Dossiê SUR Sessenta anos da Declaração Universal de Direitos Humanos

Entrevista com Anthony Romero, diretor executivo da American Civil Liberties Union (ACLU)

Anthony Romero

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RESUMO

Anthony Romero ocupa o cargo de Diretor Executivo da American Civil Liberties Union (ACLU) desde 2001 e “vem presidindo a ACLU no momento de maior expansão no número de membros da história da organização”. Desde o início do seu mandato, a organização “dobrou sua equipe nacional e triplicou o seu orçamento”.1 Fundada em 1920, a ACLU atua principalmente na proteção da liberdade de expressão, associação e reunião, liberdade de imprensa, liberdade de religião, igualdade perante a lei, direito ao devido processo e direito à privacidade. Atualmente, a ACLU conta com mais de quinhentos mil membros e litiga em seis mil casos judiciais por ano.2 Nesta entrevista, Romero discute a relação entre a ACLU e o movimento de direitos humanos.

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Por Conectas Direitos Humanos

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Conectas Direitos Humanos • De que forma o senhor vê hoje o movimento internacional de direitos humanos?

Anthony Romero • Nos últimos quarenta anos, o movimento internacional de direitos humanos tem avançado imensamente. O moderno movimento internacional de direitos humanos nasceu de fato a partir das atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Quando percebermos que, em todo o mundo, houve um crescimento no número de ONGs de direitos humanos; quando percebemos o aumento no impacto produzido por nós por termos como ferramenta um direito internacional de direitos humanos capaz de vincular os Estados; quando vemos que tanto governos, quanto seus líderes são responsabilizados por violações a direitos; há de se concordar que este é um dos grandes êxitos do século XX: as ONGs de direitos humanos realmente fizeram uma diferença na vida das pessoas.

No entanto, durante boa parte dos últimos anos, em especial nos Estados Unidos, temos presenciado um considerável retrocesso em direitos humanos. Os oito anos do Presidente Bush ficarão registrados na história como um dos momentos mais sombrios do compromisso dos EUA com os direitos humanos. Era praticamente inconcebível para qualquer um aqui nos Estados Unidos que um dia membros do alto escalão do nosso governo seriam capazes de aprovar a tortura; que nosso governo prenderia cidadãos americanos, impedindo que eles tivessem acesso a advogados e sem apresentar contra eles acusação formal; que nossos líderes aprovariam políticas que anulassem todos os compromissos antes defendidos por este país; inclusive todos aqueles compromissos assumidos em direitos humanos. Infelizmente, ao mesmo tempo em que o movimento de direitos humanos obteve enormes êxitos em sua história, nos Estados Unidos este movimento tem perdido nos últimos oito anos enorme parcela do espaço anteriormente conquistado.

Justamente por isso, a existência de um movimento global de direitos humanos é, na verdade, de vital importância. Mesmo quando ocorrem retrocessos em direitos humanos em um determinado país, este movimento formado por lideres e ONGs de direitos humanos é capaz de continuar a pressionar por mudanças e demandar que estes direitos sejam cada vez mais respeitados.

Conectas • A ACLU possui contato com ONGs de direitos humanos fora dos EUA?

Anthony Romero • Claro. A ACLU é uma organização de direitos humanos. Somos qualificados, freqüentemente, como uma organização voltada à proteção da liberdades civis, mas defendemos os direitos de todo o povo americano, quer seja uma mulher ou um homem, quer seja um cidadão americano ou um imigrante, quer seja negro, branco ou latino, quer seja homossexual ou heterossexual, quer seja um membro do partido nazista ou um membro do movimento pelos direitos civis de afro-americanos. Sempre considerei ser nossa missão, como uma ONG de direitos humanos, lutar pelos direitos humanos de todo o povo americano. Dito isso, nosso mandato é responsabilizar o governo dos EUA pelos abusos em direitos humanos neste país. Para isso, processamos o governo; pressionamos o Congresso; e conscientizamos o público em geral. Fazemos uso também dos mecanismos internacionais. Cada vez mais, temos recorrido às Nações Unidas e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para responsabilizar o governo dos EUA pelos abusos em direitos humanos, quando não conseguimos fazê-lo nas instâncias internas. Recentemente, apresentamos alguns casos à Comissão Interamericana. Elaboramos relatórios independentes para o Comitê das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Enviamos delegações de advogados de direitos humanos acostumados a litigar internamente para Genebra e para algumas reuniões das Nações Unidas para relatar os abusos em direitos humanos que acontecem em nosso país.

