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Forças armadas, Comissão da Verdade e Justiça Transicional no Peru

Gerardo Arce Arce

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RESUMO

Nos últimos anos, o Peru tem atravessado um processo em grande medida decisivo para as relações entre as forças armadas e as esferas política e civil da sociedade marcadas, particularmente, pelo estabelecimento de uma Comissão da Verdade e Reconciliação e pela judicialização das violações de direitos humanos ocorridas durante o conflito armado interno, protagonizado pelo grupo terrorista Sendero Luminoso e pelas forças de segurança do Estado (1980-2000). Esse processo provocou críticas ferozes por parte das forças armadas, por meio de uma série de discursos e estratégias que buscavam limitar seu escopo, o que se deu pela demanda constante por respaldo político e jurídico de autoridades políticas para que a Comissão pudesse exercer suas funções.

Palavras-Chave

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1. Introdução

É plausível afirmar que o controle civil das forças armadas, entendido de maneira ampla como a “capacidade de um governo civil democraticamente eleito de conduzir as linhas gerais da política sem intromissão dos militares, de definir as metas e a organização geral do sistema de defesa nacional, bem como formular e levar a cabo uma política de defesa e monitorar a implementação da política militar” (AGÜERO, 1995, p. 47), seja um dos principais requisitos para a consolidação da democracia. Na América Latina, após a queda dos governos militares e o período de transição para a democracia na década de oitenta, esses processos têm atingido resultados distintos: em alguns países, verifica-se um avanço na institucionalização dos ministérios de Defesa e redução de prerrogativas institucionais das forças armadas; ao passo que, em outros países, o caminho tem sido mais longo e tortuoso, verificando-se, em muitos casos, resistências por parte dos militares à cooperação com esse processo e, em outros, retrocesso no que diz respeito à justiça transicional em sociedades que passaram por conflitos armados internos ou episódios de violência política e repressão por parte do Estado.

Peru representa um bom exemplo deste último caso, onde nos últimos anos tem transcorrido um momento em grande medida decisivo para as relações entre as forças armadas e as esferas política e civil da sociedade: o processo de justiça transicional após o fim do regime de Alberto Fujimori (1990-2000) e o estabelecimento de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, encarregada de averiguar e esclarecer a responsabilidade pelas violações de direitos humanos ocorridas durante o conflito armado interno, protagonizado pelo Sendero Luminoso e as forças de segurança do Estado.

Neste contexto, o objetivo das páginas seguintes é analisar os discursos e estratégias desenvolvidos pela corporação militar diante desses eventos, o que, por sua vez, nos ajudará a compreender a abrangência e as limitações da reforma do setor de defesa no período posterior à transição para a democracia, bem como quais são os efeitos gerados pelo processo de violência política vivido pelo Peru entre 1980 e 2000 – o qual, seguramente, ainda persiste em algumas regiões do país – sobre as relações entre as forças armadas e as esferas civil e política da sociedade.

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2. A transição para a democracia no Peru

Diante da renúncia de Alberto Fujimori da presidência em novembro de 2000, instalou-se no Peru um governo de transição (de novembro de 2000 a julho de 2001), liderado por Valentín Paniagua, com o principal objetivo de organizar eleições limpas e transparentes, garantir o devido processo legal nas ações judiciais que haviam sido instauradas por denúncias de corrupção contra agentes políticos do fujimorismo, bem como devolver o poder a um novo governo democraticamente eleito. Neste contexto, quando veio a público a notícia de uma rede de corrupção liderada por Montesinos dentro das Forças Armadas, e diante do crescente descrédito destas perante a opinião pública, o governo de transição de Paniagua não enfrentou muitos obstáculos para destituir toda a cúpula militar 1 e gerar as condições para que o Poder Judiciário os processe, com respeito integral às garantias do devido processo legal, por todos os atos de corrupção cometidos.

Esse processo foi acelerado por um fator inesperado: a divulgação em abril de 2001 da “Acta de sujeción”, assinada em 1999 por praticamente todos os oficiais de alto escalão das Forças Armadas, na qual corroboravam o autogolpe de 1992, a política contrassubversiva implementada pelas Forças Armadas durante o conflito armado interno, e as leis de anistia:

A participação das Forças Armadas … na decisão adotada pelo governo do senhor presidente da República em 5 de abril de 1992 foi um ato intencional e serenamente premeditado, já que o respaldo e apoio a essa decisão foram expressos pelo desejo institucional unânime dos membros das Forças Armadas, PNP e setores do Sistema de Inteligência Nacional.
(…)
Ressaltar que a nação promulgou leis de Anistia Geral que estão em plena vigência, nas quais estabelece-se muito claramente que estão isentos de responsabilidade, institucional ou individual, militares, policiais e agentes de inteligência que tenham participado da luta contra o terrorismo.
Declarar que as Forças Armadas (…) assumem o compromisso institucional, sem prazo, de defender, proteger e expressar solidariedade a seus integrantes caso sejam responsabilizados, processados ou sofram qualquer tipo de represália, não obstante a plena vigência das leis de anistia, por sua participa ção na luta contra o terrorismo.

Cerimônia de Ingresso de Generais e Almirantes, 13 de março de 1999.
(PERU, 2004, p. 3503-3505).

Embora seja plausível argumentar que a assinatura dessa declaração tenha sido um ato compulsório, ao qual os militares tenham sido obrigados pelos Montesinos (apesar de que alguns generais poderiam formular boas desculpas para não estarem presentes nesse momento), também se pode afirmar que o conteúdo desta declaração reflete, em grande medida, o sentimento dos comandos militares ao final do governo de Fujimori: o temor de que, caso Fujimori não fosse reeleito, e a oposição ganhasse as eleições de 2000, os generais que teriam apoiado o golpe de 1992 seriam processados ou sofreriam sanções penais, bem como todos os integrantes das forças militares que cometeram violações de direitos humanos durante a luta contra a subversão.

Em razão da divulgação desse pronunciamento, o governo de transição exonerou 50 generais de divisão e generais de brigada do Exército, 20 vice-almirantes e contra-almirantes da Marinha e 14 generais da Aeronáutica que haviam assinado essa declaração ( ROSPIGLIOSI; BASOMBRIO, 2006, p. 46). Além disso, os Comandantes Gerais das três forças armadas e o Diretor Geral da PNP (Polícia Nacional do Peru) colocaram os seus cargos à disposição e emitiram um comunicado em que pediam desculpas ao povo peruano pela participação institucional das forças armadas no golpe de 1992, criticaram a sua própria participação no governo de Fujimori e apoiaram a criação de uma Comissão da Verdade, ressaltando:

Seu compromisso de desempenhar suas funções dentro do marco do respeito aos direitos humanos, reforçar valores morais e, consequentemente, de combater firme e permanentemente qualquer indício de corrupção ou má-conduta institucional que comprometa tais valores e princípios. Por isso, apoia as iniciativas voltadas a formar e estabelecer uma Comissão da Verdade que permita a união e reconciliação nacionais, fundada na justiça e em uma averiguação equilibrada e objetiva dos fatos e circunstâncias nas quais foram realizados os esforços para a pacificação nacional.
Comunicado assinado pelos três Comandantes Generais e pelo Diretor Geral da PNP, em 17 de abril de 2001 (ROSPIGLIOSI; BASOMBRIO, 2006, p. 48).

