A proposta deste artigo é reabrir o debate em torno de algumas questões conceituais dos direitos humanos, com o intuito de relançar e revitalizar uma agenda politicamente mobilizadora para a América Latina. O autor defende a prioridade dos direitos civis e políticos sobre os econômicos e sociais ao reformular, por exemplo, o direito à educação, tradicionalmente entendido como parte dos direitos econômicos e sociais. Para ele, é também urgente e necessário assumir a partir da política, e não dos direitos humanos, temas que provocam controvérsias de caráter moral na sociedade. O caso do aborto, tratado ainda hoje como questão de direitos humanos nos Estados Unidos, é bastante ilustrativo.
Para quem assume uma postura crítica diante do mundo da produção intelectual sobre os direitos humanos, dois aspectos específicos devem chamar a atenção: a enorme dimensão quantitativa e o caráter predominantemente pacífico de sua evolução conceitual.
Enquanto a primeira característica pode ser explicada pelo aumento constante das violações aos direitos dos indivíduos por parte dos Estados, a segunda parece se referir à gênese mesma do conceito de direitos humanos. Nascidos como resposta política, contingente e concreta a um acontecimento monstruoso, impensável a priori, tal como o Holocausto, seu desenvolvimento teórico esteve marcado por um extraordinário consenso universal baseado no repúdio mundial ao plano insano de aniquilação em massa de um povo. O enorme consenso político promoveu amplo consenso teórico e este último, objetivamente, o empobrecimento intelectual de seu desenvolvimento.
O debate posterior acerca do fundamento dos direitos humanos orientou-se, inicialmente, com muita força para um plano filosófico-metafísico que permitisse afirmar sua existência e sua legitimidade, independentemente não só do reconhecimento dos governos, mas também da própria sociedade.1 Nesse contexto, a concepção dos direitos humanos como inerente à condição humana, embora tenha permitido, por um lado, neutralizar as tendências negativas provenientes de posições ligadas a um conceito exacerbado da soberania, por outro lado agiu prejudicialmente, considerando herética qualquer postura que reconduzisse a origem e a existência dos direitos humanos à história e à política. A forte hegemonia do humanismo em suas diversas versões apoiou essa perspectiva de fundamentação metafísica dos direitos humanos. Paradoxalmente, foi a associação plena do pensamento humanista com a idéia de progresso e a crise profunda de tal idéia2 que permitiu a abertura de uma brecha antifundacional no pensamento dominante sobre os direitos humanos.
Não há dúvidas de que a concepção dos direitos humanos como direitos inerentes à pessoa humana tenha contribuído, decisivamente, para uma visão idolátrica3 e anistórica de direitos que, de forma evidente, são históricos e contingentes. Contraposta à visão metafísica de Carlos Nino, Eduardo Rabossi rejeita a idéia de qualquer fundamentação que pretenda transcender a normativa que, em matéria de proteção internacional de direitos humanos, vem se desenvolvendo desde a Segunda Guerra Mundial até nossos dias.4 Essas idéias foram retomadas com muita força pelo filósofo americano Richard Rorty (pp. 120-1), em uma palestra da qual me parece pertinente citar um parágrafo realmente significativo:
Meu argumento básico é que o mundo mudou e que o fenômeno dos direitos humanos torna irrelevante e anacrônico o fundacionalismo em matéria de direitos humanos. A tese de Rabossi, segundo a qual o fundacionalismo dos direitos humanos é anacrônico, parece-me, ao mesmo tempo, verdadeira e importante, e será, portanto, o tema central desta palestra. Ampliarei e defenderei a idéia de Rabossi de que não vale a pena questionar se os seres humanos realmente têm seus direitos listados na Declaração de Helsinque. Em particular, defenderei que nada relevante para a decisão moral separa os seres humanos dos animais, exceto fatos históricos, continentes e naturais.
