Ensaios

Controle da fertilidade das mulheres em Uganda

Sylvia Tamale

Perspectivas sobre religião, direito e medicina

Yasmin Sabur

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RESUMO

Começando com um exame do impacto da pílula anticoncepcional, Sylvia Tamale pergunta: Por que controlar a sexualidade das mulheres? A autora aborda, usando o contexto ugandês como um exemplo, as razões pelas quais as sociedades capitalistas-patriarcais têm procurado regular a capacidade das mulheres de serem autônomas em termos de suas escolhas reprodutivas. A autora examina, então, as atitudes das religiões abrâmicas (cristianismo e islamismo) sobre a contracepção e o planejamento familiar. Ela observa que, apesar das atitudes religiosas conservadoras persistirem, há ocasionais lampejos de esperança. Finalmente, Tamale analisa o papel do Direito - tanto a nível internacional como nacional - na tradução das normas religiosas que essas religiões dominantes têm concebido em mecanismos de controle social.

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I. Introdução

Sem dúvida, uma das invenções mais revolucionárias do século 20 foi a da pílula anticoncepcional, na década de 1950, tornada publicamente disponível na década de 1960. A pílula mudou o mundo no final do século 20, da mesma forma que a internet o mudou no início do século 21. A invenção da pílula não só mudou a ciência e a medicina, mas também sinalizou outros níveis de proteção das mulheres em todo o mundo. As relações de gênero nunca mais seriam as mesmas; não é exagero dizer que os modernos mecanismos anticoncepcionais reescreveram a democracia. Isso ocorre porque os dispositivos de controle de natalidade deram às mulheres, pela primeira vez, o controle de seus futuros e de seus corpos. O fato aparentemente simples da possibilidade de mulheres desfrutarem do sexo livremente, sem medo de terem uma gravidez indesejada, marcou um momento decisivo nas lutas de liberação das mulheres em todo o mundo. O nascimento da pílula contraceptiva oral desenhou uma linha que separou o sexo por prazer do sexo para procriação.

Ironicamente, foi um obstetra católico, o (dr. John Rock que, juntamente com o cientista Gregory Pincus e as feministas Margaret Sanger11. Margaret Sanger colaborou com a feminista britânica Marie Stopes, que criou a primeira clínica de controle de natalidade na Grã-Bretanha em 1921. e Katharine McCormick, foi responsável por esta pílula maravilhosa que reinventou o sexo para as mulheres, permitindo-lhes ter controle de sua fertilidade e capacidades reprodutivas.22. Jonathan Eig, The Birth of the Pill: How Four Crusaders Reinvented Sex and Launched a Revolution (New York: W. W. Norton & Company, 2014).

Antes da invenção dos modernos dispositivos contraceptivos, os africanos utilizavam métodos menos eficazes de controle da fertilidade, alguns dos quais representavam riscos para a saúde. Por exemplo, apoiavam-se na amamentação (que reduz a fertilidade), no coito interrompido, no sexo anal e na utilização de plantas com propriedades contraceptivas e abortivas. Isso está bastante distante dos vários métodos de controle de natalidade disponíveis hoje. Para além da pílula, a autonomia sexual das mulheres pôde ser realizada através de outros métodos hormonais injetáveis ou implantáveis, ou dispositivos intra-uterinos (DIU), assim como barreiras físicas, tais como preservativos e diafragmas.

É impossível discutir o controle da fertilidade e não falar sobre o aborto. De fato, quando as mulheres abortam, elas estão, em essência, exercendo sua autonomia sexual por meio do controle de sua fertilidade. Hoje, com a invenção de pílulas como o misoprostol, os métodos contraceptivos modernos incluem aborto com utilização de medicamentos (em oposição ao aborto cirúrgico).,. Estudos médicos demonstraram que o aborto induzido por medicamentos é marcadamente mais seguro do que o parto; o risco de morte associado ao parto é aproximadamente 14 vezes maior do que em relação ao aborto.33. Esses pesquisadores norte-americanos relataram que a taxa de mortalidade dentre as mulheres que deram à luz neonatos vivos foi de 8,8 mortes por 100.000 nascidos vivos. A taxa de mortalidade relacionada ao aborto induzido foi de 0,6 óbitos por 100.000 abortos; ver: Elizabeth Raymond e David Grimes, “The Comparative Safety of Legal Induced Abortion and Child Birth in the United States,” Obstetrics and Gynecology 119, no. 2 (2012): 215-9.