Temos muito em comum com outras ONGs de direitos humanos que atuam no âmbito doméstico, em seus próprios países de origem. Mantemos uma rede cada vez mais ampla de organizações de direitos humanos em geral ou organizações nacionais de direitos humanos que, como nós, responsabilizam os seus próprios governos por violações de direitos humanos. Cerca de três meses atrás, por exemplo, reunimo-nos com 15 grupos nacionais de direitos humanos, incluindoLiberty do Reino Unido, The Legal Resources Centre da África do Sul, Irish Civil Liberties Union,Hungarian Civil Liberties Union, Association for Civil Rights da Argentina, e Association for Civil Rightsde Israel. Todos nós nos reunimos em 2008 com o único propósito de compartilhar idéias e estratégias. Foi uma reunião de importância considerável, pois percebemos que, como ONGs nacionais de direitos humanos, nosso trabalho é proteger os direitos de todas as pessoas, independentemente de que país vierem, e que muito podemos aprender e compartilhar uns com os outros.

Ao mesmo tempo, alguns dos desafios em direitos humanos que enfrentamos no momento são desafios globais; eles deixaram de ser tão-somente problemas internos. A xenofobia e aislamofobia são problemas que nós todos encaramos mesmo vivendo em sociedades diferentes. Neste sentido, tanto sul-africanos, com relação aos imigrantes do Zimbábue, quanto americanos, no que diz respeito aos muçulmanos, árabes e imigrantes mexicanos, têm igualmente feito estes de bodes expiatórios. Compreendemos que a “guerra contra o terror” possui implicações globais com relação aos direitos humanos. Quando, por exemplo, o governo americano transfere um indivíduo para um outro país com o objetivo de submetê-lo à tortura, isso deixa de ser um problema exclusivamente interno. Isso exige que nós entendamos a atuação de organizações de outros países que tenham um trabalho similar ao nosso. Isso exige que sejamos capazes de estabelecer parcerias com essas organizações para que abordemos globalmente esses problemas de escala global.

A promoção e proteção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros é outro exemplo de desafio global. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma questão que tem avançado de maneira muito significativa em escala global. Por exemplo, a Espanha concedeu aos casais de gays e lésbicas o direito a se casar. O movimento a favor dos direitos de gays/lésbicas, sempre considerado como um movimento interno em diversos países, está se tornando cada vez mais um movimento global de direitos humanos em prol da igualdade e da dignidade. A ACLU trabalha para se tornar parte deste processo e compartilhar conhecimentos específicos e estratégias, para aprender a partir do contexto de outros países e para utilizar como fonte, em nossa mobilização interna, o direito internacional pertinente.

Para ser claro, a ACLU concentrará sempre os seus esforços em responsabilizar o governo dos EUA. Nosso trabalho não é criticar China, Cuba ou Venezuela por violar direitos humanos. Este é o trabalho de outras ONGs de direitos humanos e, ainda bem que existem ONGs consolidadas que atuam na esfera global e naqueles países em específico, que são capazes de exercer essa crítica. No entanto, como uma das maiores ONGs de direitos humanos dos EUA, senão do mundo, nós poderíamos além disso desempenhar um papel de liderança dentro do movimento global de direitos humanos.

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Conectas • E qual o papel que tem sido desempenhado até o momento?

