processos) ou como gestos inadequados de pouca conseqüência a longo prazo (se não forem acompanhadas de uma reforma institucional).64
As reparações com freqüência se deparam com falta de recursos, e não é possível contar com os patrocinadores internacionais para fazer os pagamentos.65 Na África do Sul, o Comitê para Reparações e Reabilitações (CRR) fixou pagamentos provisórios para as vítimas com “urgentes necessidades médicas, emocionais, educacionais e materiais/ou simbólicas”, além das reparações finais. Há muitos desafios associados a reparações provisórias. Por exemplo, elas foram pagas com muito atraso, quase dois anos após as recomendações CRR terem sido enviadas ao governo. Elas também eram praticamente desprezíveis em termos quantitativos, removiam o poder das vítimas, e constituíram uma freqüente fonte de atritos e tensões na comunidade, especialmente entre quem as recebeu e quem não as recebeu.66 Após uma longa espera, as reparações finais acabaram sendo alocadas em quantias significativamente mais baixas do que as recomendadas pela CRR, com o governo fazendo um pagamento numa só parcela de aproximadamente $5.000 dólares em vez de uma série de pagamentos ao longo de seis anos.67
O TRC de Serra Leoa recomendou reparações para amputados, feridos, mulheres que sofreram abuso sexual, crianças e viúvas de guerra, porque essas vítimas sofreram múltiplas violações e foram consideradas em “urgente necessidade de um tipo particular de assistência para satisfazer suas necessidades presentes, mesmo que isso servisse apenas para colocá-las em pé de igualdade com uma categoria maior de vítimas”.68 Para o universo de potenciais beneficiários (não predeterminado), a Comissão recomendou que as reparações fossem liberadas em “pacotes” contendo cuidados médicos e psicológicos, educação e programas de treinamento de competências. Como a qualidade do serviço público em Serra Leoa é extremamente pobre, os benefícios às vítimas ficam dependentes da capacidade de liberação das instituições existentes.69 Mais importante, a comissão de verdade recomendou a criação de um Fundo Especial para as Vítimas da Guerra, que cuidaria de amputados, crianças e mulheres afetados pela guerra, e que seria estabelecido em três meses a partir da publicação do Relatório Final. Ao tempo em que escrevemos, o prazo final recomendado já foi ultrapassado e o fundo ainda não foi criado.
Quando são concebidas sem levar em conta outras medidas de justiça transicional – especialmente aquelas dirigidas aos perpetradores – a contribuição das reparações para a reconciliação pode ficar desgastada. Em países que emergem de um conflito, as reparações podem servir para compensar a falta de justiça que advém do fato de não se processar os perpetradores. Mesmo assim, como os esforços para mover processos são vistos como essenciais para manter a paz e a estabilidade, eles com freqüência são priorizados; já as reparações, quando chegam a serem implementadas, vêem anos mais tarde. Em Serra Leoa, observadores relataram que o foco pós-guerra praticamente exclusivo sobre os perpetradores e a reabilitação dos ex-combatentes (no óbvio interesse pela paz) excluiu as vítimas, que levantaram a questão muitas vezes durante as audiências da comissão de verdade.70 Esse negligenciamento das vítimas é especialmente notável no contexto da anistia geral, onde o direito de procurar uma reparação judicial não está disponível.
Outro desafio dos programas de reparação é que eles com freqüência são elaborados na última hora. O TRC de Serra Leoa só considerou as reparações numa fase muito posterior de seu trabalho, sob uma grande pressão de recursos e tempo. Como resultado, a consulta ficou limitada a departamentos do governo e a ONGs baseadas em Freetown. De modo similar, na África do Sul, “as reparações parecem ter sido promovidas em princípio pela maioria dos atores como uma parte justa e necessária da transição, mas a discussão dos detalhes das reparações foi sempre protelada até bem mais tarde no processo”.71
Finalmente, o TPI prevê um Fundo Mútuo para as Vítimas que vai beneficiar as vítimas e seus familiares.72 Infelizmente, esse fundo vai enfrentar muitos desafios. Algumas pessoas têm observado que o Fundo não se traduz exatamente num programa de reparações, já que separa reparações e responsabilidade. Além disso, o Fundo pode não estar necessariamente em condições de atrair mais fundos de fontes internacionais do que os programas nacionais de reparação com caixa vazio, e dado o reduzido número de vítimas cujos casos serão colocados perante o TPI, a proposta de individualizar as avaliações para a concessão de benefícios de reparação pode dar a impressão de que está fazendo discriminação entre as vítimas.73 Muitas das preocupações levantadas apontam para a probabilidade de que o Fundo, e, por associação, o TPI, criem expectativas que não são capazes de atender.74
Sob a rubrica maior de reforma institucional, o vetting está sendo crescentemente implementado para tratar de abusos dos direitos humanos. Definido como um “processo formal para a identificação e remoção do serviço público de indivíduos responsáveis por abusos”,75 o vetting está se tornando parte integral do processo de restauração de confiança nos órgãos estatais, numa tentativa de assegurar que as estruturas que facilitaram abusos de direitos humanos no passado não venham a existir mais.
A reforma de pessoal deve ser realizada de uma maneira que possa ser percebida como justa, e que ao mesmo tempo respeite os direitos dos indivíduos e evite uma redução drástica da capacidade essencial das instituições.76 Idealmente, o processo de reforma deve envolver: a avaliação da capacidade institucional de corpos como o judiciário e os órgãos de segurança; a avaliação da capacidade e qualificações da equipe existente; a definição de padrões para a composição desejada do pessoal para cada setor particular; e a consulta pública a respeito do processo inteiro. A natureza complexa do vetting tem apresentado vários desafios para o panorama da justiça transicional.77
O vetting pode ficar comprometido pela incapacidade do Estado de realizar a tarefa puramente técnica e procedimental de acessar os registros de empregados para avaliar sua integridade e competência. Segundo um relatório, praticamente não existem infra-estruturas para administração pública na República Democrática do Congo, e na ausência de coisas tão básicas como registros pessoais, é imensamente difícil avaliar a integridade dos empregados, e às vezes impossível. Em Serra Leoa, o período pré-guerra foi caracterizado pelo “colapso institucional, a partir do enfraquecimento do exército, da polícia, do judiciário e do serviço civil”.78 Num contexto como este, acessar registros pessoais confiáveis pode ser difícil, o que talvez seja uma das razões pelas quais o TRC decidiu não realizar nenhum vetting baseado em registros passados, por receio de ele pudesse facilmente sofrer “abusos com fins políticos e ser usado com propósitos de ajustar contas e perpetrar vinganças”. Em vez disso, a Comissão fez recomendações futuras a respeito de diretrizes de governo.79
Um problema relacionado é o da vontade política de promover as necessárias mudanças de pessoal nas instituições. Um novo governo, proveniente de uma transição de natureza freqüentemente negociada e incompleta, pode ver-se incapaz ou sem disposição de realizar o vetting por abuso de direitos humanos. São feitos arranjos para remover os perpetradores do campo de batalha. A natureza pragmática dessa concessão aumenta a percepção de uma impunidade arraigada, questionando seriamente o compromisso do governo com a reforma. Na República Democrática do Congo, onde muitos representantes do governo estão implicados com abusos de direitos humanos, alguns observadores notam que o parlamento não estaria inclinado a aprovar uma lei de vetting suicida.
O setor de segurança, com freqüência o mais implicado no abuso dos direitos humanos, pode colocar desafios particulares à reforma. Em Serra Leoa, os anos pós-independência foram marcados pelo uso inadequado das forças de segurança para sufocar a oposição política “em nome da segurança nacional”.80 O setor de segurança e o exército estavam significativamente implicados na guerra, e segundo o Relatório Final o exército foi responsável pela terceira violação institucional mais grave dos direitos humanos. As forças da CDF, formadas em parte devido à falta de confiança da população no exército, foram responsáveis por outra grande parte dos abusos de direitos humanos. O Relatório Final recomenda que o governo “fortaleça e reestruture” o setor de segurança, embora tal fortalecimento exija um nível de recursos que deve ser capaz de permitir institucionalização, profissionalização e regularização no pagamento de salários.
Surgem vários outros problemas que podem ter impacto direto nas medidas de justiça transicional discutidas anteriormente. Eles incluem as definições de “vítima” e “perpetrador,” o uso de anistias, a elaboração de programas DDR e o significado de reconciliação.
Os tipos de crime que as estratégias de justiça transicional visam atender definem os parâmetros de quem é classificado como “vítima” e “perpetrador.” Na África do Sul, “a Tarefa de definir ‘vítima’ e ‘perpetrador’ […] foi a decisão isolada mais importante que determinou o âmbito e o alcance do trabalho da Comissão”.81 A definição estreita de violência adotada pela comissão de verdade excluiu a violência estrutural, o que assegurou que um grupo mais amplo de beneficiários do apartheid – a população branca – não fosse considerado responsabilizável.82 Uma “vítima” foi definida como o indivíduo (e portanto sua família imediata) sobre quem “graves violações de direitos humanos”83 foram perpetradas, que podem ter resultado em “dano físico ou mental, sofrimento emocional, perda pecuniária ou substancial impedimento dos direitos humanos”.84 Subjacente à perpetração tem que haver uma motivação política. Ao usar esta definição, o TRC ignorou a motivação política do sistema de apartheid, e efetivamente admitiu “apenas aquelas violações sofridas por ativistas políticos ou agentes do Estado”, o que excluía comunidades inteiras que haviam sido vitimizadas.85 Outras categorias de pessoas que não são normalmente designadas como vítimas incluem as populações deslocadas internamente, que na região dos Grandes Lagos somaram mais de 10 milhões.86
Perpetradores podem ter diferentes graus de responsabilidade na orquestração, perpetração ou no apoio a abusos de direitos humanos.87 Existem diversas situações nas quais a definição de “perpetrador” não se encaixa totalmente, levando a categorias de indivíduos com um “status moral e legal ambíguo.” Por exemplo, há casos em que malfeitores, ou indivíduos que se beneficiaram de crimes cometidos por outros mais tarde, resistem e lutam contra o regime repressor; há aqueles que primeiramente resistiram e combateram o regime e depois acabaram colaborando com ele; também há vítimas que, sob coação, colaboraram e facilitaram o trabalho de perpetradores; e assim por diante.88 Por essas e outras razões, diversos países conceberam novas abordagens para o tratamento de perpetradores que abrangem esta ambigüidade.