A idéia central que quero defender aqui se refere ao fato de estar convencido de que o desenvolvimento de uma agenda vigorosa e confiável em matéria de direitos humanos, que para sua efetiva vigência recupere a capacidade de mobilização social, depende em boa parte de recuperar seu sentido político original, presente em sua origem histórica. Essa perspectiva parece-me especialmente pertinente para a realidade concreta daquilo que, sem ignorar os aspectos problemáticos dessa definição, pode ser entendido como o Sul político-geográfico de nossa aldeia global. Nesse Sul, não só de um ponto de vista factual, mas também de um outro, que pode ser entendido como cultural, o caráter absolutamente intolerável da violação aos direitos civis e políticos está muito longe de constituir um debate politicamente fechado. As discussões em torno do binômio garantias/eficiência policial nos assuntos relativos à segurança do cidadão são os melhores exemplos, embora, obviamente, não sejam os únicos.
É claro que os caminhos da legitimidade dos direitos humanos, condição imprescindível para sua vigência efetiva, remetem à metafísica ou à política. A história e a experiência estão aí para nos lembrar da solidez apenas aparente de qualquer legitimidade metafísica. Ao contrário, e paradoxalmente, parece existir muito mais força na fragilidade da legitimidade política. Vejamos algumas das razões para isso.
Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, é justamente porque os homens não são iguais por natureza, pois, se assim fosse, o conteúdo dessa declaração seria, no mínimo, supérfluo. Nesse sentido, parece-me bastante ilustrativo o conteúdo das seguintes citações:
A esfera pública, sempre inseparável dos conceitos de liberdade e de distinção, caracteriza-se pela igualdade: por natureza os homens não são iguais, precisam de uma instituição política para chegar a ser iguais, ou seja, das leis. Só o ato político pode gerar igualdade [grifo meu]. (Fina Birules, p. 22)
A Declaração [Universal dos Direitos Humanos] conserva um eco de tudo isso porque os homens, de fato, não nascem livres nem iguais […] a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, porém um ideal que deve ser perseguido; não uma existência, porém um valor; não um ser, mas um dever […]. (Norberto Bobbio, p. 134)
Essa perspectiva abre as portas para uma fundamentação positiva e não-transcendente dos direitos humanos como instrumento político da igualdade. Perspectiva que, por outro lado, permitiria superar os impasses a que o prolongado debate antes mencionado tem levado a agenda internacional dos direitos humanos. Parece-me que ninguém a formulou melhor que Michael Ignatieff (p. 83), quando afirma: “[Os] direitos humanos são a linguagem mediante a qual os indivíduos criaram uma defesa de sua autonomia contra a opressão da religião, do Estado, da família e do grupo”.
A situação de guerra fria que se seguiu à Segunda Guerra Mundial condicionou de forma direta o debate político e acadêmico. Dois focos de tensão centrais surgiram a partir desse momento: (a) o debate a respeito da preeminência dos direitos civis e políticos ou dos direitos econômicos e sociais – que pôs em confronto os países ocidentais industrializados e os países do bloco socialista; (b) o debate sobre o caráter universal dos direitos humanos, que pôs em confronto, de modo geral, os países desenvolvidos e boa parte do mundo árabe e dos países asiáticos.
Curiosamente, se o segundo debate permanece aberto, em grande medida pelo impulso permanente que as diversas variantes do relativismo cultural e do imperialismo moral lhe deram, o primeiro foi encerrado antes que se esgotasse.
