Sur 23 – Carta aos Leitores

 

Oliver Hudson

Editor de Operações

Deisy Ventura

Editora Convidada do Dossiê SUR

Dossiê SUR sobre Migração e Direitos Humanos

Uma das principais razões pelas quais a SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos mudou para seu novo formato, após a publicação de sua vigésima edição comemorativa, foi para garantir que a revista seja sempre um fórum relevante para a discussão de questões contemporâneas de direitos humanos. Esta edição do Dossiê SUR, que discute Migração e Direitos Humanos, não poderia ser mais pertinente.

‪Durante a preparação desta edição da Revista SUR, o tema da migração esteve constantemente no noticiário. A violência, por exemplo, na Síria, no Iraque e no Afeganistão e a extrema pobreza e os governos repressivos da África Subsaariana continuam gerando grandes fluxos de refugiados e migrantes. Nos primeiros seis meses de 2016, aproximadamente 2.800 pessoas já haviam morrido no Mediterrâneo, em comparação com as 3.771 mortes em 2015, o que sugere que 2016 será o ano mais letal já registrado naquela região.11. Para mais informações ver: “IOM Counts 3,771 Migrant Fatalities in Mediterranean in 2015,” Organização Internacional para as Migrações, 5 jan. 2016, acesso em 6 jul. 2016, http://www.iom.int/news/iom-counts-3771-migrant-fatalities-mediterranean-2015 ; e “Tracking Deaths Along Migratory Routes Worldwide,” Missing Migrants Project, 2016, acesso em 6 jul. 2016, http://missingmigrants.iom.int/ O sentimento anti-imigrantista está em alta na Europa. Por exemplo, após o recente referendo sobre a participação do Reino Unido na União Europeia, que contou com uma campanha baixa e divisionista que reforçou a concepção de que a imigração é uma ameaça para o país, vídeos com insultos racistas encheram as mídias sociais, ao mesmo tempo em que relatos de crimes de ódio aumentaram 57%. Enquanto isso, há um impasse no Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a legalidade das ações executivas decretadas pelo Presidente Obama que estabelecem ações diferidas contra a deportação de imigrantes irregulares, o que deixa milhares de imigrantes em um limbo jurídico.22. Para mais informações ver: “579 U. S. _ (2016),” Corte Suprema dos Estados Unidos, 2016, acesso em 6 jul. 2016, http://www.supremecourt.gov/opinions/15pdf/15-674_jhlo.pdf Na América Latina, ainda é incerto o impacto das graves crises políticas e econômicas atualmente vivenciadas por diversos países sobre os fluxos migratórios internacionais. Infelizmente, há o justificado temor de que migrantes e refugiados sejam duplamente atingidos: além dos retrocessos no campo dos direitos humanos em curso em diversos Estados, há também ausência ou déficit de implementação de leis nacionais que equiparem seus direitos aos dos nacionais. Paradoxalmente, no Brasil, a cidade de São Paulo, importante polo das migrações internacionais na América Latina, adotou uma lei que institui a Política Municipal para a População Imigrante,33. Para mais informações ver: “Projeto de Lei 01-00142/2016 do Executivo,” Câmara Municipal de São Paulo, 2016, acesso em 6 jul. 2016, http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/PL%20142_2016_Pt(1).pdf poucos dias antes de sediar o VII Fórum Social Mundial das Migrações.44. Para mais informações ver: “VII Fórum Social Mundial das Migrações,” FSMM 2016, 2016, acesso em 6 jul. 2016, http://fsmm2016.org/ Porém, a implementação dessa política enfrentará sérios obstáculos em uma megalópole marcada por extremas desigualdades, sobretudo em um país onde ainda vige a legislação federal sobre migrações que data do período do regime militar.55. Para mais informações ver: “Lei nº 6.815, de 19 de Agosto de 1980,” Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 1980, acesso em 6 jul. 2016, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm

A tendência é clara e preocupante e se trata do fato que as populações migrantes são vistas como um problema de segurança tratado com cada vez menos respeito pelos seus direitos fundamentais e tampouco com qualquer tentativa de compreender as complexidades por trás da decisão de migrar.