A ambigüidade pode também se aplicar às vítimas. Muitos soldados-crianças envolvidos em abusos de direitos humanos na África foram abduzidos e forçados a cometer atrocidades.89 Em Serra Leoa, a UNICEF trabalhou estreitamente com a Missão das Nações Unidas em Serra Leoa (UNAMSIL) para elaborar recomendações sobre como a Corte Especial deveria lidar com crianças que haviam cometido crimes.90 Em Uganda, onde as crianças abduzidas da comunidade Acholi preenchem as fileiras do LRA, o TPI afirma, “muitos dos membros do LRA são eles mesmos vítimas”.91 Em Serra Leoa e na República Democrática do Congo, onde houve uso extensivo de soldados-crianças, ou em outras situações em que mulheres ex-combatentes haviam sido estupradas ou combatentes em geral estavam cronicamente doentes ou incapacitados, muitos perpetradores são também vítimas.92
Numa definição ampla, perpetradores e beneficiários de abusos de direitos humanos podem incluir instituições, e atores estatais e não estatais, mesmo que ultrapassem fronteiras nacionais. Na República Democrática do Congo, muitas empresas foram implicadas como fomentadoras de conflitos e de abusos de direitos humanos, mas não existe nenhuma maneira clara de tratar de suas infrações.93 Serra Leoa tem corporações que se envolvem de modo similar na exploração de recursos e continuam com seu trabalho com impunidade quase completa, apesar de o Relatório Final ter concluído que o setor de diamantes incentivou a guerra. Ampliar a definição de “perpetrador” pode ter implicações tanto para a demanda de reforma institucional como para a atribuição de reparações. Por exemplo, o Estado talvez não fique tão inclinado a pagar reparações quando os abusos podem ser diretamente atribuídos a outras partes. Na África do Sul, o grupo de apoio às vítimas Khulumani processou diversas corporações por seu papel em facilitar o apartheid.94 Em Ruanda, o governo atribuiu alguma responsabilidade pelo genocídio aos franceses.95
Surge uma questão (política), quando se define “perpetrador”, a respeito de se os agentes que se opõem a um regime repressor devem ser tratados como perpetradores da mesma forma que os agentes do regime. Na África do Sul, onde vários observadores não encontraram equivalência moral entre as atrocidades cometidas pelo regime do apartheid e aquelas levadas a efeito pelos combatentes de liberação do Congresso Nacional Africano (CNA), o tratamento que a comissão de verdade deu aos dois lados gerou insatisfação. Em Serra Leoa, o chefe Sam Hinga Norman foi indiciado pela Corte Especial por agir como a “principal força no estabelecimento, organização, apoio, fornecimento de apoio logístico e promoção da CDF”, mesmo que a CDF tenha sido criada para defender a população dos rebeldes da RUF.96 Muitos habitantes de Serra Leoa encaravam Norman como herói e ficaram decepcionados com seu indiciamento por acusações de crime de guerra. Em Ruanda, alguns observadores têm notado a falta de reconhecimento por parte do governo dos crimes cometidos pelo Fronte Patriótico de Ruanda (RPF) contra a Interahamwe e as forças hutu derrotadas.97 Esse silêncio, observaram eles, cria uma fenda na retórica governamental de justiça e reconciliação nacional.
A definição de “vítima” também pode ter viés político. Em Gana, as medidas de reparação pré-NRC foram levadas a efeito para uma reabilitação das vítimas seletiva, partidária e não abrangente. A identidade das vítimas parecia mudar a cada administração, com cada uma delas reabilitando seletivamente vítimas que eram aliados políticos. Numa tentativa de fazer as coisas de modo diferente, a NRC procurou unificar os grupos adotando uma abordagem não partidária da reabilitação e fazendo amplas consultas junto à sociedade civil numa tentativa de cumprir suas atribuições de criar um “registro histórico acurado”, recorrendo às experiências tanto de presumíveis vítimas como de perpetradores.98
O uso amplamente disseminado da anistia nega às vítimas o direito de reparação, o que pode aumentar a urgência, ou a conseqüência, de outras medidas de justiça transicional. Igualmente comum é não processar, mesmo sem promessas formais de anistia. As justificativas são variadas: os julgamentos podem provocar violentas reações em situações em que a militarização ainda é forte; as provas necessárias podem ser escassas ou indisponíveis; a capacidade do novo Estado de investigar e processar pode ser reduzida por lealdades ao regime anterior; e os custos dos processos podem ser elevados.99
Existe uma tendência crescente, consistente com a lei e as normas internacionais, de excluir o genocídio, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade das anistias. Uma exceção similar é observada em Serra Leoa, onde o Acordo Lomé estende “perdão absoluto e irrestrito” a todas as facções armadas, e chega a estender a garantia de impunidade a “ex-combatentes, exilados e outras pessoas presentemente fora do país” por quaisquer crimes perpetrados na guerra, prometendo “assegurar que nenhuma ação oficial ou judicial” será empreendida contra eles.100 O Representante Especial do Secretário Geral acrescentou uma reserva, de que a ONU não iria respeitar uma anistia dada para crimes contra a humanidade e crimes de guerra, abrindo caminho para a atribuição da Corte Especial de processar aqueles que “tenham grande responsabilidade por sérias violações da lei humanitária internacional”.101
Existem diversos casos de anistias condicionadas, em princípio, por alguns fatores, dos quais o principal seria contar a verdade. No entanto, devido à experiência anterior, não fica claro em que extensão os casos de anistia negada poderiam resultar em processos, dada a fragilidade do Estado. Na África do Sul, líderes da transição popularizaram a troca de “verdade por anistia”, com a promessa de que aqueles que tivessem anistia negada por crimes políticos seriam processados mais tarde. Com o governo do apartheid controlando as forças de segurança, uma concessão como essa seria resultante da necessidade. No entanto, muitos afirmam que tem havido de facto uma anistia geral na África do Sul, já que a primeira sentença para uma pessoa a quem havia sido negada anistia foi expedida apenas em fevereiro de 2004,102 e, de acordo com alguns observadores, o caso particular foi escolhido mais por causa da facilidade de abrir processo do que pelo fato de poder servir para ilustrar qualquer padrão de abuso. Continua-se a especular a respeito de uma posterior “reabertura” do processo de anistia; em outras palavras, ouvir mais casos que não tivessem sido trazidos a público até o prazo final estipulado pelo Comitê de Anistia do TRC para se poder determinar se era o caso de garantir anistia. Alguns observadores temem que esse gesto fortaleça ainda mais a impunidade, já que parece dar prioridade a não processar aqueles a quem se negou anistia, e em vez disso estende ainda mais a anistia, contemplando aqueles que não a receberam da primeira vez. Apesar das expectativas frustradas associadas com o modelo sul-africano de um processo de troca de verdade por anistia, o acordo de paz da República Democrática do Congo oferece um processo similar, quando dá à comissão de verdade o poder de “propor à autoridade competente que aceite ou recuse qualquer aplicação de anistia individual ou coletiva por atos de guerra, crimes políticos e crimes de opinião”.103
O presidente Museveni, de Uganda, concedeu uma anistia ao LRA por meio da Lei de Anistia de 2000, condicionada ao fato de os soldados do LRA se apresentarem e repudiarem o combate.104 A anistia, defendida pelos líderes das comunidades mais afetadas pelo conflito e por outros atores, é vista como “uma ferramenta vital tanto para resolução do conflito como para a reconciliação a longo prazo”.105 Ela se aplica a “qualquer ugandiano” que possa ter sido combatente, prometendo que se tais pessoas se apresentarem elas “não deverão ser processadas ou sujeitas a qualquer forma de punição por… qualquer crime cometido”.106 Além disso, os líderes tradicionais da área mais afetada pelo conflito têm promovido uma campanha internacional de apoio à anistia total, solicitando a utilização de cerimônias tradicionais de absolvição par reintegrar todos os níveis do LRA. No entanto, a falta de reparação ocasionada pela anistia tem levantado cada vez mais discussões sobre outras medidas de justiça transicional, incluindo verdade, julgamentos e reparações.107 No geral, o recurso constante à anistia pode ser visto como algo que fortalece a impunidade.
Os programas DDR são cruciais para a segurança de qualquer situação pós-conflito, já que podem afetar a segurança onde outras medidas de justiça transicional estão para ser implantadas, assim como a disposição das vítimas e testemunhas em colaborar com qualquer desses processos. A segurança, por sua vez, pode aumentar ou diminuir a disposição do governo de assumir riscos pelo estabelecimento de medidas de responsabilização. Pelo menos 7 das 12 transições da África subsaariana vieram após violento conflito, com grande número de combatentes. Durante a transição, os ex-combatentes devem ser reabilitados e receber incentivos adequados para se reintegrarem à vida civil. Os programas DDR são considerados cruciais para uma transição estável, pois podem reduzir os temores quanto à segurança centralizando o uso das armas no Estado.108 Os programas DDR devem ser implementados como medidas holísticas com autoria e investimento locais, executadas com especial atenção às necessidades de crianças, mulheres, vítimas e civis não combatentes.109 Eles devem também dar tanta prioridade à reintegração e reabilitação como ao desarmamento e à desmobilização, sendo que a primeira é crucial para desenvolver a confiança civil.
