Ensaios

Violências sexuais nas ditaduras da AL: quem quer saber?11. Este artigo desenvolve as ideias principais apresentadas na mesa-redonda “Arquivos e crimes sexuais”, promovida pela Rede Latino-americana de Justiça de Transição, ocorrida na Universidade de Brasília (UnB) em 23 de agosto de 2016.

Mariana Joffily

Porque os relatos de abusos cometidos contra presas políticas na região só agora estão sendo ouvidos

Fotos GOVBA

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RESUMO

Por que as violências sexuais, sobretudo contra as mulheres, perpetradas durante as ditaduras militares latino-americanas ocorridas entre as décadas de 1960 e 1980, não foram um tema debatido logo na transição para a democracia e apenas nos últimos anos vêm sendo objeto de uma reflexão mais aprofundada, de uma escuta mais atenta? Este artigo pretende sistematizar elementos de resposta a essa questão, refletindo sobre as particularidades do crime sexual, os contornos que a memória sobre a violência política assumiu ao longo do tempo e as transformações das concepções de organismos internacionais e da Justiça dos países latino-americanos a respeito da violência de gênero. Conclui que um espaço de escuta para essa modalidade de crime somente pôde se constituir após uma série de conquistas sociais e jurídicas pela igualdade de gênero e argumenta que, embora o caminho percorrido seja apreciável, ainda há muito o que avançar para dar visibilidade a violências que acometem preferencialmente as mulheres.

Palavras-Chave

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 Volto a repetir, me estupraram desde a concepção do terrorismo de Estado.22. Testemunho de C.G. apud Claudia Bacci et al., …Y nadie quería saber. Relatos sobre violencia contra las mujeres en el terrorismo de Estado en Argentina (Buenos Aires: Memoria Abierta, 2012), 86.

Brasil, campanha eleitoral de 2016. Candidata a vereadora pela cidade de São Paulo por um partido de esquerda, uma funcionária pública de 26 anos relata a uma colunista do jornal Folha de S.Paulo ter ouvido que merecia ser estuprada e torturada: “Disseram que o coronel [Carlos Brilhante] Ustra torturou quem mereceu, como as feministas”.33. Mônica Bergamo, “‘Feministas merecem tortura’, ouve candidata à Câmara Municipal em SP.” Folha de S.Paulo, 2 out. 2016, acesso em 2 out. 2016, http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2016/10/1818623-feministas-merecem-tortura-ouve-candidata-a-camara-municipal-em-sp.shtml. O tenente-coronel Ustra foi chefe do Destacamento de Operações de Informações, um dos principais centros de tortura de São Paulo durante a ditadura militar brasileira. Essa fala brutal, proferida com naturalidade em uma situação ordinária de campanha eleitoral, condensa os componentes da discussão que este artigo se propõe a desenvolver: a associação entre tortura política e crime sexual; o estupro como arma de combate político em seu sentido mais amplo – usada contra militantes de causas sociais e igualdade de gênero –; a noção de colocar a mulher “em seu lugar” por meio da violência sexual; a permanência, a despeito de todo o caminho percorrido pela luta feminista, de representações que refletem o que havia de mais conservador nas ditaduras militares latino-americanas dos anos de 1960 a 1980. Esses elementos servem ao nosso propósito de tentar responder à questão formulada pelas autoras do livro “…Y nadie quería saber” (“…E ninguém queria saber”): Por que levou tanto tempo para que se pudesse ouvir, no sentido forte do termo, dentro da esfera pública, os relatos das mulheres que sofreram crimes sexuais durante as ditaduras militares?44. Bacci et al., …y nadie quería saber, 16. Propõe-se, contudo, uma inversão dos termos: O que mudou nos últimos anos para que esses relatos possam ser socialmente escutados?

Violência sexual: uma categoria particular na repressão política

Na violência sexual55. Por violência sexual, para efeitos deste artigo, entende-se agressões verbais de cunho obsceno, violações, abusos sexuais e práticas referentes à gravidez das mulheres. aplicada durante as ditaduras militares cruzaram-se a especificidade histórica da repressão política, voltada contra militantes de esquerda que, no contexto da Guerra Fria, propunham uma solução revolucionária aos graves problemas enfrentados por países da América Latina, e a larga duração da desigualdade de gênero. Em razão desse segundo fator, a violência sexual tendeu a ficar obnubilada, particularmente em casos como o da Guatemala, que viveu um enfrentamento armado de 1962 a 1996, e no qual a violência de gênero combinou-se com outra forma de violência de longa duração: o racismo contra as populações indígenas: “O racismo desempenhou um papel de fundamental importância nas formas adotadas pela violência de gênero contra as mulheres maias.”66. Ana González, “Guatemala: violencia de género, genocidio y racismo,” in Violencia de género en contextos de represión politica y conflictos armados, org. María Sonderéguer (Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2012): 55.