Esse giro de 180 graus, em um lapso de tempo de menos de dois anos, deve-se não somente à mudança na condução das forças armadas (nos referimos à troca do comando das forças armadas), mas sobretudo à fragilidade política destas após a queda da rede de Montesinos e a divulgação de casos de corrupção. Esses fatores podem ajudar a explicar a aparente convicção da nova cúpula militar sobre a pertinência da criação de uma Comissão da Verdade.

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3. A Comissão da Verdade e Reconciliação

Em junho de 2001, prestes a concluir seus breves oito meses de governo, o ex-presidente Valentín Paniagua instaurou a Comissão da Verdade com o seguinte mandato: “esclarecer o processo, os fatos e responsabilidades pela violência terrorista e pela violação dos direitos humanos entre maio de 1980 a novembro de 2000, imputáveis tanto a organizações terroristas como a agentes do estado…” (PERU, 2001). Da mesma forma, entre os objetivos da Comissão estava elaborar propostas para indenizar e prestar homenagem às vítimas e seus familiares, bem como “recomendar reformas institucionais, legais, educacionais e outras, como medida preventiva, para que sejam viabilizadas e implementadas por meio de iniciativas legislativas, políticas ou administrativas” ( PERU, 2001).

Segundo um dos próprios comissários, a decisão de nomear uma Comissão da Verdade foi “produto do acordo entre um setor muito bem articulado, embora pequeno, da sociedade civil formado pela coalizão de defensores de direitos humanos e democratas radicais, com a ala política do governo favorável a essas mesmas causas” ( AMES, 2005, p. 32). Ao que diz respeito a nossa visão desse processo, queríamos destacar que o fato de a comissão ter sido estabelecida por um decreto supremo, norma hierarquicamente inferior a uma lei a qual teria que ser aprovada pelo Congresso, onde, no ano de 2001, ainda havia uma grande bancada fujimorista que provavelmente votaria contra a criação desse organismo, indica a precária correlação das forças políticas que apoiaram a Comissão. Diante de algumas críticas feitas à Comissão, em especial referente ao passado político de alguns de seus membros (os comissários Bernales, Degregori e Tapia haviam atuado como militantes ou dirigentes de partidos integrantes da extinta coalizão Izquierda Unida), o governo de Alejandro Toledo (2001-2006) ampliou o número de membros da Comissão de sete para 12 – entre eles um militar aposentado, o Tenente-Geral das Forças Armadas Peruanas, Luis Arias Graziani – e modificou o seu nome para Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR).

Apesar de profundamente desacreditada frente à opinião pública, devido aos casos de corrupção envolvendo considerável parcela da cúpula militar durante o regime fujimorista, a corporação militar não adotou uma posição passiva ou inerte frente aos trabalhos da CVR. Ao contrário, durante os dois anos de trabalho da Comissão, procuraram apresentar aos comissários a visão dos próprios militares sobre o conflito armado interno. Para isso, em agosto de 2001, o Comando do Exército formou uma comissão de representantes para a CVR, a mesma que funcionou como escritório subordinado à direção do Estado Maior. A partir de janeiro de 2002, estabeleceu-se que a Direção de Assuntos Civis do Exército assumisse o comando desse escritório. Ao mesmo tempo, uma ordem do Ministério de Defesa estabeleceu a criação de Comitês de Apoio à CVR em cada força armada e no Comando Conjunto (CVR, 2002).

Desta forma, entre 2002 e 2003, a Comissão realizou uma série de entrevistas com militares de alto escalão das Forças Armadas vinculados, entre 1980 e 2000, à luta antissubversiva. Entre eles, foram entrevistados os generais José Valdivia Dueñas, Luis Pérez Documet e Clemente Noel Moral, responsáveis na época pelos comandos político-militares nas áreas sob estado de emergência. Nesses encontros, a Comissão pediu para que os entrevistados apresentassem a sua versão da estratégia e medidas antissubversivas implementadas sob seu comando, bem como relatar especificamente os casos de violações de direitos humanos que foram investigados pela CVR ( CVR, 2003a). Importante ressaltar que as entrevistas requeridas pela Comissão foram livres e voluntárias e o nível de resposta aos requerimentos foi alto.

Ademais, a Comissão possibilitou a abertura de canais de diálogo e a realização de reuniões de trabalho com o alto escalão das Forças Armadas desse período (2001-2003), o qual manteve os comissários informados acerca da “percepção institucional” dentro das Forças Armadas sobre o trabalho da CVR. Desta forma, em uma reunião realizada no Quartel Geral do Exército, em fevereiro de 2002, com a participação do então Comandante Geral do Exército, o General Víctor Bustamante Reátegui, juntamente com o Estado-Maior do Exército, e os comissários Ames, Bernales e Tapia; o General Bustamante manifestou aos comissários “três preocupações existentes dentro de sua instituição”:

a) A CVR quer responsabilizar militares por violações de direitos humanos para mandá-los à prisão;
b) As comissões da verdade foram criadas ao fim dos conflitos armados internos, ao passo que no Peru o Sendero Luminoso segue em atividade, embora em menor grau;
c) Existe o risco de que a visão negativa acerca do Exército, criada pela atuação da cúpula nos anos 90, influencie as conclusões da CVR. (sic) 
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Ao analisar essas preocupações expressadas pelo Comandante Geral do Exército, na qualidade de porta-voz do Exército, fica claro o receio de que o trabalho da CVR resulte na prisão dos oficiais envolvidos na luta contra a subversão, receio esse talvez agravado pelo triste espetáculo mostrado pela cúpula militar do regime fujimorista que nesse momento se encontrava presa por corrupção. Neste sentido, se os generais que exerceram – em parceria ou controlados por Montesinos – controle absoluto das forças armadas, e que, à época, pareciam infinitamente poderosos e impunes, estavam cumprindo penas altas na prisão, nada impediria que generais que não desfrutavam de tamanho poder político no passado, assim como oficiais de menor escalão, não acabassem sendo mandados à prisão, não por corrupção, mas sim por crimes muito mais graves, como violações de direitos humanos, que, ainda que tenham sido cometidos em um período anterior, são imprescritíveis (crimes cuja responsabilidade não se extingue com o passar do tempo).

A Comissão da Verdade e Reconciliação publicou seu Relatório Final em agosto de 2003. Neste conclui que “a causa imediata e fundamental do desencadeamento do conflito armado interno foi a decisão do Partido Comunista do Peru – Sendero Luminoso (PCP-SL) de iniciar ‘a luta armada’ contra o estado peruano…” ( CVR, 2003b, Tomo VIII, p. 317). Conclui, ademais, que o Sendero Luminoso foi o principal perpetrador de crimes e violações de direitos humanos, sendo responsável por 54% das mortes relatadas à Comissão. Igualmente, a CVR também concluiu que as forças armadas implementaram uma estratégia, num primeiro momento, de repressão indiscriminada da população considerada suspeita de pertencer ao PCP-SL. Em um segundo momento, essa estratégia tornou-se mais seletiva, embora tenha continuado a ser responsável por diversas violações de direitos humanos (CVR, 2003b, Tomo VIII, p. 323).

