Uma avaliação da atuação das ONGs de defesa dos direitos das mulheres sobre o Código Familiar
Em seu livro de 2005, Les Islamistes Marocains le defi au monarchie (“Islamistas Marroquinos e os Desafios para a Monarquia”, na tradução ao português) (Paris: Éditions La Décourverte, 2005), a escritora tunisiana Malika Zeghal argumenta que a questão da nação marroquina vem sendo, há mais de um século, formulada em relação ao Islã. Ela argumenta que uma questão complementar foi adicionada mais recentemente: a da representação e participação política do cidadão individual. Esse espaço recém-criado para a cidadania tem sido, pelo menos em parte, introduzido pelas reivindicações feministas marroquinas pelos direitos das mulheres e secularização do Código Familiar, uma série de leis que regulamentam as relações familiares, incluindo casamento, divórcio, custódia e heranças. Neste artigo, vou expor a noção da igualdade de direitos que foi codificada pelo Código Familiar alterado de 2004 e proposta por duas das mais renomadas organizações não-governamentais (ONGs) que trabalham com os direitos das mulheres no Marrocos: L’union de l’action féminine e Association démocratique des femmes du Maroc. Irei debater os desafios para a aplicação desse Código, especialmente em áreas rurais, e discutir uma ideologia alternativa à justiça de gênero, que antecede o Código Familiar de 2004.
Desde o surgimento das primeiras ONGs pelos direitos das mulheres no Marrocos, durante o final da década de 1980, o Código Familiar de 1957 foi objeto de ativismo. A essência do feminismo militante tem sido a luta contra o machismo presente no Código Familiar de 1957, no qual as mulheres são reduzidas a um status único e subordinado ao dos homens. O Código de 1957 estabelece o “modelo” tradicional de homem e mulher, e as relações conjugais são previstas num arcabouço jurídico que as feministas marroquinas qualificam como “insensível às evoluções sociais e ao surgimento da atividade socioeconômica das mulheres.”11. Entrevista da autora com Latifa Djebabdi em 2003. A partir desta perspectiva, o feminismo no Marrocos ganhou legitimidade devido à existência das leis.22. Rahma Bourqia, Femmes et fécondité (Casablanca: Afrique Orien,1996), 11. No entanto, essa legitimidade resultou em um discurso jurídico feminista que reduz a diversidade das condições das mulheres. Ao argumentar em favor dos direitos das mulheres marroquinas, as feministas marroquinas reproduzem a visão reducionista do discurso oficial sobre um grupo homogeneizado de mulheres, negligenciando as disparidades entre as mulheres das áreas rurais e urbanas, bem como de diferentes classes.
Na abertura do Parlamento no outono de 2003, o Rei Mohammed VI anunciou um projeto de Código Familiar. Esse projeto, adotado pelo Parlamento em janeiro de 2004, representou uma grande alteração do Código Familiar de 1957, conhecido em árabe como Mudowana, ou Code de statut personnel em francês. Embora o novo código equipare o status dos homens e mulheres no Marrocos, impacta as mulheres de maneira diferente.33. As mulheres negociam suas condições de vida de acordo com seu status socioeconômico. Por exemplo, em relação à questão do divórcio, as mulheres pobres frequentemente têm problemas com os procedimentos para receber a pensão alimentícia (Nafaqua), enquanto as mulheres ricas pagam por seu divórcio (khul). A educação também é outro fator, além do status socioeconômico determinado tanto pela classe ou local de residência, por exemplo, rural versus urbana. As estatísticas nacionais de 1994 revelam que 78,1% das mulheres em áreas urbanas receberam educação, em comparação com as mulheres em áreas rurais onde a taxa era de 24,6%. Em substituição à definição de família anterior (“uma união para a procriação, sob o comando do marido”), o código de 2004 define a família como uma associação entre dois cidadãos iguais. O sistema de tutela foi removido e as mulheres podem, de acordo com a nova lei, firmar o contrato de casamento sem a necessidade de um tutor ou representante do sexo masculino. As mulheres também podem ter acesso ao divórcio judicial. De acordo com a lei anterior, apenas os homens podiam iniciar os procedimentos para o divórcio.44. Para mais detalhes, veja uma tradução em inglês do Código Familiar marroquino de 2004 disponível em: http://www.hrea.org/programs/gender-equality-and-womens-empowerment/moudawana/.