Programas DDR ineficazes, incompletos ou mal elaborados têm como resultado óbvio aumentar a insegurança do ambiente no qual os mecanismos de justiça transicional são implementados, e por sua vez afetam fatores como: a capacidade política do novo regime de promover processos; a motivação que as testemunhas podem ter para se apresentar e testemunhar, seja perante comissões, seja perante tribunais; e a solidez e o alcance de programas de vetting e de reforma institucional. Tanto em Serra Leoa como na Libéria, ex-combatentes que foram novamente recrutados nos presentes conflitos da Costa do Marfim disseram que programas DDR incompletos e/ou desapontadores foram uma das razões para o seu rearmamento.110
Ao avaliar as opções DDR para a região dos Grandes Lagos, o Banco Mundial apontou a natureza regional do conflito envolvendo Ruanda, Uganda e a República Democrática do Congo como particularmente desafiadora, já que levou a um “dilema de segurança” no qual nenhum governo se dispõe a reduzir sua defesa (seja regular ou irregular), colocando desse modo um desafio a iniciativas abrangentes de desarmamento.111 Além disso, alguns grupos armados estão baseados em países estrangeiros, acrescentando a necessidade de repatriação a um processo que por si só já é complicado. Segundo o chefe do desarmamento para a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC), os antigos grupos armados de Ruanda agora conhecidos como FDLR (Forces Democratiques de la Libération de Rwanda) continuam a frustrar os esforços de desarmamento, em parte devido à sua incerteza quanto ao destino que os aguarda em Ruanda (aonde alguns oficiais, por exemplo, poderiam ser processados por sua atuação no genocídio de 1994).112
Os programas DDR podem parecer incompatíveis ou em tensão com metas de justiça transicional; estes programas dividem as sociedades em combatentes e não combatentes, e com freqüência enfrentam o dilema moral de parecer recompensar os perpetradores.113 Em Serra Leoa, a maior parte do trabalho dos DDR foi completada – e foram concedidos benefícios a ex-combatentes – antes que tivesse sido tomada qualquer medida de reparação às vítimas. Apesar dos ex-combatentes não terem ficado totalmente satisfeitos com o programa – havia queixas de que combatentes que haviam compartilhado armas não eram aptos a receber benefícios –, a queixa mais forte era da parte das vítimas, que perceberam que quem havia agido mal acabara recebendo mais, tanto durante o conflito como depois.114 Atualmente, anos depois dos ex-combatentes terem recebido suas “recompensas”, os benefícios de reparação às vítimas estão longe de serem determinados. Não seria insensato que as vítimas esperassem reparações de valor comparável ao dos benefícios dos DDR, já que a (provável) não liberação destes poderia aumentar a fragmentação social.115
A reintegração social dos combatentes na comunidade pode ser um passo crucial para a reconciliação. No entanto, os programas DDR podem atuar contra a reintegração social, especialmente quando são propostos como um processo de comprar de volta as armas visando à desmobilização e o desarmamento, abrindo mão da reintegração dos combatentes na comunidade.
A maioria dos esforços de justiça transicional na África descreve-se a si mesmo como voltada principalmente para a reconciliação – uma noção multidimensional, contestada. Desse modo, a definição de “reconciliação” vai afetar o desenho das medidas de justiça transicional e em última instância formar uma das bases sobre as quais o sucesso desses esforços será julgado. Entendida de diversas maneiras, a reconciliação é considerada por alguns como um pré-requisito, assim como um produto da democracia, desenvolvimento e respeito pela vigência da lei. Outros associam o termo a noções como curar, esquecer, perdoar, coexistir e desculpar. Esta noção controvertida é descrita como envolvendo fundamentalmente o estabelecimento da verdade:
Reconciliação, minimamente, é a condição sob a qual cidadãos podem confiar uns nos outros como cidadãos de novo (ou de outra forma). Isso significa que eles estão suficientemente comprometidos com as normas e valores que motivaram suas instituições vigentes, suficientemente confiantes em que aqueles que operam estas instituições o fazem com base naquelas normas e valores, e suficientemente seguros a respeito do compromisso de seus concidadãos de se aterem a essas normas e valores básicos.116
A reconciliação, portanto, pode ser vista como mais do que uma soma total do impacto produzido pela implementação de medidas de justiça transicional.117
Uma forte liderança moral foi apontada de diversas maneiras como tendo um papel-chave no processo de transição da África do Sul, que é visto como responsável por colocar em ação um processo de reconciliação nacional. Mesmo assim muitos países (africanos) não têm líderes descomprometidos e que inspirem confiança como o arcebispo Desmond Tutu e o presidente Nelson Mandela para dar liderança moral à sua transição, um fato que pode afetar a credibilidade de quaisquer iniciativas que estes países apóiem.118 Na República Democrática do Congo, a indicação de antigos chefes guerreiros como generais do exército trouxe “sérias dúvidas sobre o compromisso do governo congolês com a justiça e os direitos humanos”, e vai de maneira óbvia colocar obstáculos para que se possa criar confiança entre as instituições do Estado e a população.119 Em Serra Leoa, o chefe Hinga Norman, responsável por criar e organizar o CDF, serviu no governo até seu indiciamento por acusações de crimes de guerra.120
Em outras partes, a reconciliação é entendida como integralmente associada ao desenvolvimento econômico. Em casos onde a desigualdade na distribuição de recursos e a pobreza abjeta constituem algumas das causas fundamentais da guerra, a marginalização econômica continuada pode fazer com que a sustentação da transição fique difícil de conseguir. Em relação a Ruanda, o ex-presidente do Banco Mundial James Wolfensohn recomendou que “deve” haver um componente econômico para o processo de reconciliação em Ruanda,121 para colocar um pouco de substância na retórica vazia. No entanto, a África não tem tido casos em que o projeto de reconciliação esteja associado integralmente ao desenvolvimento social e econômico. Alguns especialistas sustentam que a distribuição da riqueza está além do âmbito da TRC da África do Sul.
Uma dificuldade-chave com a qual se defrontam os esforços para criar confiança nos cidadãos é a falta de uma distinção mais clara entre o projeto político de reconciliação e a reconciliação localizada, com especificidade cultural, interpessoal. Na África do Sul, parte da dificuldade em avaliar a contribuição da TRC para a reconciliação vem da falta de clareza a respeito do significado do termo.122 Resgatar os relacionamentos interpessoais e promover a cura (reconciliação individual) pode ser um empreendimento radicalmente diferente de um projeto político que vise estabelecer instituições estatais que respeitem a lei e a ordem e direitos humanos que assegurem a coexistência (reconciliação nacional).123 Como nem a constituição provisória nem a Lei de Unidade Nacional e Reconciliação oferecem uma “clara definição” de reconciliação, o termo ficou imbuído de diferentes significados em diferentes períodos. Enquanto o Arcebispo Tutu e outros criaram expectativas no público quanto à capacidade da TRC de promover a reconciliação inter-pessoal, a Lei da Comissão foi uma ferramenta moldada para promover a reconciliação impessoal, política.124 Em Serra Leoa, grandes seções de algumas comunidades não se apresentaram perante a comissão de verdade – apesar de terem sido desproporcionalmente afetadas pela guerra –, pois culturalmente elas não acreditavam que falar a respeito do conflito diante do projeto conduzido nacionalmente pudesse levar a uma cura (inter-pessoal) e a uma reconciliação.125 Nesse sentido, muitas vítimas pareceram mais preocupadas com a reintegração social de ex-combatentes do que com uma prestação pública de contas das atrocidades como uma forma de reconciliação, que era o que propunha a comissão de verdade.126
Enquanto muitos acadêmicos poderiam dizer que as medidas de justiça transicional são necessárias para se conseguir a reconciliação, alguns países consideram-se reconciliados de um modo que questiona essas suposições. Na parte rural de Angola e Moçambique, a guerra era encarada como uma contaminação, e os envolvidos em suas atrocidades eram ritualmente e não verbalmente purificados de seus crimes antes de serem acolhidos na comunidade. Esses rituais ocorriam num nível marcadamente local, e não nacional, e por meio deles os antigos perpetradores eram tratados e reconciliados com suas comunidades.127 Na Namíbia, o governo declarou o país reconciliado após os anos de apartheid, escolhendo um caminho totalmente diferente da comissão de verdade da vizinha África do Sul.128
Será que isso significa que esses países irão re-visitar seu passado em algum ponto do futuro, por causa da falta de medidas de busca da verdade em seus processos de reconciliação? Considerando a natureza freqüentemente ilegítima do Estado, deveriam as iniciativas de reconciliação informais ou baseadas em memória ou cultura ser encaradas como um fim em si mesmas, ou como contribuições para o estabelecimento de condições propícias para metas de justiça nacional mais ambiciosas? Será que a separação entre as noções de justiça e reconciliação permitirá que a justiça seja promovida no grau mais pleno possível (o que às vezes pode significar absolutamente nada, e com nenhum prejuízo claro) sem incluir nas conversações a controvertida noção de reconciliação? Enquanto a resposta a estas questões não ficar clara, é possível se esforçar para usar mais imaginação ao tratar da impunidade e da reconciliação na África, indo além do âmbito dos pressupostos implícitos sobre a natureza do Estado e a atuação dos cidadãos.
Existe uma tendência crescente de os Estados africanos pós-conflito e ditatoriais se engajarem numa retórica e em mecanismos voltados para combater a impunidade e promover a reconciliação.
Evidentemente, muitas das iniciativas tomadas estão cheias de problemas e com freqüência fracassaram em seus objetivos declarados. No mundo todo, mas especialmente na África, os processos por abusos de direitos humanos não são nem ágeis nem amplamente disseminados, em parte devido à limitada capacidade técnica, legal e política. Com bem poucas exceções, os julgamentos têm sido deixados de lado nas transições, e as anistias (incluindo as anistias de facto) se disseminaram. Processos internacionalizados, incluindo encaminhamentos ao TPI, são cada vez mais requisitados para solucionar os problemas dos julgamentos domésticos, mas mesmo estes têm alcance inerentemente limitado.
Em parte para reduzir a impunidade criada pela limitação nos processos, os Estados estão cada vez mais dando apoio a medidas de busca de verdade e de reparação que, nos contextos de recursos limitados e concessões políticas, podem ser vistos como desprovidas de boa fé, e muitas vezes prometem mais do que podem fazer, desapontando as vítimas. De fato, é provável que em muitos dos países considerados não haja condições para uma implantação bem-sucedida de mecanismos de relato da verdade.129 Similarmente, esforços de reforma institucional por meio da aplicação de vetting aos responsáveis por abusos também têm sido lentos e desiguais, embora este tipo de reforma seja considerado mais propício para oferecer as garantias necessárias à não recorrência dos abusos de direitos humanos.
