Estratégias do direito de interesse público na Europa Centro-Oriental
Este artigo analisa a advocacia de interesse público no contexto da Europa Centro-Oriental sob duas perspectivas: seu fundamento conceitual e as implicações práticas de estratégias para a proteção dos direitos humanos e a promoção da democracia. E aponta que o significado do termo “interesse público” é menos importante do que a questão de quem participa do processo de sua definição e por quais meios isso é feito. A partir do caso americano, o artigo desdobra três diferentes concepções de advocacia de interesse público: a social, a substantiva e a processual. Vários objetivos estratégicos derivam dessa análise: a ampliação do uso de instrumentos legais pelas organizações da sociedade civil para fortalecer o discurso na esfera pública; a aproximação entre teoria e prática nos cursos superiores de direito; e a promoção da cooperação entre os diferentes atores – associações de advogados, órgãos administrativos e organizações não-governamentais –, para a consolidação de um princípio de igual acesso à justiça para todos.
Nos países das regiões central e oriental da Europa – e de forma genérica em toda a Europa continental –, a expressão “direito de interesse público” não é usada com freqüência, embora já comece a ser adotada. O mais importante é que são cada vez mais numerosos os profissionais e ativistas da área jurídica que de fato adotam estratégias do direito de interesse público, independente do fato de identificá-las com essa denominação.
Ao discutir como o direito de interesse público se relaciona com a Europa Centro-Oriental, gostaria de me deter em dois aspectos específicos dessa noção. Primeiro, seu fundamento conceitual, que se admite ser problemático; segundo, as implicações práticas das estratégias para proteger os direitos humanos e promover a democracia e o Estado de Direito.
Já é lugar-comum entre os que têm estudado o fenômeno do direito de interesse público, nos Estados Unidos e alhures, exasperar-se diante da necessidade de apresentar uma definição que possa ser generalizada ou que implique alguma precisão intelectual. Muitos preferem aderir ao famoso comentário do juiz Stevens, da Suprema Corte americana, sobre a pornografia: “Reconheço quando vejo”.
Em vez de me empenhar em dar uma definição universal, acredito ser mais útil examinar as múltiplas camadas de significados presentes nessa expressão. Ao menos três concepções distintas de “interesse público” e de “direito de interesse público” merecem ser exploradas. A idéia de “direito de interesse público” originou-se nos Estados Unidos, portanto trata-se de um bom lugar para começarmos. Uma das primeiras pessoas a articular o fundamento conceitual do direito de interesse público, muitos anos antes de tal noção ser amplamente adotada, foi o advogado Louis Brandeis, que mais tarde veio a se tornar juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos. Em uma célebre palestra à Harvard Ethical Society, em 1905, ele afirmou: “Em vez de manter uma posição de independência entre os ricos e o povo, preparados para refrear excessos de ambos os lados, inúmeros advogados competentes consentiram em se subordinar às grandes corporações, negligenciando sua obrigação de usar seus poderes para proteger a população”. Afirmou ainda: “A grande oportunidade dos advogados americanos é, e será, erguer-se novamente, como fizeram no passado, prontos para proteger também os interesses do povo”.1
A leitura da história feita pelo juiz Brandeis pode ser questionável, e ele fornece escassas justificativas teóricas; contudo, essas duas frases apreendem a essência da maneira pela qual os defensores do interesse público nos Estados Unidos começariam a definir a si mesmos, décadas mais tarde.
O reboliço social da década de 60 acabou por criar condições para difundir as máximas do juiz Brandeis, e muitos bacharéis em direito americanos passaram, já na década de 70, a se auto-identificar “advogados do interesse público”, para se diferenciar daqueles que se “subordinavam às grandes corporações” mencionados pelo juiz Brandeis. Atribuíam-se o papel de representantes dos interesses dos pobres e demais sub-representados na sociedade, em parte para equilibrar a desproporcional influência de interesses economicamente poderosos.
No entanto, se é possível dizer que alguns advogados americanos praticam o direito de interesse público, onde podemos encontrar o corpo de leis de interesse público que eles aplicam? Onde está codificado o direito de interesse público? Essa questão, que provavelmente soaria tola para muitos desses advogados americanos, não é inventada. Ao ouvir-me falar sobre algumas das preocupações fundamentais da comunidade ligada ao direito de interesse público, nos Estados Unidos e em outros lugares, mais de um advogado do Leste Europeu solicitou-me um modelo dessas leis que pudesse ser adotado em seu próprio país.