Se na Guatemala o caráter massivo da violência sexual como estratégia de repressão e os testemunhos permitem inferir que os soldados recebiam ordens de seus superiores para violar as mulheres, no Cone Sul levou-se décadas até que a noção da prática sistemática de violência sexual – sobretudo contra as mulheres – fosse evidenciada.

Ieda Akselrud de Seixas, presa e torturada em um órgão repressivo no Rio de Janeiro, contou à Comissão Nacional da Verdade do Brasil: “Eu sofri abuso sexual dentro do banheiro. Todo mundo já sabe. Eu posso contar essa história porque há depoimentos e depoimentos. Mas eu levei muito tempo para me tocar que aquilo era abuso sexual, sabe por quê? Eu minimizava aquele episódio porque, afinal, não era pau de arara, não era choque e não era cadeira do dragão. É muito louco isso! É muito louco!”.77. Comissão Nacional da Verdade, Relatório final da Comissão Nacional da Verdade (Brasília: Presidência da República, 2014): capítulo 10, 418-9. Na fala dessa ex-presa política, distinguem-se dois pontos importantes. Primeiro, que ela, na época, avaliou a violência que a atingiu como secundária, em comparação a outras violências. E por que ela a considerou secundária? Porque a violência de gênero, como a doméstica, é naturalizada. No livro “…E ninguém queria saber”, as autoras expressam essa tendência por uma fórmula comumente empregada por argentinas que passaram por centros clandestinos de detenção: “…e também me estupraram”, como uma espécie de adendo a outras violências sofridas.88. Bacci et al., …y nadie quería saber, 21.

O segundo ponto depreende-se da interjeição repetida “É muito louco!”. É uma hipótese plausível a de que o elemento do qual ela não se deu conta não foi o caráter sexual do abuso, mas sim o fato de que essa forma de violência constituía uma categoria à parte. Justamente, essa é uma das mudanças dignas de nota, ausente na época e necessária para que esse aspecto da violência política recebesse uma escuta por parte da sociedade: o reconhecimento da especificidade e da autonomia da violência sexual como delito.

Enquanto a tortura foi investida de um significado político que, a despeito de tudo, dignificava a vítima, o crime sexual confundia as fronteiras entre o público e o privado. Não parece fora de lugar supor que o raciocínio de muitas das mulheres afetadas foi o de que naquelas circunstâncias, sendo homens, os repressores “aproveitariam” para abusar delas, até porque, como afirma Olívia Rangel Joffily “no embate concreto com o poder instituído, as militantes de esquerda defrontaram-se com as representações dominantes mais arraigadas das desigualdades entre as categorias de sexo, reproduzidas, na grande maioria das vezes, pelo discurso e pela prática masculina dos agentes de segurança”.99. Olívia Rangel Joffily, A esperança equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil (Florianópolis: Insular, 2016): 130.

Não cabe, evidentemente, estabelecer uma hierarquia entre as diferentes formas de violência, mas há que reconhecer que esse tipo de delito incide particularmente sobre a intimidade da pessoa atingida. Do ponto de vista do enquadramento social, os abusos sexuais, na maior parte das vezes, foram tomados subjetivamente como um elemento privado e não como parte da violência do Estado, o que isolou, em seu sofrimento, as presas políticas que deles padeceram.1010. Faço uso neste artigo do plural feminino por serem as mulheres os alvos preferenciais da violência sexual. Por não desconsiderar que homens também foram alvo dessa modalidade de delito, incluo-os nesse plural generalizante. A surpresa que nos revela Ieda Akselrud de Seixas é a de não ter se dado conta, no momento dos acontecimentos, de que o que vivera era de ordem política, e não individual.