Anthony Romero • Cerca de quatro anos atrás, nós criamos um Programa de Direitos Humanos na ACLU. A idéia era contratar pessoas que já integravam a organização e que conheciam os mecanismos internacionais e o Direito Internacional de Direitos Humanos. Eles atuam hoje como um centro especializado; trabalham com diferentes projetos e escritórios de litigância da ACLU para integrar à nossa mobilização nacional uma perspectiva global de direitos humanos. Eles disseminam os conhecimentos específicos que possuem a outros projetos desenvolvidos pela organização.

O Projeto sobre Direitos das Mulheres ingressou com uma ação judicial em nome de Jessica Gonzales – que tinha um marido que dela abusava. Ela obteve uma ordem do tribunal determinando que o seu marido permanecesse longe dela e de seus filhos. Um dia, no entanto, o marido dela apareceu de repente e levou as crianças. Ela ligou persistentemente para a polícia para que fosse cumprida a ordem judicial dada a seu favor, mas a polícia se recusou a executar essa ordem. No fim do mesmo dia, o marido se suicidou e matou as duas crianças. Levamos este caso até a Suprema Corte argumentando que a polícia falhou em sua responsabilidade permanente de proteger os direitos humanos de Gonzales e de suas crianças. A Corte Suprema dos EUA não concordou conosco. Apresentamos o caso, portanto, à Comissão Interamericana. Denunciamos formalmente o governo americano e as autoridades policiais locais por não protegerem efetivamente os direitos humanos de Gonzales.

Esse é apenas um exemplo do uso que fazemos dos mecanismos ou fóruns internacionais quando não conseguimos avançar no âmbito interno. Há outros exemplos, como no caso de discriminação racial. Nós temos consistentemente trabalhado para responsabilizar nosso governo pela perpetuação da discriminação racial nos EUA, embora nunca tenhamos tentado inserir este tema em um contexto ou estrutura mais amplos que levem em consideração as obrigações internacionais dos Estados Unidos.

No entanto, é possível encontrar um número considerável de decisões, mesmo aquelas provenientes de jurisdições locais, que começam a aplicar o Direito Internacional de Direitos Humanos à legislação local. A cidade de São Francisco, por exemplo, considera a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (sigla original, CEDAW) como um arcabouço jurídico aplicável na cidade de São Francisco exatamente como as demais leis municipais o são. Embora os últimos oito anos tenham sido tempos sombrios para os direitos humanos nos EUA, o fato deste movimento de direitos humanos possuir enorme vigor e vitalidade é uma das coisas que me dá mais esperança. Não é mais adequado simplesmente fechar os olhos e defender que “o que quer que aconteça neste país é um problema nacional”. O advento de instituições como o Tribunal Penal Internacional bem como de campanhas de direitos humanos que ultrapassam as barreiras de um único Estado como aquelas contra a tortura em Guantánamo me enchem de esperança de que, de fato, o movimento de direitos humanos continuará a avançar, apesar de quaisquer desafios que tenhamos que enfrentar em nossos respectivos países.

Conectas • Depois de Abu Ghraib, Base Aérea de Bagram e Guantánamo, o modo como os americanos compreendem os direitos humanos tem mudado; ou os americanos continuam a considerar esses direitos como algo restrito aos países em desenvolvimento?

Anthony Romero • Não. Há uma mudança nos EUA com relação a esta questão. Na verdade, essa não é somente a minha opinião ou impressão sobre esse tema. Temos realizado pesquisas, em que perguntamos às pessoas como elas vêem essas questões e, cada vez mais, elas são consideradas as questões mais básicas da agenda de direitos humanos. Antes de conduzirmos as pesquisas, havíamos pensado que tais questões seriam consideradas pelo eleitorado americano ou pelos membros da ACLU como um problema de outros países. Contudo, as pessoas entrevistadas vêem uma ligação clara entre o que aconteceu em Abu Ghraib, o que aconteceu no Iraque e o que ocorre agora em Washington. Reconhece-se cada vez mais que todas essas questões estão interligadas por uma estrutura mais ampla de direitos humanos, dessa maneira, essas preocupações não são específicas de um determinado eleitorado; penso, aliás, que essa estrutura tem se firmado de maneira significativa e profunda.