Partindo de um exame do impacto da pílula anticoncepcional, este artigo começa com uma pergunta: Por que controlar a sexualidade das mulheres? Passa então a examinar o lugar das religiões abraâmicas (cristianismo e islamismo) em relação ao fenômeno da contracepção. Por fim, concluo sobre o papel do Direito na tradução das normas religiosas que essas religiões dominantes têm desenhado em mecanismos de controle social.

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II. Por que controlar a sexualidade das mulheres?

O controle da fertilidade das mulheres é uma questão de saúde e de direitos sexuais e reprodutivos. Quando a pílula foi introduzida pela primeira vez em Uganda, em 1957, ela só estava disponível para mulheres casadas, e a Associação de Planejamento Familiar de Uganda (Family Planning Association of Uganda – FPAU) exigia o consentimento por escrito do marido para que as mulheres pudessem ter acesso à pílula.44. Josaphat Byamugisha, “Emergency Contraception Among Young People in Uganda: User and Provider Perspectives” (PhD thesis, Makerere University, Uganda, 2007). Essa política permanecia em vigor durante a década de 1980, quando eu era estudante de graduação na universidade. Lembro-me de ter visitado a clínica FPAU no Hospital Mulago, de referência nacional, e a enfermeira ter me pedindo uma carta do meu marido permitindo que eu tomasse a pílula. Desculpei-me, sentei-me debaixo de uma árvore e rabisquei uma carta com um nome falso de um marido inexistente e recebi as pílulas anticoncepcionais! Hoje, muitas mulheres na Uganda tomam os contraceptivos modernos como garantidos e rotineiramente apreciam o sexo sem o medo iminente de engravidar. No entanto, a Pesquisa Demográfica e de Saúde de Uganda, de 2011, revelou algumas estatísticas sombrias sobre a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. As taxas de gravidez na adolescência permanecem altas, em 24% em 2011. Somente 30% das mulheres casadas com idades entre 15 e 49 anos usam algum método contraceptivo, sendo os mais comuns os injetáveis, que são fáceis de ocultar dos parceiros.55. Uganda Bureau of Statistics, Uganda Demographic and Health Survey (Kampala: UBOS, 2011): 234.

Como chefes de família, a maioria dos homens ugandeses sente que é seu dever exclusivo decidir se, quando e quantas vezes suas parceiras devem ter filhos. Isso explica porque os contraceptivos injetáveis são métodos populares para as mulheres controlarem secretamente sua fertilidade. Tais atos subversivos demonstram até que ponto as mulheres vão para exercer sua autonomia sexual. Além disso, Uganda tem uma taxa de mortalidade materna de 438 por 100.000 nascidos vivos, sendo que 26% dessas mortes são causadas por abortos inseguros.66. “Abortion in Uganda: Fact sheet,” Guttmacher Institute, janeiro de 2013, acesso em 13 nov. 2016, http://www.guttmacher.org/pubs/FB-Abortion-in-Uganda.html. O Ministério da Saúde estima que cerca de 400.000 abortos inseguros ocorrem anualmente em Uganda, com mais de 1.500 mulheres perdendo a vida.77. Ministry of Health (MoH), Reducing Morbidity and Mortality from Unsafe Abortion in Uganda: Standards and Guidelines (abril de 2015). A maioria das mortes por abortos inseguros atinge mulheres pobres, jovens e de áreas rurais.88. Charles Ngwena, “Taking Women’s Rights Seriously: Using Human Rights to Require State Implemetation of Domestic Abortion Laws in African Countries with Reference to Uganda,” Journal of African Law 60, no. 1 (2016): 110-40. Pesquisa Demográfica e de Saúde de Uganda também relacionou baixos níveis de uso de contraceptivos à violência doméstica; mas devemos lembrar que existem centenas de milhares de mulheres, mesmo hoje, que não têm acesso a esses dispositivos libertadores.99. Byamugisha, “Emergency Contraception Among Young People in Uganda,” 2007.