Da mesma maneira, a Comissão destacou que em certas localidades e períodos do conflito armado interno, ações de membros das forças armadas não somente envolveram alguns excessos individuais de oficiais ou soldados, mas também incorreram em práticas generalizadas e/ou sistemáticas de violações de direitos humanos (como assassinatos, execuções extrajudiciais, violência sexual, tortura, maus-tratos, e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes), que constituem crimes contra a humanidade, assim como violações a normas de Direito Internacional Humanitário ( CVR, 2003, Tomo VIII, p. 323-325). No entanto, a Comissão também reconheceu o papel importante e legítimo desempenhado pelas Forças Armadas na luta contra grupos subversivos:

A CVR reconhece o trabalho árduo e sacrificado dos integrantes das forças armadas durante os anos de violência e presta sua mais sincera homenagem aos mais de mil militares valentes que perderam a sua vida ou ficaram incapacitados em cumprimento do seu dever.
(CVR, 2003, Tomo VIII, p. 323)

Finalmente, cabe ressaltar que o Relatório Final também apresentou um conjunto de recomendações de reformas institucionais, entendidas como garantias preventivas para que esses atos de violência não se repitam no futuro. No caso das Forças Armadas e da Polícia Nacional, as recomendações sugerem “fortalecer as instituições democráticas, baseadas na liderança do poder político com vistas à defesa nacional e manutenção da ordem interna” (CVR, 2003b, Tomo IX, p. 120-125).

Cabe ressaltar ainda que o único comissário que assinou “com reservas” o Relatório Final foi o Tenente-Geral das Forças Armadas Peruanas Luis Arias Graziani – um dos comissários nomeados pelo presidente Toledo – o qual, em carta dirigida ao presidente da CVR, Salomón Lerner, destaca, após reconhecer que a Comissão cumprir seu mandato com “seriedade e esmero”, que:

4 … não pode ser imputado o mesmo grau de responsabilidade a grupos terroristas infames (Sendero Luminoso e MRTA) e aos contingentes das Forças Armadas. Estas participaram de ações no combate à subversão em cumprimento de sua missão constitucional, por ordem dos Governos no poder ao longo de duas décadas. Cabe ressaltar que esses Governos foram eleitos pelo voto popular, o que nos leva a supor que analisaram democraticamente a pertinência de ordenar o envolvimento das Forças Armadas, bem como declarar os Estados de Emergência e estabelecer o controle político-militar.
(Carta do Tenente-Geral das Forças Armadas Peruanas, Luis Arias Graziani – CVR, 2003b, Tomo VIII)

Ressalta-se, no entanto, que no Relatório Final publicado pela Comissão em nenhum momento atribui-se às Forças Armadas e aos policiais o mesmo grau de responsabilidade dos grupos subversivos. Fora as violações de direitos humanos cometidas, em todo momento a Comissão destaca que os primeiros atuaram em nome da lei e da defesa do regime democrático, ao passo que os últimos se opuseram de maneira autoritária contra esse regime. Na carta referida acima, Arias Graziani também solicita que não constem no Relatório Final os nomes de todos os militares responsáveis pelas violações de direitos humanos, mas sim que estes sejam entregues sob sigilo ao Poder Executivo, para que este, por sua vez, remeta-os ao Ministério Público para a devida investigação. Por fim, Arias Graziani 3 exige que sejam diferenciadas claramente entre as responsabilidades individuais dos oficiais militares envolvidos na perpetração de violações de direitos humanos e a “responsabilidade institucional que se pretende estabelecer”. Essa distinção será um lugar-comum entre os pronunciamentos sobre o Relatório Final da CVR por parte de militares aposentados – e também pelos militares na ativa – que veremos abaixo. Tal distinção impedirá o reconhecimento da responsabilidade institucional das Forças Armadas na prática sistemática de violações de direitos humanos, como fizeram na sua época os comandos militares do Chile e da Argentina, acerca dos crimes cometidos durante a repressão perpetuada no contexto das ditaduras militares no Cone Sul.

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4. As reações ao Relatório Final da CVR

Os meses e anos em que se desenvolveu o trabalho da CVR, bem como o momento que seguiu à publicação do Relatório Final, foi um período de constante descrédito do mesmo governo que havia apoiado a Comissão para que ela fosse capaz de cumprir com o seu mandato – o governo de Alejandro Toledo -, apoio esse materializado não somente pelo aumento do número de membros da Comissão, a alocação de parte do orçamento necessário para que ela cumprisse com a sua missão – complementado com recursos provenientes da cooperação internacional -, e pela prorrogação de seu mandato, mas também pelo apoio público a suas conclusões e propostas de reformas institucionais.

Além disso, alguns setores políticos de oposição, entre eles destacam-se Apra – segunda maior força política no Congresso entre 2001 e 2006 – e o frágil, porém ainda presente fujimorismo, aproveitaram a publicação do Relatório Final para atacar o governo, por seu suposto conluio ou aliança com os setores progressistas (denominados por estes de caviares). No entanto, talvez as reações mais enérgicas vieram de setores da direita econômica e social, e das próprias Forças Armadas através de seus porta-vozes oficiais e extra-oficiais.

Desta forma, a publicação do Relatório Final gerou as mais fortes reações de diversos setores da sociedade, criticando, repetidas vezes, o número de mortos estimado pela Comissão (69.280 pessoas) ou a atribuição de responsabilidade aos militares envolvidos em casos de violações de direitos humanos. Um grupo de 42 ex-Comandantes Gerais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica do Peru emitiu uma nota criticando duramente o Relatório Final da CVR, referindo-se à parcialidade de suas conclusões:

4. Pelo exposto anteriormente, é inaceitável que a CVR afirme em seu relatório (conclusão N° 54) que as Forças Armadas aplicaram uma estratégia de repressão indiscriminada que possibilitou a práticas de várias violações de direitos humanos. Considera-se inconsequente pretender manchar, com base em um critério falso e tendencioso como o usado pela CVR, a dignidade e a honra das Forças Armadas provadas ao longo da história do Peru, as quais não devem ser comprometidas por atos de certos indivíduos que merecem ser punidos e de modo nenhum devem ser generalizados. É falso afirmar que as Forças Armadas tenham sistematicamente praticado violações de direitos humanos. Reiteramos que as Forças Armadas atuaram sob o regime ditado pela Constituição, leis e seus próprios regulamentos, com completa dedicação e sacrifício que, em vez de serem motivos de escárnio, deveriam ser reconhecidos pela Nação. 
(DIARIO CORREO, 2003b, p. 15).

Por sua vez, a Asociación de Oficiales Generales y Almirantes (ADOGEN), a associação mais representativa dos militares aposentados, publicou um comunicado em que rejeita categoricamente as conclusões do Relatório Final da CVR, em especial no que se refere às ações das Forças Armadas durante o conflito armado interno:

Dado o viés tendencioso com o qual o Relatório Final da CVR se refere à atuação das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru, durante o período de barbárie terrorista … a Asociación de Oficiales Generales y Almirantes, compreendendo o sentimento oficial da mais alta hierarquia da instituição, de acordo com os poderes, órgãos, agências e associações que apoiam e defendem a ordem constitucional e o interesse nacional, dirige-se à opinião pública para ressaltar o seguinte:
(…)
Caso alguns de seus membros tenham cometido excessos, estes foram uma resposta à estratégia utilizada pelo Sendero para suscitar reações violentas contra a população civil que não devem ser atribuídas às forças armadas em geral ou a ordens de seus superiores. A crítica feita aos defensores do Estado no que diz respeito a esse aspecto específico, o qual a lei abrange, seria a questão mais relevante dessa artimanha que tem como objetivo desmoralizar as Forças Armadas e a Polícia Nacional do Peru, e distanciá-la da sociedade para reduzir a capacidade defensiva do país.
(…)
ADOGEN, consciente de seu dever profissional, rejeita veementemente as conclusões do Relatório Final que atribuem caráter geral e sistemático às ações reprováveis de alguns oficiais das Forças de Ordem, por considerar que, ao desprezar a eficiência profissional coletiva das Forças Armadas e da Policia Nacional do Peru, enfatizam aspectos individuais e negativos, e constituem um atentado inconsequente a instituições fundamentais da Nação as quais se deve prestar reconhecimento e gratidão. 

