Cinco filmes que marcaram e fundaram as representações dos direitos humanos para pessoas com deficiência
Não haveria mudança transformacional nos direitos humanos para pessoas com deficiência sem a existência de sua representação visual. Este artigo examina cinco documentários dos anos 1960 e início dos anos 70 que iniciaram a visualização das deficiências. Descrevendo os filmes e refletindo sobre as mudanças em relação aos direitos das pessoas com deficiência, o artigo objetiva situar a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência dentro da rica história da prática documentária.
Uma porta se abre e algumas pessoas aparecem sob a luz e um espaço vazio. Parecem desorientados, inseguros sobre onde estão, e umas freiras francesas os conduzem para frente. Na esquina, um homem senta-se curvado sobre um banco e aparenta estar assustado, quase como um animal ferido. Alguém abre uma porta de ferro e mais pessoas entram, vestidas de roupas do período da Revolução Francesa. Outro homem vestido de trapos, obviamente com alguma deficiência, se arrasta até o outro lado do quarto e entrega um buquê de flores a uma mulher vestida socialmente. Alguém ajoelhado é pego violentamente por dois assistentes operacionais de uniforme azul; seus gritos calados pelas mãos dos assistentes. O som de um trompete ecoa e um mestre de cerimônias vestido de smoking e cartola do outro lado das grades da prisão, olha para a câmera e declama:
Como diretor da clínica de Charenton, gostaria de convidá-los para este salão de banho. E a um de nossos residentes, Senhor De Sade, um agradecimento é devido. Ele escreveu e produziu esta peça para seu deleite e para a reabilitação dos nossos pacientes. Pedimos sua amável compreensão com este inexperiente elenco que antes de Charenton nunca havia interpretado. Porém cada interno, lhes garanto, se esforçará para fazer o que for necessário. Somos modernos e iluminados, e não concordamos em aprisionar pacientes. Preferimos terapia através da educação e arte, para que nosso hospital possa fazer sua parte, seguindo fielmente a Declaração de Direitos Humanos (ouvimos uma gargalhada cínica no fundo). Eu concordo com nosso autor, o Senhor De Sade, que sua peça encenada na nossa moderna sala de banho, não será prejudicada por todos estes instrumentos de higiene física ou mental. Ao contrário, eles ajudam a encenar a peça que mostra como Jean Paul Marat morreu e como esperou em seu banho antes que Charlotte Corday batesse em sua porta
(MARAT/SADE, 2001).
Assim começa a famosa adaptação de Peter Brook feita em 1967 da peça “Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat encenado pelos internos do Hospício de Charenton sob direção do Marquês De Sade,”melhor conhecida pelo nome Marat/Sade (2001). A peça, que tem como cenário o Hospício de Charenton, ocorre logo após a Revolução Francesa e foi dirigida pelo Marquês De Sade usando como atores os internos do hospício. Essencialmente uma peça dentro de uma peça, a sua história começa em 1808 quando o Marquês De Sade lá foi internado e dirigiu peças com os internos. Mas essa peça é sobre o famoso escritor Marat, morto em seu banho por Charlotte Corday durante a Revolução em 1793. O diretor do hospital, Monsieur Coulmier, que recebeu a todos, e quem supervisiona a encenação, apoiava o governo pós-revolucionário de Napoleão e esperava que a peça ajudasse a disseminar suas visões patrióticas.
Durante a encenação, entretanto, os internos do hospício tinham outras ideias e frequentemente fugiam do roteiro para se expressarem. Eles não se sentiram melhor após a Revolução e seus pedidos de direito e justiça são reprimidos por enfermeiras e assistentes que volta e meia interrompem para manter a ordem. Enquanto isso, De Sade senta calmamente, debatendo filosofia com Marat e refletindo sobre os acontecimentos, divertindo-se e ao mesmo tempo mantendo-se emocionalmente desconectado. Absorto por seus próprios pensamentos egoístas, eróticos e niilistas, ele até pede uma chicotada de Charlotte Corday.
Peter Brook encenou a peça com a Royal Shakespeare Company sob o axioma de Antonin Artaud para quem “o teatro deve nos dar tudo o que há sobre crime, na guerra ou na loucura, se quiser recuperar a sua necessidade”.1 Brook colocou as teorias de Artaud em prática ao retratar os internos de Charenton com deficiências. Na história do teatro avant-garde (e certamente do filme documentário) Marat/Sadefoi um marco, fugindo das convenções teatrais estabelecidas e trazendo a interpretação dramática de volta a um estado místico, primário. Ao enfatizar cenas de violência, sadismo e loucura, a interpretação ameaçava a frágil divisão entre o público e os atores e zombava da psicoterapia que a peça dentro de uma peça supostamente deveria realizar.
Peter Brook é famoso por sua visão de que o palco é um “espaço vazio” que permite que atores criem um mundo físico do nada.2 Para Brook, o espaço vazio do teatro permite o nascimento de um novo fenômeno. Com Marat/Sade, uma porta foi aberta para o mundo da deficiência, entre outros assuntos políticos. O fato da peça/filme ser introduzida como uma resposta dos “direitos humanos” às deficiências psicossociais com terapia de drama permitiu o aparecimento de uma inversão crítica. A interpretação não somente pode ser entendida como uma crítica aos direitos civis e políticos clássicos de primeira geração na época da Revolução Francesa (para não falar sobre o final dos anos 60, quando foi encenada), mas também de direitos sociais e econômicos de segunda geração que afetam serviços de saúde e reabilitação para pessoas com deficiência.
Brook afirma que as pessoas vão ao teatro para encontrar vida, e que não deveria existir diferença entre os dois. Porém o teatro, e, para todos os fins intensivos os filmes também, deveriam tornar a vida mais visível, mais concentrada, mais entendível e mais intensa. Essa presença irresistível da vida–que Brook aborda em sua escritura–é a faísca que acende e intensifica o espaço vazio onde presenciamos a vida se desenvolvendo em nossa frente. Em Marat/Sade, Brook criou uma nova forma de filmar teatro, que viria a influenciar toda futura obra de documentário performático. Poderia argumentar-se queMarat/Sade foi um filme autônomo ao mesmo tempo em que foi uma documentação de uma peça teatral. O uso de cortes e closes, câmeras seguradas à mão seguindo os atores, silhuetas e técnicas de filmagem fora de foco, combinava as estratégias criativas de cinema arte e teatro avant-garde.
Mas é o grau de reflexão da produção de Brook que a faz tão convincente. Se o teatro é para ser uma experiência total, deve também envolver o público na construção do espaço vazio. Como Marat/Sade é uma peça dentro de uma peça, existem membros do público entre os próprios atores; o diretor de Charenton convida sua esposa e filha ao salão de banho e declama a introdução da peça aos aristocratas franceses sentados do outro lado das grades de ferro da prisão. Isto foi também um fato histórico; que a classe rica fosse assistir às encenações terapêuticas dos internos de Charenton. A câmera se afasta de vez em quando e podemos ver a troca entre os atores e o público. Vemos a silueta do público em frente ao salão de banho e o efeito nos coloca exatamente atrás dos que estão verdadeiramente sentados do lado oposto das grades, como se nós também fôssemos cúmplices. E quando os internos estão alcançando o estado de anarquia total, o que ocorre diversas vezes durante a peça, o diretor do hospital pára a ação, castiga De Sade e ameaça terminar a produção para não ofender a platéia assistindo.
Pelas críticas feitas quando Marat/Sade foi encenada em Londres e Nova Iorque em meados da década de 60, sabemos que muitos dos que assistiam à peça se ofendiam. Muitos se recusavam a assistir até o final e iam embora. Outros ficavam fisicamente doentes.3 Não era somente a baba dos pacientes, ou a coriza de seus narizes, ou os gemidos, choros, gritos, murmúrios e todos os outros sintomas físicos associados à loucura. Era mais a brutal repressão que os assistentes operacionais do hospital infligiam sobre os internos para reprimir qualquer tipo de expressão. Os internos eram agredidos, acorrentados e arrastados pelo chão em nome da censura. Era uma experiência genuína do teatro de choque. E o que espelhava (além de uma ampla demência social do final da década de 60) era o asilo contemporâneo e seu suposto tratamento de reabilitação das pessoas com deficiências mentais.