Ao descrever os tipos de feminismos no Marrocos, Rahma Bourquia – socióloga marroquina e um dos três membros do sexo feminino da Comissão Real por trás do Código Familiar de 2004 – afirma que, dado que o feminismo militante opera em locais onde ocorre a luta pelo poder, ele é limitado pelo impacto de algumas ativistas feministas que posteriormente adquirem poder. De acordo com Bourquia, embora o feminismo militante represente uma voz de protesto, ele é rapidamente sugado para dentro da esfera de poder, seja porque denuncia um poder apenas para estabelecer outro em seu lugar, seja porque se fundamenta nas mesmas categorias conceituais de um discurso socialmente “masculinizado”, no qual as mulheres e homens são definidos de acordo com um conjunto de binários. Ao operar de acordo com esses binários, o feminismo político reivindica para as mulheres o que os homens possuem, isto é, uma nova identidade construída segundo o modelo patriarcal.55. Bourqia, Femmes. O paradoxo desse tipo de feminismo é que ele também é patriarcal. Ele requer para as mulheres um status com identificação, mas não com diferença. O debate sobre a isonomia e a diferença obscurece o fato que ele mantém um modelo masculino como referência. Tanto em termos de isonomia quanto de diferença, as mulheres são definidas em relação ao homem, que é tido como padrão e norma. Assim, a igualdade significaria uma correspondência com o padrão, e a diferença seria a negação dessa correspondência, sendo que ambos exigem a preexistência deum modelo No entanto, Bourquia destaca que, apesar de suas limitações, este feminismo contribuiu para dar visibilidade às questões de gênero no país.66. Ibid., 13-14. Para ilustrar esse paradoxo, a próxima seção discute dois exemplos de como a alteração do Código Familiar – liderada por ONGs feministas marroquinas – não se traduz necessariamente em igualdade de gênero.
Em 7 de março de 1992, L’Union de l’Acção Féminine (UAF ou União de Ação das Mulheres, na tradução ao português) lançou uma petição de um milhão de assinaturas para a revisão do Código Familiar.77. A petição solicitava a codificação legal da igualdade de gênero. Como parte da petição, uma carta aberta da L’Union de l’Action Féminine (UAF) aprofundou os argumentos e especificou as reivindicações, incluindo a igualdade de gênero dentro da família, o divórcio judicial e o direito das mulheres de iniciar procedimentos de divórcio, a abolição da tutela e da poligamia. Todos essas solicitações eram alegadamente baseadas na shari’a Maqussid (a essência dos textos canônicos islâmicos) e convenções internacionais, incluindo a CEDAW, que o Marrocos tinha ratificado.(El Ayadai 14). Os principais objetivos da UAF eram:
tornar as mulheres responsáveis da mesma forma que os homens são após atingirem a maioridade, codificar os direitos e obrigações dos cônjuges como iguais e dar às mulheres os mesmos direitos que os homens perante seus filhos.88. Veja a petição da UAF pela reforma do Código Familiar de 1993.
Embora defenda a igualdade, o texto da UAF equipara a individualidade com a masculinidade e, ao mesmo tempo, sugere que a isonomia é a base da igualdade. A partir dessa perspectiva, a UAF argumenta que o fim da noção do homem como chefe da família deve estar baseado não apenas na igual responsabilidade financeira das mulheres, mas também em sua eventual responsabilidade exclusiva pelo nafaqua (apoio financeiro da família).99. O Código Familiar alterado de 2004 coloca a família sob a responsabilidade conjunta do marido e da esposa, enquanto a lei anterior codificava a liderança dos homens pela família.