Um dos grandes problemas do delito sexual reside no fato de a suspeita também recair sobre a pessoa afetada. Se os sobreviventes de situações extremas carregaram a culpa por não terem vivido o mesmo destino de seus companheiros mortos ou desaparecidos, quem sofreu violência sexual teve dificuldade de subtrair-se de um sentimento de responsabilidade pela experiência traumática, o que tendeu a isolá-las no âmbito do privado e da vergonha. A jornalista Miriam Lewin, que viveu o cativeiro em um dos mais célebres centros clandestinos de detenção na Argentina, sob constante ameaça de morte, relata como a incompreensão social sobre a condição das presas políticas dificultou que elas pudessem politizar os abusos que sofreram:

O peso dessa provável condenação [social] teve efeito entre nós, as presas desaparecidas, que guardamos silêncio por muito tempo. Nem sequer podíamos falar do assunto abertamente entre nós, porque não compreendíamos o que tinha acontecido, nem depois nem durante nosso cativeiro. Nós ainda não discerníamos o que houve, e por isso não conseguimos explicar adequadamente. Não entendíamos que nesse contexto não havia nenhuma possibilidade de exercício de uma sexualidade livre, sem condicionamento ou coerção. Ainda hoje ouvimos uma voz, interna ou externa, que nos diz que havia escolha, que existia margem para resistência ou consentimento dentro do campo; que havia opção, que não éramos presas indefesas de nossos algozes no âmbito de um sistema de terror, dentro de uma sociedade em que o poder era detido pelos homens. E onde, além disso, nossos pares, homens e mulheres, tanto na prisão como fora dela, no país e no exílio, certamente nos qualificariam como prostitutas e traidoras se falássemos.1111. Miriam Lewin e Olga Wornat, Putas y guerrilleras (Buenos Aires, Planeta, 2014): 21-2. Mírian Lewin refere-se à condição de escravas sexuais que as mulheres viveram na Escola Mecânica Armada (ESMA), submetidas aos comandantes militares.

Ao evocar a incompreensão e provável condenação moral dos próprios companheiros de luta, Lewin ilumina um aspecto particular do abuso sexual: trata-se de um tipo de violência que estabelece a vergonha do lado da pessoa violada, como se houvesse algum grau de participação da vítima e de algum modo ela ficasse contaminada pela ignomínia do ato.1212. No Brasil, país no qual, segundo dados oficiais, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em 2014 revelou que 65,1% dos entrevistados acreditavam que as mulheres que mostram o corpo “merecem ser atacadas”. Em 2016, outra sondagem, realizada pelo Datafolha sob encomenda do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, atestou que 37% dos entrevistados – entre os quais, 30% mulheres – concordou com a frase “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Fernanda Mena, “Um terço dos brasileiros culpa mulheres por estupros sofridos,” Folha de S.Paulo, 21 set. 2016.

Os diversos relatos contidos nos “Nunca Mais”, descrevendo práticas de violação sexual na frente de companheiros, pais e filhos, mostra ainda que a prática tem por efeito uma infâmia, humilhação que se expande para o núcleo familiar, sem mencionar os terríveis efeitos de uma gravidez indesejada. Na Guatemala, “algumas consequências da violência sexual, registradas nos testemunhos para CEH [Comissão para o Esclarecimento Histórico], foram: a ruptura de laços conjugais, o abandono da comunidade pelas mulheres estupradas, ’o isolamento social e vergonha comunitária’, os abortos, o filicídio.”1313. González, “Guatemala”, 59. Desse modo, o silêncio ou a brevidade na referência às violências sexuais também se deveu ao esforço de poupar os familiares do conhecimento público de uma desonra que afetava a todos.

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Transição para a democracia: a hierarquia das urgências

Além de um espaço social de escuta pouco afeito ao tema dos abusos sexuais, as transições democráticas – momentos de tensão e de repactuação social – levaram os sobreviventes e ex-presos políticos a impor-se uma agenda de denúncia das mortes e desaparecimentos de seus companheiros. O foco das primeiras comissões da verdade esteve, portanto, voltado para esse núcleo de vítimas. Na Argentina, o célebre Julgamento das Juntas concentrou-se em provar a responsabilidade do Estado e o caráter sistemático do desaparecimento forçado de milhares de cidadãos. Não foi senão a partir de 1995, com os Juicios por la Verdad, resposta de setores da sociedade civil às leis de indulto do presidente Carlos Menem, que as sobreviventes começaram a tomar a palavra para relatar suas experiências pessoais.