O Dossiê SUR sobre Migração e Direitos Humanos busca abordar essa tendência com a modesta esperança de que, por meio da reunião de um grupo de especialistas da academia, organizações internacionais e sociedade civil, nós possamos contribuir para redefinir esse preocupante desequilíbrio que está ocorrendo nas ruas e nos corredores de poder em todo o mundo.

‪O Dossiê SUR começa fazendo a pergunta “quem está migrando, para onde e por quê?”. Para responder a estas perguntas contamos com dois dos principais acadêmicos que atuam sobre o tema da migração. Em primeiro lugar, Catherine Wihtol de Wenden (França) define as principais tendências da migração na atualidade. Ao fazer isso, ela desmascara o mito de que a migração é um fenômeno que envolve apenas migrantes do Sul Global se deslocando para o Norte e aponta para o fato de que ambas as regiões possuem o mesmo número – cerca de 120 milhões – de migrantes. Em seguida, Saskia Sassen (Holanda) examina, então, três novos fluxos migratórios – menores desacompanhados da América Central que vão para os EUA; o grande aumento no número de Rohingyas fugindo de Mianmar/Birmânia; e a migração para a Europa originária, principalmente, da Síria, do Iraque, do Afeganistão e de vários países africanos, especialmente, Eritreia e Somália. Analisar estes fluxos nos permite compreender a complexa dinâmica por trás deles, demonstrando que, em quase todos os casos, as violações de direitos humanos estão entre as principais razões que fazem com que as pessoas migrem.

A segunda seção do Dossiê SUR, “política sob escrutínio”, aborda os efeitos no dia a dia que políticas equivocadas de migração têm sobre os migrantes em todo o mundo. Messaoud Romdhani (Tunísia) descreve como a Parceria para a Mobilidade entre a União Europeia e a Tunísia e a Agenda Europeia em matéria de migração não acabaram com a migração irregular do Norte da África para a Europa, nem reduziram o número de mortos no Mediterrâneo, e insta a sociedade civil europeia e do Sul Global a se unirem contra tais políticas. Por sua vez, Jamil Dakwar argumenta que a Lei de Segurança contra Inimigos Estrangeiros (Security Against Foreign Enemies SAFE Act, em inglês), que está sendo analisada pelo Senado dos EUA atualmente, levaria, sobretudo, a uma paralisia completa o reassentamento de refugiados sírios e iraquianos. Esta lei ressalta ainda mais como a população imigrante nos EUA está, cada vez mais, vulnerável. Deisy Ventura (Brasil) examina as reações políticas às crises internacionais de saúde que, muitas vezes, servem para instigar ou justificar violações de direitos humanos contra migrantes. Tomando como exemplo o recente surto de Ebola, ela argumenta que as restrições à migração internacional adotadas durante o surto são ilegais segundo o direito internacional à saúde e contraproducentes ao esforço para combater a epidemia. Pela primeira vez, a Revista traz também um vídeo-artigo em seu dossiê, dirigido por João Wainer (Brasil), que olha para o tema da migração da cidade de São Paulo e examina as políticas municipais que foram implementadas para responder às necessidades da população migrante.