(DIARIO EL COMERCIO, 2003a) .

Por fim, o comunicado sugere que a referida associação espera que o governo leve em consideração as preocupações das Forças Armadas antes de tomar alguma posição sobre o relatório da CVR. Como se pode ver, nesses comunicados não se busca fazer mea culpa institucional ou corporativa, tampouco se mostra o menor indício de uma perspectiva autocrítica sobre o papel das forças armadas durante o conflito armado interno e o processo político recente – por exemplo, no que diz respeito aos casos de corrupção e a cooptação institucional durante o regime de Fujimori. Pelo contrário, a CVR é qualificada como tendenciosa ou um instrumento político de setores de esquerda. Ademais, certas conceituações sobre o papel das forças armadas frente ao estado e à sociedade–qualificadas por membros da ADOGEN como instituições fundamentais da nação – são, no entanto, resquícios preocupantes da doutrina de Segurança Nacional, própria de ditaduras militares que governaram na região entre as décadas de 60 e 80.

Esse tipo de reação frente à abordagem do Relatório Final da CVR sobre o papel das forças armadas durante o conflito armado interno não somente vêm de setores aposentados das forças armadas, mas também do âmbito empresarial. Neste sentido, em um pronunciamento emitido pela Confederación Nacional de Instituciones Empresariales Privadas (Confiep) pode-se ler o seguinte:

CONFIEP considera inaceitável que certo viés ideológico, oportunismos políticos, ou qualquer objetivo ou interesse, possa levar a uma fragmentação da verdade histórica, em uma história oficial ou um mito fabricado, que as gerações futuras aceitem como história quando a realidade é que esta não é a história, tampouco a verdade.
(…)
Em segundo lugar: não concordamos com a qualificação da ação das Forças Armadas e Policiais como uma sistemática e generalizada política de violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade. Deve-se deixar bem claro que o papel das Forças Armadas e Policiais é de defesa do Estado em cumprimento com as ordens dos Governos que, em cada mandato, carregam a responsabilidade de preservar a integridade da Nação. Nesse esforço, milhares de militares e policiais perderam a vida ou ficaram incapacitados para proteger o Estado e seus cidadãos. A atuação individual de algum membro dessas forças, contrária às leis institucionais e penais, é de responsabilidade de seus autores e deve ser punida de acordo com a lei.
(…)
Em quinto lugar: Discordamos do tratamento dado às vítimas de terrorismo, porque não se abrangeu a questão em toda a sua magnitude, dado que se trata de fatos que todos os peruanos vivenciaram, não apenas o sacrifício dos camponeses mais pobres e desamparados de nossa pátria, mas também o sofrimento de milhares de famílias de militares, policias e patrulheiros que defenderam a Nação, o sacrifico de empresários, funcionários e trabalhadores que foram mortos e as grandes perdas materiais sofridas pelo Estado, ao serem atacadas as fontes produtores de riqueza, impostos e a própria infraestrutura nacional.
Tampouco, concordamos em comparar os assassinatos perpetuados por terroristas com as mortes provocadas por forças de ordem em combate e em defesa da pátria. 

(DIARIO EL COMERCIO, 2003b).

Transcrevemos o pronunciamento da Confiep porque acreditamos que se trata de uma boa representação da cultura política que predomina nas elites sociais e econômicas do nosso país e em setores políticos conservadores. Essa posição considera que as conclusões da CVR não foram produto de um trabalho de pesquisa científica e reconstrução histórica, mas sim apenas produto de supostas tendências ideológicas de seus membros. Desta forma, essa posição nega o caráter sistemático que – em certas localidades e em determinados momentos durante o conflito armado interno – tiveram as violações de direitos humanos cometidas por membros das forças armadas. Toda essa série de pronunciamentos se baseia Principalmente em uma leitura focada no capítulo do Relatório Final em que se apresentam as conclusões da CVR, desconsiderando-se, portanto, a análise feita acerca das causas e consequências do processo de violência política, assim como os casos pesquisados e os estudos realizados em profundidade. Igualmente, o Programa Integral de Indenizações e as propostas de reformas institucionais não foram tema desses pronunciamentos.

Por último, case destacar que o Ministério de Defesa não emitiu nenhuma nota pública com relação ao Relatório Final da CVR, uma vez que a posição oficial do governo seria emitida pelo Presidente Alejandro Toledo. No entanto, duas semanais depois da publicação do Relatório, o ministro Aurelio Loret de Mola, em uma cerimônia de entrega de indenizações a viúvas de patrulheiros, aproveitou a presença da mídia e “prestou um tributo aos oficiais das três forças armadas mortos, feridos, incapacitados ou com problemas psicológicos e psiquiátricos”, por sua participação durante o conflito armado ( GUILLEROT, 2003a, p. 6 ). Além disso, ao longo do mês que seguiu a divulgação do Relatório Final, o Ministério de Defesa divulgou um anúncio publicitário em alguns canais de televisão, representando membros das forças armadas feridos e incapacitados por ações do Sendero Luminoso e expressando sincera gratidão a eles. No entanto, esse vídeo adotava uma perspectiva tendenciosa, uma vez que não mostrava as vítimas de ações das Forças Armadas ( VICH, 2003 ). A posição oficial do Poder Executivo foi comunicada pelo presidente Alejandro Toledo, por meio de uma mensagem à nação divulgada em 23 de novembro de 2003, quase três meses depois da publicação do Relatório. Nessa mensagem, Toledo pediu perdão, em nome do Estado, às vítimas da violência. Desta forma, reconheceu que:

Em um conflito dessa natureza, alguns membros das Forças de Ordem incorreram em excessos lamentáveis. Caberá ao Ministério Público e ao Poder Judiciário estabelecer a justiça nestes casos, sem amparar nem a impunidade, nem o abuso. Respeitamos a independência dos poderes. 
(GUILLEROT, 2003b, p. 14)

Desta forma, Toledo anunciou a criação de uma política de estado para a reconciliação e um Plano de Paz e Desenvolvimento, o qual consiste em uma série de investimentos na ordem de 2.8 bilhões de soles peruanos para promover o desenvolvimento em áreas afetadas pela violência política.

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5. Decisões Judiciais por Violações de Direitos Humanos

Um dos legados do trabalho da CVR foi possibilitar a abertura de investigações judiciais e processo penais contra oficiais militares responsáveis por graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade e, dessa maneira, proporcionar justiça e reparação às vítimas. Ao concluir seu mandato, a Comissão entregou ao Ministério Público uma série de provas referentes a 47 casos que haviam sido objeto de investigação durante seu trabalho. Essas provas foram utilizadas pelo Ministério Público para dar início à investigação desses casos.

No entanto, sete anos após iniciado esse processo, o saldo ainda é muito limitado. Como afirma a Defensoria Pública:

Mesmo reconhecendo os esforços do Ministério Público e do Poder Judiciário, especialmente com relação à criação de algumas instâncias especializadas na investigação e julgamento desses casos, há também de se reconhecer as dificuldades enfrentadas no desenrolar das investigações e retrocessos quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, da Suprema Corte de Justiça e da Corte Penal Nacional. 
(DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 104).