Em seu livro, Teatro e seu Duplo, Artaud argumenta que a interpretação deve afetar fisicamente o público e que a experiência total do teatro é tanto um reflexo do corpo como dos sentidos.4 A vida no palco deve te perfurar e machucar de alguma forma para que seja efetiva. Também argumenta que o teatro é essencial porque elimina qualquer outra forma de mídia entre o público e a interpretação–você presencia outros corpos e almas cara a cara. Um filme documentário também pode ser uma experiência poderosa com as estratégias cinematográficas certas. As diferentes estratégias reflexivas emMarat/Sade obrigam até o público do filme a reconhecer sua função no processo de troca de experiência, principalmente ao final da encenação, quando um motim ocorre e os internos se revoltam e se vingam brutalmente (luta de classes) dos funcionários do hospital e da família do Diretor de Charenton, que está no palco. A cena termina com os internos escalando as grades que mal os separam dos patronos da arte que presenciam a peça e, que, por extensão, nos inclui como espectadores. A revolução ocorrida naquele palco era sobre os direitos, direitos estes que os internos pediam ao longo da interpretação. Mas a peça termina sem resolução, nada além de uma última exortação de Agir! Este era um slogan apropriado para aquela época, mas ao mesmo tempo deixava todas as conclusões e interpretações abertas para o público.
Durante a década de 60, o movimento internacional de direitos humanos iniciava o que alguns acadêmicos chamam de terceira geração dos direitos humanos, enfatizando os direitos coletivos.5 Ao invés de um foco ontológico em liberdades individuais, o movimento começou a reconhecer vários tipos de lutas coletivas. Em nome da autodeterminação, países lutavam pela independência dos países colonizadores. O movimento de direitos civis incendiava os Estados Unidos. O movimento pacifista era uma crescente força internacional. O movimento feminista ganhava impulso. O movimento dos direitos da criança finalmente nascia. Direitos indígenas se espalhavam por terras tradicionais. E por fim, coletividades se formariam, como o movimento de gay, lésbicas, bissexuais e transexuais (LGBT).
O movimento dos direitos das pessoas com deficiência também começou a formar-se. Sua história é peculiar pelo fato de lutas locais e nacionais terem precedido qualquer grande movimento maior internacional. Nos Estados Unidos, de onde escrevo, a história dos direitos das pessoas com deficiência começou logo após a Primeira Guerra Mundial, quando soldados voltavam com graves ferimentos que lhes causavam problemas para o resto da vida.6 Durante a década de 1920, atos governamentais de reabilitação vocacional foram aprovados para fornecer serviços aos veteranos de guerra. Porém o reconhecimento de que soldados feridos requeriam cuidados especiais, ainda era uma visão bastante exclusiva de deficiência. Até a década de 1960, qualquer pessoa com alguma deficiência era considerada “incapacitada” e o pensamento comum nessa época era institucionalizar pacientes e manter qualquer pessoa com deficiência longe da vista do público.
O ativismo decolou na década de 1970 quando pessoas com deficiências fizeram lobby e pressionaram o Congresso Americano, realizaram manifestações em diversas cidades e organizaram marchas pelos seus direitos. Inspirados em outras lutas coletivas, o movimento defendia que as leis e a linguagem dos direitos civis protegessem todo tipo de deficiência. Esta abordagem pluralista, que marginalizava objetivos específicos de pequenos grupos associados a diferentes deficiências, foi o que deu a esse ativismo força e caráter coletivo.
As principais leis que foram aprovadas incluíram a Lei de Reabilitação de 1973, a Lei para Educação de Toda Criança Deficiente de 1975, e a Lei dos Americanos com Deficiência em 1990.7 Essas leis garantiram que qualquer americano com uma deficiência física, mental, visual, auditiva, ou qualquer outro tipo de deficiência, teria oportunidades iguais de emprego, moradia e educação. Crianças e adolescentes teriam educação apropriada e gratuita em ambiente menos restritivo possível. Acesso a áreas públicas, e, principalmente, transporte público, eram pontos de inflexão cruciais. O direito a tecnologias assistivas que possibilitam a comunicação entre pessoas e que permitem que pessoas se expressem, estudem, aprendam e trabalhem, também passa a ser mais fácil com essas novas leis. E questões de estilo de vida, da habilidade do indivíduo de viver independentemente, passaram a ser um foco importante do ativismo voltado para as causas das pessoas com deficiência.
Poderia argumentar-se que o objetivo do movimento coletivo era a inclusão na sociedade, o fim da marginalização de pessoas com deficiência e da prática, comum no século 19, de institucionalizar pessoas com deficiência em hospícios, como retratado em Marat/Sade. Inclusão também significou a criação de solidariedade com ativistas que não tinham deficiências. Cineastas tiveram um papel importante nesse aspecto porque o movimento precisava de toda a ajuda possível, inclusive representação visual. Durante a década de 1960, cineastas que trabalhavam com questões de deficiências não se enxergavam como ativistas de direitos humanos. Eles trabalhavam sob a bandeira da reforma social. Hoje, esse mesmo grupo está exibindo seus documentários em festivais de direitos humanos ao redor do mundo. De fato, seria até difícil falar sobre direitos humanos na contemporaneidade sem visualizar a luta em termos concretos.
Existem muitos filmes sobre direitos de pessoas com deficiência hoje–tanto documentários, como longas-metragens – e pessoas têm se esforçado muito para catalogar esses filmes sob a correta categoria de deficiência.8 Existem até festivais de cinemas especializados em filmes sobre deficiências. Mas também existem filmes que marcaram época e semearam o movimento mais amplo, permitindo o reconhecimento e conscientização visual que temos hoje a respeito de deficiências. Minha intenção com este artigo é falar sobre cinco desses filmes e sugerir algumas das mais poéticas estratégias sobre como retratar direitos das pessoas com deficiências. O lado poético da representação da deficiência permite interpretações mais abertas e talvez, por serem filmes sem finais conclusivos e sem recomendações de políticas explícitas, conseguem ter uma vida útil mais longa no que se refere ao interesse do público. Os cinco filmes discutidos aqui são hoje considerados clássicos na área de documentação de deficiências.
Como professor de direitos humanos e mídia, muitos dos meus alunos estudam para serem documentaristas e os direitos das pessoas com deficiência é uma das áreas, dentro da temática mais ampla de direitos humanos, que abordam em seus projetos. De uma abordagem conceitual de direitos humanos, deficiências específicas nunca são por si só o único tema. A abordagem conceitual procura entender a profundeza e complexidade de cada violação de direitos humanos e fazer conexões holísticas entre todos os direitos.9 Por exemplo: mulheres com deficiências são duplamente vulneráveis por sofrerem opressão tanto por serem mulheres como por terem deficiência. Crianças com deficiências também necessitam de uma abordagem conceitual mais holística. Pessoas com deficiência vítimas de guerras e conflitos armados, pessoa com deficiência forçadas à migração, ou pessoas que são pobres além de apresentarem alguma deficiência física, mental ou sensorial necessitam de uma abordagem mais sofisticada de direitos humanos.
Um dos filmes (Ur-films) que retratam a deficiência é Titicut Follies de Fredrick Wiseman(1967). Folliesé um filme muito discutido na história de prática documentária, porém raramente visto até recentemente. Sua história é complicada por questões éticas sobre consentimento e o direito de saber do público. O documentário foi filmado dentro do Hospital Estadual de Bridgewater para “criminosos insanos”, administrado pelo Departamento de Prisões do Estado de Massachusetts ao invés do Departamento de Saúde Mental. Similarmente ao Hospício de Charenton, esse lugar era essencialmente uma prisão, e entre os 2.000 homens que se encontravam lá naquele ano, somente 15% de fato tinham sido condenados por algum crime.10
A forma como Wiseman e seu cinegrafista, o famoso cineasta etnográfico Robert Gardner, conseguiram ter acesso às instalações e aos pacientes é uma questão que seria debatida no âmbito jurídico durante anos. Poderia o superintendente do hospital, o responsável jurídico pelos pacientes, dar o consentimento em nome de todos sob seus cuidados? Cinco minutos após o filme começar, vemos homens enfileirados para uma revista íntima, pelados e humilhados em frente de um ao outro e dos guardas. Filmado em 16mm e branco e preto, a cena é uma visão forte de como as pessoas com deficiências psicossociais eram “armazenadas” naquela época.