Então, o que é o direito de interesse público, já que não possui um corpo de leis? Nos Estados Unidos, a resposta a essa pergunta está na própria origem da expressão. Ela não foi adotada para descrever um campo específico do direito, mas para identificar quemestava sendo representado por aqueles advogados. Em vez de defender interesses econômicos dos poderosos, haviam optado por advogar em defesa do “povo” – nas palavras do juiz Brandeis. Isso não significa que todos os advogados de interesse público nos Estados Unidos se vêem como defensores dos pobres. O campo do direito de interesse público americano abarca uma multidão de objetivos: direitos civis, liberdades civis, direitos do consumidor, proteção ambiental e assim por diante. Mas em sua origem esse campo está mais diretamente ligado à idéia de contrabalançar a influência dos interesses econômicos poderosos no sistema jurídico; independentemente de seus objetivos, os advogados de interesse público americanos continuam a ser inspirados pela ética do “lutar pelo joão-ninguém”. Chamarei a isso de concepção social do direito de interesse público.
Uma segunda concepção do direito de interesse público pode ser pensada como substantiva.Tal abordagem começa com a pergunta: “O que é exatamente o ‘interesse público’ presumivelmente protegido por esses advogados, e quais são suas implicações substantivas, doutrinárias?”. Bem, mesmo sem haver um código de leis de interesse público, há inúmeras referências ao “interesse público” na legislação e na jurisprudência dos Estados Unidos e de outros países. Na verdade, uma rápida busca nos bancos de dados da Justiça Federal americana localizou mais de 300 leis assim identificadas.
Por um capricho, decidi procurar o termo “interesse público” em alguns dicionários de direito e quase me surpreendi ao verificar que os editores haviam ousado apresentar uma definição. Decerto, trata-se de uma clara indicação de que a noção de “interesse público” possui implicações doutrinárias. Quando cursei a faculdade de direito (nos Estados Unidos), todo estudante possuía um exemplar do dicionário jurídico Black. Eis como esse respeitado dicionário define interesse público: “(1) O bem-estar geral do público que assegura reconhecimento e proteção; e (2) Algo em que o público como um todo possui interesse; em especial um interesse que justifique a regulamentação por parte do governo”.2
Difícil imaginar definição mais tautológica. Significa pouco mais do que dizer que o interesse público consiste no interesse legal do público. Será que isso leva a algum lugar?
A definição apresentada no Barron, outro dicionário jurídico, faz um pouco mais de sentido. Tal como o anterior, afirma que interesse público é “aquilo que representa o melhor para a sociedade como um todo”, mas acrescenta tratar-se de “uma determinação subjetiva por parte de um indivíduo, como um juiz ou um governador, ou de um grupo, como uma […]. legislação referente ao que é para o bem geral de todo o povo”(grifo nosso).3
Embora também não seja muito rigorosa, essa definição ao menos reconhece uma importante verdade prática. Quando um órgão legislativo adota uma lei que menciona o “interesse público”, oferece em essência uma sinalização para a discricionariedade do Poder Judiciário ou do Executivo. Indica que uma autoridade executiva ou judicial deve considerar, em sua decisão sobre uma questão específica, uma definição necessariamente subjetiva do que é melhor em termos de interesse público. Um exemplo usado com freqüência nos Estados Unidos é o dispositivo de nossa Lei da Liberdade de Informação, que obriga funcionários administrativos a dispensar ou a reduzir as taxas cobradas para custos com a reprodução de documentos requisitados, se a “revelação […] for do interesse público, porque é provável que venha a contribuir significativamente para a compreensão pública das operações ou atividades do governo e que não seja especialmente do interesse comercial do requerente”.4
Seriam muitos os resultados arbitrários e inconsistentes, caso os burocratas do governo não sofressem restrições ao interpretar critérios definidos de maneira tão ampla. Mas suas decisões são sujeitas à revisão judicial, o que, em última instância, transfere boa parte do poder discricionário aos tribunais. E os tribunais, por sua vez, têm seus próprios meios de limitar decisões arbitrárias e inconsistentes.