Apesar de seus paradoxos, a petição da UAF conseguiu desvendar e deslocar o debate sobre os direitos das mulheres de um círculo restrito de teólogos conservadores, levando-o ao debate público na mídia nacional e internacional. No Marrocos, a “feminização” da política e a politização do feminismo atingiu seu ponto culminante em março do ano 2000, quando, pela primeira vez na história contemporânea do país, milhares de pessoas foram às ruas das duas maiores cidades do país para apoiar ou protestar contra a elevação do status da mulher. O desenlace da crise veio com a intervenção do rei e a alteração do Código Familiar em outubro de 2003 e sua posterior ratificação parlamentar em janeiro de 2004.
No ano 2000, a Association Démocratique des Femmes du Maroc (ADFM ou Associação de Mulheres Democráticas do Marrocos, na tradução ao português) conduziu uma pesquisa de campo em que trabalhadores de fábrica de ambos os sexos foram entrevistados sobre assédio sexual no local de trabalho. A pesquisa mostra que a maioria das trabalhadoras do sexo feminino basearam suas definições de assédio sexual em preceitos religiosos.1010. Association Démocratique des Femmes du Maroc (ADFM), Le harcèlement sexuel au Maroc: Brisons le mur du silence, Étude sociologique et juridique. (Casablanca: Le Fennec, 2000), 24-25. É importante destacar que o estudo também relaciona o uso de referências religiosas com a baixa escolaridade e nível socioeconômico, observando que “somente três mulheres com posições mais elevadas, adquiridas por meio da experiência de trabalho e não por meio da educação, se referiram à religião em sua definição de assédio.” A pesquisa aponta que, ao falar sobre suas experiências de assédio sexual nos locais de trabalho, as mulheres não levantaram a questão da violência, apesar do fato que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW, na sigla em inglês) considera o assédio sexual um tipo de violência contra as mulheres. Além disso, nem os homens nem as mulheres se referiram ao código penal marroquino ao falar sobre assédio sexual, embora o artigo 483 do Código Penal – atteinte à la pudeur (ataque contra a moral pública) – possa ser aplicado a um ato de assédio sexual.1111. ADFM, Le harcèlement, 32-33. Tradução livre da autora. Isso demostra o baixo impacto desses textos legais na visão da população sobre justiça. O significado de direitos para as pessoas entrevistadas não emana de direitos identificáveis, o que demonstra a dificuldade de uma organização basear sua defesa dos direitos das mulheres apenas no amparo das convenções internacionais e na forma pela qual as mulheres estão representadas nos textos legais.
No entanto, o desenvolvimento da ADFM como uma ONG de advocacy foi determinado principalmente pela sua posição no que diz respeito à igualdade de gênero, conforme determinada pelas “normas internacionais” as quais o sistema jurídico marroquino não adere completamente. Tal posição é refletida pelos relatórios que a organização apresenta e que chamam atenção para a não conformidade das alterações legais do ordenamento jurídico marroquino aos ideais da Organização das Nações Unidas (ONU):
Apesar das reformas nos últimos anos na direção da elevação do status legal das mulheres, a avaliação da legislação marroquina em relação à CEDAW é negativa. Na verdade, não é mais possível que as condições das mulheres marroquinas continuem desiguais perante os ideais igualitários das Nações Unidas, bem como diante das expectativas de igualdade de gênero das mulheres marroquinas.1212. Association Démocratique des Femmes du Maroc (ADFM), Convention CEDAW rapport parallèle, coordenado por Rabéa Naciri (Casablanca: ADFM, 2001), 54.