A próxima cena apresenta o que poderia ser entendido como a “normalização da depravação,” uma entrevista com um interno chamado Mitch e Dr. Ross, um dos dois psiquiatras disponíveis para toda a população da prisão. O fato de depois terem seus nomes revelados no filme é chocante, dado o conteúdo de sua conversa. Enquanto Mitch reconhece abertamente sua pedofilia, o psiquiatra escuta sentado, fumando cigarros, querendo saber o que ele sente a respeito de sua depravação sexual e por que se masturba três vezes por dia. Quando Mitch questiona genuinamente se receberá ajuda no hospital, Dr. Ross pensa e responde: “Você terá ajuda aqui, eu suponho.” A simplicidade de sua resposta e a dedução da conversa assombram. Não existe terapia aqui, nenhuma troca de conhecimentos, nenhum plano de tratamento. Só existe a normalização institucional do poder e da vergonha ao construir um ser depravado.
Outras cenas do filme são menos sutis. Estes não são atores da Royal Shakespeare Companyinterpretando papéis no asilo; esta é a verdade nua e crua, filmada usando a técnica de câmera direta, de observação cuidadosa, sem questionamento ou narração ou qualquer tipo de trilha sonora além do acontecia a qualquer momento em Bridgewater. Um homem carregando um jornal falava rapidamente misturando partes do que possivelmente havia acabado de ler com linguagem sem nexo num fluxo de pensamento incompreensível. Ele depois oferece suas benções aos outros internos e, entre os vários críticos deste filme, a Igreja Católica condenou esta cena.
Os homens no quintal parecem solitários e isolados. Alguns falam apenas consigo mesmos. Um homem, agitado e balançando, está em pé no meio do jardim e se masturba abertamente. Outro toca um espirituoso trombone sozinho. Outros declamam teorias políticas e discutem com internos sobre a loucura da Guerra do Vietnã. Um homem, porém, parece diferente. Seu nome é Vladimir. Falando num inglês fluente com sotaque do leste europeu, ele chama a atenção do Dr. Ross no quintal. Vladimir argumenta com o Dr. Ross que foi diagnosticado incorretamente e que não deveria estar no hospital. Tem um tom de urgência, ele sente que está piorando conforme vai permanecendo lá. O psiquiatra responde cinicamente, sorrindo e lembrando Vladimir de ter sido diagnosticado como o paranóico-esquizofrênico. Vladimir questiona quem da sociedade tem o direito de definir o significado desses rótulos.
As cenas mais desoladoras ocorrem quando os homens são levados às suas celas, pelados e isolados. As celas em si são surpreendentemente vazias. Não têm nada além de um chão frio, paredes de tijolo e uma janela com barras de proteção de metal. Um homem pelado marcha para frente e para trás pisoteando o chão com seus pés descalços e quando descansa sob a esquina da cela, vemos as manchas de sangue de onde certamente ele bate com a própria cara contra a parede. Enquanto isso, os guardas abertamente insultam os homens, perguntando constantemente por que seus quartos estão tão sujos. Um homem no corredor ajoelha-se para esconder suas partes íntimas, outro usa suas mãos para cobri-las. Não fica claro se essas reações estão relacionadas à presença das câmeras. Tendo visto o filme várias vezes, acredito que esses homens devem cobrir-se até sem a presença das câmeras, pois a situação é extremamente humilhante.
Naquela época, “direitos de idosos” não era um conceito de direitos humanos bem definido. Mas muitos dos homens em Bridgewater estavam no final de suas vidas sem ninguém para cuidar deles, fazendo de sua situação uma experiência ainda mais dolorosa de assistir. O pior caso é quando um homem se recusa a comer e é acorrentado à mesa. Também está pelado. Dr. Ross enfia um tubo de borracha em seu nariz até seu estômago. Depois fica em pé em uma cadeira sobre o paciente e insere sopa através de um funil conectado ao tubo. Ele até pergunta com humor se alguém tem um bom uísque para o paciente, enquanto a cinza de seu cigarro está por cair dentro do funil.
Quando a câmera faz um close do rosto do homem, vemos uma lágrima escorrendo sob sua face. A cena é cortada e vemos a face do mesmo homem sendo barbeada e depois cortada de novo e o vemos sendo alimentado forçadamente pelo tubo de borracha e, cortada novamente, quando depois o vemos em outra situação, quando alguém forçosamente puxa e abre seus olhos com pinças e enfia bolas de algodão debaixo de suas pálpebras. A cena termina quando vemos seu corpo embrulhado no necrotério do hospital enfiado numa geladeira. E quando seu corpo é posto sobre o chão, a cena serve como presságio de uma das principais questões de direitos humanos em prisões hoje, esta sendo o tempo de encarceramento e o fato de muitos idosos morrerem dentro de prisões com certa frequência.
Posteriormente no filme, Vladimir tenta argumentar com o conselho médico e enfermeiras do hospital. Um dos médicos diz: “Como te disse antes, se perceber suficiente progresso….” Vladimir, lucidamente, o interrompe: “Mas como posso melhorar se vejo que estou piorando a cada dia, e agora você me diz que se eu melhorar as coisas mudarão, mas a cada dia fico pior. Então obviamente é este tratamento que estou recebendo, ou a situação, ou o lugar, ou os pacientes, ou os internos. Eu deveria ter vindo para cá apenas para uma observação. Mas que tipo de observação recebi?” (TITICUT FOLLIES, 1967).
Vladimir continua, argumentando com eloquência que se está preso no sistema por mais de um ano e meio, que quer voltar de onde veio e que pelo menos antes na prisão comum existia uma escola e um ginásio e que os remédios que está tomando agora estão piorando sua mente. O conselho médico não se comove e quando pedem que ele se retire, conversam entre si em frente da câmera. Eles se surpreendem pelo fato de Vladimir ter aprendido inglês na prisão e que também tenha passado por sua condicional antes de ser enviado ao hospital. O psiquiatra chefe decidiu que Vladimir estava se desintegrando e que sua ansiedade era um resultado comum dos antidepressivos e que agora deveriam aumentar a dosagem dos tranquilizantes.
No final, o filme volta à cena inicial; um show de talentos anual que os prisioneiros e os guardas encenam chamado Titicut Follies, de onde deriva o nome do filme. Enquanto os pacientes e funcionários cantam So Long for Now, a interpretação nos lembra que a exibição pública de internos em “manicômios” institucionais como Charenton tem sido uma prática comum há centenas de anos. O fato de “as loucuras” (follies) serem apresentadas como diversão no nome da reabilitação é uma farsa, considerando o que Wiseman mostrou entre a primeira e última cena.
Desde o começo o filme foi polêmico. Antes de estrear no Festival de Cinema de Nova Iorque em 1968, o filme sofria problemas legais.11 Um trabalhador social, nunca tendo visto o filme, leu que ele continha nudez frontal dos internos e escreveu uma carta ao Governador do Estado de Massachusetts reclamando que um filme como este viola a dignidade de seus sujeitos. O Estado de Massachusetts tentou obter uma liminar impedindo a estréia do filme argumentando que o este violava os direitos de privacidade dos internos e dos guardas. Wiseman contra argumentou que havia recebido autorização legal do superintendente do hospital e consentimento verbal dos internos e funcionários do hospital. Também, em nenhum momento durante os 29 dias de filmagem recebeu um pedido de não filmar alguma coisa. Enquanto as questões legais eram debatidas em Massachusetts, uma corte do estado de Nova Iorque permitiu que o filme fosse exibido.