De que maneira tudo isso se relaciona com a Europa Central e a Oriental? A maneira pela qual o termo “interesse público” é utilizado como conceito substantivo nos Estados Unidos oferece um contraponto a uma das deficiências gerais do processo de desenvolvimento do Estado de Direito em vários países da Europa Centro-Oriental. Não sei quantas vezes está referido o “interesse público” na legislação dos países dessa região, mas existem certamente expressões paralelas que apresentam semelhança substantiva. Por exemplo, há em muitos códigos de processo penal um dispositivo que estipula que os tribunais devem garantir aos acusados a representação por um advogado, sem ônus, se “o interesse da justiça” assim o exigir. A que se refere a expressão “interesse da justiça”, se não constituir também uma codificação da discricionariedade, nos mesmos moldes em que se utiliza “interesse público” nos Estados Unidos?
Uma abordagem do direito de interesse público sob essa perspectiva implicaria um poder discricionário por parte das autoridades executivas – e de juízes – ao perseguir noções abstratas de bem-estar geral, tal como a de justiça. No entanto, isso levanta um ponto cego institucional sério, que se desenvolveu durante o mais recente período de reformas. Enquanto a administração estatal possui comprovadamente menos autoridade para legislar do que sob o regime socialista, estando o processo legislativo no âmbito da competência do parlamento, as mudanças legislativas ampliaram cada vez mais o poder discricionário dos órgãos governamentais na tomada de decisões. Apesar disso, foi pouca a atenção ao estabelecimento de padrões e práticas significativos para dar orientação individual aos funcionários públicos para o exercício desse arbítrio. Disso resultou uma implementação desigual da lei e uma ineficiência nos mecanismos criados para manter a credibilidade do governo diante da população.5
A situação é semelhante no que se refere ao Judiciário, pois o exercício do arbítrio por parte dos juízes também está bem pouco desenvolvido na Europa Centro-Oriental. Ewa Letowska, a primeira ombudswoman da Polônia – atualmente juíza da Suprema Corte Administrativa do país – explicou brevemente como tal situação está enraizada na herança socialista: “Os tribunais [sob o direito socialista] eram limitados não apenas pela lei; mas também em cada ato normativo. […] O sistema jurídico não era somente um sistema de estatutos legais, mas também um sistema de normativas criadas pela administração. Os tribunais afirmavam não lhes ser permitido [exercer] controle sobre o Executivo, mesmo que este promulgasse uma lei inconstitucional”.6
Em conseqüência desse contexto, o raciocínio jurídico em países pós-socialistas, em comparação com outros países de civil law,* tende a depender ainda mais da interpretação estrita do direito positivo, dispondo-se muito menos a enfrentar resultados inconsistentes, ilógicos ou inconstitucionais produzidos pela aplicação literal da lei. Essa afirmação ampla é decerto aplicável em graus diferentes de acordo com o país, a cultura jurídica vigente e outros fatores. A Eslováquia oferece um bom exemplo de país onde esse ponto pode ser demonstrado com facilidade. Jan Hrubala, ex-juiz e atualmente chefe do Departamento Anticorrupção do Governo, descreve a situação em seu país da seguinte maneira: “Apesar das mudanças democráticas na sociedade, certos representantes da classe jurídica continuam a se comportar como se os juízes nada mais fossem do que servidores públicos cuja obrigação é satisfazer a vontade dos detentores atuais do poder e aceitar sem reservas as decisões dos funcionários da administração pública”.7
Isso nos leva à terceira concepção de direito de interesse público, talvez a mais relevante para a Europa Centro-Oriental, e provavelmente a que melhor se articula com a noção processual de esfera pública, conceito estreitamente associado a Jürgen Habermas, que afirma:
A sociedade civil é composta por associações, organizações e movimentos que emergem mais ou menos espontaneamente e que, sintonizados com a ressonância dos problemas de âmbito social nas esferas da vida privada, selecionam tais reações e as transmitem, de maneira ampliada, para a esfera pública. O núcleo da sociedade civil compreende uma rede de associações que institucionalizam discursos de resolução de problemas de interesse geral no quadro das esferas públicas organizadas.8
Para Habermas, um fórum aberto ao debate – que ele rotula de esfera pública – constitui o elemento crítico da democracia. O que isso tem a ver com direito de interesse público? Eu diria que, para a Europa Central e Oriental, tem tudo a ver. Para aqueles que participaram da criação de um movimento de direito de interesse público nos Estados Unidos no final da década de 60 e durante a de 70, a noção de esfera pública, bem como o papel da sociedade civil dentro dela, não constituía o problema principal. Suas preocupações eram outras; em particular, como mencionei anteriormente, pretendiam corrigir os desequilíbrios surgidos pelo fato de os advogados privilegiarem os interesses econômicos mais poderosos da sociedade.