O estrago foi feito pelo Presidente Bush, juntamente com os senhores Rumsfeld, Cheney, Ashcroft, Gonzales e Addington. Contudo, o fato é que o movimento global de direitos humanos é suficientemente forte para resistir, sobreviver e responsabilizá-los. Esperamos que esteja ocorrendo neste exato momento uma mudança na administração em Washington pelos próximos 30 anos. Além disso, não importa quem seja eleito, se o Senador McCain ou o Senador Obama, nós nos empenharemos ao máximo para responsabilizar, por meio dos tribunais americanos, aqueles lideres que foram responsáveis por abusos em direitos humanos durante os últimos 8 anos.3 Nós já processamos o Secretário de Defesa Rumsfeld, em nome das pessoas submetidas à tortura em Abu Ghraib. Temos uma ação judicial pendente contra Sr. Tennant, que chefiou a Agencia Central de Inteligência Americana (sigla original, CIA). Temos ainda processos pendentes contra Jeppesen Dataplan, subsidiária da Boeing Corporation, por ter realizado os vôos que transferiram pessoas para países nos quais elas seriam torturadas. Estes são casos bem difíceis de vencer. Estamos dando o nosso melhor, mas provavelmente as chances não estão do nosso lado. Se começarmos a considerar neste momento estratégias para responsabilizá-los, não apenas nos EUA, mas também no âmbito global, teremos conseqüentemente muito mais chances. Enquanto os juízes americanos e os oficias responsáveis pela execução da lei nos EUA talvez não estejam ainda dispostos a responsabilizar o Sr. Rumsfeld, poderíamos fazer com que o Sr. Rumsfeld ao menos tenha muito medo toda vez que for viajar para outro país. O que aconteceria se o Sr. Garzón indiciasse Rumsfeld como fez com Pinochet? O que aconteceria se fôssemos capazes de assegurar que, caso o Sr. Addington viaje a Londres para discursar para algum grupo de juristas, as autoridades britânicas exerçam seu poder ou pressão sobre ele? Queremos garantir que seremos capazes de fazê-los temer a fúria de Deus; assim, toda vez que eles viajarem para o exterior, eles deverão temer a responsabilização que sobre eles pode recair por força do movimento de direitos humanos. Direitos humanos são valores universais e, se o governo americano não possui a vontade política, habilidade ou disposição para responsabilizar oficiais americanos por violações de direitos humanos, pediremos ajuda à comunidade internacional neste sentido.

Conectas • Mudando de assunto. Os direitos sociais fazem parte da pauta da ACLU?

Anthony Romero • A distinção entre direitos sociais, de um lado, e direitos civis e políticos, de outro, é um debate um tanto artificial dentro da ACLU e dos meios de direitos humanos nos EUA. Quando se olha para trás, para o início do movimento de direitos humanos, percebe-se que estes direitos não eram separados desta forma. A Declaração Universal de Direitos Humanos trata de todos estes direitos. Infelizmente, a pauta de direitos civis e políticos foi apropriada e promovida pelos países pertencentes ao Bloco Ocidental, ao passo que os direitos econômicos e sociais foram defendidos pelos países do Bloco Oriental. Desta forma, a visão integrada de direitos humanos se tornou infelizmente vítima da política da Guerra Fria do século vinte. Penso que houve mudanças parciais quanto a isso. Embora enfrentemos obstáculos nas cortes dos EUA, com relação aos direitos econômicos e sociais (de acordo com a nossa Constituição, não temos direito à moradia; não temos direito à saúde; e tampouco temos direito à alimentação), há outras estratégias possíveis para lidar com essas questões, por meio dos direitos existentes já reconhecidos pelo governo federal.