Titicut Follies estreou no Festival de Cinema de Nova Iorque (e depois comercialmente no circuito de cinema mais amplo em Nova Iorque) e foi muito aplaudido como uma exposição chocante de um lugar perturbador. Seus tons sombrios e estilo aberto de edição marcaram Titicut Follies para sempre como um filme artístico e ao mesmo tempo, de investigação jornalística. Porém, ao contrário de filmes expositivos, não existe narração em Titicut Follies, nenhuma recomendação de mudanças em políticas públicas ou qualquer tipo de fechamento no filme. Hoje, quando alunos estudam a história de filmes documentários, Titicut Follies é usado como exemplo de técnica de cinema direto em que a não intervenção do cineasta e o estilo de edição criam a ilusão de que a ação está se desenvolvendo em tempo real. Eu uso esse filme em minha matéria “A Poética de Testemunhar” para demonstrar como podemos estudar e representar violações de direitos humanos de forma poética, que permita que o filme seja aberto a diferentes tipos de interpretações.
Mas de volta à questão jurídica. Em Massachusetts em 1968, um juiz da Corte Superior proibiu o filme de ser exibido de forma geral. Como o próprio Wiseman morava em Boston e era residente do estado de Massachusetts, ele estava legalmente vinculado à decisão. Porém o juiz foi além e pediu que todas as cópias do filme e seus negativos fossem recolhidos e destruídos porque o filme violava os direitos de privacidade e dignidade dos pacientes (e não esqueçamos a representação negativa que fazia do Estado). Enquanto Wiseman, que era advogado e ex-professor de direito, argumentava sua posição, esta foi a primeira vez na história dos Estados Unidos que um filme foi banido por razões diferentes de obscenidade ou segurança nacional.
Do ponto de vista do cineasta, o que é mais importante: o direito de privacidade do interno individual ou o direito de saber do público? Considerando o contexto, este é um dilema de direitos humanos que envolvem a ética de criação de imagem e liberdade de expressão. A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos exalta este direito. E Wiseman tem argumentado consistentemente em dezenas de filmes depois de Titicut Follies que o público tem o direito de saber o que ocorre em instituições financiadas com o dinheiro do contribuinte. Wiseman tem declarado que se a Primeira Emenda protege qualquer coisa, é justamente o direito do jornalista de reportar o que ocorre dentro das prisões. A ironia em nível estadual é que foi preciso um filme para que o estado de Massachusetts reconhecesse o direito à privacidade pela primeira vez. No final, este dilema ético não foi resolvido, mas a questão permaneceu por anos. Foi a decisão do tribunal mais uma violação das liberdades civis do filme do que uma violação aos direitos dos presos?
Outros processos judiciais e decisões e recursos seguiram. Porém fora exibições fechadas e restritivas por razões educacionais, o filme foi efetivamente banido durante 20 anos. Finalmente, em 1987, famílias de vários dos internos que morreram em Bridgewater processaram o hospital e argumentaram que havia uma relação direta entre a proibição da exibição do filme e as mortes de seus entes queridos. Pediram que o filme fosse usado como prova do brutal mau trato de internos encarcerados em Bridgewater. Em outras palavras, se o público tivesse conhecimento das condições do hospital, poderia ter obrigado o Estado a mudar as práticas institucionais em relação aos pacientes com deficiências psicossociais.
Finalmente, em 1991, as cortes superiores de Massachusetts permitiram a exibição do filme ao público geral. Porém, a corte exigiu que o filme incluísse uma explicação que a prisão de Bridgewater foi reformada. Porém, como o médico Thomas Szasz tem argumentado num ensaio sobre Titicut Follies, o hospital ainda é cercado por arame farpado, policiado por centenas de guardas e que apesar de hoje existirem dezenas de enfermeiras, psiquiatras, psicólogos e profissionais de serviços sociais, todos ainda são carcereiros (SZASZ, 2007). Hoje, o hospital de Bridgewater é chamado de instituição de saúde. Porém, apesar deste novo nome, Szasz mostra que por trás fachada, continua o tratamento de pessoas com deficiências com diagnósticos pseudomédicos e terapias questionáveis. Como em Marat/Sade, os prisioneiros com deficiências psicossociais continuam do outro lado das grades.
Conforme o assunto dos direitos das pessoas com deficiência passou para uma plataforma internacional de reconhecimento, ativistas usaram padrões normativos de direitos humanos para guiar o movimento. Esses padrões estão baseados na Carta das Nações Unidas, na Declaração Universal de Direitos Humanos, e nos demais instrumentos e acordos, inclusive a recente Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.12 Existem duas leituras da integração de direitos das pessoas com deficiência aos padrões normativos. Primeiro, existe a linguagem geral que garante direitos fundamentais “sem distinção” de qualquer tipo. A partir dessa perspectiva, todos devem ter igual acesso a moradia, educação, serviços sociais, serviços de saúde e emprego. Além disto, todos devem ter o direito de participar em todos os aspectos de vida no que diz respeito à política, sociedade, economia e cultura. E todos têm o direito de ser tratados com dignidade e respeito.
Também existe linguagem específica em instrumentos jurídicos, principalmente para mulheres e crianças e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis e Desumanos ou Degradantes.13 Em teoria, podemos citar que as condições de vida em Bridgewater consistiam em sérias violações de direitos humanos que eram cruéis e degradantes, se não tortura. Mas Titicut Folliesnão deve ser considerado um filme histórico. Existem hoje vários outros lugares similares onde as condições são comparativamente ruins, ou até pior.
Em 2003, a organização não-governamental (ONG) Disability Rights International (DRI) se juntou à ONG Witness (ambas baseadas em Nova Iorque) para documentar 460 pacientes no hospital neuropsiquiátrico no Paraguai.14 Juntando-se a uma terceira ONG local, o vídeo foi gravado clandestinamente durante visitas ao hospital. A gravação é chocante e até pior do que Wiseman e Gardner retrataram em Bridgewater. O vídeo foi usado como prova perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos localizada na Costa Rica (da qual Paraguai é um membro).15 O caso documentava dois adolescentes que foram aprisionados e isolados durante quarto anos. Foram mantidos em suas celas pelados, sem acesso ao banheiro, com o chão e paredes cobertas de fezes. O quintal comum para todos os pacientes estava cheio de lixo e cacos de vidro e durante o vídeo, um dos pacientes urina em público e outro bebe de uma poça d´água do chão, como um cachorro.
Aqui provavelmente não haveria questões de direitos humanos sem a existência de prova visual, da mesma forma que não haveria história sobre Abu Ghraib sem as imagens fotográficas dos prisioneiros iraquianos sendo abusados pelos soldados americanos. As ONG Witness e DRI publicaram o vídeo em suas páginas eletrônicas e trabalharam com redes de mídia para aumentar a conscientização do público. Mostrando a representação visual como prova, as ONGs mostraram as condições desumanas do hospital, a falta das mais básicas condições sanitárias e que os pacientes não recebiam a atenção médica necessária. Além disto, provaram que Paraguai não cumpriu sua obrigação com os direitos humanos de tratar e reabilitar pessoas com deficiências psicossociais. O filme e o caso como um todo envergonharam o país e o obrigaram a reformar o hospital. Apesar de algumas reformas terem sido realizadas, as ONGs fizeram um acompanhamento do caso, também com vídeo, mostrando que os pacientes continuavam vivendo em situação crítica e pediram a reabilitação e eventual reintegração destes pacientes na sociedade.
Os padrões exigidos pela ONG DRI são derivados dos Princípios para a Proteção de Pessoas com Doenças Mentais e o Melhoramento da Atenção à Saúde Mental, adotados pelas Nações Unidas em 1991. Estes princípios internacionais não têm força de lei, e são mais princípios, ideais, e diretivos morais. Entre os 25 artigos que fazem parte destes Princípios, dois são citados no filme: que o paciente tem o direito a ser tratado num ambiente com as menores restrições possíveis e que o tratamento deve almejar melhorar a autonomia individual do paciente. O tratamento degradante retratado pelos vídeos feitos por essas ONGs é similar ao que vemos em Titicut Follies no sentido de ambos documentarem sérias violações aos direitos humanos dos pacientes. Esta é uma das várias estratégias de visualização de direitos humanos: iluminar lugares problemáticos no mundo e estimular mudanças.