Quando uma mulher pode controlar sua fertilidade, quando ela pode escolher se quer ter ou não filhos, quando ela pode determinar quantas vezes ela pode ter filhos, quando ela pode ter relações sexuais e não temer que resultará em uma gravidez indesejada, ela quebra as correntes que permanentemente a condenam à arena doméstica. É possível perguntar: O que há de errado com a arena doméstica? Na sociedade ugandense, a esfera doméstica está separada da arena pública, onde a política e o mercado residem. Enquanto o espaço público é valorizado e o trabalho feito ali é remunerado, o espaço doméstico é desvalorizado, e seu trabalho é dado como certo.1010. Sylvia Tamale, “Gender Trauma in Africa: Enhancing Women’s Links to Resources,” Journal of African Law 48, no. 1 (2004): 50-61. Na verdade, muitas pessoas dizem coisas como “minha mãe não trabalha” simplesmente porque ela é uma dona-de-casa. O trabalho doméstico e de cuidado dos filhos feito pela maioria das mulheres em suas casas não é valorizado e nem remunerado com salários. A escravidão do trabalho doméstico, definida por suas características repetitivas, árduas e demoradas, consome as mulheres, deixando-as com muito pouco espaço para se envolverem na arena pública. Muitas de nós veem os atuais papéis de gênero como naturais e dados por Deus, sem perceber a maneira pela qual eles são construídos socialmente. O fato é que os homens também podem cuidar de crianças e, quando o fazem, o mundo não acaba!

Há um poder considerável latente na função da reprodução, que é a consequência direta de possuir um útero. Reconhecendo esse poder, as sociedades capitalistas-patriarcais trabalharam arduamente para regulá-la e controlá-la de várias maneiras diferentes. Primeiro, a sociedade relaciona diretamente a função das mulheres no processo reprodutivo biológico aos seus papéis de gênero; assim, a sociedade “naturaliza” e “normaliza” o papel de nutrir e educar as crianças para as mulheres. A religião desempenha um papel crucial na construção da lógica patriarcal de que as mulheres foram criadas para cuidar e criar os filhos. A Lei Natural, que se baseia no Divino e na crença de que todas as leis escritas devem seguir os princípios universais da moralidade e da religião, é extremamente influente na modelagem do nosso pensamento sobre questões de contracepção. Dessa forma, a religião e o direito legitimam e institucionalizam o controle da sexualidade e das capacidades reprodutivas das mulheres.

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Quando a pílula anticoncepcional foi inventada pela primeira vez, isso era tão controverso que ela não foi comercializada diretamente como um dispositivo de controle de natalidade. Essa pequena pílula desafiou todos os princípios da Lei Natural, da religião, do patriarcado e capitalismo.1111. Obviamente, com exceção dos milhões feitos pela grande indústria farmacêutica com as vendas de diferentes dispositivos contraceptivos. Rock e Pincus sabiam que nunca obteriam a aprovação necessária da Food and Drug Administration (FDA) caso a apresentassem como uma pílula anticoncepcional. Em vez disso, eles apresentaram como medicamento para distúrbios menstruais ou ciclos menstruais irregulares. As embalagens incluíam uma advertência: “A pílula é suscetível de prevenir a gravidez”. As mulheres americanas se amontoavam nas farmácias para adquirir essa pílula “mágica” libertadora.1212. Eig, The Birth of the Pill, 2014.

O anticoncepcional mágico permitiu que as mulheres participassem livremente da política e dos negócios na esfera pública. Agora, elas poderiam avançar suas carreiras educacionais e profissionais sem medo de gestações não planejadas. O céu tornou-se o limite para as mulheres realizarem todo seu potencial sem o peso da gravidez indesejada e responsabilidades de cuidado das crianças. Como trabalhadoras primárias na arena doméstica, as mulheres constituem a pedra angular para a produção e reprodução da sociedade e suas normas.