Por que a impunidade continua disseminada na África, apesar da freqüência com que as medidas de justiça transicional são implementadas? Por que as estratégias de justiça transicional têm enfrentado muitas dificuldades e muitas vezes não conseguem atingir seus objetivos?130 Existe alguma coisa particular no contexto africano que talvez torne essas medidas inadequadas? Será que é necessário um mínimo de tradição democrática e força institucional para que essas medidas de justiça transicional sejam bem-sucedidas (talvez condições similares às da Europa do Leste e da América Latina, onde as medidas se originaram)? Uma possível explicação preliminar é que as dificuldades enfrentadas pelas medidas de justiça na África podem ser encontradas em parte na fragilidade das instituições estatais.131
A justiça transicional é tipicamente entendida dentro do contexto legal de responsabilidades do Estado, com a pressuposição implícita de um modelo de Estado institucionalizado, com seus órgãos “não coagidos pela dinâmica das pressões sociais”, numa sociedade composta por cidadãos cujas relações são mediadas pela lei mais do que por outros meios, como o parentesco.132 As medidas de justiça transicional, então, procuram em primeiro lugar criar ou restaurar a confiança entre o Estado e os cidadãos que se ajustam a certos parâmetros. No entanto, apesar das aparências, o Estado africano é freqüentemente “vão e ineficaz”, uma entidade deliberadamente e instrumentalmente informalizada na qual o fortalecimento da vigência da lei pode muitas vezes não corresponder à lógica da política.133 Em outras palavras, esforços no sentido de formalizar o Estado e estabelecer condições nas quais os cidadãos possam estar “suficientemente comprometidos com as normas e valores que motivaram suas instituições vigentes” – que é o que as medidas de justiça transicional procuram fazer – podem ir contra as práticas de um Estado no qual os governantes se beneficiem de um equilíbrio informal.134 Em Estados com instituições fracas, uma das conseqüências não pretendidas de algumas medidas de justiça transicional é que elas podem conferir “uma aparência de legitimidade a governantes que na verdade evitam a democratização e a vigência da lei”, permitindo que os líderes “falem em princípios de direitos humanos da boca para fora” sem substanciais mudanças no encaminhamento político.135 Tendo isso em mente como uma leitura possível das condições do Estado africano, é possível ver por que a implementação das medidas de justiça transicional, a partir de contextos institucionais muito particulares, pode levar a resultados incertos e mesmo a fracassar redondamente no atendimento das expectativas. Nesta leitura, a precariedade na institucionalização é fundamental para o baixo desempenho das medidas de justiça transicional. Em condições com poucas regras e poucas instituições legítimas, programas de processos e de vetting podem conflitar com a lógica clientelista do Estado informal, que rege a maior parte da política. O ato de instaurar um processo público, de busca da verdade, pode não ser necessariamente visto como um esforço bem intencionado no sentido de um auto-exame crítico, mas mais como a adoção da moeda da responsabilização e dos direitos humanos – bem parecida com a ratificação inconseqüente de vários instrumentos de direitos humanos internacionais –, o que pode reduzir o acesso a uma assistência desenvolvimentista. E embora existam apelos para um retorno aos modelos das Assembléias Nacionais, que facilitaram várias transições africanas no início da década de 1990 ao incentivarem odiálogo nacional sobre os fracassos passados e os caminhos futuros do Estado (incluindo recomendações sobre a divisão do poder), vale a pena sublinhar que seus resultados foram igualmente ambíguos.136
Embora identificar as possíveis origens das dificuldades enfrentadas pela justiça transicional não proporcione soluções óbvias, pode indicar a oportunidade das intervenções pós-conflito para centrar o foco na construção da capacidade do Estado e de suas instituições, a fim de que ele seja capaz de promover a justiça e os direitos humanos – uma intervenção descrita como “paradoxal”, já que em outras partes as intervenções em questões de direitos humanos pretendem restringir, mais do que fortalecer, o alcance das instituições estatais.137 Em termos simples, existe um grau mínimo de institucionalização do Estado acima do qual as políticas estatais, incluindo as medidas de justiça transicional, podem ser mais eficazes.138 As medidas de justiça transicional não podem ser implementadas num “deserto institucional”.139 Para os críticos, esse mínimo de institucionalização está fora do alcance da maioria dos países em transição, uma expressão do paradoxo de que as instituições de justiça têm maior probabilidade de serem bem sucedidas em Estados com alto nível de funcionamento e onde o “efeito demonstrativo” das medidas de justiça é menos necessário.140 Se a construção de instituições fosse considerado um ponto de partida importante, então o período a seguir, assim como os recursos oferecidos para a implementação de medidas de justiça transicional (especialmente agora que elas estão cada vez mais presente nas negociações de paz), refletiria a realidade complexa e de longo prazo.
Além disso, um reconhecimento consciente do papel central da institucionalização para o sucesso da justiça transicional permitiria equilibrar melhor as altas expectativas colocadas em tais medidas, assim como uma possível legitimização de uma exploração mais ampla de iniciativas além da busca de justiça e responsabilização centrada no Estado, freqüentemente apoiada em leis. Por exemplo: nos casos em que as boas intenções do governo em fomentar a confiança possam estar sendo questionadas, talvez devido à percepção de que o próprio Estado tenha contribuído para o abuso dos direitos humanos (casos de Uganda e Sudão); ou quando ele implementou algumas medidas de justiça transicional no passado (e desta forma tenha criado ceticismo entre a população sobre a utilidade de tais medidas); ou nas situações em que a guerra tenha assumido um caráter marcadamente local, mais do que de processos políticos (caso de Moçambique), em todos esses casos os processos localizados, informais, que buscam estabelecer a verdade, podem ser mais significativos.141
Como a justiça transicional pode conter elementos de lei, psicologia, memória, política, antropologia e cultura,142 as possíveis intervenções podem ser pensadas como assentadas num continuum, com um dos extremos consistindo nas medidas mais institucionais, legalistas, e o outro consistindo nas abordagens mais informais, culturais à responsabilização. Como este artigo apontou as fragilidades institucionais de vários Estados africanos, uma alternativa eficaz seria confrontar as atrocidades e abusos de direitos humanos já cometidos a partir do extremo localizado e cultural do espectro, possivelmente por meio das atividades artísticas e culturais no nível da sociedade.
Embora este artigo não tenha examinado essa questão em nenhum nível mais profundo, muitos teóricos e práticos em outros contextos exploraram estas abordagens alternativas. Na América Latina, por exemplo, freqüentemente sob a rubrica de “memória coletiva”, acadêmicos e práticos procuraram compreender e apoiar meios de lidar com o passado que não fossem dependentes das instituições do Estado e da política pública.143 Eles incluem teatro, exposições fotográficas e filmes, que têm tentado explorar as complicadas questões de por que e como as atrocidades passadas podem ter sido cometidas, ao mesmo tempo que tentam contribuir para um diálogo dentro da sociedade a respeito dos direitos humanos.144
Os museus sobre a consciência a respeito de direitos humanos, como o District Six Museum na África do Sul ou o Museu do Genocídio em Ruanda, também são meios cada vez mais comuns de tentar construir um diálogo comunitário sobre o passado.145 Esses esforços tentam conquistar espaço público e criar lembretes físicos, estímulos à conversação, ou lições de história provocativas a respeito do que aconteceu e do por quê. Eles operam ao nível da cultura local, e exigem que a sociedade lembre do que aconteceu. Como outras abordagens de justiça transicional, visam tanto o futuro como o passado.146
Mesmo com a adequada continuidade de medidas de justiça transicional e com um Estado legítimo e institucionalizado, a insuficiência de mecanismos nacionais em razão das implicações inter-regionais dos conflitos ainda constituiria um grande desafio. Seria difícil para a República Democrática do Congo ter uma comissão de verdade abrangente considerando que muitas pessoas implicadas estão além da fronteira, em Ruanda ou Uganda. Desafios similares além fronteiras existem no caso de Serra Leoa e em relação a perpetradores de origem liberiana, dos quais o mais visível é Charles Taylor.
É possível que mecanismos regionais, multinacionais, com uma nova fonte de legitimidade, como os instrumentos da União Africana, possam representar uma oportunidade de tratar desses desafios.147 Por exemplo, a Lei Constitutiva da União Africana condena genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade; o Conselho de Paz e Segurança da União Africana reveste-se do poder de recomendar uma intervenção num Estado que esteja perpetrando esses crimes; a Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD) reconhece a importância da “reconciliação pós-conflito” em andamento; e a Conferência para Segurança, Estabilidade, Desenvolvimento e Cooperação na África (CSSDCA), adotada pela OAU em 2000, declara a importância de combater a impunidade e processar os perpetradores.148 No entanto, não está claro se a União Africana tem capacidade de realizar estas tarefas; muitas ações dos Estados-membros contradizem abertamente essas declarações.149
Este artigo levanta várias questões que têm profundas implicações na capacidade da África pós-conflito e ditadura de ingressar genuinamente e de sustentar iniciativas inclusivas, legítimas, de transformação da sociedade. A despeito da severidade dos desafios descritos nos casos em que os esforços de justiça transicional fracassaram em atingir seus objetivos, inclusive propiciar um ambiente no qual os cidadãos possam aprender a confiar no Estado e corrigir as condições que levam a um conflito ou a um governo autoritário ou que os alimentem, mesmo assim trata-se de esforços com um propósito importante.150 A perspectiva crítica deste artigo não pretende diminuir a importância de implementar essas medidas, mas sim moderar a distância entre a realidade e as expectativas, e propor um reexame crítico dos pressupostos subjacentes à implementação das hoje corriqueiras intervenções de justiça transicional.151 Afinal, é bem provável que outros países africanos que estejam considerando iniciativas similares de justiça transicional vejam-se frustrados pela falta de um ambiente propício e venham a enfrentar desafios muito similares aos descritos neste artigo.
Por mais que as medidas de justiça transicional sejam implementadas a fim de fortalecer as instituições estatais, seu sucesso na prática depende da existência prévia de instituições estatais operantes. Esta conclusão pede uma avaliação exaustiva da base institucional dos países em transição antes de partir para a implementação da justiça transicional, pede que sejam alimentadas expectativas extremamente modestas a respeito do que é possível conseguir, e pede ainda uma exploração de paradigmas alternativos e/ou complementares para combater a impunidade e promover a reconciliação na África. Em última instância, os africanos necessitam imperativamente da priorização da reforma – ou (re)construção – das instituições estatais, e a comunidade internacional deve estar preparada para apoiar tais demandas com recursos adequados.