Igualar as expectativas das mulheres aos ideais de não discriminação da ONU sugere a primazia dos princípios da ONU e a inexistência de qualquer instituição local que apoie a igualdade. Além disso, o relatório da organização aponta para uma contradição essencial entre a misógina shari’a marroquina (textos canônicos muçulmanos com base na interpretação das escrituras, bem como nos dizeres compilados do Profeta Maomé) conhecida como interne loi (direito interno) e o princípio internacional igualitário feminista. As críticas do relatório se baseiam na ausência de menção, na Constituição, à superioridade do direito internacional e sua consequente primazia sobre o interne loi, “que é considerado uma fonte de discriminação contra as mulheres”.1313. Ibid., 116-117.
Ao manter a dicotomia entre o interne loi e externe loi (direito internacional externo), a posição da ADFM subscreve ao conceito de igualdade externa, neutra, apolítica e unitária. O discurso da ADFM parece manter a dicotomia dos direitos das mulheres ao limitar a questão apenas à não conformidade com o princípio da igualdade de gênero da ONU. Assim, ignora a centralidade do discurso teológico sobre as questões dos direitos das mulheres no contexto de um país de maioria muçulmana – tema que será discutido na próxima seção.
De acordo com Abdullah Anaim, o discurso teológico deveria ser considerado e levado a sério, em vez de ser simplesmente rejeitado como misógino ou antiquado. O engajamento crítico com o discurso teológico sobre os direitos humanos das mulheres pode ser abordado de maneira mais adequada por meio da contestação dos fundamentos de uma visão monolítica sobre gênero segundo os textos canônicos muçulmanos. Anaim observa ainda que, por meio da análise dos contextos históricos e políticos para a construção da shari’a, a defesa dos direitos humanos das mulheres pode desempenhar um papel importante no estabelecimento dos princípios que promovem os direitos das mulheres na construção normativa da lei.1414. Abdullahi An-Naim, “The Dichotomy Between Religious and Secular Discourse in Islamic Societies,” em Faith and Freedom, Women’s rights in the Muslim World, ed. Mahnaz Afkhami (London: Syracuse University Press, 1995), 57. No entanto, conclui que a tarefa de apoiar os direitos das mulheres no contexto muçulmano se deparou com a difícil tarefa de reconciliar os direitos das mulheres como valor universal e a shari’a. De acordo com Anaim, a shari’a não apenas mantém as distinções de gênero convencionais, como também discrimina as mulheres. Ele assinala que o questionamento da shari’a a partir de uma perspectiva feminista deveria ser diferenciado do questionamento do Islã em geral, já que a shari’a é uma interpretação humana do Islã, moldada por impactos históricos e políticos específicos.1515. An-Naim, “The Dichotomy’, 59.
No entanto, manter a confusão entre a fiqh (jurisprudência) e a shari’a argumentando que ambas têm de ser conciliadas com normas igualitárias universais só serve para reproduzir o mesmo fundamento sobre o qual visões ortodoxas essencialistas são apresentadas, ou para confirmar suposições sobre um padrão universal emancipatório, em oposição a uma interpretação de que os textos canônicos muçulmanos são, em si, opressivos. Por essa razão, o desafio à injustiça de gênero interna à shari’a não deve ser meramente fundamentado na existência de padrões universais de igualdade de gênero. Isso também pode resultar de uma investigação crítica interna dos fundamentos que definem a shari’a como essencialmente misógina.
Fátima Mernissi, em seu livro inovador “Le Harem Politique”,1616. Após sua publicação em 1987, este livro foi proibido e censurado e um fatwa de morte foi proferido contra sua autora (Fatima Mernissi, Le Harem politique: Le Prophète et les femmes (Paris: Albin Michel, 1987). conduz uma pesquisainvestigação feminista da literatura religiosa, concentrando-se nos textos misóginos. O ponto de partida de Mernissi é desvendar o acesso exclusivo às escrituras por parte dos estudiosos em religião, o que explica a predominância de uma perspectiva misógina unidimensional no que diz respeito à mediação entre as escrituras e sua interpretação e a sua tradução em normas jurídicas. Isso dá margem para a manipulação política dos textos. Mernissi observa que essa manipulação se tornou uma característica estrutural da manutenção de poder nas sociedades muçulmanas.1717. Mernissi, Le Harem, 16.