Eles não estavam tão interessados em discutir a natureza da esfera pública, porque tal aspecto da vida política americana estava ativo e passava bem, apesar do reboliço social dos anos 60 – ou talvez mesmo em conseqüência dele.
O contraste com a sociedade européia foi explorado pela primeira vez por Tocqueville, mas uma observadora mais relevante para nossos propósitos foi Hannah Arendt. Pouco depois de se mudar para Nova York, em 1946, ela escreveu em uma carta a Karl Jaspers, um de seus mentores:9 “as pessoas aqui se sentem responsáveis pela vida pública de um modo como jamais vi em um país europeu”. Para exemplificar o motivo de sua generalização, Arendt citou a tempestade de protestos que se seguiu à detenção em campos de concentração de americanos descendentes de japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial. Relatando uma experiência pessoal, ela escreveu na carta:
Eu visitei na época uma família americana na Nova Inglaterra. Eram pessoas absolutamente comuns – o que se chamaria de “pequena burguesia” na Alemanha – e, tenho certeza, nunca tinham visto um japonês na vida. Como fiquei sabendo depois, eles e muitos de seus amigos escreveram imediata e espontaneamente a seu representante no Congresso, insistindo nos direitos constitucionais de todos os americanos, independente de sua ascendência, e declarando que, se algo daquele gênero podia ocorrer, eles mesmos já não se sentiam mais seguros (essas pessoas eram de ascendência anglo-saxã, suas famílias moravam no país há várias gerações etc.).
Os defensores dos direitos humanos na Europa Centro-Oriental ficariam felizes, mas espantados, se deparassem com um comportamento análogo. Na Hungria, por exemplo, o governo adotou uma admirável política educacional legal para diminuir a discriminação dos ciganos, uma minoria étnica marginalizada, revertendo a ampla segregação de facto dessa população no sistema escolar.10 Essa política foi fundamentalmente movida por padrões internacionais e europeus, pela pressão política dos próprios ciganos e pela boa intenção de um círculo dedicado, porém pequeno, de tecnocratas, especialistas em educação e organizações não-governamentais. No entanto, há uma notável ausência de apoio engajado por parte da maioria da população.
Ao longo de décadas, e até época recente, a esfera pública na Europa Central e Oriental esteve dormente. O conceito de “interesse público”, entretanto, não se achava de modo algum ausente da teoria jurídica socialista. Teoricamente, a principal função da Prokuratura era proteger o interesse público, munida de sanções criminais e civis. Mas a grande diferença em relação aos conceitos liberais que compõem o direito de interesse público gira em torno da noção de esfera pública. Não havia espaço na teoria jurídica socialista para vozes alternativas competindo por serem ouvidas no processo discursivo imaginado por Habermas. Os limites da consideração aos interesses públicos em geral eram definidos pela cúpula, em um processo não-democrático, e implementados de maneira hierárquica rigorosa pelas autoridades executivas e, nos tribunais, pela todo-poderosa procuradoria.
Esse estado de coisas também tem implicações para a importância do raciocínio jurídico mencionado anteriormente. A herança do sistema legal socialista corrói nossa confiança no poder discricionário das autoridades executivas e justifica a necessidade de estimular e desenvolver as funções discricionárias do Judiciário. Além disso, o legado dessa abordagem permanece evidente nas limitações da própria linguagem usada para distinguir entre estatal e público em países que foram socialistas. O interesse do Estado equivale ao interesse público, e literalmente inexiste um vocabulário que distinga os interesses públicos daqueles do Estado, nos idiomas nacionais correspondentes.