A necessidade de controlar e regular a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres é crucial em sociedades patriarcais-capitalistas em dois níveis. Primeiro, como um dos princípios centrais da institucionalização da exploração feminina, tal controle consolida a dominação masculina por meio do controle dos recursos e do estabelecimento do poder econômico relativamente maior dos homens sobre as mulheres. A família patriarcal engendra relações econômicas por meio das quais o homem, como chefe da família, exerce controle sobre as vidas de mulheres e das crianças, que são praticamente tratadas como sua propriedade.1313. Friedrich Engels, The Origin of the Family, Private Property and the State (new ed.) (New York: Pathfinder Press, 1972). Em Uganda, o princípio do “homem como chefe da família” é institucionalizado no currículo educacional e na prática cultural. Dessa forma, a heteronormatividade constitui uma das bases de poder essenciais para os homens na arena doméstica.1414. O conceito de “heteronormatividade” refere-se à ideologia que considera a heterossexualidade como o arranjo sócio-sexual normal e legítimo da sociedade; ver: Rosemary Hennessy e Chrys Ingraham, Materialist Feminism: A Reader in Class, Difference, and Women’s Lives (New York: Psychology Press, 1997). O capitalismo exigia uma nova forma de patriarcado em relação àquela que existia na África pré-colonial, uma que abraçasse uma forma particular (monogâmica, nuclear, heterossexual) da família.1515. Eli Zaretsky, Capitalism, the Family and Personal Life (New York: Harper and Row, 1976). Sob tal estrutura, é essencial que a propriedade e a riqueza adquirida pelo homem sejam transmitidas à descendência masculina para sustentar o sistema. Assim, torna-se importante o controle da sexualidade das mulheres, a fim de garantir a paternidade e a legitimidade das crianças ao legar a propriedade. Para tanto, a monogamia das mulheres é necessária sem necessariamente perturbar a sexualidade poligâmica dos homens. Esses padrões ambíguos estão claramente refletidos no direito da família: por exemplo, ao prever o crime de adultério às mulheres e não aos homens. Essa mesma inconsistência também é vista no delito de prostituição, que penaliza apenas quem vende (na maiora das vezes, mulheres) e não quem compra (leia-se homens) sexo.1616. Sylvia Tamale, “Paradoxes of Sex Work and Sexuality in Modern-Day Uganda,” in African Sexualities: A Reader, ed. Sylvia Tamale (Oxford: Pambazuka Press, 2011).

Em outro nível, vimos que as sociedades capitalistas-patriarcais se caracterizam pela separação da esfera “pública” da esfera “privada”. As duas esferas são altamente marcadas pelo gênero, com a primeira representando os homens e o local de atividades socialmente valorizadas, como a política e o trabalho assalariado, enquanto a segunda é representativa das atividades domésticas, principalmente aquelas não remuneradas e subvalorizadas, realizadas pelas mulheres. Isso levou à domesticação dos corpos das mulheres e a seu rebaixamento para a esfera “privada”, onde elas realizam gratuitamente as necessidades da vida social produtiva e reprodutiva (subsidiando assim o capital)1717. Além disso, mantendo as mulheres em uma posição subordinada, o capitalismo pode justificar e lucrar com o pagamento de salários mais baixos para mulheres que trabalham fora de suas casas, e empregá-las em piores condições do que os homens. e são economicamente dependentes de seus parceiros masculinos.1818. Linda Nicholson, Gender and History: The Limits of Social Theory in the Age of the Family (New York: Columbia University Press, 1986).

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III. Religiões abraâmicas e contracepção

Antes da introdução das religiões abrâmicas do islamismo e do cristianismo em Uganda, as religiões tradicionais africanas geralmente consideravam o aborto como uma abominação. No entanto, as religiões tradicionais africanas eram bem cientes dos benefícios do espaçamento de crianças para a saúde materna e infantil. Os africanos empregavam vários métodos para prevenir a concepção ou aumentar o espaçamento entre os filhos, incluindo poções de ervas tomadas por via oral, usadas para duchas ou para preencher o colo uterino, amamentação prolongada, sexo anal e femoral, coito interrompido, preservativos feitos da bexiga de cabra e poliginia.1919. Ronald Walfe, “Traditional Methods of Birth Control in Zaire.” Pathfinders Occasional Paper, 1978, acesso em 6 oct. 2015, http://pdf.usaid.gov/pdf_docs/PNAAQ236.pdf.

Na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento de 1994, realizada no Cairo, questões de controle da fertilidade foram firmemente colocadas na agenda. Alguns grupos religiosos, particularmente o islã e o catolicismo, se opuseram veementemente a qualquer discussão sobre sexualidade e contracepção no âmbito dos direitos humanos. O Conselho Ulama da Arábia Saudita condenou a conferência como um “ataque feroz à sociedade islâmica”,2020. Christine Gorman, “Clash of Wills in Cairo,” Time Magazine, Sept. 12, 1994, acesso em 5 oct. 2015, http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,981409,00.html. enquanto o Papa João Paulo II atacou o “imperialismo contraceptivo” implícito na agenda do Cairo.2121. John Conley, “John Paul II on Demographic Ethics,” in Prophecy and Diplomacy: The Moral Doctrine of John Paul II, ed. John Conley and Joseph Koterski (New York: Fordham University Press, 1999).