No Peru, as mulheres denunciaram o que ocorrera a seus companheiros e filhos e não a si mesmas: “Este silêncio – como se pode imaginar – foi ainda pior nos caso de violência sexual, em que a vergonha, o medo do estigma e o sentimento de culpa dificultaram a narrativa”.1414. Julissa Mantilla Falcón, “La violencia contra las mujeres y la Comisión de la Verdad y Reconciliación del Perú”, in Violencia de género en contextos de represión politica y conflictos armados, org. María Sonderéguer (Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2012): 65. A atitude tinha origem na posição de gênero por elas ocupada na sociedade peruana e na concepção compartilhada sobre seu papel social: “Os abusos sexuais, humilhações e outras agressões aos quais foram expostas nessas buscas não foram reconhecidos por essas mulheres como fatos a serem denunciados, mas como consequências de algo que deviam fazer, isto é, de sua obrigação como mães e esposas”.1515. Ibid., 66. Foi necessário adotar uma estratégia explícita de incorporação do olhar de gênero para possibilitar a fala sobre esse tipo de violência, conforme o próprio relatório da Comisión de Verdad y Reconciliación: “[…] foi fundamental reconhecer os efeitos que a violência política teve em homens e mulheres peruanos, compreendendo a maneira diferenciada pela qual seus direitos humanos foram afetados durante o período […]”.1616. Comisión de Verdad y Reconciliación, apud Falcón, “La violencia contra las mujeres y la Comisión de la Verdad y Reconciliación del Perú”, 66.

Isso não significa que a violência sexual tenha estado de todo silenciada. Os relatórios conhecidos como “Nunca más”, produzidos pelas comissões da verdade oficiais, da Argentina e do Chile, ou por organizações da sociedade civil, no Brasil e Uruguai, referiram-se às violências sexuais sofridas durantes as ditaduras, sem, contudo, atribuir-lhe uma dimensão à parte ou o espaço que seu caráter reiterado exigiria. Além disso, houve evidente subnotificação. No relatório brasileiro, por exemplo, que abarcou tanto as vítimas fatais (mortos e desaparecidos), como as torturas sofridas em instalações do Estado, as violências sexuais correspondem a 1% das denúncias femininas.1717. Mariana Joffily, “Memória, gênero e repressão política no Cone Sul,” Tempo e Argumento 2, no. 1 (jan./jun., 2010): 111-35. O relatório da Comisión Nacional Sobre Prisión Política y Tortura do Chile, conhecido como Informe Valech, entregue em dezembro de 2004, dá sinais de uma mudança em curso nas reflexões que apresenta sobre o crime sexual:

O estupro é uma experiência traumática que afeta principalmente a vida sexual. Também tem consequências físicas e emocionais imediatas por uma possível gravidez ou até mesmo uma doença sexual. […] A tortura, em todos os casos, destrói a confiança em outros seres humanos, mas no caso da tortura sexual sob essas circunstâncias, afeta as relações afetivas mais íntimas e próximas tanto da própria sexualidade como da maternidade.1818. Comisión Nacional Sobre Prisión Política y Tortura, Informe (Santiago: Ministerio del Interior de Chile, 2004): 252.

Entretanto, tampouco tratou do tema de maneira individualizada:

As entrevistas realizadas por esta Comissão não fizeram perguntas específicas sobre violência sexual contra ex-presas. As situações que são registradas foram mencionadas espontaneamente pelas declarantes. É preciso notar que, para muitas mulheres, é difícil falar sobre a violação sexual e muitas vezes elas preferem não fazer isso.1919. Ibid.

Para Hillary Hiner, o salto que se deu entre o Informe Rettig, produzido pela Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación em 1991, e o Informe Valech, entregue mais de uma década depois, em termos da incorporação de “alguma análise de gênero”, deve-se a três fatores. Em primeiro lugar, a Comisión de Verdade y Reconciliación era mais conservadora. Em segundo, houve uma grande mudança entre 1990 e 2003 em termos dos debates internacionais em torno da violência de gênero – as conferências internacionais de Viena, em 1993, e de Beijing, em 1995, e a Convenção de Belém do Pará, com o intuito de pôr um termo à violência contra a mulher – o que teria contribuído para aumentar a conscientização sobre o tema. E, finalmente, a incorporação de críticas contra as ausências do Informe Rettig, algumas formuladas por grupos feministas.2020. Hillary Hiner, “Voces soterradas, violencias ignoradas. Discurso, violencia política y género en los Informes Rettig y Valech,” Latin American Research Review 44, no. 3 (2009): 65.