1. Uma versão mais completa desse artigo foi publicada pelo International Center for Transitional Justice, <http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006. Esse artigo foi escrito por Lydiah Bosire, Membro do Programa do International Center for Transitional Justice (ICTJ). O artigo foi orientado por discussões num encontro patrocinado pela Canadian International Development Agency (CIDA) em Bellagio, em abril de 2004, com líderes de ONGs africanas de países em transição. O encontro contou com a participação de Louis Bickford, Alex Boraine, E. Gyimah-Boadi, Brian Bright Kagoro, Matthew Kukah, Jennifer McHugh, Paul Nantulya, Surita Sandosham, Paul Simo, Graeme Simpson, Noel Twagiramungu e Nansata Saliah Yakubu. Agradecimentos a Louis Bickford, Pablo de Greiff, Roger Duthie, Kelli Muddell e Marieke Wierda pelos comentários. Louis Bickford e Sarah Rutledge colaboraram com assistência editorial. Os pontos de vista emitidos aqui são de responsabilidade da autora e não refletem necessariamente os do ICTJ.
2. A justiça transicional é freqüentemente definida como compreendendo processos, iniciativas de busca da verdade, reparações, medidas e reforma institucional. A reconciliação, um objetivo que costuma ser declarado pela justiça transicional, é uma noção controvertida que pode ser entendida de várias formas, embora essencialmente seja vista como o estabelecimento de confiança cívica, baseada em normas compartilhadas entre os cidadãos e entre estes e as instituições governamentais. Ver P. de Greiff, “The Role of Apologies in National Reconciliation Processes: On Making Trustworthy Institutions Trusted”, em The Age of Apologies, Mark Gibney e Rhoda Howard-Hassmann, eds., a ser lançado. Outros objetivos freqüentemente citados da justiça transicional incluem promover a “responsabilização” (não só a responsabilização criminal) e combater a “impunidade”. Embora se considere que as medidas de justiça transicional contribuem em diferentes graus para estas metas (acredita-se que os processos contribuem mais com a justiça e a responsabilização e as reparações com a reconciliação etc.), existem muitas sobreposições de sentido, a ponto desses objetivos serem às vezes usados de modo intercambiável.
3. Esses países incluem Burundi, Costa do Marfim, a República Democrática do Congo, Gana, Quênia, Libéria, Nigéria, Ruanda, Serra Leoa, África do Sul, Sudão e Uganda. Outros países cujas transições apresentam interesse são Angola, Tchade, Etiópia, Moçambique e Namíbia.
4. Os termos “África” e “África Subsaariana” são usados indistintamente, e devem ser entendidos como excluindo o Norte da África.
5. Estar “em transição” não significa que os países estejam necessariamente no caminho da democracia. Para mais sobre a natureza potencialmente errônea da “teologia democrática” implícita nuam compreensão linear da transição, ver T. Carothers, “The End of the Transition Paradigm,” Journal of Democracy, vol. 12, n.1, janeiro de 2002.
6. Ver P. Chabal e J. P. Daloz, Africa Works: Disorder as Political Instrument, Bloomington: Indiana University Press, 1999. Ver também B. Manby, “The African Union, NEPAD and Human Rights: The Missing Agenda”, Human Rights Quarterly 26, 2004, pp. 983–1027, e M. Tshiyeme, “Inventing the Multination: Would a United States of Africa Work?” Le Monde Diplomatique, setembro de 2000.
7. Agradecimentos a Vasuki Nesiah por este ponto: V. Nesiah, “Truth vs Justice,” Jeff Helsing e Julie Mertus, eds., in Human Rights and Conflict, Nova York: US Institute of Peace, 2005.
8. Nem “o povo” nem outras categorizações usadas neste artigo, como “vítimas” e “perpetradores”, constituem um bloco monolítico de interesses.
9. Vale destacar que esta genealogia não é de modo algum abrangente, e apresenta uma compreensão da justiça transicional muito particular. Há muitas interpretações possíveis daquilo que constitui justiça em tempos de transição, incluindo definições locais e específicas de determinados contextos, que podem levar a uma genealogia diferente.
10. Macmillan’s Encyclopedia of Genocide and Crimes against Humanity, out. 2004. Ver também N. Kritz, Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes, Washington, D.C.: US Institute for Peace, 1995.
11. L. Joinet, “The Administration of Justice and the Human Rights of Detainees—the question of the impunity of perpetrators of human rights violations (civil and political),” relatório final revisado preparado por L. Joinet conforme decisão da subcomissão 1996/119, E/CN.4/Sub.2/1997/20/Rev.1, 2 de outubro, 1997. Esses princípios foram revisados por Diane Orentlicher e apresentados à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Ver D. Orentlicher, “Report of the Independent Expert to Update the Set of Principles to Combat Impunity,” UN Doc. E/CN.4/2005/102, 2005, e “Updated Set of Principles for the Protection and Promotion of Human Rights Through Action to Combat Impunity,” UN Doc. E/CN.4/2005/102/Add.1, 2005.
12. Mesmo as medidas processuais mais bem consolidadas, como os Tribunais Criminais Internacionais para a antiga Iugoslávia e Ruanda (ICTY e ICTR), têm alcance e impacto limitados.
13. Ver P. B. Hayner, Unspeakable Truths: Facing the Challenge of Truth Commissions, Nova York: Routledge, 2001.
14. Ver L. Bickford, “Unofficial Truth Projects,” manuscrito; e L. Bickford, “Memoryscapes,” e, Ksenija Bilbija, Jo Ellen Fair, Cynthia E. Milton e Leigh A. Payne, eds., The Art of Truth-Telling about Authoritarian Rule, Madison: University of Wisconsin Press, 2005.
15. Ver P. de Greiff, Repairing the Past: Compensation for Victims of Human Rights Violations, a ser lançado.
16. Ibid.
17. A justiça transicional tem uma história que remonta ao período da democracia ateniense de 411 e 403 a.c. Ver J. Elster, Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective, New York: Cambridge University Press, 2004, pp. 1-23. Após os experimentos atenienses, Elster só encontra episódios “significativos” de justiça transicional em meados do século 20, quando o fim da Segunda Guerra Mundial anunciou a moderna transição para a democracia.
18. A análise de Ruti Teitel começa com as transições modernas, e não com as de Atenas na antigüidade. Mais sobre a genealogia da justiça transicional em “Human Rights in Transition: Transitional Justice Genealogy,” Harvard Human Rights Journal Vol.16, N.69, primavera de 2003, p. 71.
19. Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, aberta para adesões em 9 de dezembro de 1942, 78 U.N.T.S. 277 (entrando em vigor a 12 de janeiro de 1951). Interessante é o fato de que esse período serviu para solidificar a moderna compreensão dos direitos humanos e o que se entende por vítimas e perpetradores, de uma maneira – às vezes contestada – que continua a afetar a percepção de tais direitos.
20. A exceção digna de nota é a promulgação da Convenção sobre a Não-Aplicabilidade de Limitações Estatutárias a Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade, aberta para adesões em 26 de novembro de 1968, 754 U.N.T.S. 73 (entrada em vigor em 11 de novembro de 1970), assim como a adoção da Convenção sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid de 30 de novembro de 1963, 1015 U.N.T.S. 243 (entrada em vigor em 18 de julho de 1976).
21. Ver R. G. Teitel, nota 18 supra, p. 81.
22. Existe até uma sugestão para a criação de uma comissão de verdade permanente para explorar conflitos internacionais, assim como “outros tipos de desmandos e problemas internacionais”, particularmente o colonialismo e a dívida do terceiro mundo. Ver T. Forsbert e T. Teivanen, “Past Injustice in World World Politics Prospects of Truth-Commission-Like Global Institutions”, Crisis Management Initiative, Helsinki, 2004, p. 26.
23. Teitel declara que nesta fase da genealogia da justiça transicional, a justiça transicional é generosamente aplicada já que não fica claro o “limiar mínimo a partir do qual as inquiriões históricas, psicológicas ou religiosas devem ser caracterizadas como busca de justiça”. Ver nota 18 supra, p. 89.
24. Embora Ruanda não tenha empreendido uma transição negociada, a existência continuada de uma oposição ativa, armada, nos países vizinhos afeta as decisões políticas tomadas em relação à implementação de iniciativas de justiça transicional.
25. Em outras palavras, a transição é não teleológica, e as medidas de justiça aumentam as opções em vez de solidificar o movimento de um país numa direção determinada. Ver V. Nesiah, “Truth vs Justice”, in Jeff Helsing e Julie Mertus, eds., Human Rights and Conflict, Nova York: US Institute of Peace, 2005, p. 2. Segundo Thomas Carothers, a própria idéia de “transição” é confusa, à medida que “muitos países que os políticos e profissionais da ajuda insistem em chamar de ‘transicionais’ não estão numa transição para a democracia”. Ver nota 5 supra, p. 6.
26. Ou, em casos como os de Angola, Moçambique e Namíbia, decidiram não aplicar nenhuma das medidas de justiça transicional (pelo menos num nível oficial, governamental).
27. Muitos Estados africanos estão lutando tanto para a construção de um Estado como para promover a responsabilização. Já foi observado que a questão de um Estado ocioso “não parece um problema na Europa do sul ou na América Latina, as duas regiões que serviram como base experimental para a formação do paradigma da transição”. Ver Carothers, nota 5 supra, p. 9.
28. O uso repetido de medidas de justiça transicional pode aumentar o cinismo da população sobre sua utilidade. Agradecimentos a Pablo de Greiff por este ponto.
29. Orentlicher, Updated Set of Principles, nota 11 supra, no Princípio 1.
30. Estas sugestões preliminares não explicam suficientemente os desafios enfrentados pela justiça transicional na África. Fora da África, os dois Estados que podem ter experiências similares são Haiti e Timor-Leste.
31. Em particular, os processos aspiram mudar a “estrutura de recompensas” associada com várias ações, de modo que a existência de punição para uma ação possa reduzir a probabilidade de sua repetição. Ver Elster, nota 17 supra, p. 204.