Por exemplo, quando lidamos especificamente com os direitos das mulheres, com a discriminação com base no gênero, aplicamos uma estrutura própria dos direitos econômicos e sociais para determinar que clientes representaremos e quais casos apresentaremos. O Projeto sobre os Direitos das Mulheres da ACLU, em grande medida, concentra-se na defesa dos direitos de mulheres de baixa renda, pertencentes a minorias. No que diz respeito aos casos por nós apresentados, podemos citar, por exemplo, o caso de duas trabalhadoras domésticas que foram enviadas para os EUA para trabalhar para o embaixador do Kuwait junto às Nações Unidas. Elas eram tratadas basicamente como escravas. Eram impedidas de sair da casa; recebiam salários muito baixos; sofriam abusos físicos e, por vezes, sexuais por parte de seus chefes. Utilizamos uma estrutura própria dos direitos econômicos e sociais para determinar quais casos nós levamos adiante e como fazê-lo. Contudo, os argumentos que usamos talvez não sejam argumentos baseados per se em direitos econômicos e sociais, já que estes direitos não são considerados judicialmente exeqüíveis perante as cortes dos EUA.

Diria que esta mesma lógica se aplicou a nossa atuação depois do Furacão Katrina, onde nos concentramos na comunidade economicamente desfavorecida de afro-americanos que não receberam o auxílio dos programas do governo dos EUA para a reconstrução de Nova Orleans. Tivemos como objetivo atender especificamente as pessoas mais marginalizadas e, em geral, aqueles mais carentes entre os já desfavorecidos economicamente. Novamente, aplicamos a estrutura característica dos direitos econômicos e sociais para escolher os clientes e os casos a serem defendidos. Particularmente, um dos casos que apresentamos depois do Furacão Katrina foi em nome dos prisioneiros de Orleans Parish em Nova Orleans. O delegado decidiu não proceder com a evacuação destes prisioneiros, mesmo sabendo que o Furacão Katrina estava a caminho para devastar Nova Orleans. Muitos americanos poderiam dizer: “bem, por que esses prisioneiros possuiriam direitos? O Furacão Katrina representou a todos uma tragédia”. Podemos, no entanto, mostrar que não se trata apenas de um erro, mas sim de uma decisão consciente de expor os prisioneiros ao risco de enormes lesões físicas. Alguns de nossos clientes permaneceram trancados na prisão por três dias, sem receber alimentos; eles não podiam entrar ou sair, já que os guardas abandonaram o seu posto no meio da tempestade. Os prisioneiros foram submetidos a condições terríveis. Quando foram finalmente evacuados desta cadeia, eles foram realocados para prisões super lotadas sem acesso à alimentação em quantidades suficientes ou acesso a tratamento médico, o que somente contribuiu para o aumento da violência.

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Conectas • Aproveitando que você mencionou o trabalho desenvolvido pela ACLU em defesa dos presos, gostaríamos de levantar uma questão que tem sido preocupante em vários países do Sul Global. Os EUA são um dos países com a maior parcela da população encarcerada. ACLU atua nesta questão?

Anthony Romero • Muitíssimo. Em primeiro lugar, possuímos um projeto nacional de prisões, que litiga nesta área, especificamente sobre as condições de reclusão das prisões. Nós nos deparamos com todos os tipos de questões, como a ausência de tratamento médico, superlotação, violência e estupro nas prisões, falta de acesso a um bom advogado, à informação, às condições necessárias para a prática da religião, além do tratamento dado aos prisioneiros com doenças mentais. Portanto, uma das formas de lidar com os altos índices de encarceramento é tentar melhorar as condições das prisões.