A abrupta e patética queda do bloco socialista em 1989 deixou a descoberto o caráter superficial e grosseiramente demagógico do “debate” sobre os direitos humanos que acompanhou todo o período da guerra fria. O interessante é que, com o triunfo do “Ocidente”, venceu, de alguma forma, a posição do bloco socialista. O tão mencionado e tão superficial e pouco analisado caráter “indivisível” e “interdependente” dos direitos humanos funcionou, de fato, conforme tentarei demonstrar, como um elemento relativizador da prioridade dos direitos políticos. Segundo nos lembra Bobbio (pp. 150 e ss.), nunca é demais insistir no fato de que os direitos humanos não são absolutos, nem constituem uma categoria homogênea (contrariamente ao que pareceria indicar seu suposto caráter indivisível). O valor absoluto de alguns poucos direitos, ou seja, seu statusprivilegiado, provém do fato de sua violação ser condenada universalmente. Mesmo assim, por exemplo, o direito a não ser submetido à escravidão implica a eliminação do direito de possuir escravos e o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Nesse contexto, cabe perguntar, além da retórica e da ironia, qual é o conteúdo ou o significado do conceito de indivisibilidade.
Essa superficialidade no tratamento do assunto revelou que a preeminência dos direitos civis e políticos sustentada pelo Ocidente durante o período da guerra fria, longe de ser produto de um imperativo ético ou moral, constituiu uma forma nada sutil de enfraquecer a já frágil legitimidade do bloco socialista.
Mas, onde se situa hoje o problema da relação entre os direitos políticos e os direitos econômicos e sociais? Paradoxalmente, em um mundo cheio de problemas, o problema dessa relação parece ser o de não constituir problema algum. De maneira semelhante ao caráter mágico da indivisibilidade, o caráter interdependente dos direitos humanos, afirmando igual importância e homogeneidade para ambos os tipos de direito, tem servido para suprimir qualquer debate sobre a eventual prioridade de um ou outro tipo, geralmente sob o rótulo de anacrônico.5
Adianto, por motivos e com argumentos que exporei depois, uma clara posição a favor de priorizar hoje os direitos políticos nos países do Sul, em qualquer estratégia de reconstrução de uma agenda confiável e mobilizadora dos direitos humanos.
Nesse sentido, o posicionamento a que me refiro parte do reconhecimento do caráter contingente do conteúdo dos direitos políticos e dos direitos econômicos e sociais. Nada há na “natureza das coisas” que torne um direito inerente a uma ou outra categoria. Além disso, não se trata, de forma alguma, de negar a importância do conteúdo dos direitos econômicos e sociais. Trata-se, na verdade, de defender a necessidade de um debate público sobre a conveniência de priorizar algum tipo de direito e subtrair, ou não, da política (confiando-os exclusivamente ao direito) alguns aspectos da vida social pertencentes àquilo que, em sentido amplo, pode ser denominado desenvolvimento econômico e social. Ao mesmo tempo, trata-se também de realizar uma operação que poderia ser entendida como contrária a essa tendência. Refiro-me à necessidade de considerar como um direito político (e, por conseguinte, não sujeito à tolerância nem à negociação com uso da cláusula de “até o limite dos recursos disponíveis”, que caracteriza os direitos econômicos e sociais) alguns direitos que até agora eram considerados como típicos do campo dos direitos econômicos e sociais. Aludo aqui, concretamente, ao direito à educação.
Na atual etapa do desenvolvimento tecnológico, em que o acesso ao conhecimento constitui a variável decisiva e fundamental de uma existência humana digna, que constitui a finalidade última dos direitos humanos, o direito à educação não pode ser submetido a qualquer tipo de negociação, devendo ser entendido como prioridade tão absoluta quanto a abolição da escravidão ou da tortura. Exatamente o mesmo pode e deve ser afirmado com relação à saúde básica. Mais adiante, voltarei a tratar desse ponto.
Uma postura tal como a que defendo se explica, principal-mente, a partir de uma profunda insatisfação com o estado de coisas existente. Na verdade, trata-se de expor novos problemas e novas questões em um mundo no qual a guerra no Iraque detonou a já fragilizada e questionável institucionalidade dos direitos humanos, implantada após a Segunda Guerra Mundial. Parafraseando Ignatieff (p. 81) em uma referência ao Holocausto, a guerra do Iraque atualiza tanto a consciência acerca da fragilidade dos direitos humanos quanto, simultaneamente, sua imperiosa necessidade.