Apesar do contraste com o estado saudável da esfera pública nos Estados Unidos, esse aspecto também estava presente quando o campo do direito de interesse público começou a se definir, nas décadas de 60 e 70. Um paradigma é Thurgood Marshall, que continuou a tradição de Louis Brandeis ao servir como diretor e principal advogado do Fundo de Defesa Legal da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) – a primeira organização de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos –, antes de se tornar juiz da Suprema Corte. Em um discurso na American Bar Association,** em 1975, o juiz Marshall declarou:11 “O direito de interesse público busca preencher algumas lacunas em nosso sistema legal”. Como era de se esperar, ele estava enfatizando os aspectos da reforma jurídica do direito de interesse público. Ele e seus predecessores vinham assumindo tal abordagem, havia décadas – em nome de organizações não-governamentais como a NAACP e a American Civil Liberties Union (ACLU) –, antes da expansão e da consolidação do campo do direito de interesse público na América dos anos 70. O juiz Marshall prosseguiu o discurso reconhecendo as importantes contribuições obtidas pelos advogados do direito de interesse público para seus clientes, os indivíduos sub-representados da sociedade, mas foi além ao dizer:
Mais fundamentalmente, talvez, eles fizeram nosso processo legal funcionar melhor. Expandiram o fluxo de informações para aqueles que tomam decisões. Possibilitaram que administradores, legisladores e juízes avaliassem o impacto de suas decisões para todos os interesses e minorias afetados. E, ao ajudar a abrir as portas para nosso sistema jurídico, aproximaram-nos um pouco mais do ideal de justiça igual para todos.
Portanto, ao menos na concepção do juiz Marshall, ampliar e fortalecer a esfera pública constitui um importante objetivo do direito de interesse público também nos Estados Unidos. A distinção a ser feita em relação à Europa Centro-Oriental pode ser de grau bem mais dramático, pois a esfera pública terá de ser criada a partir do zero, ou reanimada após décadas de dormência.
Agora, retornamos à pergunta “Quem define o interesse público?”. Em uma sociedade liberal, a resposta talvez seja: você e eu. Todos somos participantes da definição do que é – e do que não é – de interesse público, sendo o interesse público elaborado no debate resultante de valores e opiniões. A questão é: não precisamos nos preocupar tanto com o que é o interesse público, quanto com quem consegue participar de sua definição e mediante quais meios.
Chegamos aqui às implicações estratégicas dessa análise conceitual. Descrevi três abordagens distintas para a conceitualização de direito de interesse público: a concepção social, a substantiva e a processual. Tomando-as em ordem inversa, começarei pela concepção processual da esfera pública.
Concepção processual. Na Europa Centro-Oriental, a noção de esfera pública possui implicações estratégicas de extraordinária importância para advogados e ativistas que trabalham com direitos humanos e outras questões de interesse público. Se admitirmos que um elemento crítico do desenvolvimento democrático é a expansão da esfera pública, isso implica uma abordagem da lei radicalmente diferente – ao menos do ponto de vista histórico – da tendência dominante na região. A lei é um dos principais pilares da governança. Mas, se aceitarmos que a lei deve ser produto do debate na esfera pública, em vez de uma entidade monolítica recebida de alguma autoridade superior, então devemos dar oportunidades para contestar a lei. Assim, ela passa a ser instrumental, não apenas para as autoridades governamentais, mas para todos. Não se trata mais de mero instrumento de controle social, e sim de um fórum para a resolução de conflitos e a elaboração de noções concorrentes daquilo que é de interesse público.
O que significa isso na prática? Significa que organizações não-governamentais direcionadas para objetivos sociais amplos, como os direitos humanos, podem e devem acrescentar o sistema legal a seu arsenal. E podemos ver claramente que isso está acontecendo. A utilização estratégica e instrumental da legislação de direitos humanos fica evidente na adoção, pelas ONGs, dos mecanismos da Corte Européia de Direitos Humanos.
No entanto, uma dependência excessiva da Corte Européia como principal fórum para a reconciliação do interesse público mediante a aplicação de normas internacionais gera seus próprios problemas. A Corte cobre uma jurisdição imensa, ainda em expansão. Não é prático que ela seja o único campo de batalha para resolver questões de interesse público. Precisamos fortalecer a capacidade dos sistemas jurídicos nacionais de enfrentar reivindicações de interesse público que rivalizem entre si, tal como faz a Corte Européia; caso contrário, o componente legal da esfera pública não estaria de fato na esfera pública, permanecendo apenas lá em Estrasburgo.