Hoje temos novos padrões internacionais, e com força de lei. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência é um tratado internacional ratificado pelos Estados membros.16 Até hoje, janeiro de 2011, 147 países assinaram o tratado e 97 países assinaram e ratificaram o tratado, inclusive a União Europeia que ratificou o documento coletivamente em dezembro de 2010. O que o tratado promove e protege são questões clássicas como dignidade e integridade, liberdade e autonomia, igualdade e não-discriminação, acessibilidade e oportunidade, inclusão e total participação, respeito às diferenças e aceitação da diversidade. Estes são as mesmas temáticas ilustradas pelos cineastas contemporâneos quando representam pessoas com deficiências. Mas estas ideias não significam nada se não conseguirmos visualizá-las sendo violadas, protegidas e materializadas.
Em 1971, um fascinante documentário foi feito sobre o direito de pessoas com deficiências psicossociais viverem num ambiente comunal. O filme, inédito no Brasil, se chama Asilo (2004). Porém, a instituição retratada era diferente de “asilos-hospícios” como Bridgewater. Dirigido pelo canadense Peter Robinson e seu cinegrafista e editor, Richard Adams, o filme documentou um projeto experimental chamadoComunidade Archway, numa casa no leste de Londres. Nesse local, durante seis semanas, os cineastas observavam o dia a dia de residentes que lutavam contra vários tipos de problemas mentais, inclusive esquizofrenia.
A comunidade experimental terapêutica de Archway foi fundada em 1965 pelo psiquiatra radical R.D. Laing e seus colegas.17 A ideia era ter pacientes e terapeutas vivendo juntos sem medicação e com o menor número de regras possível. Laing rejeitava firmemente o modelo médico (e penal) de doenças mentais e acreditava que pacientes somente iriam progredir do ponto de vista terapêutico se pudessem se responsabilizar por suas ações e decisões. Laing e seus colegas faziam parte de um movimento que questionava a existência de doenças mentais. Para Laing, distúrbios mentais era o resultado de socialização, e principalmente, das pressões da família nuclear, que criavam o que ele chamava de “o Eu dividido”, uma separação entre o ser seguro no mundo e outro ser escorregando, distanciando-se, padecendo do que ele chamava de “insegurança ontológica.”18 Uma vez separado da família, Laing acreditava que distúrbios mentais poderiam ser valorizados pelos seus potenciais catárticos e transformacionais. Apesar de Laing nunca ter negado a existência de doenças mentais, sua abordagem era tratar o distúrbio mental como uma jornada mística do ser.
Tudo isto parece cósmico e enraizado na contracultura daquela época. Porém, na prática, Archway era real e uma chance fascinante de tratar distúrbios mentais com cuidado, preocupação e empatia. Uma cena no início do filme mostra um dos terapeutas residentes, um homem jovem e bonito vestindo uma blusa de gola olímpica, mostrando a casa a uma mulher jovem com sombra de olho azul e roupa mod. Estão sentados em frente a uma lareira enquanto o terapeuta explica que ela precisa pagar o aluguel toda segunda-feira e que todos precisam contribuir com as compras de alimentos da casa. Fora isto, não existe outra regra na casa.
Ele continua e explica a situação: “Existem algumas pessoas aqui que antes estavam no hospício; elas descobriram que não estavam melhorando nesses lugares e não encontravam outro lugar para morar. Então estão aqui por esta razão. Eles descobrem que podem viver aqui em paz e não estão num hospital ou sob a estrutura e regulamentações de um hospital. E tem pessoas que sentiam que talvez fosse necessário internar-se num hospital, mas queriam evitar isso, então vieram aqui. E tem as pessoas que não estiveram num hospital, não precisam ir para um hospital, mas estão interessadas no estilo de vida daqui.” (ASYLUM, 2004).
É preciso ver o filme algumas vezes para realmente saber quem é residente, quem é terapeuta, quem é um psiquiatra-residente e quem é meramente um visitante. Durante as seis semanas de filmagem na primavera de 1971 havia 18 pessoas na casa, e minutos após o filme começar, Robinson e sua pequena equipe são apresentados a um grupo de residentes aglomerado, enquanto começam a gravar vídeo e som. Alguns dos residentes se apresentam também, inclusive alguns que se destacam ao longo do filme como David, um intelectual de meia idade que fala uma mistura de palavras e pensamentos coerentes e incoerentes e é propenso a ter surtos. E também tem a bela Júlia, parecendo uma cantora de folk, com vestido preto e cabelo louro comprido. Ela se apresenta delicadamente dizendo que sabe desenhar, pintar e tocar a guitarra.
A casa em si é a total antítese do hospital em Bridgewater. Existem camas de verdade, almofadas espalhadas no chão, vários animais de estimação e uma grande cozinha comunal. Vemos os residentes cozinhando juntos, sentados fumando cigarro, lendo, falando ao telefone, curtindo um piquenique no quintal, lavando os pratos, tomando chá. Nada disto é fora do normal, exceto pelo fato de essas pessoas estarem lutando contra sérios problemas mentais e por causa de filmes como Titicut Follies, podemos imaginar que elas poderiam estar num ambiente completamente diferente com celas, tranqüilizantes, tratamento de eletro choque e lobotomias. Também existem os problemas do cotidiano e carinho entre eles. Os residentes se confortam depois de surtos, pessoas ajudam Júlia descer a escada, outra pessoa precisa de ajuda para ir ao banheiro e o grupo todo precisa raciocinar para resolver problemas sérios. Está claro no filme que os residentes precisam dar terapia ao mesmo tempo em que a recebem. R. D. Laing lembrava os alunos que a palavra “terapeuta” é derivada do latim e significa estar inteiramente presente, escutar, observar com carinho e servir com compaixão e paciência.19
O título do filme, Asilo, sugere o tipo de lugar que associamos com esta palavra hoje. Porém, o uso original da palavra e a intenção de Laing em suas comunidades terapêuticas, era evocar sentimentos de abrigo, refúgio; um lugar seguro. Estas ideias em si são direitos humanos fundamentais, principalmente para pessoas com deficiências. A presença da equipe de filmagem possivelmente poderia romper este delicado equilíbrio. Mas aqui sentimos que a comunidade confiava em Robinson e sua equipe. Ninguém se sente explorado e ninguém parece estar encenando para as câmeras. Após estudar este filme detalhadamente, acredito que os surtos psicóticos e crises retratados no filme teriam ocorrido com ou sem a câmera. O próprio Peter Robinson caminha em frente à câmera em algumas situações e chega a ter algumas conversas com os residentes. Este pequeno ato reflexivo serve o propósito de expor sua presença na casa e não diminui o estilo elegante de filmagem observacional da equipe.
Asilo é considerado hoje um documentário clássico da sua época e parece melhorar com o passar do tempo.20 O documentário também lembra uma época saudosa quando opções alternativas e mais humanas de tratamento eram introduzidas contra os desejos da sociedade de encarcerar e esconder pessoas com deficiências. O filme também levanta a questão das diferenças entre os que são considerados “sãos” e os que são considerados “insanos”. Os terapeutas, que são a favor dos residentes permanecerem na casa e tentam convencer os familiares a permitirem que os residentes tomem suas próprias decisões em relação à moradia, são cuidadosos ao não oferecer nenhum diagnóstico ou usar linguagem inclusiva que possa sugerir que eles mesmos estão sofrendo. Esses laços de empatia parecem fascinantes hoje quando existe tanta ânsia por diagnosticar deficiências emocionais ou de aprendizado e receitar remédios para qualquer deficiência de comportamento ou aprendizado alegada.
A mudança que vemos entre o encarceramento e brutal mau trato visto em Bridgewater e o que estava ocorrendo dentro da comunidade de Archway evoca uma importante bandeira para os direitos humanos de pessoas com deficiências. Todos têm o direito de autodeterminação e autoconhecimento. E todos têm o direito a segurança e paz. Estas não eram idéias teóricas neste filme. E apesar de que seis semanas em Archway não demonstra qualquer tipo de cura completa, sim sugere uma visão alternativa de direitos idealizada e materializada.