A obra de Mernissi não é uma leitura simples: é um questionamento da literatura religiosa a partir de uma perspectiva feminista. Ela questiona se “podemos simplesmente ler um texto onde a política e o sagrado se juntam até o ponto em que se tornam indistinguíveis?”1818. Ibid., 81. A leitura de Mernissi é un voyage dans le temps (uma viagem no tempo),1919. Ibid., 24. onde o passado não é analisado como um refúgio ou um mito, mas interpretado por meio de uma lente atual. Segundo Mernissi, interpretar o passado a partir da perspectiva do presente é a única maneira de escapar da hegemonia do novo imperialismo, que está promovendo seu domínio por meio da economia global.
Dada a ambiguidade dos textos sagrados em relação às questões relacionadas a gênero, a interferência de uma leitura oficial entre as escrituras e os textos legais torna a interpretação uma área de disputa A interpretação é uma atividade inevitável para transferir o significado das fontes da lei islâmica, ou seja, do Alcorão e da Hadith, uma vez que as afirmações relacionadas às mulheres e à família estão abertas a diferentes interpretações. A questão persiste: O que determina o direito à interpretação? As interpretações de quem prevalecem, e por quê?
Analisar a interpretação das escrituras em contextos históricos e políticos específicos revela que a interpretação única e oficial dos textos é apenas uma entre muitas interpretações possíveis. Tal análise também revela que a presença de uma perspectiva de discriminação de gênero, por um lado, e a opressão, de uma perspectiva feminista, por outro, não são determinadas por um Islã essencialmente misógino. A misoginia é, ao contrário, uma perspectiva a partir da qual a interpretação é produzida.
Sendo um texto legal no qual a política de gênero se baseia em “provas religiosas” rotuladas como “identidade muçulmana” estatal, o Código Familiar marroquino vincula indissociavelmente o status legal das mulheres e homens aos fundamentos religiosos do poder político. A discrepância entre o Código Familiar de 1957 e o de 2004 é um exemplo disso; ambos os textos são a principal fonte na qual a “identidade muçulmana marroquina” é articulada. Enquanto o Código de 1957 foi criado para propor e manter o recém-estabelecido, anticolonial e independente Estado-nação, o Código de 2004 faz parte da agenda nacional para a promoção de um “Islã marroquino moderno e moderado” que foi definido oficialmente após os atentados de Casablanca em 2003.
Ao anunciar a alteração do Código Familiar, na abertura do Parlamento no outono de 2003, o rei Mohamed VI declarou que:
É necessário estar atento ao propósito tolerante do Islã, que defende a dignidade humana, a igualdade e as relações harmoniosas, e conta também com a coesão do rito Malikite e Ijtihad.2020. Mohamed VI, em discurso no Parlamento, 10 de outubro de 2003, trechos em inglês disponíveis em http://www.memri.org/report/en/print991.htm, acesso em 30 de nov. 2016. Malikite é uma escola de islamismo sunita nomeada em homenagem ao erudito sunita do século VIII Malik Iben Anas.
Com base no espírito igualitário do Alcorão e da Suna (compêndio de preceitos Islâmicos baseado nas palavras e práticas do profeta Maomé), o rei utilizou a prerrogativa real do comandante dos fiéis para acabar com alguns dos privilégios legais dos homens, tais como a tutela masculina sobre as mulheres (wilaya) e o direito unilateral ao divórcio. Isso preparou o terreno para uma mudança na definição estatal de família. O Código Familiar de 1957 definiu a família como uma união para a procriação, sob a liderança do marido, com uma determinação dos papéis de gênero designando o marido como provedor oficial e a mulher como trabalhadora doméstica obediente. Em contraste, o Código de 2004 define a família como uma associação entre dois cidadãos muçulmanos modernos e iguais. Essas alterações refletem o nível de influência das feministas sobre a evolução do status jurídico das mulheres marroquinas, mas também a ausência da perspectiva teológica feminista na reforma do código.