Sa’diyya Shaikh, uma estudiosa feminista muçulmana da Universidade de Cape Town, chama a atenção para o fato de que a vociferante oposição ao planejamento familiar em algumas comunidades muçulmanas “representa um contraste bastante acentuado com a forma como os muçulmanos historicamente abordaram a questão”.2222. Sa’diyya Shaikh, “Morality, Justice and Gender: Reading Muslim Tradition on Reproductive Choices,” in African Sexualities: A Reader, ed. Sylvia Tamale (Oxford: Pambazuka Press, 1999): 340. Ela escreve:

Mesmo uma investigação superficial sobre o legado intelectual islâmico demonstrará que oito das nove escolas jurídicas clássicas permitiram a prática da anticoncepção e que as posições jurídicas islâmicas sobre o aborto variam entre permitir vários níveis de permissibilidade do aborto até 120 dias, até a proibição.

Shaikh cita vários ensinamentos do Alcorão, os quais separam o sexo marital para a procriação e o sexo para o prazer dentro do casamento, que também reconhecem a dimensão espiritual da sexualidade. Seu argumento é que “essa abordagem da sexualidade é compatível com uma abordagem mais tolerante da contracepção e do planejamento familiar”.2323. Ibid: 347. Ela argumenta que algumas das principais considerações éticas e legais em relação ao aborto no Islã se relacionam com a compreensão da natureza do feto, o processo de desenvolvimento fetal e o ponto em que o feto é considerado um ser humano. De acordo com o Alcorão e alguns hádices, o processo sequencial de desenvolvimento fetal culmina em se tornar um ser humano pleno quando é “animado”, ou seja, o momento em que a alma infunde o embrião humano (isto é, aproximadamente 120 dias após a concepção).2424. Ibn Qattun al-Jawziyya, Al-Tibyan fi aqsam al-Qur’an (Cairo: Fadak Books, 1933).

A Igreja Católica ensina que a criação da alma acontece na concepção e, portanto, considera o aborto de um embrião ou feto como assassinato. Também se opõe aos métodos anticoncepcionais, exceto pelo método não-confiável do “ritmo” natural de se abster do sexo durante os dias de ovulação previstos. Em 1968, o papa João Paulo VI publicou sua encíclica carta sobre Humanae Vitae (vida humana), reafirmando a proibição total pela Igreja Católica dos métodos anticoncepcionais modernos ou artificiais. Portanto, a resposta de João Paulo II à Conferência do Cairo estava de acordo com as regras enunciadas por seus predecessores. A Igreja acredita firmemente no propósito da Lei Natural do sexo, que é a procriação. A religião age, assim, como um contrapeso importante à capacidade e ao direito das mulheres de controlar sua fertilidade.

Mas esses pontos de vista não são escritos em pedra. Avançando para 2015, vemos o Papa Francisco I deslocando o foco das “regras” para o princípio por trás das regras e sugerindo uma abordagem de “bom senso” para a regra, chamando a Igreja a ser misericordiosa e compreensiva. Em 2013,seis meses depois de assumir o seu papado, o Papa Francisco fez algumas observações que sinalizaram uma mudança na direção da Igreja sobre o aborto. Ele disse que a Igreja tinha se tornado demasiado “obcecada” com a homossexualidade, o aborto e a contracepção.

Não é necessário falar sobre essas questões o tempo todo. Os ensinamentos dogmáticos e morais da Igreja não são todos equivalentes. O Ministério Pastoral da Igreja não pode estar obcecado com a transmissão de uma variedade desarticulada de doutrinas a ser impostas insistentemente … Temos de encontrar um novo equilíbrio.2525. Laurie Goodstein, “Pope Says Church Is ‘Obsessed’ With Gays, Abortion and Birth Control.”New York Times, 19 de setembro de 2013, acesso em 20 nov. 2016, http://www.nytimes.com/2013/09/20/world/europe/pope-bluntly-faults-churchs-focus-on-gays-and-abortion.html?pagewanted=all&_r=0.

Embora o Papa Francisco tenha falhado em repudiar a Encíclica Humanae Vitae, suas palavras deram esperança a milhares de mulheres e deixaram muitas feministas satisfeitas com a possibilidade de que uma nova mensagem pareça estar saindo do Vaticano sobre essa questão polêmica. Em outubro de 2015, o Papa Francisco disse em um encontro católico romano sobre questões familiares que a fé “não era um museu para olhar e salvar”, mas deveria ser uma fonte de inspiração e convocou o Sínodo a ter coragem de mudar, se essa for a vontade de Deus.2626. Philip Pullella, “Pope says Church Can’t be ‘Museum’, Must be Open to Change.” Reuters, 5 de outubro de 2015, acesso em 6 oct. 2016, http://news.yahoo.com/pope-says-church-not-museum-memories-091737202.html. Em novembro de 2016, ele chocou o mundo quando o Vaticano endossou oficialmente a absolvição do aborto por padres católicos em todo o mundo.2727.