32. Ver P. Seils, “A Promise Unfulfilled? The Special Prosecutor’s Office in Mexico”, junho de 2004, p. 18, disponível em <http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006. No entanto, nos casos em que a violência está mais disseminada na comunidade, considerar esses “principais responsáveis” como responsabilizáveis pode não ter muito sentido para as vítimas que continuam vendo seus perpetradores soltos.
33. Ver Human Rights Watch, “Chad: The Victims of Hissène Habré Still Awaiting Justice”, 17, no. 10(A), julho de 2005. Ver também Human Rights Watch, “Ethiopian Dictator Mengistu Haile Mariam”, 1999; Anistia Internacional, “Accountability Past and Present: Human Rights in Transition,” abril de 1995.
34. Ver F. Borello, “A First Few Steps: A Long Road to a Just Peace in the Democratic Republic of the Congo,” out. de 2004, pp. 20-26, disponível em <http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006. Ver também Human Rights Watch, “Democratic Republic of Congo: Confronting Impunity”, jan. de 2004.
35. Ver Human Rights Watch, “Making Justice Work: Restoration of the Legal System in Ituri, DRC”, set. de 2004. Ao processar indivíduos por crimes significativamente menores do que aqueles pelos quais foram responsáveis, “o sistema judicial em Ituri está minando sua própria credibilidade e colocando em risco sua legitimidade”.
36. Ver S’Fiso Ngesi e Charles Villa Vicencio, “Rwanda: Balancing the Weight of History,” in Eric Doxtader e Charles Villa-Vicencio, eds., Through Fire with Water, Rondebosch: Institute for Justice and Reconciliation, 2002, pp. 19-23.
37. O sistema, mesmo falho, pode ser uma alternativa preferível à detenção sem julgamento, que é de facto o que acontece.
38. Ver Anistia Internacional, “Sierra Leone: Ending Impunity – an Opportunity not to be Missed”, julho de 2000.
39. Ralph Zacklin declara que é “impossível” imaginar tribunais sendo instalados na Libéria, DRC ou Costa do Marfim, a despeito da natureza abominável das atrocidades cometidas, e a despeito do fato de que o Acordo Arusha para Burundi e o acordo Linas-Marcoussis para a Costa do Marfim pedirem responsabilização judicial. Ver R. Zacklin, “The Failings of Ad Hoc International Tribunals,” Journal of International Criminal Justice, número 2, 2004, p. 545.
40. Diálogo Intercongolês, Resolução no. DIC/CPR/05, março de 2005. Em relação ao programa de justiça criminal em Bunia, a Human Rights Watch ressaltou que um dos seus desafios é “a ausência no nível governamental de uma política clara para combater a impunidade”. Ver “Making Justice Work”, nota 35 supra.
41. Ver International Center for Transitional Justice, “The Special Court for Sierra Leone: The First Eighteen Months”, março de 2004, disponível em<http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006. Ver também Z. Bangura, “Sierra Leone: Ordinary Courts and the Special Court”, Open Society Justice Initiative, fev. de 2005, p. 57.
42. Para mais sobre a Tribunal Penal Internacional, ver Estatuto de Roma, UN Doc. A/CONF.183/9, 1998 (entrado em vigor em 1 de julho de 2002).
43. Com relação ao Zimbábue, Brian Kagoro ressaltou que entre alguns grupos do Zimbábue, se o Estado fosse processar um perpetrador, a comunidade à que pertencia esse perpetrador iria se sentir alvo de regras injustas por parte do Estado distante. Em vez disso, prefere-se favorecer os meios locais de responsabilização, nos quais as comunidades determinam as sanções adequadas para os infratores.
44. Para mais sobre o desafio que pode resultar de uma citação do LRA junto ao TPI, ver Refugee Law Project, “Whose Justice: Perception of Uganda Amnesty Act 2000: Potential for Justice and Reconciliation”, fev. de 2005.
45. Ver International Center for Transitional Justice and the Human Rights Center, “Forgotten Voices: A Population-Based Survey on Attitudes about Peace and Justice in Northern Uganda”, julho de 2005, disponível em <http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006.
46. Ver “Report of the Secretary-General on The Rule of Law and Transitional Justice in Conflict and Post Conflict Societies,” UN Doc. S/2004/616, 2004, em XIV, parág. 50. Ver também Hayner, nota 13 supra.
47. Ver Orentlicher, Updated Principles, nota 11 supra, Princípios 6-13. Ver também “Report of the Secretary General on The Rule of Law”, id. no parág. 51.
48. Para mais sobre o relacionamento entre a sociedade civil e as comissões de verdade, ver International Center for Transitional Justice, “Truth Commissions and NGOs: The Essential Relationship,” abril de 2004, disponível em <http://www.ictj.org>, acessado em 18 de agosto de 2006.
49. Ver Resolução DIC/CPR/04, disponível em <http://www.drcpeace.org/docs/finalreport1_1.pdf>, acessado em 18 de agosto de 2006.
50. O TRC tem como tarefa um ambicioso conjunto de metas de 10 pontos, incluindo estabelecer a verdade e a vigência da lei, inaugurar uma “nova consciência política” e trazer a reconciliação. Ver DIC/CPR/04, id. no parág. 6.
50. The TRC is tasked with a 10-point ambitious set of goals, including establishing truth and the rule of law, birthing a “new political consciousness”, and bringing about reconciliation. See DIC/CPR/04, id. at para. 6.
51. Ver A. Boraine, A Country Unmasked: Inside South Africa’s Truth and Reconciliation Commission, Nova York: Oxford University Press, 2000, pp. 71-72.
52. Ver DIC/CPR/04, nota 49 supra, parág. 10.
53. Uma seção da lei prevê a indicação de mais 13 membros da comissão, embora mesmo com isso os partidos políticos mantenham o controle. As mudanças propostas na composição da comissão não parecem ter chance de redimir a credibilidade da comissão. Ver Borello, nota 34 supra, pp. 41-42.
54. Sierra Leone Truth and Reconciliation Commission, “Witness to Truth: Final Report of the Truth and Reconciliation Commission for Sierra Leone,” Vol. 2, Capítulo 2: “Reparations”, parág. 197.
55. Rosalind Shaw, “Rethinking Truth and Reconciliation Commissions: Lessons from Sierra Leone”, United States Institute for Peace, Special Report 130, fev. de 2005, p. 5.
56. No entanto, outros têm declarado que as vítimas de fato acabam vencendo, já que seu testemunho forçava um perpetrador (quase sempre) socialmente mais elevado a se apresentar perante a NRC. Além disso, algumas pessoas acham que o ambiente formal, do tribunal, lhes dá poder.
57. Ver DIC/CPR/04, supra nota 49. Ver também Loi no. 04/018 du 30 Juillet 2004 portant organization, attributions et fonctionnement de la commission verite et reconciliation, 1er Aout 2004, Artigo 41 (nos autos).
58. Em Serra Leoa, vale destacar uma versão do relatório para crianças e outra em vídeo colocada à disposição de maneira relativamente rápida.
59. O TRC de Serra Leoa propôs que fossem feitas versões “populares” e “para crianças” do Relatório Final, ambas em forma escrita. Eles também tinham uma versão em vídeo.
60. Este é muito diferente do relatório final da comissão argentina, que foi um best-seller (embora isso não signifique necessariamente que tenha sido amplamente lido). Obrigado a Priscilla Hayner por esta observação.
61. Nos casos em exame, apenas a África do Sul implementou um programa de reparações, cujos desafios são discutidos em detalhe a seguir. Serra Leoa propôs um programa de reparações. Para uma análise detalhada dos programas de reparações, ver de Greiff, nota 15 supra.
62. Ver UN, “Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law”, C.H.R. res. 2005/35, UN Doc. E/CN.4/2005/ L.10/Add.11, 19 de abril de 2005, parág. 11.
63. Ver de Greiff, nota 15 supra.
64. Para mais sobre as importantes variáveis no projeto de programas de reparação, ver Ibid.
65. No entanto, o TPI está estudando um Fundo Mútuo para Vítimas.
66. Ver C. J. Colvin, “Overview of the Reparations Program in South Africa,” in de Greiff, nota 15 supra. Ver também A. Crawford-Pinnerup, “An Assessment of the Impact of the Urgent Interim Reparations” in From Rhetoric to Responsibility: Making Reparations to the Survivors of Past Political Violence in South Africa, Brandon Hamber e Thloki Mofokeng, eds., Johannesburg: Center for the Study of Violence and Reconciliation, 2000.
67. O governo permitiu o pagamento de reparações finais num total de US$ 80 milhões, muito menos do que os US$ 400 milhões que o TRC recomendou. Este pagamento baixo pode ter razões políticas que se sobrepõem à escassez de recursos.
68. Relatório Final do TRC de Serra Leoa, nota 54 supra, “Reparações”, parágs. 57, 58.
69. No entanto, esta é a abordagem mais pragmática às reparações num país como Serra Leoa, onde pedir medidas de reparação mais amplas (especialmente na forma de compensações em dinheiro) não seria realista e nunca viria a se realizar. Entrevista a Howard Varney, maio de 2005.
70. Por exemplo, uma vítima declarou perante o TRC, “O que me deixa perplexo é que os perpetradores recebem atenção, e nós que somos vítimas fomos deixados de lado”. Para mais a respeito do ressentimento das vítimas em relação aos perpetradores, ver Relatório Final do TRC de Serra Leoa, nota 54 supra, “Reparações”, parág. 38.
71. Ver Colvin, nota 66 supra.
72. Para mais sobre o Fundo Mútuo para as Vítimas, ver “Resolution on the Establishment of a Fund for the Benefit of Victims of Crimes Within the Jurisdiction of the Court, and of the Families of such Victims” (Resolution ICC-ASP/1/Res.6), adotada na terceira reunião plenária, em 9 de setembro de 2002, por consenso.
73. Em outras palavras (enquanto a real operação do Fundo ainda é obscura), existe a possibilidade de que fora uma vila de pessoas que sofreram crimes de guerra, apenas umas poucas vítimas cujos casos foram levados perante o TPI possam receber reparações. Nos ambientes pobres de recursos dos quais os primeiros casos do TPI provavelmente irão emergir – como Uganda, a República Democrática do Congo ou o Sudão – tal “privilégio” de algumas vítimas sobre outras poderia criar ressentimentos.