O Islã ou a identidade islâmica conforme representada por alguns estudiosos religiosos conservadores ainda é criada em um dualismo contrastante justamente com as reivindicações das feministas. Os direitos individuais das mulheres estão frequentemente, de modo dualístico, em posição oposta aos valores da família muçulmana baseados na complementaridade de papéis e na diferença hierárquica entre os sexos. Essa construção dos direitos das mulheres como algo equivalente ao abandono das culturas muçulmanas locais, de adoção de uma cultura ocidental que, supostamente, é inerentemente igualitária é combatida pelas feministas que oferecem um modelo universal e específico de igualdade de gênero. Por exemplo, em 1994 a ADFM e o “coletivo 95 pela Igualdade”, um coletivo de Magreb, elaboraram um modelo para um Código Familiar igualitário, que, em parte, influenciou o Código Familiar de 2004. Ele incluía a universalidade dos direitos das mulheres, que não deveriam se submeter às diferenças religiosas, de gênero ou étnicas. Consequentemente, propunha a elevação da idade mínima para o casamento das mulheres, de modo que ela fosse igual à dos homens (dezoito anos); a abolição da tutela e dos direitos unilaterais de divórcio; e que a nafaqa (pensão alimentícia) se tornasse uma obrigação para homens e mulheres. Para a ADFM e UAF, o fim da desigualdade entre os sexos no sistema jurídico em geral e no Código Familiar, em particular, se baseia na igualdade como isonomia. Neste caso, direitos das mulheres significa “acesso ao que os homens já têm acesso”, sem contestar o sistema que produz a desigualdade.2121. Catherine Mackinnon, “Difference and Dominance: On Sex Discrimination,” no Feminism and Politics, ed. Anne Philips (Oxford and New York: Oxford University Press, 1998), 295-313.
Talal Asad, citando a crítica do feminismo francês de Joan Scott, argumenta que uma posição igualitária secular pode criar situações paradoxais:
O feminismo pós-sufrágio foi construído no campo de um paradoxo: não havia isonomia declarada entre mulheres e homens sob o signo da cidadania (ou do indivíduo abstrato), e havia a masculinidade excludente do sujeito individual. De um lado, estava a igualdade presumida que ocorreu após a posse jurídica dos direitos universais assegurada por lei. Por outro lado, havia a desigualdade que ocorreu após as presumidas evidências naturais de diferenças sexuais.2222. Talal Asad, “French Secularism and the ‘Islamic Veil Affair’,” The Hedgehog Review (Spring & Summer 2006): 93-106, acesso em 30 de nov. 2011, http://www.iasc-culture.org/THR/archives/AfterSecularization/8.12IAsad.pdf.
Para as feministas marroquinas, a igualdade tida como certa é universal e, presumidamente, secular. Isto é ilustrado pela declaração da Organização de Mulheres Marroquinas que avalia as conquistas da Conferência de Pequim:
A quarta conferência internacional em Pequim representou um sucesso para a igualdade jurídica das mulheres, uma vez que ela confirmou os dois princípios da universalidade e igualdade. A conquista da agenda da igualdade e universalidade trará respeito para as mulheres marroquinas como seres humanos e como cidadãs.2323. Association Démocratique des Femmes du Maroc, Comunicação, abril 1995, arquivo da autora.