A posição da Igreja Anglicana sobre a questão do aborto não é tão clara quanto a da Igreja Católica. Embora também seja moralmente contrária ao aborto, algumas denominações da Igreja Anglicana são mais liberais e permitem o aborto sob certas circunstâncias restritas. Antes de 1930, a Igreja Anglicana, como a Igreja Católica, era totalmente oposta aos métodos contraceptivos artificiais. No entanto, devido às pressões sociais, as Conferências de Lambeth em 1930 abriram as portas para a contracepção artificial (por exemplo, o diafragma ou capuz cervical) para casais casados. É claro, portanto, que embora as instituições religiosas possam parecer conservadoras, elas também mudam com passar do tempo; as mudanças podem ser lentas e demoradas, mas o “senso comum” (termo usado pelo Papa Francisco) prevalece frequentemente.

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IV. O Papel do Direito

Como vimos, regular e controlar a sexualidade das mulheres é essencial para a sobrevivência do patriarcado e do capitalismo. Representa uma forma vital e necessária de instituir e manter a domesticidade das mulheres ugandenses. Isso funciona para delinear os papéis de gênero e sistematicamente privar as mulheres do acesso e controle de recursos. As leis são usadas pelos Estados patriarcais como um mecanismo de regulação e controle. Quando falo de “direito” e “leis” aqui, isso inclui leis escritas e leis costumeiras (enraizadas na cultura). Porém, também relevantes para o regime jurídico de Uganda são as leis religiosas ou naturais, cujas normas e princípios são incorporadas em leis escritas, apesar da declaração constitucional de que Uganda é um Estado secular.2828. Ver artigo 7 da Constituição de 1995. Através do controle social dos corpos das mulheres e de sua sexualidade, as leis funcionam para minar sua autonomia.

Portanto, leis escritas, cultura e religião são todos instrumentais na construção da sexualidade e do desejo das mulheres ugandenses por meio das inscrições gravadas em nossos corpos.2929. Sylvia Tamale, “‘Keep Your Eyes Off My Thighs’: A Feminist Analysis of Uganda’s ‘Miniskirt Law,’” Feminist Africa 21 (2016): 83-90. Por meio do controle reprodutivo e sexual de nossos corpos, nossa subordinação e exploração contínua são garantidas.

Uma vez que as mulheres que controlam sua sexualidade e suas capacidades reprodutivas representam uma antítese absoluta ao domínio do patriarcado, não é de surpreender que as questões relacionadas com a contracepção e o aborto sejam combatidas com unhas e dentes pelo Estado patriarcal. As leis escritas e costumeiras, ampliadas pela religião, trabalham em conjunto para nacionalizar o útero das mulheres. A Constituição da Uganda e o Código Penal criminalizam o aborto, com uma única exceção ao aborto terapêutico (ou seja, quando a gravidez ameaça a vida da mulher).3030. Nesse sentido, a Constituição é restritiva, mas não proscritiva. Ver o Artigo 22(2) da Constituição de 1995, seções 141-143 e 224 do Código Penal. O Artigo 22(2) estabelece que “Ninguém tem o direito de terminar a vida de um feto, exceto quando autorizado por lei”. Esta disposição constitucional prevê uma lei para autorizar o aborto. Quando Uganda ratificou o Protocolo sobre os Direitos das Mulheres em África (Protocolo de Maputo) em 2010, o fez com uma reserva ao Artigo 14(2)(c), que permite o aborto em casos de agressão sexual, estupro e incesto.3131. Ben Twinomugisha, Fundamentals of Health Law in Uganda (Pretoria: Pretoria University Law Press, 2015). A criminalização do aborto representa uma tentativa deliberada do Estado de forçar as mulheres à maternidade sem qualquer promessa de ajuda à criança indesejada. Significa o poderoso controle e a violência institucionalizada contra os corpos das mulheres pelo Estado patriarcal.