No caso brasileiro, não ocorreu a judicialização da transição política, como na Argentina, nem foi constituída uma comissão oficial como a Valech no Chile, de modo que os espaços públicos de escuta para a violência ditatorial contra as mulheres, até muito recentemente, praticamente se resumiram ao “Brasil: Nunca mais”. Relatos de sevícias sexuais foram descritos em depoimentos como os reunidos na publicação “Luta, substantivo feminino”,2121. A publicação é parte do relatório Direito à memória e à verdade, promovido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos em 2007. Tatiana Merlino e Igor Ojeda (orgs.), Luta, substantivo feminino. Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura (São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010). porém, a violência sexual não recebeu atenção diferenciada em nenhum espaço.

Nos países citados, a despeito do silêncio de muitas mulheres sobre as sevícias sexuais sofridas durante as ditaduras militares, pela dificuldade em mencionar um tema encoberto pelo tabu e em atribuir um sentido social mais geral a um sofrimento individual, a violência sexual esteve presente em inúmeros depoimentos. Portanto, menos do que ausente, foi invisibilizado por não ter sido socialmente identificado como um tema digno de interesse particular em seus contornos específicos. “…E ninguém queria saber”, concluíram as autoras argentinas.

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Uma nova dimensão para os delitos sexuais

As últimas três décadas testemunharam transformações expressivas na percepção social sobre a violência sexual. Além dos marcos citados por Hiner, a ressignificação da violência contra a mulher e, em particular, do crime sexual no direito civil, fruto de anos de luta do movimento feminista, aliada a uma nova reflexão sobre o lugar da mulher na sociedade, trazida ao debate público com o desenvolvimento dos estudos de gênero, contribuíram para a criação de um espaço social de escuta capaz de acolher as denúncias dos abusos sofridos durante as ditaduras militares sob uma nova chave de compreensão.

No Brasil, além da criação das delegacias da mulher para atender especificamente casos de violência contra esse segmento, a Lei Maria da Penha, um marco da legislação sobre a matéria, institui que a família, a sociedade e o poder público são responsáveis pela integridade física e psicológica da mulher.2222. Lei no 11.340, de 7 ago. 2006. Na Argentina, a tipificação do crime sexual, que até 1985 era de “delito contra a honestidade”, passou para “delito contra a integridade sexual” e, mais recentemente, para “delito contra a liberdade sexual”, o que demonstra uma clara mudança na percepção do papel social das mulheres.2323. Lewin e Wornat, Putas y guerrilleras, 344. Essas conquistas deram corpo a uma das principais divisas do movimento feminista, “o privado é público”, reconfigurando a violência de gênero como um problema social.

No campo internacional, os anos de 1990 foram cruciais para uma nova compreensão sobre o estatuto das mulheres e as particularidades das violências a elas dirigidas. A Declaração de Viena, de 1993, estabeleceu um marco ao enfatizar que os direitos das mulheres são direitos humanos e exigir punição aos responsáveis por crimes tais como violações sistemáticas de mulheres em situações de conflito.2424. José Augusto Lindgren Alves, “Direitos humanos: o significado político da conferência de Viena,” Lua Nova, no. 32 (São Paulo, abr. 1994): 175. A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, proclamada pelas Nações Unidas no mesmo ano, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994, conhecida como Convenção de Belém do Pará, não apenas ajudaram a estabelecer novas bases para o entendimento da violência sexual como também criaram uma normativa internacional para tratar da matéria.