Cabe ainda destacar que esses retrocessos caminharam lado a lado com a evolução do processo político e a recuperação por parte das Forças Armadas de parte do poder político de que desfrutavam no passado.

Nos últimos anos, a Defensoria Pública tem acompanhado o estado desses processos judiciais, em que os acusados, em sua maioria, são militares. Do universo de 194 casos (dos quais 47 foram apresentados pela CVR, 12 investigados pela própria Defensoria e 159 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos), 112 (57,7%) continuavam em fase inicial de investigação no final de 2008, embora a maioria tenha se iniciado entre o final de 2001 e começo de 2004. Nessa situação encontram-se, entre outros, os casos “ Violaciones a los derechos humanos en la Base Militar de Capaya ” e “ Matanza de campesinos en Putis ” [“Violações de direitos humanos na Base Militar de Capaya” e “Chachina de camponeses em Putis”, respectivamente], sendo investigados desde dezembro de 2001 ( DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 125 ).

Da mesma forma, 57,4% dos casos em fase de instrução e em fase oral ou pendente desta (27 casos), foram iniciados em meados de 2004 (16 casos) ou começo de 2005 (13 casos), como ocorre com os casos “Violaciones a los Derechos Humanos en el Cuartel Los Cabitos Nº 51” “Ejecución extrajudicial de Juan Mauricio Barrientos Gutiérrez” [“Violações de Direitos Humanos no Quartel Los Cabitos Nº 51” e “Execução extrajudicial de Juan Mauricio Barrientos Gutiérrez”, respectivamente], cujos prazos de investigação judicial foram estendidos por até seis vezes ( DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 127-128). Segundo relatórios da Defensoria, entre os fatores que contribuem para essa lentidão, podem ser citadas as dificuldades para identificar os indivíduos responsáveis pelas violações em função da pouca colaboração do Ministério de Defesa e de sua relutância em fornecer informações sobre a identidade dos militares envolvidos nesses casos.

Com relação à quantidade e situação dos militares processos, sabe-se que os 30 processos penais apresentados pela CVR e pela Defensoria Pública envolvem 339 acusados, dos quais 264 pertencem ao Exército, 47 à Policia Nacional do Peru, 17 à Marinha e 11 são civis (DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 139) 4. Cabe destacar que 61,4% dos acusados (208) estão envolvidos em cinco casos:“Destacamento Colina” (58 acusados), “Ejecución arbitraria de pobladores en Cayara” (51 acusados),“Ejecuciones arbitrarias en Pucará” (41 acusados), “Ejecuciones arbitrarias en Accomarca” (31 acusados) e “Matanza de 34 campesinos en Lucmahuayco” (27 acusados) [respectivamente, “Grupo Colina”, “Execução arbitrária de moradores de Cayara”, “Execuções arbitrárias em Pucará”, “Execuções arbitrárias em Accomarca”, “Matança de 34 camponeses em Lucmahuayco”] (DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 142). Sobre a situação dos processos, cabe advertir que:

No caso dos acusados por violações de direitos humanos, a tendência dos juízes de expedir mandados de prisão tem variado significativamente ao longo dos últimos anos. Dessa forma, do total de acusados nos casos apresentados pela CVR e pela Defensoria Pública, no ano de 2005, foram emitidas ordens de prisão para 258 acusados (67%). No ano de 2006, este número foi reduzido a 197 (53%), e, atualmente, apenas 94 dos acusados possuem sua prisão decretada (27,7%). Ao restante 72,3% (245 acusados) foram expedidas intimações com restrições.
(DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 145).

Ademais, a Defensoria Pública informa que, até novembro de 2008, dos 94 acusados contra os quais foi expedido mandado de prisão, somente 43 efetivamente cumpriam essa medida, enquanto 51 são considerados réus ausentes ou contumazes. Segundo a Defensoria, o baixo índice de execução dos mandados de prisão é um fator que reduz a celeridade dos processos de judicialização de violações de direitos humanos. Isto, por sua vez, se deve à falta de disposição das autoridades do Ministério de Defesa de colaborar com o cumprimento desses mandados (DEFENSORÍA DEL PUEBLO, 2008, p. 146-148). De qualquer maneira, é possível argumentar que essa diminuição gradual da quantidade de militares contra os quais foram emitidos mandados de prisão poderia estar relacionada com a igualmente gradual recuperação do poder político das Forças Armadas, tal como veremos no restante deste tópico e no seguinte.

No entanto, de acordo com a opinião pública, a judicialização de violações de direitos humanos cometidas por militares não é considerada exatamente uma prioridade, talvez pela percepção generalizada de que os principais perpetradores desses crimes durante o conflito armado interno não foram as forças armadas, mas sim os grupos subversivos:

Embora nessa pesquisa sobre temas de justiça transicional, realizada por Idehpucp no final de 2006, uma grande parcela dos entrevistados tenha respondido que ambos, as forças de ordem e os grupos subversivos, foram responsáveis pelo maior número de vítimas durante o conflito (apesar de quando os dois grupos são considerados individualmente, resta claro que a maior responsabilidade é atribuída aos grupos subversivos e não às forças armadas), ao serem inquiridos sobre as medidas que deveriam ser tomadas, a maioria dos entrevistados respondeu que a concessão de indenizações monetárias e investimento em desenvolvimento nas áreas mais pobres do país tinha prioridade sobre a investigação e punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos.

Por último,

Por último, devemos destacar que, como ressalta a Defensoria Pública, um dos fatores que contribui para a lentidão dos processos por violações de direitos humanos – em muitos casos, estes se estendem por mais de sete anos sem serem decididos – é a falta de colaboração por parte do Ministério de Defesa com as instituições de administração da justiça e sua recusa em fornecer informação sobre a identidade dos militares envolvidos nesses casos. Sem entrar em maiores detalhes, devemos indicar que as razões apresentadas pelos funcionários do Ministério de Defesa referem-se à inexistência de tais informações – em muitos casos, alega-se que a informação foi destruída ou que tal dado nunca existiu (afirma-se, por exemplo, que não é mantida a relação de nomes dos oficiais designados a uma determinada base militar, ou que, por razões de segurança, somente seus pseudônimos são registrados). Não obstante, tampouco se buscaram vias alternativas para ter acesso ou reconstruir tais informações (como a revisão sistemática das folhas de serviço de todos os oficiais para verificar quem fora designado para qual base e em que momento).

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6. Declarações sobre os julgamentos de direitos humanos:pedidos de respaldo político e jurídico

Como vimos por meio dos pronunciamentos das associações de militares aposentados, os anos que seguiram à transição democrática foram um período especial da história em que as relações entre as Forças Armadas e a sociedade civil e política foram marcadas por processos de judicialização de casos de violações de direitos humanos investigados pela CVR, em que oficiais militares foram listados como principais perpetrados desses crimes. O agravamento da tensão civil-militar pode ser verificado, por exemplo, na declaração que, em março de 2005, um grupo de 17 ex-Comandantes Gerais do Exército – composto por aqueles que comandaram a instituição na década de 70, como os generais Francisco Morales Bermúdez (ex-Presidente da República) e Edgardo Mercado Jarrín, e também por outros comandantes que passaram a dirigir a organização já no atual século, como os generais Carlos Tafur, Jose Cacho Vargas e Víctor Bustamante – elaborou “interpretando o sentimento dos oficiais, técnicos, suboficiais, soldados em serviço, funcionários civis e familiares”, em que afirma:

5. Os excessos de alguns juízes e promotores que conduzem os casos contra militares denunciados estão gerando sentimentos e reações que podem ter consequências muito graves para o desempenho futuro dos oficiais do Exército, pois afetam diretamente a segurança nacional, podendo gerar, entre outros, os seguintes efeitos:
Deixar de tomar decisões e de agir para combater com firmeza aqueles que atentarem contra a segurança nacional e a ordem interna , por causa do risco de sofrerem represálias jurídicas a que estão expostos os oficiais, técnicos, suboficiais, soldados em serviço devido a falta de respaldo político e jurídico a suas ações em operações de combate e/ou restabelecimento da ordem pública.