Dado esse contexto político, não foi de estranhar quando, em maio de 1999, as operações da organização internacional não-governamental de saúde sexual Marie Stopes foram temporariamente suspensas pelo governo ugandense “por alegada administração de abortos.”3232. See “Uganda: Marie Stopes Closed,” New Vision, 6 de maio de 1999, acesso em 13 nov 2016, http://allafrica.com/stories/199905060077.html. Além disso, os efeitos adversos da Global Gag Rule da USAID sobre a autonomia sexual das mulheres ugandenses não pode ser subestimada. Introduzida em 1984 pela administração republicana do presidente Ronald Reagan, a regra proibiu todas as ONGs estrangeiras que recebiam fundos dos Estados Unidos de advogar pelos direitos relacionados ao aborto.3333. Note-se que esta regra, também conhecida como “Mexico City Policy”, foi suspensa pelos governos do Partido Democrata de Bill Clinton e Barack Obama. Ainda não se sabe se o presidente Donald Trump seguirá seus antecessores republicanos e reintegrará a regra; Patty Skuster, “Advocacy in Whispers: The Impact of the USAID Global Gag Rule Upon Free Speech and Free Association in the Context of Abortion Law Reform in Three East African Countries,” Michigan Journal of Gender and Law 11 (2004): 97-126. A ONG Centre for Health, Human Rights and Development (CEHURD) tem estado na vanguarda da defesa da autonomia sexual das mulheres. Por exemplo, em 2015, recebeu um julgamento favorável em seu caso de litígio estratégico para os direitos reprodutivos das mulheres. No caso do CEHURD & Ors v. Attorney-General,3434. Constitutional Appeal No. 1 of 2013 (Unreported). a Suprema Corte enfatizou a justiciabilidade das questões de saúde materna das mulheres como um direito constitucional.

A imposição da maternidade forçada às mulheres, impondo-lhes ter e cuidar das crianças, enquadra-se perfeitamente nos papéis de gênero que a sociedade construiu para as mulheres, isto é, o cuidado da casa e dos filhos, deixando pouco tempo e espaço para as mulheres perseguirem metas fora dos limites do espaço doméstico. Assim, o status quo das mulheres no âmbito privado e doméstico e dos homens no âmbito público e político está firmemente enraizado na sociedade ugandesa.

O marco jurídico relativo ao aborto no nível nacional é contrário aos parâmetros internacionais e regionais que enfatizam uma abordagem de direitos humanos da saúde reprodutiva. O Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento estabeleceu que:

saúde reprodutiva … implica que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição está o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da fecundidade que não sejam contrários à lei 3535. Paragraph 7.2 of the ICPD Cairo Programme for Action.

Enquanto o Plano de Ação da Conferência de Cairo é um instrumento de soft law que não é juridicamente vinculativo, o Protocolo de Maputo é hard law. Assim, a linguagem juridicamente vinculativa do artigo 14(2)(c) é clara sobre a questão do aborto:

Os Estados Partes devem tomar todas as medidas apropriadas para proteger os direitos reprodutivos das mulheres, autorizando o aborto médico em casos de agressão sexual, estupro, incesto e caso a gravidez continuada coloque em perigo a saúde mental e física da mãe ou a vida da mãe ou do feto.3636. Article 14(2)(c) of the Maputo Protocol. Até o momento, não foram frutíferos os esforços de ativistas dos direitos das mulheres para que o governo de Uganda levante sua reserva ao artigo 14(2)(c).

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V. O caminho a seguir…

É bem claro que algumas pessoas que exercem o poder político e religioso têm instrumentalizado a lei (no sentido mais amplo) para controlar as capacidades sexuais e reprodutivas das mulheres. O poder que os homens exercem nas relações de gênero na família garante que eles tenham a última palavra em determinar quando e quantas crianças sua parceira deve ter. Mesmo quando as Políticas Nacionais de Planejamento Familiar3737. Por exemplo, ver “National Policy Guidelines and Service Standards for Sexual and Reproductive Health and Rights,” The Reproductive Health Division, Community Health Department, Ministry of Health, 2006, acesso em 20 nov. 2016, http://library.health.go.ug/publications/service-delivery-public-health/health-education/national-policy-guidelines-and-service. permitem a distribuição de contraceptivos a todas as mulheres, elas são limitadas por questões como as atitudes conservadoras que negam o acesso às jovens mulheres solteiras, a proibição sob o governo do presidente George W. Bush de usar o Plano de Emergência do Presidente dos EUA (PEPFAR) para os fundos de Alívio da Aids para produtos contraceptivos, e assim por diante. Apesar de o governo Obama ter revertido essa proibição, não está claro se a situação permanecerá assim sob a administração republicana de Donald Trump. A maioria das religiões, tais como interpretadas pelos líderes patriarcais, proíbem o uso de métodos anticoncepcionais modernos. Leis restritivas aumentam os ensinamentos religiosos de criminalização e punição do aborto.