Outro fator que contribuiu para transformar a percepção social sobre o crime sexual foi o uso de violações sexuais como arma massiva de guerra contra populações dominadas, o que ocorreu durante os genocídios perpetrados contra mulheres muçulmanas na Bósnia-Herzegovina, em 1992, e contra os Tutsi em Ruanda, em 1994. Os tribunais penais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda deram uma resposta jurídica a essa modalidade de violência contra a mulher, interpretando a violação como crime de lesa humanidade quando cometida em um contexto de conflito armado e dirigida contra uma população civil. O Estatuto da Corte Penal Internacional, conhecido como Estatuto de Roma, de 1998, qualificou ainda como crimes contra a humanidade uma outra série de delitos envolvendo a violência contra as mulheres – como agressão sexual, escravidão sexual, prostituição, gravidez forçada, aborto forçado –, passíveis, portanto, de serem julgados perante o Tribunal Penal Internacional.2525. Falcón, “La violencia contra las mujeres y la Comisión de la Verdad y Reconciliación del Perú”, 73-4. Para um apanhado mais abrangente sobre a jurisprudência na área, ver Florencia Corradi e Julia Nesrpias, “La dimensión sexual del genocidio. Pensando la violencia sexual a partir de la mega causa ESMA,” Tela de juicio 1 (2015): 68-70. A década de 1990 foi, como se vê, fundamental para que a violência sexual deixasse de ser tratada como um “efeito colateral” e passasse a ser apreciada como uma modalidade em si, autônoma em relação a outras formas de violência.2626. Conforme afirmação da representante das Nações Unidas para Violência Sexual em Conflito, Zainab Hawa Bangura: “Sexual violence in conflict needs to be treated as the war crime that it is; it can no longer be treated as an unfortunate collateral damage of war”, apud “Background information on sexual violence used as a tool of war,” United Nations, 29 mar. 2012, acesso em 3 out. 2016, http://www.un.org/en/preventgenocide/rwanda/about/bgsexualviolence.shtml.

Na América Latina, foi na Guatemala que a ditadura militar assumiu proporções de genocídio étnico, com o emprego da violência sexual em larga escala, fundindo em uma mesma equação a imposição de um projeto político de exclusão social nos marcos da Guerra Fria e do projeto neoliberal, com a violência secular contra as populações indígenas.

As violações sexuais individuais e seletivas foram uma prática comum nos contextos de prisão e tortura, e eram geralmente seguidas pelo desaparecimento ou morte da vítima. Esse tipo de padrão repressivo era compartilhado tanto por mulheres indígenas como ladinas [não-indígenas], e foram executadas por diferentes organismos do Estado: exército, polícia nacional, polícia judiciária, etc. E também por agentes não estatais, mas protegidos pelo Estado, como os esquadrões da morte, grupos paramilitares e milícias.2727. González, “Guatemala”, 53-4.

O emprego de violência sexual massiva e a nova legislação internacional voltada contra crimes sexuais atraíram a atenção para contextos em que as ocorrências de violência sexual eram, até então, tratadas como casos isolados – situação do Brasil, da Argentina, do Chile, do Uruguai e do Peru. Nesses países, iniciou-se um esforço no sentido de comprovar o caráter repetido da violência sexual praticada como instrumento de poder dentro das dependências repressivas controladas pelo Estado ou por agentes do Estado contra oponentes políticos, em especial contra as mulheres.

No mesmo ano em que saía a público o relatório Valech, os resultados de uma pesquisa realizada no Chile concluía que a tortura sexual havia sido praticada em todo o território nacional, em praticamente todos os locais de detenção política e praticado pela maioria dos agentes repressivos.2828. Joffily, “Memória, gênero e repressão política no Cone Sul”, 123.

É difícil saber se a sistematicidade foi fruto de ordens superiores ou de um contexto que tornava a violência sexual uma possibilidade ao alcance das mãos, uma vez que as prisioneiras políticas estavam isoladas, física e psicologicamente alquebradas, vulneráveis e expostas ao poder dos agentes repressivos, aliado a uma política das altas hierarquias de não punir essas práticas. As condições propícias podem ter sido o dispositivo da maioria dos casos, mas houve também situações em que os agentes foram instruídos por seus superiores a manterem relações com as prisioneiras, como ocorreu na ESMA, na Argentina:

Nos campos de concentração da Marinha, a subjugação sexual das mulheres era um sintoma de “recuperação”. Deixar de desejar intimidade somente com seus companheiros, com quem tinham afinidade ideológica, valores semelhantes e um compromisso com a militância política e até mesmo com a luta armada, para acessar uma “relação” ou um contato físico sexual com oficiais da força-tarefa implicava uma “recuperação” de valores ocidentais e cristãos.2929. Lewin e Wornat, Putas y guerrilleras, 339.