7. Tal como no passado, algumas pessoas e organizações, conscientemente ou não, colaboram com as práticas psicossociais dos terroristas ou atacam sem fundamento o Exército, confundindo a opinião pública no desejo mesquinho de obter privilégios ou ganhar prestígio, sem considerar que suas ações dividem e enfraquecem a sociedade peruana, ao desenvolver uma conduta nefasta e antipatriota, julgando possuir a verdade em detrimento da unidade nacional.

8. Pretendemos, portanto, que se respeite os direitos humanos de todos os peruanos, por isso não buscamos o enfrentamento ou confronto, tampouco buscamos gerar polêmica alguma: no entanto, exortamos o povo peruano para que permaneça atento às ações de ideologias e entidades que buscam o confronto entre o estado e a sociedade contra seu Exército. Esta é a nova estratégia do terrorismo que todos devemos conhecer para combater decidida e frontalmente. 
(DIARIO EL COMERCIO, 2005, destaque nosso).

Nesse comunicado saltam aos olhos vários elementos, entre eles a crítica feita ao trabalho do Poder Judiciário e do Ministério Público, o ataque a organismos de direitos humanos – e sua vinculação fantasiosa com a “estratégia terrorista” -, contudo, o mais preocupante é a ameaça ou chantagem declaradas de que as forças armadas descumprirão suas funções e missões constitucionais – ou seja, as tarefas a que estão encarregadas por ordem das autoridades políticas, entre elas o controle da ordem interna em determinadas circunstâncias, o que constituiria um ato de rebeldia -, caso não seja dado aos militares o necessário respaldo político e jurídico , entendido este último como imunidade frente a denúncias de violações de direitos humanos cometidas tanto no passado durante o conflito armado interno, quanto durante as “ operações de combate e/ou restabelecimento da ordem pública” realizadas atualmente e ao longo de toda a década. Em suma, trata-se de uma reivindicação que busca trocar obediência por impunidade, em um contexto de crescente tensão social em que, em alguns casos – como nos protestos nas regiões de Arequipa e Puno entre 2002 e 2003 – fez-se uso das forças armadas para combater os distúrbios sociais que ameaçam pôr em risco a própria estabilidade do regime político.

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7. Respostas do Estado aos pedidos de respaldo político e jurídico

O processo eleitoral de 2006 teve como consequ ência uma mudança radical no cenário político. De fato, como resultado das eleições, surgiu uma nova correlação de forças – perceptível tanto no Parlamento, quanto no Poder Executivo – muito diferente daquela que possibilitou a criação da CVR durante o governo de transição e o desenvolvimento de seu mandato durante o governo de Alejandro Toledo. Nesse novo cenário, os setores fujimoristas, que haviam constituído uma ínfima minoria no Congresso entre 2001 e 2006, ganharam força e passaram a atrair outros setores políticos, permitindo que o partido aprista formasse uma coalizão majoritária – juntamente com a bancada da Unidade Nacional – para levar adiante determinadas propostas.

De fato, depois de Alan García (Apra, 2006-2011) vencer as eleições e tomar as primeiras decisões de seu novo governo, ficaria cada vez mais evidente sua aliança com os mesmos setores que haviam exercido, no passado, firme oposição política a ele: a direita política, econômica e social. Por esse motivo, a decisão de García de nomear como ministro de Defesa Allan Wagner surpreendeu a muitos, porque se esperava que, tratando-se de um setor tão sensível como a Defesa e dada sua nova aliança com os setores conservadores do empresariado, igreja e forças armadas (estas duas últimas representadas por sua aproximação com o Cardeal da Opus Dei Juan Luis Cipriani e com o vice-almirante e novo vice-presidente Luis Giampietri, respectivamente), nomearia um político de perfil mais conservador para esse ministério. Cabe destacar que esse prognóstico se cumpriria tempos depois, com as sucessivas nomeações de Antero Flórez Araoz e Rafael Rey para o Ministério da Defesa.

Wagner, ex-chanceler de García em seu primeiro governo, embaixador de carreira e de tendência política de centro, se esforçou em contrariar os prognósticos dos analistas políticos com relação ao viés direitista do regime, ao nomear para os altos cargos do Ministério de Defesa uma proeminente equipe de profissionais cujas trajetórias não conduzem com essa suposta inclinação direitista. No entanto, a gestão de Wagner representou de fato um “ respaldo político e jurídico” aos militares. Tal respaldo se concretizou na decisão tomada por esse Ministro de fornecer serviços de advocacia gratuita – ou seja, financiados pelo Estado – aos militares processados por violações de direitos humanos. Em outras palavras, o mesmo Estado que se recusou a conceder indenizações financeiras individuais para as vítimas de violência política se comprometeu, em contrapartida, a cobrir os gastos da defesa dos perpetrados de tais violações de direitos humanos. Para entender a razão que levou Wagner a tomar essa decisão, citaremos suas próprias palavras perante a Comissão de Defesa Nacional do Congresso, quando compareceu para apresentar o que seriam as linhas de sua gestão frente ao Ministério de Defesa:

Isto também nos remete a outras questões, que eu tive a oportunidade de mencionar publicamente, como é o caso do suporte a defesa jurídica dos membros das Forças Armadas que estão sendo investigados ou processados. A lei é para todos, todos somos iguais perante a lei e todos devemos ter os mesmos direitos e obrigações; e um dos direitos que a lei nos confere e a Constituição consagra é o direito à defesa, e, portanto, é necessário que o Estado e a sociedade, não somente o Estado, preste apoio ao exercício do direito de defesa por parte daqueles que estão sendo processados ou investigados.
(…)
Ou seja, a justiça deve se basear no devido processo, no exercício da legítima defesa, a defesa a que têm direito todos os membros, mas, ao mesmo tempo, as responsabilidades devem ser individualizadas e, portanto, não se deve agrupar todos em um mesmo saco, o que fere, sem dúvida, a moral, além de prejudicar outros e suas famílias.

Neste sentido, deve-se enfrentar esta situação, e assim como o Estado está decidido a fornecer apoio financeiro para que o direito à defesa se possa concretizar, pensamos também que a própria sociedade que foi defendida por nossas Forças Armadas e Policiais se mobilize em apoio à defesa desses membros de nossas instituições. 
(PERU, 2006a).

A defesa jurídica gratuita para os acusados de perpetrar violações de direitos humanos cometidas durante o conflito armado interno se tornou possível por meio de uma norma ( PERU, 2006b ) que estabelece que “militares ou policiais, em atividade ou aposentados, denunciados ou processados criminalmente perante o Poder Judiciário comum por supostos crimes contra os direitos humanos, por atos realizados em exercício de seus cargos, na luta antissubversiva no país” ( PERU, 2006b, art. 1 ), receberiam serviços de advocacia pagos com recursos dos orçamentos dos ministérios de Defesa e do Interior. Alguns anos mais tarde, já durante a gestão de Rafael Rey, soube-se que um grande número de militares processados que se valeram dessa norma solicitaram a contratação, pelo Ministério de Defesa, dos serviços jurídicos do escritório de advogados de César Nakasaki (e de Rolando Souza, congressista fujimorista), também advogado de Alberto Fujimori no caso das chacinas de Cantuta e Barrios Altos, bem como de outros comandantes militares processados por corrupção durante o regime fujimorista ( DIARIO EL COMERCIO, 2009, DIARIO LA REPÚBLICA, 2009 ).