Essa noção presumidamente universalista da igualdade mantém as perspectivas de justiça, democracia e elaboração de políticas das mulheres dentro de padrões universais predeterminados e abstratos de igualdade de gênero, ao reduzir a complexidade dos gêneros à igualdade jurídica entre os sexos. Isso reduz as diversas posições das mulheres enquanto indivíduos e as formas complexas de negociação com diferentes níveis de relações de poder a uma “mulher” única, ou a um grupo homogêneo de mulheres submetidas à subordinação. As noções de homem e mulher possuindo diversos significados e direitos diferentes são, muitas vezes, obscurecidas por uma definição única dos direitos das “mulheres” marroquinas conforme defendido pelas feministas. Nesse sentido, em nome da igualdade de gênero, as feministas estão endossando a mesma tese de homogeneização que esteve na origem da codificação do Código de 1957. A política de nacionalização pós-independência e o advento do primeiro Código Familiar de 1957 levou à abolição da kad wa siaya, o direito das mulheres baseado na shari’a local, que valorizava o trabalho das mulheres no campo e em casa, conferindo às donas de casa e mulheres rurais que trabalhavam na agricultura o direito à metade da propriedade acumulada durante o casamento. Esse conceito foi tradicionalmente defendido por teólogos rurais, como Iben Ardoun no século 16, e fortemente rejeitado pelos teólogos urbanos de Fez. Esse conceito era uma noção de justiça de gênero baseada na shari’a desenvolvida pela fiqh (jurisprudência) marroquina em aldeias berberes, particularmente na região de Sous.
O referido direito também é negado às mulheres pelo artigo 49 do Código Familiar de 2004. No sentido contrário, o Código de 2004, em grande parte inspirado pelo acordo pré-nupcial francês, baseado no pressuposto da mulher como uma moderna cidadã autônoma e livre, que estabelece contratos e que ganha um salário em uma economia formal, requer que um acordo pré-nupcial formal seja consumado para que o direito da mulher à propriedade acumulada durante o casamento seja protegido. Esse entendimento de um único significado para a igualdade – fundado em condições inexistentes, tais como o individualismo, a autonomia, o acesso à educação, a existência de instituições estatais e a e economia formal – reduz o impacto do propósito igualitário do Código Familiar de 2004.
Um recente estudo etnográfico realizado pelo departamento de sociologia da Universidade Iben Tofail em Kenitra, na região do rural Gharb (ocidental), mostra que as mulheres que solicitam divórcio ou que requerem pensão alimentícia raramente consultam um advogado, seja porque não veem motivo para tanto ou porque é muito caro e não vale a pequena pensão alimentícia que não passa de US$ 30 por mês por criança. O artigo 49 do Código de 2004 prevê uma opção para o casal firmar um acordo pré-nupcial com base em um modelo de propriedade contratual, separado do contrato de casamento, sendo que o acordo está sujeito ao direito civil. No entanto, isto não é possível para a maioria dos casais, já que a maioria dos casamentos rurais são arranjados entre o marido e familiares da esposa. Dos quatrocentos casamentos na região do Gharb, nenhum casal assinou um acordo pré-nupcial. Além disso, a mesma pesquisa mostra que as mulheres que trabalham na economia informal não têm nenhuma forma de firmar um contrato pré-nupcial por causa da falta de comprovação legal de seu emprego. Outra informação significativa apresentada por essa pesquisa é que nenhuma das mulheres entrevistadas sabia do Código Familiar de 2004.
A importância das conquistas do ativismo feminista no Marrocos não deve ser descartada, nem as mudanças positivas simbólicas e substanciais da reforma para as mulheres com bom nível educacional da classe média urbana. No entanto, as limitações da reforma para as mulheres rurais levantam questões de como podemos criar melhores e mais eficazes intervenções em prol dos direitos das mulheres. E sobre como o debate sobre os direitos das mulheres pode ser mais respeitoso das noções alternativas e práticas de justiça de gênero adotadas por diferentes segmentos da população, ao invés de simplesmente refletir blocos de identidade, tais como o Islã Maliki ou o feminismo secular internacional, a partir dos quais as normas legislativas e decisões políticas são baseadas atualmente.