A seção final do Dossiê SUR, “avançando”, considera como a discussão sobre a migração precisa ser reformulada com a adoção dos direitos humanos em seu âmago. O Relator Especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos dos migrantes, François Crépeau (Canadá), defende que os políticos europeus devem ter como meta o estabelecimento de uma visão estratégica de longo prazo que facilite a mobilidade por meio da liberalização de vistos. Ele sugere que a melhor maneira de mudar o discurso sobre a migração é tornar a questão pessoal, por meio do compartilhamento, com tomadores de decisão e formadores de opinião, de histórias de migrantes. Reverberando este argumento, Zenén Jaimes Peréz (México/EUA) expõe os métodos e as táticas utilizados pela United We Dream, a maior organização de advocacy de jovens migrantes dos EUA. A organização pressionou, com êxito, a Casa Branca a aprovar duas ações executivas importantes que proporcionaram o diferimento às deportações de milhares de jovens migrantes da América Central e de seus pais. A orientação pragmática do artigo é útil para outras organizações que fazem advocacy e que buscam promover campanhas fortes sobre outros temas. Por fim, Pablo Ceriani (Argentina) demonstra como a linguagem que usamos para falar sobre os migrantes, seja na imprensa ou em documentos oficiais, desempenha um papel fundamental na forma como a população migrante é vista e, desta forma, no grau de proteção que ela recebe.

CHARGES Pela primeira vez, a Revista SUR também apresenta uma série de charges, que complementam o Dossiê SUR sobre Direitos Humanos e Migração. Por meio de uma parceria com a organização Cartooning for Peace, temos o orgulho de exibir o talento de alguns dos principais cartunistas do Sul Global, todos oferecendo uma reflexão crítica sobre o debate sobre a migração no contexto europeu. Nós também estamos contentes com o fato que Latuff (Brasil), outro renomado cartunista, complementa esta coleção de obras com duas de suas charges – uma que aborda a questão da migração na Europa e outra sobre a mesma questão no Brasil. Esta edição conta ainda, dentro do artigo de Deisy Ventura, com quatro charges de Patrick Chappatte (Suíça), um dos precursores e maiores expoentes mundiais do gênero de reportagem em história em quadrinhos.66. Para mais informações ver: “Patrick Chappatte,” Graphic Journalism, 2014, acesso em 6 jul. 2016, http://www.graphicjournalism.com/about-chappatte/ Mais uma vez, apresentamos uma série de infográficos, concebidos pelo Estúdio Kiwi (Brasil) a partir de pesquisa e curadoria realizadas por Deisy Ventura e Natália Araújo (Brasil), que oferecem um panorama de dados e números cruciais sobre migração.

DIÁLOGOS A Revista SUR teve a honra de entrevistar o juiz aposentado do Supremo Tribunal da Austrália, Michael Kirby (Austrália), sobre sua experiência como presidente da Comissão de Inquérito (COI, na sigla em inglês) das Nações Unidas sobre os direitos humanos na República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte). Kirby descreve a importância da COI – não apenas por atrair mais atenção internacional sobre as péssimas condições de direitos humanos na Coreia do Norte, mas também por causa da inovadora metodologia que a Comissão utilizou e que poderia ser replicada no futuro.

ENSAIOS Esta seção da Revista, que oferece um espaço para reflexões analíticas mais profundas, começa com uma contribuição de Makau Mutua (Quênia). Ele examina o conceito de Estado de Direito e como este tem sido aplicado no contexto africano pós-colonial. Mutua sugere que o conceito precisa ser revisto para que o desenvolvimento sustentável ocorra no continente. Alice de Marchi Pereira de Souza, Rafael Dias e Sandra Carvalho (Brasil) apresentam um estudo comparativo sobre as políticas de proteção aos defensores de direitos humanos no Brasil, na Colômbia e no México, identificando os principais desafios e solicitando uma maior coordenação regional sobre a questão. Em sua contribuição, Julieta Rossi (Argentina) aborda a decisão do tribunal dos EUA que minou o acordo soberano a que a Argentina tinha chegado com a maioria de seus credores. A decisão estabeleceu um preocupante precedente de que o direito de propriedade de algumas pessoas – os credores – poderia ser considerado mais importante do que os direitos de um grande número de pessoas – as populações predominantemente, embora não exclusivamente, no Sul Global.