Essa boa vontade do ministro Wagner para com os militares processados foi aprofundada depois de sua substituição no Ministério de Defesa por Antero Flórez Araoz no final de 2007. A antipatia de Flórez Araoz com relação a setores que defendem a causa de direitos humanos, assim como sua defesa dos militares processados por tais delitos, se faria evidente em sua oposição tenaz à criação de um Museu da Memória para relembrar as vítimas do processo de violência política pelo qual passou o Peru nas décadas passadas. Frente à oferta pelo governo da Alemanha de uma doação de dois milhões de dólares para a construção e instalação desse Museu, no final de 2008, oferta que fora recusada inicialmente pelo governo de García, Flórez Araoz se tornou o principal porta-voz, no gabinete de ministros, daqueles que se opunham a essa iniciativa, difundindo claramente a posição oficial de que a construção de um memorial que relembre os crimes cometidos por agentes do estado – entre outros setores – no contexto do conflito armado não era exatamente uma prioridade para o governo, voltado mais à luta contra a pobreza 5.

Grande seria a surpresa de Flórez Araoz quando, dias depois, e após um debate acalorado nos meios de comunicação em que insultos foram trocados com o escritor Mario Vargas Llosa (LLOSA, 2009), o governo criou uma Comissão de Alto Escalão para a gestão e instalação do Museu da Memória 6, presidida justamente por Vargas Llosa e integrada pelo Monsenhor Luis Bambarén, Frederick Cooper, Fernando de Szyszlo, Juan Ossio, Enrique Bernales e Salomón Lerner (esses dois últimos ex-comissários da CVR). Não obstante, cabe ressaltar que o mandato outorgado a essa Comissão de Alto Escalão não faz referência alguma às violações de direitos humanos cometidas por agentes do estado durante o conflito armado interno, mas somente à violência perpetrada por grupos subversivos. De fato, o mandato dessa Comissão consiste em:

Zelar para que o Museu da Memória represente com objetividade e mente aberta a tragédia pela qual passou o Peru em razão das atividades subversivas de Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru durante as duas últimas décadas do século XX, com o intuito de mostrar aos peruanos as trágicas consequ ências que resultam do fanatismo ideológico, da transgressão da lei e da violação de direitos humanos, para que o nosso país não volte a viver experiências tão deploráveis. 
(PERU, 2009, art. 2).

Se compararmos esse mandato restrito com o amplo mandado outorgado à CVR – que tinha por missão investigar as violações de direitos humanos cometidas tanto por grupos subversivos, quanto por agentes do Estado -, teríamos a impressão de que durante o conflito armado interno as Forças Armadas não tiveram participação alguma na prática de violações de direitos humanos. No entanto, seria difícil esperar algo diferente de um governo como o de Alan García, dada sua responsabilidade de governo durante parte do período de violência política e suas atuais alianças políticas. De fato, a extrema sensibilidade gerada por essa iniciativa entre diferentes setores políticos – entre eles, as próprias forças armadas – fez com que a comissão presidida por Vargas Llosa fosse cautelosa para garantir a sua viabilidade. Nesse sentido, Vargas Llosa teve que solicitar uma reunião ao próprio Comandante-Geral do Exército, General Otto Guibovich, para “trocar ideias sobre o conteúdo e o escopo” do Museu – agora denominado Lugar da Memória -, e explicar que este não teria nenhum viés ideológico, tampouco representava uma atitude de animosidade com relação às Forças Armadas (DIARIO PERÚ, 2010).

Em julho de 2009, três meses depois do incidente com Vargas Llosa, Flórez Araoz seria substituído à frente do Ministério de Defesa por Rafael Rey. Este, membro da Opus Dei e representante de uma ala ultraconservadora no âmbito social e político, talvez represente melhor que seus predecessores a atual correlação de forças políticas no Peru, assim como as alianças políticas que sustentam o governo de García. Não seria exagero dizer que Rafael Rey faria da defesa obstinada dos militares processados por violações de direitos humanos o leit motiv e a razão de ser de sua gestão à frente do Ministério da Defesa. Isto poderia ser verificado na aprovação de diversas medidas – tanto no plano concreto, quanto de um ponto de vista simbólico – a favor dos militares processados por violações de direitos humanos. A principal delas seria a promulgação, em setembro de 2010, do Decreto Legislativo No. 1097, referente à “aplicação de normas processuais para delitos que implicam violação de direitos humanos”. Esse decreto determinou a aplicação do Novo Código de Processo Penal aos militares processados por esses delitos, com o fim de agilizar os processos e reduzir seu tempo. No entanto, tal decreto também previa amplos poderes aos juízes para substituir as ordens de prisão por intimações [ mandatos de comparecencia ] para os réus militares, sujeitando tais acusados ao “cuidado e vigilância” das próprias forças armadas a que pertencem. Ainda, tal decreto estabelece a “absolvição sumária” [ sobreseimiento] decorrente do término do prazo para a instrução ou da investigação preparatória” (artigo 6). O prazo ao término do qual os juízes poderiam determinar tal absolvição, de acordo com o Novo Código Processo Penal, é de 36 meses, prazo já ultrapassado na maioria dos processos judiciais contra oficiais militares que perpetraram violações de direitos humanos durante o conflito armado interno – a maioria dos quais foram iniciados entre 2003 e 2005.

Da mesma forma, neste decreto se aprovou uma série de benefícios para os militares processados, como a possibilidade de anular mandados de prisão no caso dos réus foragidos da justiça, mediante o pagamento de uma fiança que poderia ser efetuado pelas próprias forças armadas com recursos públicos (de maneira semelhante ao pagamento feito para os advogados dos militares, aprovado durante a gestão de Wagner):

Com relação aos réus declarados ausentes ou contumazes e que expressarem sua vontade de se apresentarem à justiça, o juiz pode substituir o mandado de prisão para pôr fim à sua condição de ausente ou contumaz, impondo um valor econômico, se as receitas do réu possibilitarem, o que poderá ser substituída por uma fiança pessoal idônea e suficiente do próprio réu ou de um familiar, ou terceiro fiador, seja pessoa física ou jurídica, ou a força armada ou policial a que pertence. 
(PERU, 2010, art. 4).

Por último, outro dispositivo desse decreto que poderia acarretar graves consequ ências para o processo de judicialização de violações de direitos humanos, é o artigo final que estabelece que a aplicação da “Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade”, assinada pelo Estado peruado em 2003, somente surtiria efeitos jurídicos a partir de sua assinatura. Isto significaria que os crimes cometidos antes de 2003 não poderiam ser considerados “crimes contra a humanidade”, tampouco poderiam ser julgados como tais, mas somente como crimes comuns, sujeitos aos prazos prescricionais estabelecidos para eles por lei (prazos que, na maioria dos casos, já haviam vencido). Cabe destacar que a poucos dias da aprovação dessa norma, 21 militares já haviam requerido o arquivamento de seus casos com base nos dispositivos sobre “absolvição sumária”, entre eles os responsáveis pelos casos Barrios Altos, Pedro Yauri, e Santa: Santiago Martín Rivas, Carlos Pinchilingue, Nelson Carbajal, Jesús Sosa, entre outros (membros do Grupo Colina) (DIARIO LA REPÚBLICA, 2010a; DIARIO EL COMERCIO, 2010).