Em segundo lugar, atentamos para as causas por trás destes problemas, porque não queremos tratar apenas os sintomas, sem tratar diretamente a doença. Uma das causas que está por trás da alta porcentagem da população vivendo em prisões nos EUA – considerada a mais alta do mundo, superando inclusive Rússia e China – tem sido a guerra contra as drogas. Quase dois terços de todos os presos hoje nos EUA estão presos em função de ilícitos relacionados a drogas cometidos sem violência. A minha organização defende que o uso individual de drogas não deveria ser criminalizado. Defendemos que todas as drogas deveriam ser legais: todas as drogas, da maconha a heroína. As drogas podem ser objeto de regulação pelo governo, exatamente da mesma forma que o álcool ou o tabaco são regulados, mas um problema de saúde pública como este não deveria ser criminalizado. A melhor forma de lidar com o abuso e o vício de drogas não é colocar as pessoas atrás das grades, mas sim ajudá-las a receber tratamento, considerando que se trata de um problema de saúde pública. Desenvolvemos um grande projeto de litígio que trata da guerra contra as drogas e questiona a campanha enérgica do governo contra o uso de drogas, já que entendemos que as pessoas são presas, em geral, por cometer ilícitos não-violentos relacionados às drogas; além disso, esperamos conseguir diminuir o índice de pessoas encarceradas, fazendo afinal com que este país lide com o problema das drogas a partir de uma perspectiva de saúde pública e não a partir de uma perspectiva penal.

Em terceiro lugar, nosso trabalho lida especificamente também com o cumprimento seletivo da legislação nacional, já que, devemos admitir, muitas pessoas presas representam minorias economicamente desfavorecidas; e não se trata de um acaso, nem tampouco de uma coincidência, mas sim decorre da ação da polícia que especificamente discrimina minorias raciais e étnicas e a população carente. Em alguns de nossos escritórios locais, trabalhamos especificamente com o cumprimento seletivo das leis. Atentamos para as práticas policias que discriminam minorias e pessoas economicamente desfavorecidas. Uma de nossas maiores campanhas tem sido exigir que as delegacias de polícia nos EUA registrem quais indivíduos são abordados pela polícia nas ruas ou estradas. Nos EUA ocorre um fenômeno a que chamamos “conduzindo veículo sendo negro ou pardo” [originalmente,driving while black or brown]. Se você for uma pessoa branca dirigindo na rua, é menos provável que a polícia peça para que você encoste o carro do que se você for negro ou latino. Exigimos que as delegacias de polícia colham dados sobre este tema; utilizamos inclusive a via judicial para demandar que as delegacias comecem a coletar dados sobre o perfil racial das pessoas abordadas pela polícia. Demonstramos que essas abordagens policiais concentram-se muito em motoristas pertencentes a minorias e, portanto, exigimos que a polícia capacite os seus agentes e assegure que eles não abordem apenas as pessoas nas ruas ou estradas em função de sua cor ou condição econômica desfavorecida. Combater o tratamento seletivo quanto ao cumprimento da lei é também uma forma por meio da qual garantimos que não estamos lidando apenas com os sintomas do alto índice de encarceramento, mas também com os mecanismos dão origem nos países a tal índice.

Por fim, uma última forma adotada por nós para lidar com esse alto índice de encarceramento tem sido relacionar este fenômeno com o que está ocorrendo agora com relação a minorias nas escolas em muitas de nossas cidades. Trata-se do caminho escola – prisão. Nos últimos anos, tem havido um esforço para trazer a polícia para dentro das escolas para lidar com problemas de indisciplina e violência. Isso tem funcionado como um caminho de mão dupla. A partir do momento em que há escolas falidas onde as crianças não recebem uma boa educação e os professores não estão bem preparados, elas tendem a ir da escola falida para o sistema prisional. Ao esclarecer esta conexão, por meio da pesquisa e do litígio, esperamos lidar igualmente com os altos índices de encarceramento.