Ao final do filme, um dos médicos voluntários vindo dos Estados Unidos, que está tendo problemas com os surtos e agressões de David, confidencia a um dos terapeutas residentes que é possível perder-se em Archway. O terapeuta pensa e responde: “Sim, tentamos criar um lugar aqui juntos, onde se alguém precisa perder-se, que isto possa ocorrer dentro das melhores circunstâncias possíveis. E você precisa perder-se para poder encontrar-se. A ênfase não é em ter uma pessoa com a responsabilidade de estar disponível para outra, ou de falar com, ou de lutar com ou de ter terapia com. A ênfase está na criação de um ambiente, um grupo, uma rede que possa facilitar uma pessoa a se encontrar, ser ela mesma, e descobrir quem ela é e quem pode tolerar as vicissitudes de sentimentos e comportamentos que todos nós enfrentamos em diferentes períodos de nossas vidas, especialmente em tempos críticos, quando podemos enlouquecer. Exige um esforço extraordinário embora o que almejamos é muito difícil de alcançar, a simplicidade, em termos de estar com uma pessoa, cuidar e se preocupar com o outro.” (ASYLUM, 2004).
Tem alguma coisa neste filme que o torna ao mesmo tempo simples e comovedor. E é difícil decifrar o quê. Talvez seja o fato de que alguém lutando contra distúrbios mentais pode conversar com crianças do bairro parado no meio da rua, caminhar pela rua e atravessar a cidade de ônibus. Esse tipo de liberdade nunca deveria ser subestimada independentemente da nossa condição física ou mental. As palavras direitos humanos nunca são citadas durante o filme. Mas Asilo não é um documentário que ilumina um lugar perturbador do mundo, é um desses filmes que marcam um ponto de inflexão que nos mostra a existência de outras alternativas e possibilidades.
Em 1971, um jovem cineasta japonês desafiou um grupo de pessoas com paralisia cerebral (PC) a ir às ruas e agir.21 Kazuo Hara nunca tinha feito um filme antes, mas já era um ativista para pessoas com deficiências. Como um assistente de escola para “crianças incapacitadas”, como eram chamadas naquela época, ele levava seus alunos à rua em suas cadeiras de rodas, o que causava um grande alvoroço. Pessoas paravam para olhar. No começo da década de 1970, era raro ver pessoas com deficiências em público, muito menos um grupo grande delas em cadeiras de rodas. Como o supervisor adulto das crianças, Hara se recusava a ajudar as crianças nas ruas, o que as obrigava a negociar com o público elas mesmas. Não era apenas que a infraestrutura de Tóquio não fosse acessível para cadeirantes. Era uma questão muito mais ampla sobre o significado de “incapacitado” no Japão e a divisão entre confinamento e liberdade física.
Quando Hara conheceu um grupo de ativistas de sobre paralisia cerebral em Yokohama chamado as “Gramas Verdes”, ele aproximou-se deles e aos poucos os convenceu a também ir à rua – sem suas cadeiras de rodas. Só assim é que o público conheceria seus corpos. Como um grupo, eles concordaram que as cadeiras de roda faziam parte de seu confinamento físico que afastava a sociedade de seus corpos. Juntos, o grupo e Hara concordaram em fazer um filme sem nenhum plano ou roteiro específico além de “agir” em lugares públicos. Queriam fazer um filme diferente dos documentários de “bem estar social” que frequentemente contemplavam as pessoas com deficiência de um ponto de vista distante e privilegiado. O grupo decidiu fazer uma coisa muito mais radical, algo diretamente das ruas e que não buscasse explorar sentimentos de pena ou até empatia. Eles queriam mudança.
Adeus PC (1972) (também conhecido como Sayonara CP) começa com os dois principais ativistas do filme, Yokoto Hiroshi e seu amigo Yokotsuka Koichi, indo à rua de uma forma especial. Yokoto não pode andar então pensou numa maneira de deslizar-se de joelhos, como se impulsionando para frente, com seu corpo se contorcendo, usando os braços para empurrar-se e constantemente pegando seus grandes óculos do chão, pois estão sempre caindo. A imagem de um homem adulto literalmente se arrastando numa rua movimentada assombrou e literalmente paralisou as pessoas e começou a materializar a missão dos cineastas para o filme: “Como podemos fazer com que a sociedade aceite nossa existência?”
Enquanto isso, Yokotsuka caminha de forma desajeitada, como se em zig zag, seus braços balançando descontroladamente, sua cabeça indo da direita à esquerda e da esquerda à direita. Mas ele tem uma câmera de 35-mm amarrada no pescoço e adentra a multidão para tirar fotos das pessoas chamadas “saudáveis.” Hara convenceu Yokotsuka a tirar suas fotos de perto, de no máximo um metro de distância do sujeito. Yokotsuka confessou que fotografar desconhecidos inicialmente era aterrorizante, mas ao mesmo tempo trazia uma sensação de liberdade. A estratégia de usar outra câmera no filme criou um “olhar reverso” onde a posição dominante de ver outros no filme seria complicada e reflexiva.
Ao longo do filme, várias ações na rua foram encenadas, como, por exemplo, Yokoto sentado numa passarela com um megafone e declarando: “Podemos ser mortos amanhã. Queremos viver livremente como seres humanos”. A câmera de Hara circulando Yokoto já é um espetáculo em si e faz com que pessoas parem para ver o que está ocorrendo. Depois de um tempo, pessoas (principalmente mulheres) dão dinheiro às suas crianças para entregar a Yokoto. Neste momento, Hara interrompe sua observação e pergunta às mulheres por que se sentiram obrigadas a doar dinheiro: “Algumas pessoas são tão desafortunadas (…) Porque são desamparados (…) Só queria ajudar pessoas necessitadas (…) Meu filho teve pena deles (…) Me sinto tão mal por seus corpos (…) Meu filho tem boa saúde, então me sinto abençoada. (…)” (GOODBYE CP, 1972).
Adeus CP é um filme radical de diversas formas, mas ao mesmo tempo é chocantemente belo. Apesar de respostas estereotipadas dos adultos, as cenas das crianças, correndo de ida e de volta a seus pais, com raios de luz de sol formando siluetas de seus corpos, são magníficos. Mas é a característica crua e primitiva do filme que complementa o tema que ele retrata. O filme usado era branco e preto e granulado, de 16mm, com uma câmera que precisava ser rebobinada a cada 40 segundos.22 Nunca tendo feito um filme antes, Hara não se preocupou com a sincronização do som. Portanto o som em geral é uma combinação de barulho da rua e pessoas falando em cima e contra as imagens. A equipe também decidiu não incluir legendas, obrigando o espectador japonês a se acostumar ao modo de falar de pessoas com paralisia cerebral. Mais chocantes foram os ângulos usados por Hara e os movimentos de câmera segurada à mão que eram tão irrequietos quanto seus colegas ativistas. E seu jeito ousado de edição, feito em conjunto com a equipe dos Gramas Verdes, mostra uma abordagem tão inovadora e realista de filmagem que faz de Adeus PC um trabalho seminal em cine avant garde, além de um importante documentário político. Hara posteriormente se referiu a seus filmes como “documentários de ação”, pois provocaram mudanças.
Uma das partes mais perturbadoras do filme ocorre quando Yokoto briga com sua esposa que também tem paralisia cerebral e Hara traz sua câmera para dentro da casa documentando seus conflitos e angústias. Depois de Adeus PC, Hara faria outros filmes que atravessavam as fronteiras éticas da família e este retrato de fúria doméstica foi chocante para o público japonês. Enquanto o casal briga, a equipe se junta num quarto adjacente e debate o mérito de continuar com o projeto, rejeitando o pensamento de Yoshiko de que estão se humilhando ainda mais com este filme.
O grau de refletividade traz mais realidade ao formato inclusivo do filme e aborda outro direito humano fundamental. Todos têm o direito de se expressar. E todos têm o direito de se representarem. E todos também têm o direito de privacidade. A combinação destes direitos em conflito entre si faz de Adeus PCum filme verdadeiramente transgressivo, tenso por seu realismo gritante. Mas ao mesmo tempo é um projeto coletivo e a equipe se apresenta não como vítimas e sim como participantes. Hoje, plataformas de mídia participativa se destacam na luta pelos direitos humanos e Adeus PC esteve na vanguarda deste movimento.