No entanto, o Decreto Legislativo No. 1097, que para muitos não representava outra coisa senão uma anistia disfarçada, gerou críticas ferozes por parte de diversos setores, tanto no âmbito nacional, quanto internacional. No Peru, as críticas não vieram somente de organismos de direitos humanos, congregados na Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos, mas também de instituições do estado como o Ministério Público, cujas autoridades se pronunciaram publicamente contra o decreto e, inclusive, emitiram uma diretriz interna que buscava evitar sua aplicação pelas instituições de administração da justiça (DIARIO LA REPÚBLICA, 2010b). Às declarações contra o DL 1097 feitas por diversas instituições e coalizações da sociedade civil no Peru (Colegio de Abogados de Lima ,Conferencia Episcopal , etc) se somaram os pronunciamentos de diversos organismos externos, tanto ONGs como WOLA ou Human Rights Watch , quanto organizações internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Relator Especial da ONU sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo, Martín Scheinin.

No âmbito político, as críticas ao DL 1097 não somente vieram da oposição ao governo – o Partido Nacionalista apresentou ao Tribunal Constitucional uma ação de inconstitucionalidade contra o referido decreto -, mas também de parlamentares do próprio partido aprista (RPP, 2010; DIARIO LA REPÚBLICA, 2010). Após alguns dias, a oposição ao DL 1097 foi se generalizando. Um dos fatores que contribuíram para esse alastramento das críticas tanto na opinião pública, quanto na classe política, foi a revelação da participação de Cesar Nakasaki, ex-advogado de Alberto Fujimori, na redação dessa norma ( IDL-REPORTEROS, 2010).

Tudo isso produziu uma ampla oposição a esse decreto na opinião pública. Importante indício dessa oposição foi a renúncia de Mario Vargas Llosa da comissão encarregada de instalar o Lugar da Memória. Em sua carta de renúncia, Vargas Llosa afirma que a razão para sua renúncia reside em sua oposição ao DL 1097, o qual qualificou como uma “anistia apenas disfarçada para beneficiar um considerável número de pessoas vinculadas à ditadura e condenadas ou processadas por crimes contra os direitos humanos” (algumas semanas depois desse fato, foi anunciado que Llosa receberia o Prêmio Nobel de Literatura) 7. No mesmo dia em que se fez pública a sua renúncia – em 13 de setembro de 2010 -, o Poder Executivo apresentou ao Congresso um projeto de lei por meio do qual solicitou a derrogação do DL 1097. No dia seguinte, o plenário do Congresso aprovou a derrogação dessa norma (que, dessa forma, esteve em vigor por apenas 13 dias), por 90 votos a favor e apenas um contra. O solitário voto contra pertence ao vice-presidente e vice-almirante Luis Giampietri, significativamente um militar aposentado. Chama à atenção que nessa ocasião nem sequer a bancada fujimorista, que, num primeiro momento, havia defendido o decreto, votou contra a sua derrogação. Possivelmente nessa decisão pesaram interesses eleitorais, pois esses incidentes ocorreram a apenas sete meses antes das eleições gerais de 2011, em um contexto em que a grande maioria da opinião pública se posicionou contra o decreto.

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8. Conclusões

Ao longo destas páginas, procuramos apresentar as principais estratégias discursivas e políticas de que se valeram as Forças Armadas e os setores que se apresentaram como seus porta-vozes frente aos processos de justiça transicional e de esclarecimento das responsabilidades após o período de transição para a democracia. Entre as principais estratégias utilizadas pelos militares, destacam-se os pronunciamentos dos ex-Comandantes Gerais e das associações de militares aposentados, nos quais repetidamente solicita-se “respaldo político e jurídico” frente às denúncias por violações de direitos humanos cometidas durante o conflito armado interno, e nos quais as forças armadas ameaçavam não cumprir com sua missão constitucional caso tal respaldo não fosse concedido, em um contexto de intensificação dos conflitos sociais – e de participação militar no controle desses conflitos -, além de um momento de intensificação da participação das Forças Armadas na estratégia contra-insurgente travada contra os agentes reminiscentes do Sendero Luminoso no vale dos rios Apurímac e Ene (VRAE).

Esse pedido de respaldo foi respondido pela classe política por meio de diversas medidas: a aprovação dos serviços de advocacia pagos pelo Estado para os militares processados, a oposição do Ministério da Defesa à criação do Museu da Memória e a promulgação do Decreto Legislativo No. 1097 sobre normas processuais e penitenciárias. Essas medidas, que visam beneficiar, tanto material, quanto simbolicamente, os militares processados, representam graves obstáculos para o processo de Justiça Transicional e para o acesso à verdade, justiça e reparação que reivindicam as vítimas da violência política ocorrida no Peru nas últimas décadas.

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Notas

1. Poucos dias após assumir o cargo, o novo Ministro da Defesa General Walter Ledesma aposentou todos os militares graduados em 1966, a que pertencia Vladimiro Montesinos (12 generais de divisão que compunham a cúpula do Exército) (ROSPIGLIOSI; BASOMBRÍO, 2006).

2. Reunión en Comandancia General del Ejército. Borrador de Acta. 26 de febrero del 2002. Documento que integra o acervo que a CVR entregou à Defensoria Pública, ao concluir o seu mandato, e que atualmente se encontra no arquivo do Centro de Informação para a Memória Coletiva e os Direitos Humanos. O código do documento é SCO-310-01-012.

3. Cabe destacar que Arias Graziani também ocupou o cargo de assessor da presidência para temas sobre segurança e defesa durante todo o período do governo de Alejando Toledo.

4. Além destes 339 réus em casos apresentados pela CVR e pela Defensoria, há outros 28 militares processados (dos quais 22 pertencem ao Exército) por casos apresentados para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

5. “Flórez Aráoz: Crear Museo de la Memoria no es prioridad para el Perú”, Radio Programas del Perú, 26 de fevereiro de 2009. Disponível em: <http://www.rpp.com.pe/2009-02-26-flores-araoz—crear-museo-de-lamemoria-no-es-prioridad-para-el-peru-noticia_166846.html>. Último acesso em: nov. 2010.

6. Por meio da Resolución Suprema No. 059-2009- PCM, de 1 de abril de 2009.

7. O teor da carta pode ser lido em: <http://www.scribd.com/doc/37361078/Carta-de-renuncia-de-Mario-Vargas-Llosa>. Último acesso em: nov. 2010.

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Referências

Bibliografia e outras fontes

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Gerardo Arce Arce

Gerardo Alberto Arce Arce é bacharel em Ciência Política e Governo pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. Estudou no Center for Hemispheric Defense Studies (CHDS), National Defense University, em Washington D.C. Foi bolsista do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales(CLACSO). Integra o Grupo de Trabalho sobre Peru do Programa de Cooperação em Segurança Regional da Fundação Friedrich Ebert. Trabalha como Pesquisador da Área de Sociedade e Forças Armadas do Instituto de Defensa Legal.

Email: arce.g@pucp.pe

Original em espanhol. Traduzido por Thiago Amparo.

Recebido em março de 2010. Aceito em novembro de 2010.