Conectas • Uma última pergunta. Para você é importante que a Suprema Corte possibilite a participação de organizações da sociedade civil por meio, digamos, de “amicus curiae”? Por quê?

Anthony Romero • A Suprema Corte em nosso país e em quase todos os países de que tenho conhecimento é um dos mais significativos órgãos do governo. Elegemos o Presidente; elegemos o Congresso. Os Ministros da Suprema Corte nos EUA, por sua vez, e em muitos países, são indicados pelos chefes de governo. Uma das formas de fazer com que a Suprema Corte continue aberta à participação do público é assegurar que as organizações da sociedade civil possam apresentar casos perante a Corte, possam apresentar suas alegações na forma de amicus. A Corte deveria ser uma instituição mais transparente; não deveria estar solidamente protegida contra a revisão e o escrutínio públicos.

A ACLU atua em mais de vinte casos por ano apresentados à Suprema Corte. Participamos seja diretamente como advogados destes casos, seja por meio da apresentação de amicus. É essencial que eles ouçam as nossas visões, mesmo que possa não ser este um caso por nós conduzido e mesmo que possamos perdê-lo na Suprema Corte. Essa Corte não deveria estar isolada da sociedade em geral. Grande parte do trabalho que fazemos é conscientizar o público em geral e pressionar o Congresso para ajudar a modificar as visões, condições e os resultados finais referentes às decisões da Suprema Corte. O único exemplo que eu citaria seria Bowers v. Hardwic, um caso de 1986 no qual a Suprema Corte decidiu que dois adultos não tinham o direito de ter relações sexuais consensuais, na privacidade de seu lar, se eles fossem homossexuais. Este foi um caso que apresentamos à Suprema Corte em 1986 e perdemos. Mais recentemente, em 2004, a Corte mudou seu posicionamento. Em Lawrence v. Texas, a Corte decidiu que dois homens ou duas mulheres, consensualmente, possuem o direito à privacidade em sua casa. Esta virada, como queira, de 1986 a 2004, diz menos respeito para mim ao que mudou no pensamento dos juízes da Corte e mais com relação às mudanças ocorridas na opinião pública americana. Não seria mais viável que a Corte respaldasse daquela maneira a discriminação. A jurisprudência não evoluiu muito de 1986 a 2004, mas sim a opinião pública. Desta forma, a Corte teve que acompanhar os novos paradigmas defendidos pela opinião pública, ao invés de procurar influenciá-la. Quanto mais pudermos fazer com que a Suprema Corte americana e de todos os países se tornem mais abertas, quanto mais elas tiverem que prestar esclarecimentos sobre suas posições, mais essas Cortes estarão dispostas a tomar decisões difíceis e a defender os direitos humanos.

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Notas

1. ACLU. Anthony D. Romero. Disponível em: <http://www.aclu.org/about/staff/13279res20030205.html>. Último acesso em: 24 de out. de 2008..

2.ACLU. About us [Quem somos]. Disponível em: <http://www.aclu.org/about/index.html>.
Último aceso em: 24 de out. de 2008.

3. O Senador Obama foi eleito para a presidência em novembro de 2008.

Anthony Romero

Anthony Romero ocupa o cargo de Diretor Executivo da American Civil Liberties Union (ACLU) desde 2001 e “vem presidindo a ACLU no momento de maior expansão no número de membros da história da organização”. Desde o início do seu mandato, a organização “dobrou sua equipe nacional e triplicou o seu orçamento”.1 Fundada em 1920, a ACLU atua principalmente na proteção da liberdade de expressão, associação e reunião, liberdade de imprensa, liberdade de religião, igualdade perante a lei, direito ao devido processo e direito à privacidade. Atualmente, a ACLU conta com mais de quinhentos mil membros e litiga em seis mil casos judiciais por ano.2 Nesta entrevista, Romero discute a relação entre a ACLU e o movimento de direitos humanos.

Original em inglês. Traduzido por Thiago Amparo.