Isso quer dizer que as organizações não-governamentais devem ser criativas e buscar maneiras de, parafraseando Marshall, abrir as portas para seus próprios sistemas jurídicos. Em outras palavras, devem pressionar os tribunais comuns para que considerem a análise constitucional e o direito internacional, ao aplicar as leis nacionais, utilizando melhor os tribunais e fóruns constitucionais em revisões judiciais, ampliando a participação pública nos procedimentos administrativos e garantindo maior acesso às informações mantidas sob controle do Estado.
Alguns argumentariam que essas estratégias legais são mais apropriadas ao sistema docommon law do que à tradição do civil law. Eu responderia que, antes de tudo, tal distinção é freqüentemente exagerada, uma vez que as abordagens do common law e do civil law vêm convergindo há décadas e, o que é mais importante, acredito que tais medidas constituem um antídoto necessário a hábitos que remontam a décadas, formados no contexto de uma esfera pública debilitada.
Concepção substantiva. Outro componente da pauta estratégica dos advogados e ativistas voltados para o interesse público putativo na Europa Centro-Oriental se refere ao que classifiquei como concepção substantiva do direito de interesse público. A incorporação explícita da discricionariedade na lei torna-se um complemento fundamental dos objetivos estratégicos já mencionados. Isto, por sua vez, depende de os administradores e juízes reavaliarem seus papéis e adotarem novas linhas de raciocínio, menos usuais. Resumindo, em muitos países da Europa Central e Oriental, percebe-se a necessidade de uma mudança cultural mais ampla.
Como poderia isso acontecer? Muitos alegam que um obstáculo central é a chamada mentalidade dos juízes. Em outras palavras, a cultura legal não é propícia. Bem, se concordarmos que o raciocínio judicial está atrelado à cultura legal, então faria sentido centrar o foco nas faculdades de direito. Faculdades de direito constituem também “fábricas” de cultura legal. É lá que os futuros advogados, promotores e juízes aprendem a pensar como futuros advogados, promotores e juízes.
Assim, os objetivos estratégicos fundamentais dentro das faculdades de direito deveriam ser: aperfeiçoar a capacidade de pensamento crítico dos bacharéis em direito e inserir aspectos práticos da lei tal como é aplicada, para desafiar o mito em que a lei é concebida como um reino monolítico e positivista de teoria pura. Felizmente para os advogados de interesse público, as faculdades de direito vêm mostrando uma extraordinária vontade de aproximar a teoria da prática. Tanto os estudantes quanto os professores observam cada vez mais a falta de entrosamento entre a lei tal como é percebida no ambiente plácido da faculdade de direito e sua existência de fato, no turbulento mundo externo. O rápido crescimento da obrigatoriedade de estágios em assistência judiciária gratuita, onde os estudantes aprendem enquanto prestam assistência a clientes reais, constitui apenas um dos indicadores dessa tendência.
Estratégias semelhantes são recomendadas para escolas de administração pública e outros cursos destinados a treinar e aumentar a competência profissional dos administradores públicos. Um desafio específico nessa área é o fato de que o estudo administrativo da lei e sua prática não receberam a mesma atenção dispensada ao Judiciário durante a última década de reformas na Europa Centro-Oriental. Em conseqüência, há a necessidade preliminar de estudar e compreender o modo pelo qual estão de fato sendo tomadas as decisões administrativas, e identificar que tipo de treinamento viria a ser mais eficaz.
Concepção social. Por fim, a concepção social de direito de interesse público está começando a ter relevância estratégica também na Europa Centro-Oriental. Basta olhar para as elucubrações de George Soros, ferrenho defensor do mercado livre, para encontrar provas disso. Primeiro, em um artigo polêmico intitulado “The Capitalist Threat”,12 e depois, em livros subseqüentes, incluindo Open Society: Reforming Global Capitalism, Soros faz lembrar o juiz Brandeis. Na introdução de Open Society, ele escreve: “Os fundamentalistas do mercado sustentam que o interesse público é mais bem servido quando as pessoas podem seguir seus próprios interesses. Trata-se de uma idéia atraente, mas é apenas uma meia-verdade. O mercado presta-se eminentemente à luta pelos interesses privados, porém não é concebido para cuidar do interesse comum”.13
A lacuna identificada por Soros e por outros na Europa Central e na Oriental é a mesma para a qual o juiz Brandeis chamava a atenção nos Estados Unidos, na virada do século passado. A lei e os advogados a serviço do que Soros chama de “fundamentalismo de mercado” correm o risco de tornarem-se meros subordinados das grandes empresas, como censurava Brandeis. É evidente que poucos discordariam da opinião de George Soros de que o interesse público é em parte servido por indivíduos que perseguem seus próprios interesses privados. Mas, como Soros oportunamente argumentou, o mercado sozinho jamais abordará muitos dos aspectos importantes de interesse público.