Mais ações de rua ocorrem no filme e uma delas em particular faz com que a polícia intervenha. A polícia chama os protestos de um show de horrores, mas Hara e sua equipe consideram a intervenção policial um sucesso por terem conseguido perturbar o público. Yokoto depois lê seus poemas em público, desenha ao redor de si um círculo com giz, senta e escreve: “Você que tem pernas para ficar em pé, você que me proíbe de caminhar, é assim que você mantém suas pernas, e todos ao meu redor, todas as pernas, por que razão me proíbe de caminhar”? Numa cena famosa, Yokoto tira sua roupa no meio da rua, sem vergonha, obrigando as pessoas a olharem seu corpo. No final, Yokoto se arrasta pelos joelhos, lamentando e questionando se o filme tem tido algum impacto positivo. Minha leitura dessa última cena é que ele está lutando tanto contra a perspectiva de morte quanto contra a sua deficiência e esta luta o une ao destino comum de todos nós.
Adeus PC não foi exatamente um sucesso quando estreou em 1972. Foi escandaloso. O público acusou Hara de humilhar pessoas com paralisia cerebral e de fazer de suas lutas e desafios um espetáculo público. Não sabiam, entretanto, que a encenação pública era justamente o objetivo porque funcionava como um tipo de ativismo e ao mesmo tempo resistência. Tampouco entendiam inicialmente a característica participativa do filme e como desapareceu o espaço entre o cineasta e os colaboradores. Mas pessoas com paralisia cerebral amaram o filme e entenderam tudo o que estava sendo dito sem a necessidade de legendas. Até entenderam todas as piadas particulares que o público geral não conseguia captar. Yokoto Hiroshi se transformou num herói para pessoas com deficiências no Japão. E com o tempo, o sentimento do público começou a mudar, reconhecendo a beleza singular e a coragem do filme. Hoje, assistir este filme é requerimento básico para qualquer aluno no Japão estudando qualquer assunto relacionado a deficiências. Também é um filme cult para alunos de cinema avant garde. Eu uso este filme nas minhas aulas de direitos humanos e mídia para ilustrar como o ativismo, mídia participativa e poesia podem fundir-se.
Uma das perguntas em Adeus PC é: o que realmente significa ser humano? Principalmente quando alguém é diferente. Nunca este dilema existencialista tinha sido explorado com mais elegância e admiração como no filme A Terra do Silêncio e da Escuridão, de Werner Herzog em 1971 (2005). Naquela época, Herzog era um jovem cineasta e este foi seu projeto mais pessoal, feito com apenas alguns milhares de dólares e uma pequena equipe. O filme todo lembra o outono alemão com cores pálidas melancólicas que somente filmes do início da década de 1970 possuem. Como muitos dos primeiros filmes de Herzog, A Terra do Silêncio e da Escuridão é um filme contemplativo e meditativo que exige grande concentração por parte do público durante cada questão metafísica que é colocada em cada longa cena.
O filme retrata a vida de Fini Straubinger, uma mulher de 56 anos que é cega e surda. Durante suas viagens pela Bavária em nome da Liga dos Cegos, ela conhece e ajuda outros que compartilham do mesmo destino. Ela até os chama de “Camaradas em Destino” que precisam ser liberados. Porém, diferentemente dos que nasceram surdo-cegos, Fini sofreu um acidente aos nove anos de idade quando caiu das escadas e em questão de anos, perdeu toda a visão e audição. Durante esse tempo, convalesceu na cama durante quase 30 anos. Depois voltou a fazer parte da sociedade e decidiu ajudar quantas pessoas pudesse.
No início do filme, Fini e sua amiga Juliet, que também é surdo-cega, viajam de avião. É a primeira vez que qualquer uma delas viaja de avião e o olhar na cara delas é de puro êxtase. Ao longo do trajeto sobre montanhas cobertas de neve, Fini e Juliet se comunicam entre si desenhando em linguagem de sinais sobre a palma da mão. Estão acompanhadas de uma pessoa sem deficiência e que sabe linguagem de sinais e traduz para elas o que ele vê. É uma cena inesquecível na história do cinema documentário e cada vez que pergunto para alguém se já assistiu A Terra do Silêncio e da Escuridão, esta cena sempre é citada com muita admiração.
Outras notáveis partes do filme também retratam com alegria e felicidade a experiência de ser diferente. Tem uma visita ao jardim botânico quando um grupo grande de surdo-cegos é guiado através de cactos, cada pessoa com seu acompanhante traduzindo e se maravilham com o simples contato físico com as plantas. Ainda mais mágica é a visita ao zoológico quando os surdo-cegos se deleitam ao segurarem os animais. No aniversário de Fini, ela calorosamente recebe a todos, falando em voz alta para todos os acompanhantes traduzirem, tocando os convidados, segurando suas mãos, abraçando velhos amigos, comunicando-se via linguagem de sinais, e perguntando genuinamente sobre os acompanhantes que ela também conhece.
Na festa, ela solicita um poema e Julieta se levanta e anuncia:
Por favor traduzam para os surdo-cegos.
Vou recitar-lhes um poema sobre vocês.
O título é: A Mais Maravilhosa Arte
Ficar distante
Quando outros se divertem
Você está sempre feliz
Cumprindo com alegria
a mais sagrada missão
renunciando nobremente
seus desejos pessoais
vivendo na escuridão
longe do sol
mas brilhando como uma estrela
esta é uma arte
que somente aquele cuja alma
está apontada para o Paraíso
é capaz de entender
(THE LAND…, 2005).
O título do filme vem da descrição que a própria Fini dá aos que lutam para se comunicar com outros. E é este lado mais escuro do filme e seu trabalho em prol dos surdos-cegos que faz desta história uma representação muito profunda dos direitos humanos. Estamos, finalmente, no momento nestes filmes fundacionais no qual as pessoas com deficiência fazem o papel de principal responsável pelos cuidados de outros. Ao ver a Fini viajando para conhecer outros como ela, suas histórias de solidão são desoladoras. Mais do que isto, nos fazem pensar como alguém pode viver sem se comunicar? Mas A Terra do Silêncio e da Escuridão não é um filme triste. A presença de Fini é firme e ela aborda cada situação com muita compreensão e compaixão.
Um dos que ela conhece é um homem-criança chamado Vladimir. Apesar de seus 22 anos, Vladimir aparenta ser um menino. Sentado no chão assoprando bolhas, resmunga para si mesmo. Vladimir nunca aprendeu a andar, muito menos a se comunicar, e sua vida tem sido uma grande neblina. Como faz com todos os que ela conhece, Fini acaricia a face de Vladimir, toca seus olhos e orelhas e coloca a mão dele sobre sua face para que ele saiba que ela tampouco consegue ver ou ouvir e que são parecidos. Ao começar a ensinar como usar linguagem de sinais usando a palma das mãos, Vladimir parece acordar e sente uma conexão. Ele enterra suas unhas na palma da mão de Fini, desesperado para poder se comunicar. Ele balança muito, seus olhos excitados, entendendo que este encontro é diferente. Quando Fini coloca um radio portátil sobre seu colo, ele se transforma. Abraçando o radio e colando sua cara ao som como se estivesse ouvindo a música, Vladimir sente as vibrações e sente magia. Fini entende que o problema de Vladimir é que está entediado e que tem muito potencial para mudança.
Conhecemos outro menino surdo-cego aprendendo a nadar. Tem uma cena na qual o professor de natação solta sua mão e o menino tenta alcançá-lo. A mão pedindo ajuda é simbólica e frágil e mostra esta necessidade nata que temos todos nós de ter contato com outros. Herzog permanece praticamente mudo durante o filme. Só umas palavras para introduzir pessoas, mas seu estilo de câmera é paciente e de observação. Ele permite que as cenas ocorram naturalmente, o que é o contrário do que vemos em Adeus PC. Essa estratégia de cenas longas sem cortes lembra o cinema transcendental de muitos diretores do Leste Europeu e é o que dá ao filme de Herzog uma aura poética. Esse mesmo menino depois toma banho sozinho, o que também é uma nova experiência para ele e assim que aprende a ligar a torneira, o jato d´água cai do chuveiro, inundando seu corpo. Esta cena é marcante, pois é uma expressão de pura sensualidade táctil e nos lembra como um ato aparentemente simples do cotidiano pode ser tão misterioso.