No entanto, mesmo em Uganda, o senso comum e as realidades no terreno estão dobrando o arco da história na direção de mais justiça para as mulheres. A sociedade civil tem desempenhado um papel crítico nesse processo. Em abril de 2015, o Ministério da Saúde lançou os Padrões e Diretrizes para a Redução da Mortalidade e Morbidade Materna Devidos ao Aborto Inseguro em Uganda – um documento progressista que aborda o empoderamento das mulheres. Atualmente estão em andamento tentativas do governo para elaborar um projeto de lei sobre Interrupção da Gravidez. Embora haja oposição ao projeto de lei pelos blocos fundamentalistas,3838. A narrativa de reação vem do parlamento, liderada pela recém-nomeada Ministra da Saúde, Jane Acheng, e pelo Conselho Inter-Religioso de Uganda. Ironicamente, até mesmo a ministra do Gênero, Janat Mukwaya se opõe ao projeto de lei. esses acontecimentos indicam que Uganda está na direção certa na nova jornada rumo à realização de nosso compromisso sob o Plano de Ação de Maputo e os recém-lançados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

A esse respeito, o governo de Uganda deve prestar atenção ao conselho do presidente Barack Obama:

[A]s motivações religiosas traduzem suas preocupações em valores universais, e não religiosos. Isso exige que suas propostas sejam objeto de argumentos e passíveis de justificação. Posso me opor ao aborto por razões religiosas, mas se procuro aprovar uma lei que proíba a prática, não posso simplesmente apontar os ensinamentos de minha religião ou evocar a vontade de Deus. Eu tenho que explicar por que o aborto viola algum princípio que é acessível a pessoas de todas as fés, incluindo aqueles sem fé alguma.3939. Stephen Mansfield, The Faith of Barack Obama (Nashville: Thomas Nelson, 2008): 89-90.

A Tunísia abriu caminho para abortos legais seguros na África em 1973. Cabo Verde seguiu uma década mais tarde e África do Sul em 1996. Nesses três países africanos, o aborto sem restrições é legalizado no primeiro trimestre da gravidez. No século 20, vários outros países africanos permitiram legalmente o aborto condicional em casos de agressões sexuais ou para preservar a saúde.4040. Exemplos incluem Zâmbia, Benin, Botswana, Burkina Faso, Etiópia, Gana, Guiné, Libéria, Lesoto, Maurícia, Namíbia, Ruanda, Seychelles, Suazilândia, Togo e Zimbabwe. É tempo de o governo de Uganda rever o marco jurídico do país sobre a interrupção da gravidez a fim de operacionalizar plenamente o Artigo 22(2) da Constituição e sincronizá-lo com as Diretrizes de Política CEHURD 2015, que propõem que o governo da Uganda altere o Código Penal para harmonizá-lo com a Constituição, estabelecendo claramente as condições sob as quais os abortos seguros e legais podem ser acessados pelas mulheres.4141. “The Case for Clarifying the Law on Termination of Pregnancy in the Revision of the Penal Code,” CEHURD, jul. 2015, acesso em 13 nov. 2016, http://www.cehurd.org/wp-content/uploads/downloads/2016/02/Clarifying-the-Law-on-Termination-of-Pregnancy-in-the-Revision-of-the-Penal-Code.pdf. Só assim o governo poderá cumprir suas obrigações de respeitar, proteger e cumprir sua obrigação internacional em relação à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Sylvia Tamale - Uganda

Sylvia Tamale é uma líder feminista africana que leciona Direito na Universidade Makerere em Uganda, onde coordena o Centro de Pesquisa sobre Direito, Gênero e Sexualidade. Seus interesses de pesquisa incluem gênero e sexualidade, mulheres na política e jurisprudência feminista. Tamale publicou extensivamente nessas e em outras áreas, e atuou como professora visitante em diversas instituições acadêmicas no mundo e em diversos órgãos internacionais dos direitos humanos. Foi a primeira mulher a ser diretora da Faculdade de Direito de Makerere. Tamale tem LLB pela Universidade Makerere, LLM pela Harvard Law School, e doutorado em sociologia e estudos feministas pela Universidade de Minnesota.

Recebido em outubro de 2016.

Original em inglês. Traduzido por Akemi Kamimura.