Um exemplo desse tipo de falha do mercado refere-se ao acesso aos serviços de advocacia. Na Europa Centro-Oriental, onde os serviços de advocacia estão cada vez mais sujeitos às regras do mercado livre, um número crescente de indivíduos tem recebido tratamento de segunda categoria por parte do sistema jurídico. Em outras palavras, estamos nos afastando ainda mais do ideal de igual acesso à justiça para todos.
Para ativistas e advogados de interesse público, a implicação estratégica está em dedicar mais atenção aos mecanismos – de fontes estatais ou privadas – capazes de ampliar as oportunidades de ajuda legal para aqueles excluídos pelos preços proibitivos do mercado.
Concluindo, podemos identificar diversas estratégias críticas para a sustentação da rede de valores e ideais presente no conceito de direito de interesse público. Primeiro, as organizações não-governamentais podem e devem fazer uso mais eficiente da lei como instrumento para alcançar propósitos sociais, o que contribuiria para o desenvolvimento de uma esfera pública mais vigorosa. Além disso, os mestres de direito – que preparam os futuros bacharéis – devem continuar a aproximar teoria e prática, empenhando-se em aprimorar o raciocínio crítico dos futuros juízes e demais profissionais da área jurídica. Associada a esse esforço, há a necessidade de compreender melhor o funcionamento dos processos administrativos e desenvolver instrumentos para aprimorar o exercício do poder discricionário também por parte dos servidores públicos. Finalmente, as associações de advogados, os tribunais, os órgãos estatais e as organizações não-governamentais devem explorar novas formas de colaboração para assegurar ajuda legal adequada, aproximando-nos do ideal de igual acesso à justiça para todos.
* A expressão civil law se refere ao sistema de tradição românico-codificada, enquanto common law diz respeito ao sistema de tradição consuetudinária. [NT]
** Associação Americana de Advogados, equivalente à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). [NT]
1. L. Brandeis, “The Opportunity in the Law”. American Law Review, v. 39, pp. 55-63, 1905.
2. Bryan A. Garner (ed.), Black’s Law Dictionary. 7. ed. St. Paul, Minn.: West Publishing Co., 1979.
3. Steven H. Gifis, Law Dictionary. 4.ed. Nova York: Barron’s Educational Services, 1996.
4. Freedom of Information Act, 5 USC, parágrafo 552 (a)(4)(A)(iii).
5. Ver E. Rekosh (ed.), The Vicious Circle: Weak State Institutions, Unremedied Abuse and Distrust. Budapeste: Open Society Institute, 2005.
6. Ewa Letowska, Response to Questionnaire for Guidance for Promoting Judicial Independence and Impartiality. Washington, DC: USAID, 2001 (arquivo do autor).
7. Jan Hrubala, Response to Questionnaire, id.
8. J. Habermas, Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (Trad. William Rehng.) Cambridge: MIT Press, 1989, p. 27, grifo nosso.
9. Ver Lotte Kohler & Han Saner (eds.), Hannah Arendt/Karl Jaspers: Correspondence. Nova York: Harcourt Brace & Company, 1992, p. 30.
10. Ver Viktoria Mohacsi, “Government Initiatives: Hungary’s School Integration Program”. In: Edwin Rekosh & Maxine Sleeper (eds.), Separate and Unequal: Combating Discrimination against Roma in Education. Public Interest Law Initiative/Columbia University, 2004.
11. T. Marshall, “Financing the Public Interest Law Practice: The Role of the Organized Bar”.American Bar Association Journal, v. 61, pp. 1.487-1.491, 1975.
12. George Soros, “The Capitalist Threat”. The Atlantic Monthly, v. 279, n. 2, fevereiro de 1997, pp. 45-58.
13. G. Soros, Open Society: Reforming Global Capitalism. Nova York: Public Affairs, 2000, p. xii.