74. Para mais sobre desafios previstos para o Fundo Mútuo, ver P. de Greiff e M. Wierda, “The Trust Fund for Victims of the International Criminal Court: Between Possibilities and Constraints,” in The Right to Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations, Marc Bossuyt, Paul Lemmens, Koen de Feyter e Stephan Parmentier, eds., Bruxelas: Intersentia, a ser lançado.
75. Ver ONU, Relatório do Secretário Geral, parág. 52. Vetting é uma parte de uma abordagem múltipla de estratégias de reforma institucional ampla que pode incluir, entre outras coisas, transformar instituições antes repressoras e abusivas em instituições que respeitem a vigência da lei e tratem cidadãos com dignidade, e rever a legislação repressora.
76. O foco na reforma do pessoal é melhor explicado por Alexander Mayer-Rieckh, “Vetting, Institutional Reform and Transitional Justice: An Operational Framework”, International Center for Transitional Justice and UN Development Programme, a ser lançado. Ver também ONU, Relatório do Secretário Geral, parág. 53.
77. Mayer-Rieckh fornece uma detalhada estratégia operacional para vetting, que inclui uma estratégia de quatro enfoques, que consiste em avaliar a capacidade individual, a integridade individual, a capacidade organizacional e a integridade organizacional. Id.
78. Relatório Final do TRC de Serra Leoa, nota 54 supra, “Findings”, parág. 49.
79. Ibid., em “Recommendations”, parágs. 259-262.
80. Relatório Final do TRC de Serra Leoa, nota 54 supra, “Findings”, parág. 61.
81. Ver Mahmood Mamdani, “Amnesty or Impunity? A Preliminary Critique of the Report of the Truth and Reconciliation Commission of South Africa (TRC)”, Diacritics 32:3–4, outono/inverno de 2002, p. 33.
82. Segundo Mahmood Mamdani, esta definição limitada de perpetradores vem da maneira estreita com que foram definidas as “graves violações de direitos humanos” – neste ponto a Comissão escolheu focalizar os “conflitos do passado” de uma maneira individualizada, a ponto da questão do apartheid, do crime contra a humanidade, ter sido reduzida a um pano de fundo contextual. Para mais a respeito desta discussão, ver ibid., pp. 33-59.
83. Lei da Promoção da Unidade Nacional e da Reconciliação, 1995, capítulo 1 (ix).
84. Ibid., Capítulo 1 (xix).
85. Mamdani, nota 81 supra, p. 38.
86. Números do projeto Global IDP, 2001, disponível em www.idpproject.org. Ver também Banco Mundial, “Greater Great Lakes Regional Strategy for Demobilization and Reintegration”, Relatório No. 23869-AFR, 25 de março de 2003, p. 2.
87. Jon Elster identifica quatro categorias de indivíduos que cometem infrações: os que expedem ordens, os que executam as ordens, os que agem como elos intermediários entre as ordens e sua execução e aqueles que facilitam as infrações. Ver nota 17 supra, p. 118. A determinação da gravidade dos crimes cometidos por perpetradores – em outras palavras, o que constitui “ser o mentor” ou “facilitador” – pode ser uma tarefa difícil devido em parte à sua natureza subjetiva.
88. Ibid., p. 99-115.
89. Ver “Cape Town Principles and Best Practices on the Recruitment of Children into the Armed Forces and on Demobilization and Social Reintegration of Child Soldiers in Africa,” 27-30 de abril de 1997.
90. Ver carta datada de 31 de janeiro de 2001 do presidente do Conselho de Segurança endereçada ao Secretário Geral, ONU Doc. S/2001/95, declarando que seria “extremamente improvável que infratores juvenis comparecessem de fato perante a Corte Especial”.
91. Ver International Criminal Court, “President of Uganda refers situation concerning the Lord’s Resistance Army (LRA) to the ICC”, Haia, 29 de janeiro de 2004. O LRA abduziu mais de 10 mil crianças. Ver Human Rights Watch, “Stolen Children: Abduction and Recruitment in Northern Uganda”, 15, No.7(a), março de 2003.
92. Ver IRIN, “Burundi: Demobilisation of child soldiers begins”, 26 de janeiro de 2004. Sobre crianças-soldados na República Democrática do Congo, ver Anistia Internacional, “DRC: Children at War”, AFR62/034/2003, 0 de setembro de 2003. Na Libéria, os organismos da ONU avaliam que mais de 15 mil crianças foram usadas nos combates.
93. Para mais sobre o papel das companhias no conflito da República Democrática do Congo, ver UN, “Final report of the Panel of Experts on the Illegal Exploitation of Natural Resources and Other Forms of Wealth of the Democratic Republic of the Congo”, S/2002/1146, 16 de outubro de 2002.
94. Khulumani et al. v. Barclays National Bank Ltd. et al. Foi movido processo em Nova York contra 22 corporações que investiram na África do Sul do apartheid. Nunca antes foi solicitado que empresas comparecessem perante o TRC, e a África do Sul não tem uma lei que possa responsabilizar corporações por abusos de direitos humanos. O processo foi mais tarde arquivado devido a uma garantia concedida pelo ministro da justiça em favor do governo da África do Sul. Khulumani entrou com um recurso. Entrevista a Marjorie Jobson, chefe do Gabinete de Khulumani, Johannesburg, maio de 2005. Ver também Cohen, Milstein, Hausfeld e Toll, International Lawsuit Filed on Behalf of Apartheid Victims, P.L.L.C., disponível em <www.cmht.com/cases_cwapartheid1.php> e em <http://khulumani.net/content/category/4/7/63>, acessado em 11 de setembro de 2006.
95. BBC News, “Rwanda Inquiry into French Role”, 1 de agosto de 2004.
96. Ver Special Court for Sierra Leone, The Prosecutor v. Sam Hinga Norman, Caso No. SCSL-03-1, disponível em <www.sc-sl.org/normanindictment.html>, acessado em 11 de setembro de 2006. Ver também Relatório Final do TRC de Serra Leoa, “Findings”, nota 54 supra, parág. 332.
97. Ver, e.g., ver International Federation for Human Rights, “Victims in the Balance Challenges ahead for the International Criminal Tribunal for Rwanda”, No. 329/2, novembro de 2002, p. 16.
98. Mesmo então, devido a precedentes históricos, os defensores do regime de Jerry Rawlings, assim como o Conselho Revolucionário das Forças Armadas, sentiram-se alvo da NRC, e viram isso como mais uma decisão partidária.
99. Por exemplo, em Gana, após uma década de governo militar, uma constituição de 1992 favorável a uma anistia foi votada e passou a existir após referendo, no interesse da “paz e da estabilidade.” Por esta época, o governo militar ainda era poderoso. Estas medidas permanentes asseguraram que pessoas como o ex-presidente Jerry Rawlings não seriam processadas. Ver Eric Darko, “Ghana NRC: Looking Back and the Way Forward”, a ser lançado. Para mais razões pelas quais anistias podem ser empreendidas como uma escolha política, ver Paul van Zyl, “Justice Without Punishment: Guaranteeing Human Rights in Transitional Societies,” in Looking Back/Reaching Forward: Reflections in the Truth and Reconciliation Commission of South Africa, Charles Villa-Vicencio e Wilhelm Verwoerd, eds., Cidade do Cabo: UCT Press, 2000, pp. 42-47; e Diba Majzub, “Peace or Justice?” Amnesties and the International Criminal Court,” Melbourne Journal of International Law 3, outubro de 2002, pp. 251-252.
100. Acordo de Paz de Lomé, Parte 3, Artigo IX.
101. UN, “Agreement between the United Nations and the Government of Sierra Leone on the Establishment of a Special Court for Sierra Leone”, Artigo 1. De modo interessante, o TRC de Serra Leoa concluiu, “A comunidade internacional sinalizou para os combatentes em futuras guerras que não se deve confiar em acordos de paz contendo cláusulas de anistia e, ao fazer isto, minou a legitimidade de iniciativas de paz nacionais e regionais como essas”. Ver Relatório Final do TRC de Serra Leoa, nota 54 supra, “Executive Summary”, parág. 68.
102. Conversações com Madeline Fullard sobre o caso de Gideon Nieuwoudt (Ver Center for Studies of Violence and Reconciliation, Press Release, 11 de fevereiro de 2004). Para mais sobre este caso, ver U.S. Department of State, “South Africa: Country Practices on Human Rights Practices – 2004”, lançado pelo Bureau of Democracy, Human Rights and Labor, 28 de fevereiro de 2005, Seção 4, disponível em <www.state.gov/g/drl/rls/hrrpt/2004/41627.htm>, acessado em 11 de setembro de 2006.
103. Ver Borello, nota 34 supra, p. 43.
104. Lei de Anistia, 2000.
105. Ver Refugee Law Project, “Whose Justice? Perceptions of Uganda’s Amnesty Act 2000: The Potential For Conflict Resolution and Long-Term Reconciliation”, fevereiro de 2005, p. 5.
106. Lei de Anistia 2000, Parte II 3(1).
107. Ver “Forgotten Voices”, nota 45 supra, pp. 22-36.
108. Ver “Greater Great Lakes”, nota 86 supra, p. 13. Em Serra Leoa, tem-se afirmado que a natureza incompleta da DDR, tanto em 1997 após o Acordo de Abidjão como em 1998-1989, contribuíram para o fracasso dos processos de paz.
109. Ibid., pp. 57-58.
110. Ver também Human Rights Watch, “Youth, Poverty and Blood: The Lethal Legacy of West Africa’s Regional Warriors”, 17 no. 5A, março de 2005, p. 4.
111. Ver “Greater Great Lakes”, nota 86 supra, p. 14.
112. Ver Peter Swarbrick, “DDRRR: Political Dynamics and Linkages” in Challenges of Peace Implementation: The UN Mission in the Democratic Republic of the Congo, Mark Malan e João Gomes Porto, eds., Pretória: Institute for Security Studies, novembro de 2003, pp. 166-167.