Seja como arma de subjugação do inimigo pela violação das mulheres, seja como instrumento de “conversão” do oponente por meio do estabelecimento de relações forçadas, o delito sexual estabeleceu-se como uma estratégia específica de submissão, por seu efeito de aviltar a vítima, provocando um alto impacto subjetivo. O delito sexual, ainda que cometido em contexto de luta política, incidia sobre o âmago da pessoa, buscando afetar a oponente política não no terreno das convicções, mas em seu núcleo moral íntimo. Na Argentina, a consciência sobre essa especificidade surgiu nos anos 2000, quando os processos judiciais contra repressores puderam ser reabertos, após as leis de Ponto Final e de Obediência Devida terem sido consideradas inconstitucionais. No final da década, os processos contra repressores começaram a incluir, de forma autônoma, a violência de gênero, o que levou o Tribunal Oral Federal de Mar del Plata, em junho de 2010, a condenar o suboficial Gregorio Molina por violações reiteradas cometidas no centro clandestino de detenção La Cueva, que operou na Base Aérea Mar del Plata, tornando-o o primeiro repressor condenado por delitos sexuais tipificados como crime de lesa humanidade na Argentina.

Os avanços conquistados nas últimas três décadas abriram a oportunidade de ressignificar o caráter íntimo, privado e pessoal da experiência traumática da violência sexual e inscrevê-lo em uma esfera política e coletiva – seja de uma ditadura militar, de uma guerra étnica, ou de um regime de opressão racial. Essas importantes mudanças sociais deram espaço para a conformação de outro nível de elaboração, uma possibilidade de reconstrução de sentido sobre o que passou, que politiza o abuso sexual perpetrado nos órgãos repressivos e nas prisões políticas e empodera as pessoas que dele sofreram para que contem o que viveram e denunciem a violência sexual em tribunais, em comissões da verdade – que em número crescente incorporam questões de gênero – e reflitam sobre seus efeitos em livros e entrevistas públicas. Mais recentemente uma nova onda feminista está em curso na América Latina, da qual alguns exemplos são a discussão sobre assédios e cantadas na rua, no bojo da qual comportamentos masculinos antes naturalizados são rejeitados pelas mulheres, a Marcha das Vadias e a campanha “Nem uma a menos”, que denuncia o feminicídio.

04

Um caminho a percorrer…

A importância de julgamentos específicos envolvendo violências sexuais dificilmente pode ser minimizada, por contribuir para remover o estigma das mulheres afetadas pela violência sexual, seja em contexto de conflito político, de violência doméstica ou de estupro, e por sinalizar para a sociedade a gravidade dessa natureza de delito. Porém, mesmo na Argentina, que está na vanguarda do processo de reconhecimento do crime sexual como delito autônomo, há ainda uma série de obstáculos a vencer, entre os quais a resistência de operadores de direito. A advogada Ana Oberlin, ao abordar a resistência a atribuir à palavra das mulheres que sofreram violência sexual o mesmo estatuto concedido às vítimas de tortura, explica que “O que nos resta cada vez mais claro é que as dificuldades têm muito mais a ver com uma questão de concepção ideológica em relação ao que são os crimes e as práticas diferenciais em relação às mulheres do que com questões técnicas [jurídicas] insuperáveis”.3030. Bacci et al., …y nadie quería saber, 23.

A transformação dos marcos judiciais internacionais em matéria de violência sexual, ainda que seja crucial para um novo entendimento sobre delitos dessa natureza, está longe de ser suficiente para que o tema tenha um tratamento efetivo em todos os países afetados. Prova disso é a variedade dos enfoques sobre as especificidades de gênero da violência política por parte das comissões da verdade latino-americanas mais recentes, que alternam entre levar a abordagem a todos os grupos de trabalho temáticos ou individualizá-los com o estabelecimento de um grupo de trabalho exclusivo de gênero.

A recente Comissão Nacional da Verdade brasileira, por exemplo, cujo informe final foi entregue em 2014, criou um grupo de trabalho denominado “Ditadura e gênero”, que recolheu depoimentos denunciando abusos e crimes sexuais. Realizou ainda uma audiência temática, em parceria com a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, em março de 2013. No informe final, dedicou um capítulo à questão de gênero, concentrando os depoimentos e análises a respeito da violência cometida contra as mulheres e discutindo em particular “a violência sexual de gênero como instrumento de poder”, bem como “a preponderância da violência sexual” na repressão às mulheres.3131. Comissão Nacional da Verdade, Relatório final da Comissão Nacional da Verdade (Brasília: Presidência da República, 2014): cap. 10. Vale mencionar que, em pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Paula Franco constatou que, entre as 24 comissões/comitês estaduais da verdade – fenômeno particular brasileiro –, da cinco que entregaram seu relatório final, quatro incorporaram a discussão de gênero de alguma maneira (agradeço à Paula Franco por esta informação.)