EXPERIÊNCIAS Aproveitando a oportunidade para disseminar uma vitória dos direitos humanos contra o setor privado no âmbito da Suprema Corte de Justiça da África do Sul, Lisa Chamberlain (África do Sul) expõe as lições que podem ser aprendidas com o caso Company Secretary of Arcelormittal South Africa andAnother vs. Vaal Environmental Justice Alliance. Ela mostra como comunidades e advogados de direitos humanos que lhes dão apoio podem aplicar essas lições em outras batalhas jurídicas pelo acesso à informação.

PANORAMA INSTITUCIONAL Lucia Nader e José Guilherme F. de Campos (Brasil) sintetizam os resultados de centenas de entrevistas e diversas horas de pesquisa em algumas páginas para nos ajudar a entender melhor o que “inovação” realmente significa e o que está por trás do medo de inovar de diversas organizações da sociedade civil que trabalham defendendo direitos. Ao fazer esta análise, os autores aproveitam a oportunidade para tratar dessas preocupações – muitas das quais serão familiares aos nossos leitores – e oferecem argumentos contrários a elas, antes de propor cinco importantes perguntas que qualquer organização deve considerar antes de começar a inovar.

VOZES Abordando a situação da sociedade civil na África e o contexto no qual ela se encontra na atualidade, Kumi Naidoo (África do Sul) analisa brevemente as tentativas anteriores de aproximar a sociedade civil africana antes de descrever como a African Civil Society Initiative, seu atual desafio, está se configurando. Por último, Laura Dupuy Lasserre (Uruguai) enaltece o décimo aniversário do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas refletindo sobre alguns de seus êxitos – em particular, o mecanismo de Revisão Periódica Universal, bem como o importante papel que os países do Sul Global vêm desempenhado no Conselho na última década. Ela faz essa análise identificando os elementos de cada país que podem ser fortalecidos no futuro.

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Finalmente, gostaríamos de enfatizar que esta edição da Revista SUR foi possível graças ao apoio da Fundação Ford, Open Society Foundations, Fundação Oak, Sigrid Rausing Trust e Agência Sueca de Cooperação Internacional (ou SIDA, na sua sigla inglês), bem como de alguns doadores anônimos.

Somos também extremamente gratos às seguintes pessoas que nos ajudaram nesta edição: Adriana Guimarães, Akemi Kamimura, Barney Whiteoak, Caio Borges, Celina Lagrutta, Evandro Lisboa Freire, Fernando Campos Leza, Fernando Scire, Inês Virgínia Prado Soares, Josefina Cicconetti, Josua Loots, Karen Lang, Louis Bickford, Maité Llanos, Malak El-Chichini Poppovic, Marcela Vieira, Mauricio Albarracín, Mia Swart, Oscar Ugarteche, Paula Martins, Renato Barreto, Sebastián Porrua Schiess and Vivek Malhotra. Além disso, somos especialmente gratos pela colaboração dos autores e pelo trabalho árduo da equipe editorial e do Conselho Executivo da Revista. Em particular, damos as boas-vindas à Néia Limeira por seu ingresso na equipe e lhe agradecemos por seu trabalho duro ajudando a preparar esta edição. Agradecimentos especiais também vão para o Center for Human Rights and Justice, University of Texas, Austin, pela nossa parceria continuada e para Thiago Amparo. Esta edição é a primeira desde a SUR 20 sem que ele esteja ocupando o posto de editor-executivo. Thiago desempenhou um papel crucial na definição da Revista SUR que lemos hoje e por isso, fazemos uma menção especial ao legado que ele deixa para a Conectas e para Sur.

Por fim, não poderíamos deixar de agradecer imensamente à Ana Cernov, Camila Asano e a Equipe de Comunicação da Conectas Direitos Humanos que merecem grande crédito por sua dedicação a esta edição. Como sempre, estamos muito agradecidos pelo inestimável apoio e pela orientação dados pelos diretores da Conectas Direitos Humanos – Jessica Carvalho Morris, Juana Kweitel e Marcos Fuchs.