113. Embora exista uma distinção entre “perpetradores” de abusos de direitos humanos e “ex-combatentes” (alguns dos quais podem não ter cometido abusos), não havendo informação em contrário, muitas vítimas podem combinar os dois conceitos.
114. Ver nota 54 supra, “Reparations”, parág. 37.
115. Ver nota 54 supra, “Reparations”, parág. 74.
116. Ver de Greiff, nota 2 supra.
117. Pablo de Greiff afirma que mesmo que os julgamentos, busca de verdade, vetting e reparações fossem todos executados com algum grau de sucesso, a sociedade não ficaria automaticamente reconciliada. Id.
118. A questão da liderança moral é separada (embora relacionada) da questão do vetting discutida anteriormente.
119. Ver Human Rights Watch, “DR Congo: Army should not appoint war criminals”, 14 de janeiro de 2005.
120. O antigo ministro da defesa, a quem o chefe Norman se reportava durante a guerra civil, é o atual presidente de Serra Leoa.
121. Governo de Ruanda, “President Kagame Commends Rwanda-World Bank Relationship”, disponível em <www.gov.rw/government/071602.html>, acessado em 11 de setembro de 2006. O presidente do Banco Mundial declarou “Para parar com a raiva e o rancor, é preciso construir esperança”.
122. Para uma discussão mais longa sobre essas duas dimensões de reconciliação, assim como sobre os desafios que surgem quando se confunde uma com a outra, ver Tristan Anne Borer, “Reconciling South Africa or South Africans? Cautionary Notes from the TRC”, African Studies Quarterly 8:1, outono de 2004. Para um tratamento mais amplo do assunto e das várias maneiras pelas quais ele pode ser entendido, ver de Greiff, nota 2 supra.
123. As duas dimensões da reconciliação podem contribuir uma com a outra de maneiras óbvias. A reconciliação nacional/política e o constitucionalismo podem dar ensejo à reconciliação interpessoal, mas o pré-requisito de uma reconciliação política nesses moldes não é que os indivíduos no espaço político gostem uns dos outros e se reconciliem, mas que seus relacionamentos sejam mediados por leis aplicáveis de modo uniforme. Borer faz uma importante recomendação a respeito de os processos serem explícitos e deixarem claro que tipo de reconciliação eles objetivam, para evitar confusão.
124. Borer, nota 122 supra, p. 32.
125. Ver Shaw, nota 55 supra.
126. Em outras palavras, é possível que partes da população tenham entendido a reconciliação promovida pela comissão nacional da verdade no nível interpessoal, e achado que ela foi incapaz de atender às suas expectativas, ou mesmo que foi contrária às suas práticas culturais.
127. Ver Alcinda Honwana, Children of War: Understanding War and War Cleansing in Mozambique and Angola,” in Civilians in War, Simon Chesterman, ed., Boulder, Colo.: Lynne Rienner Publishers, 2001. Ver também Alcinda Honwana, “Sealing the Past, Facing the Future: Trauma Healing in Rural Mozambique,” in Jeremy Armon, Dylan Hendrickson e Alex Vines, eds., The Mozambican Peace Process in Perspective, Accord Series, Londres: Conciliation Resources, 1998.
128. Ver Paul Conway, “Truth and Reconciliation: The Road Not Taken in Namibia,” Online Journal of Peace and Conflict Resolution, 5.1, verão de 2003, pp. 66-76.
129. Ver “Truth Commissions and Transitional Justice: A Short Guide”, Anistia Internacional, Seção Holandesa, setembro de 2003, p. 9.
130. Isso não deve fazer supor que as recentes iniciativas de justiça transicional em países como o Haiti ou Timor-Leste tenham sido mais bem-sucedidas do que as analisadas aqui.
131. Existem muitos outros problemas com a justiça internacional, dos quais a justiça transicional é um subconjunto, que obviamente têm influência significativa na maneira pela qual a justiça transicional é implementada na África. O problema mais amplo é que a justiça nos países pobres fica às vezes refém do financiamento e da política internacional. Ver Charles T. Call, “Is Transitional Justice Really Just?” Brown Journal of World Affairs XI:1, verão/outono de 2004. Também é importante assinalar que a discussão sobre o “Estado fraco” não confina a responsabilidade por essa condição apenas ao Estado. É possível que um Estado seja fraco devido a muitas ações, incluindo as de terceiros, como as empresas multinacionais. Agradecimentos a Yasmin Sooka por esta observação.
132. Ver Chabal, nota 6 supra, pp. 5-6.
133. Ibid., pp. 14, 136.
134. Ver de Greiff, nota 2 supra.
135. Parece que países e líderes querem a responsabilização, nem que seja pelo simples fato de que ela aumenta sua legitimidade e respeitabilidade no nível internacional. Por outro lado, eles não se dispõem a pagar o preço de processos significativos, pois razões como falta de recursos econômicos, de vontade política e de infra-estrutura adequada para auxiliar a reforma são todas muito comuns, como são comuns também processos cuja autenticidade é questionável, devido à culpabilidade dos que estão envolvidos na elaboração e implementação das estratégias de responsabilização. Chabal, nota 6 supra, p. 37. Existem vários motivos para isso, um dos quais é obter acesso a fundos internacionais. Afinal, os governos não costumam prestar contas de seu histórico de direitos humanos. Ver também Jack Snyder e Leslie Vinjamuri, “Trials and Errors: Principle and Pragmatism in Strategies of International Justice”, International Security Vol. 28, N. 3, verão 03/04, pp. 33, 42.
136. Dominique Bangoura, “National Conferences: The Only means for Overcoming Crises”, African Geopolitics 17 (inverno de 2004-2005).
137. Ver Manby, nota 6 supra, p. 1024.
138. Os envolvidos na justiça transicional não podem escapar do fato de que a infra-estrutura do Estado é crucial para o sucesso de seu trabalho. Com um argumento similar ao utilizado no desenvolvimento em relação à “armadilha de pobreza” – um limiar abaixo do qual os países não podem mais obter vantagens do comércio ou do investimento devido a doenças, baixas poupança e pobreza –, pode-se achar uma analogia em países pós-conflito quanto à justiça transicional. Abaixo de um certo mínimo institucional (que pode ser concebido como um grau de institucionalização correspondente às condições vigentes nos países em que a justiça transicional foi estabelecida pela primeira vez, embora sua natureza precisa seja uma questão de pesquisa empírica, além do escopo deste artigo), as medidas de justiça transicional podem ser implementadas, mas não se pode esperar que produzam os resultados desejados. Acima deste mínimo, no entanto, elas são capazes de contribuir de maneira sustentada para estabelecer a vigência da lei e da justiça, como se imagina na teoria. De modo similar ao que ocorre para o desenvolvimento, abaixo de um certo mínimo a comunidade internacional pode ser vista como tendo responsabilidade de ajudar o país a sair da armadilha investindo em infra-estrutura básica e legal, assegurando que os salários da polícia sejam pagos em dia etc. Obrigado a Roger Duthie por assinalar este paralelo. Para ler mais sobre armadilhas da pobreza, ver Millennium Project, “Investing in Development: A Practical Guide to Achieving the Millennium Development Goals”, UNDP: Nova York, 2005, pp. 32-43.
139. Ver Snyder, nota 135 supra, p. 12.
140. Ibid, p. 25.
141. Isso não deve ser tomado como se fosse um apoio à abordagem de Moçambique, mas como uma ampliação do conjunto de alternativas a serem exploradas nas transições. Para mais sobre várias iniciativas locais e sua potencial contribuição para a reconciliação, ver Roger Duthie, “Transitional Justice at the Local Level”, manuscrito.
142. Obrigado a Roger Duthie por este ponto.
143. Ver a coleção de livros editados pela acadêmica argentina Elizabeth Jelin para o projeto do Conselho de Pesquisa de Ciências Sociais sobre Memória Coletiva e Repressão no Cone Sul, disponível em <www.ssrc.org/fellowships/coll_mem/memory_volumes.page>, acessado em 11 de setembro de 2006.
144. Embora essas abordagens não dependam de instituição estatal, elas podem requerer uma infra-estrutura básica que proteja a liberdade de expressão Podem também beneficiar-se das políticas públicas que tornam os recursos disponíveis para artistas e para a sociedade civil.
145. Ver Valmont Layne, “The District Six Museum”, in Transitional Justice and Human Security, in Alex Boraine e Sue Valentine, eds., Cidade do Cabo: International Center for Transitional Justice and Japanese International Development Agency, 2006.
146. Isso não implica que medidas culturais sejam necessariamente parciais e isentas de aspectos políticos. Ver Bickford, Louis, “Memory, Museums, and Memorials: Building a New Future”, in Transitional Justice and Human Security, id.; e Ksenija Bilbija, Jo Ellen Fair, Cynthia E. Milton e Leigh A. Payne, eds., The Art of Truth-Telling about Authoritarian Rule, Madison: University of Wisconsin Press, 2005.
147. Ver Tshiyeme, supra nota 6.
148. Lei de Constituição da União Africana, adotado em 11 de julho de 2000 Artigo 4(h); Protocolo do Estabelecimento do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, adotado pela 1ª Sessão Ordinária da Assembléia da União Africana, Durban, 9 de julho de 2002, Artigo 7(e); Nova Parceria para o Desenvolvimento da África, adotada pelo 37a Cúpula da OUAS em julho de 2001, parág. 74; Declaração Solene da CSSDCA, adotada pela trigésima sexta Sessão Ordinária da Assembléia de Chefes de Estado e de Governo da OUA, Lomé, Togo, julho de 2000, AHG/Decl.4 (XXXVI) 2000. Ver especialmente os itens (k) no subtítulo “segurança” e (l) no subtítulo “estabilidade”, depois do Plano de Ação.
149. Ver Manby, nota 6 supra, pp. 1005-1011.
150. Tomar medidas que pareçam corrigir causas básicas empreendendo uma variedade de processos públicos que acabam não corrigindo de fato essas causas pode ser problemático: os processos de paz têm ficado conhecidos por fazer o tiro sair pela culatra, e levar os países em transições a viver novos ciclos de repressão e abuso.
151. Tais pressupostos são subjacentes, por exemplo, aos baixos padrões de financiamento internacional para esses mecanismos, à sucessão de iniciativas etc.