O Peru trouxe uma contribuição inovadora ao “ter sempre em conta a forma diferente em que a violência foi vivida e seguia sendo vivida por homens e mulheres”.3232. Falcón, “La violencia contra las mujeres y la Comisión de la Verdad y Reconciliación del Perú”, 67. Partindo de uma visão mais abrangente da questão de gênero, incorporou às sedes regionais da comissão um membro responsável por introduzir esse viés em cada setor de trabalho. O esforço ocorreu no sentido de que a população peruana compreendesse que “a violência sexual não era um dano colateral, ou algo ‘normal’ durante os conflitos armados, mas constituía uma violação de direitos humanos e, como tal, deveria figurar entre os casos a serem encaminhados ao Ministério Público”.3333. Ibid., 68.

A violência sexual segue sendo um problema maior nas sociedades latino-americanas, sobretudo em países com altas taxas de desigualdade social e econômica. Esse tipo de violência inscreve-se em uma longa duração, porém, é preciso reconhecer que as ditaduras militares foram um capítulo significativo dessa trajetória:

Hoje, a Guatemala é afetada por uma onda de feminicídios, que não são simples atos criminosos; há uma clara conotação de gênero e uma grande ausência de garantias de proteção aos direitos das mulheres por parte dos Estado. Muitos dos corpos das mulheres aparecem com mutilações e torturas aberrantes, como reminiscências do modus operandi militarizado do conflito armado interno.3434. González, “Guatemala”, 61.

O comentário ouvido pela candidata a vereadora no Brasil que abriu este artigo demonstra que as concepções de gênero defendidas pelos regimes autoritários não estão superadas e seguem habitando o imaginário de setores conservadores.

Se transformações sociais recentes criaram condições para que as mulheres se empoderassem e relatassem as violências sexuais de que padeceram e para que esses relatos fossem efetivamente escutados – inclusive com consequências judiciais para os agressores –, há setores que permanecem apartados dos espaços de escuta social. É o caso das mulheres que tiveram filhos de repressores por quem foram violentadas. Ou dos homens que sofreram violência sexual – não em termos de choques ou ferimentos em órgãos sexuais, escolhidos por sua extrema sensibilidade, mas no sentido próprio de abuso.

Os homens que foram sexualmente abusados têm sido frequentemente mencionados na literatura recente sobre violência sexual durante as ditaduras militares, porém seguem sem voz ou sem lugar social para dar significado a uma experiência que confronta a honra viril de que se reveste o ideal do militante político. Exemplo sensível é o documentário uruguaio “Diga a Mario que Não Volte”, do cineasta Mario Handler, realizado no Uruguai em 2007. Nesse filme, um dos ex-presos políticos relata, em duas ocasiões diferentes, ter sido forçado a fazer sexo oral em um repressor. Seu relato, no documentário, fica solto, como uma garrafa lançada ao mar. Na hierarquia das urgências, é compreensível que as atenções no que se refere à violência sexual tenham-se voltado para as mulheres, majoritariamente afetadas por essa violência e que seguem vivendo em sociedades nas quais a desigualdade de gênero é um fenômeno palpável. Porém, temos de seguir avançando e investigando outros terrenos desprovidos de escuta social. Há que se ampliar e sensibilizar nossa escuta para os silêncios que se querem fazer ouvir.

Mariana Joffily - Brasil

Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), é autora do livro “No centro da engrenagem. Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo”, publicado pelo Arquivo Nacional (Prêmio Memórias Reveladas) e pela Edusp em 2013. Concluiu um pós-doutorado na UFSC em 2009 sobre gênero e repressão política das ditaduras militares do Cone Sul, tendo sido uma das organizadoras do I Colóquio Internacional Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul, promovido pela UFSC no mesmo ano. Realizou um pós-doc na Universidade de Brown, EUA, em 2016, sobre a política externa dos Estados Unidos em relação às ditaduras militares do Cone Sul.

Recebido em outubro 2016.

Original em português.