Mas são com os adultos que Fini conhece que podemos interpretar o título do filme literalmente. Conhecemos uma mulher, surdo-cega, de 48 anos, sentada sozinha em um asilo usando um vestido preto. Está numa cafeteria cercada de outras mulheres que também devem ser cegas ou ter deficiências psicossociais, pois estão sentadas olhando para o vazio. É uma imagem estranha, mas Fini chega e instantaneamente humaniza o encontro. Como nos é explicado, a mulher conhecia linguagem Braile, mas aos poucos foi esquecendo como usá-la. Ninguém a queria, então ela foi parar nesta “clínica neurológica” sozinha e isolada de todos. Ela não conversa com qualquer pessoa faz anos e quando Fini a toca, ela também sente uma conexão. Fini segura a mão da mulher e começa a desenhar letras sobre a mesa. Fini pega um tabuleiro de Braile e começa a ensiná-la a usá-lo novamente. Os funcionários do asilo se maravilham vendo que a mulher fica olhando para Fini. Herzog termina esta parte do filme com um título interno: “Quando você solta a minha mão é como se estivéssemos a milhares de quilômetros de distância”.
O filme termina com um homem surdo-cego de 51 anos com sua mãe em uma casa para idosos. Fini comenta ao conhecê-lo que parece que ele caiu do mundo de tão desconexo. Ele nasceu surdo, mas perdeu a visão aos 35 anos de idade e aos poucos esqueceu como falar ou escrever. Entretando, sua mãe diz que uns anos antes, num dia frio de inverno, seu filho saiu de casa, tocou o chão e gritou “Neve!”. O menino chegou a se sentir tão rejeitado pela sociedade que durante um tempo viveu com vacas num estábulo.
Fini e o homem estão sentados no quintal. Fini toca seu rosto e inicia o contato e começa a comunicar-se com ele usando linguagem de sinais na palma da mão do homem. Ele sente o toque de Fini, mas mantém o silêncio. O vento sopra e enquanto eles falam sobre sua condição, ele levanta e caminha pelo quintal. É uma tarde de outono e enquanto caminha dá de cara com uns galhos de uma árvore. Ele segue os galhos até o tronco da árvore. Neste momento, ele abraça a árvore, sente a madeira, segue os galhos maiores e se agacha para recolher as folhas da árvore caídas no chão. É uma cena incrível. E Herzog tem dito que o filme todo deveria conduzir a este momento final quando esta conexão primitiva entre o homem e a natureza foi feita.
A Terra do Silêncio e da Escuridão é um filme profundamente ético, com muita humildade. Interpretá-lo através da lente dos direitos humanos é o mais óbvio.A escuridão não é a deficiência específica. É sobre a falta de entendimento, a ignorância e o pensamento que deixou que essas pessoas desaparecessem da sociedade sem contato humano e sem amor. É a mesma escuridão que vemos em Charenton, Bridgewater e a sociedade fora da comunidade de Archway. É também todas as pessoas que não queriam ver as pessoas com paralisia cerebral nas ruas no Japão. O silêncio refere-se ao silêncio da sociedade que permitiu que estas coisas ocorressem. Esses cinco filmes foram um marco porque primeiro romperam o silêncio. Eles também se destacam por serem grandes obras de arte. Também foram documentos que ajudaram a transformar como testemunhamos os direitos humanos, pois começaram o processo de mudança.
Muitos cineastas continuam representando pessoas com deficiências e ajudam a manter a luta viva. Mas todos devem muito a estes cinco maravilhosos filmes. Não há dúvida de que não existiria uma transformação internacional em direitos para pessoas com deficiência ou novos padrões normativos de direitos humanos para pessoas com deficiência sem nosso conhecimento visual desses temas. Esta visualização começa com estes cinco filmes que mostraram tristeza, violência, rejeição, resistência e a esperança de mudar como nós percebemos as pessoas com deficiências.
1. Esta citação é de um livro sobre Peter Brook e a história do teatro avant-garde (INNES, 1993).
2. Para um estudo detalhado sobre a ideia de espaço vazio, leia: Brook (1995).
3. Leia os relatos das inaugurações das peças de Brook durante os anos 60 em: Innes (1993).
4. Para conhecer mais sobre os pensamentos de Artaud sobre o teatro, leia: Artaud (1994).
5. Minha leitura sobre as gerações de direitos humanos está baseada em: Reardon (1995).
6. Para ver uma linha de tempo sobre os direitos humanos de pessoas com deficiências, acesse: <http://www.hrea.org/index.php?base_id=152>.
7. Veja uma linha do tempo sobre direitos das pessoas com deficiência em: <http://www.hrea.org/index.php?base_id=152>.
8. Para ver uma lista de filmes categorizados sobre deficiências, acesse: <http://disabilityfilms.tripod.com>.
9. Meu marco conceitual sobre direitos humanos deriva de <http://www.pdhre.org>.
10. Existem várias matérias sobre as condições de Bridgewater durante a filmagem de Titicut Follies, em: <http://reason.com/archives/2007/11/16/letthe-viewer-decide>.
11. Para entender mais sobre a história deste filme e seus aspectos jurídicos, leia o ensaio de Toby Miller sobre Wiseman em: <http://www.mcc.murdoch.edu.au/ReadingRoom.7.2/Miller2.html>.
12. Para conhecer melhor a Convenção, veja: <http://www.un.org/esa/socdev/enable/rights/humanrights.htm>.
13. Para saber mais sobre esta convenção da ONU contra tortura, acesse: <http://www2.ohchr.org/english/law/cat.htm>.
14. Para ler sobre este caso no Paraguai, acesse: <http://www.disabilityrightsintl.org/work/countryprojects/Paraguai/>.
15. Para ver o vídeo sobre o caso, acesse: <http://www.witness.org/index.php?option=com_content&task=view&id=227&Itemid=60>.
16. Para ler sobre este tratado, acesse: <http://www.un.org/disabilities/index.asp>.
17. Para conhecer mais sobre R.D. Laing, acesse: <http://en.wikipedia.org/wiki/R._D._Laing>.
18. Para conhecer mais sobre a teoria de Laing do ser dividido, leia LAING, 1969.
19. Sobre as declarações de Kenneth Robinson durante a inauguração do asilo no Museu de Arte Moderna de NY, acesse: <http://surveillancefilms.com>.
20. Para ler uma crítica do filme Asilo escrita por J. Hoberman, acesse: <http://surveillancefilms.com>.
21. Leia o livro Camera Obtrusa de Hara Kazuo e seu capítulo com o making of de Adeus PC (KAZUO, 2009).
22. Leia o capítulo sobre Adeus PC (KAZUO, 2009).
Bibliografia e outras fontes
ARTAUD, A. 1994. The Theatre and Its Double. New York: Grove Press.
ASYLUM. 2004. Directed by Peter Robinson. c1972. 1. DVD (95 min). Disponível em: http://kino.com . Último acesso em: Janeiro de 2011.
BROOK, P. 1995. The Empty Space. New York: Touchstone.
GOODBYE CP. 1972. Directed by Kazuo Hara. 1 DVD (82 min). Disponível em: http://www.facets.org . Último acesso em: Janeiro de 2011.
INNES, C. 1993. Avant Garde Theatre: 1892-1992 New York: Routledge.
KAZUO, H. 2009. Camera Obtrusa. New York: Kaya Press.
LAING, R.D. 1969. The Divided Self. New York: Pelican.
MARAT/Sade. 2001. Directed by Peter Brook. MGM Home Entertainment, c1966. 1 DVD.
REARDON, B. 1995. Educating for Human Dignity: Learning About Rights and Responsibilities. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
SZASZ, T. 2007. Therapeutic Censorship on Titicut Follies. 2007 The Freeman: Ideas On Liberty, Foundation for Economic Education, v. 57, n. 4 May. Disponível em: http://www.thefreemanonline.org/columns/the-therapeutic-state-therapeutic-censorship . Último acesso em: Janeiro de 2011.
THE LAND of Silence and Darkness. 2005. Directed by Werner Herzog. c1971. 1 DVD (85 min). On DVD from New Yorker Vídeo.
TITICUT Follies. 1967. Directed by Frederick Wiseman. 1 DVD (84 min). Disponível em: http://www.zipporoh.com . Último acesso em: Janeiro de 2011.