Essa insistência na necessidade de revisão crítica da agenda dos direitos humanos não é um exercício cego de mera onipotência intelectual que pretenda apagar os fatos com palavras. Trata-se, ao contrário, de se negar a continuar com o bussiness as usual nesse mutante cenário de transformações profundas e incertas.
Para ser ainda mais claro, gostaria de deixar explícita minha suspeita, da qual surgem minha insatisfação e minha argumentação alternativa, de que a recusa em aceitar hoje a prioridade dos direitos políticos, mediante a afirmação de que todos os direitos são igualmente prioritários, tem provocado, principalmente nos países do Sul, um aumento nas violações aos direitos políticos, ao mesmo tempo que não tem provocado qualquer avanço significativo no campo dos direitos econômicos e sociais.
Considerando o caráter política e culturalmente hege-mônico que assumiu a dimensão dos direitos humanos que mais adiante caracterizarei como “programática”, estabelecer que todos os direitos são igualmente importantes e, em conseqüência, igualmente prioritários, constitui uma forma sutil de confirmar a prioridade real daqueles direitos cujo não-cumprimento não chega a gerar fortes tensões políticas com os Estados. A possibilidade de estabelecer um relacionamento de constante cooperação não-conflitante com o Estado, se a prioridade real são os direitos econômicos e sociais, explica, em boa medida, o caráter hegemônico dessa tendência.
Particularmente nestes últimos anos, aquilo que poderia ser denominado “a questão dos direitos humanos” pode ser dividido, especialmente para fins analíticos, em três dimensões, às quais farei menção um pouco mais adiante.
O que pode ser caracterizado como dimensão propriamente política dos direitos humanos se desenvolveu, fundamental-mente, em estreito vínculo com as lutas de caráter nacional, em resposta concreta às violações dos direitos dos indivíduos por parte do Estado. A militância ativa não-profissional, seu caráter essencialmente conflituoso e a ausência de reflexões teóricas significativas (em particular quando medida em proporção ao tamanho das lutas) marcou profundamente a dimensão política dos direitos humanos.
Por sua vez, a dimensão que poderia ser denominada acadêmica em geral tem ficado circunscrita ao mundo universitário e a centros específicos de conhecimento. A relação entre o direito interno e o direito internacional e, mais especialmente, a aplicabilidade no contexto nacional dos tratados internacionais ocuparam o centro desse debate. Em outras palavras, o desenvolvimento acadêmico dos direitos humanos se tornou em boa parte sinônimo de “Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
Mas a dimensão que apresenta mais arestas de comple-xidade e, ao mesmo tempo, talvez resulte a mais rica em implicações político-conceituais, é a dimensão que aqui se denominaprogramática. Essa dimensão faz referência à incorporação, por parte de organismos internacionais de diferentes âmbitos geográficos e de competência temática muito diversificada, das formas e da semântica dos desenvolvimentos políticos e acadêmicos em matéria de direitos humanos. No entanto, engana-se completamente quem acha que esse processo se consumou com a incorporação passiva e a mera assimilação das duas dimensões antes mencionadas. A dimensão programática dos direitos humanos, na forma em que efetivamente está acontecendo, supõe uma profunda reformulação da teoria e da prática, tanto acadêmica quanto política, dos direitos humanos, cujas conseqüências (algumas delas) me proponho a identificar e começar a analisar nas linhas restantes.
Uma perspectiva politicamente não-conflitante em relação ao Estado e ambígua em relação aos aspectos mais ásperos do debate acadêmico caracteriza a dimensão programática dos direitos humanos. Uma incorporação anistórica, ritualista, pragmática, indiscutível (mainstream) e totalizadora esvaziou lentamente o conteúdo da proposta política e acadêmica original dos direitos humanos. Da mesma forma, visto que quando tudo é prioritário na verdade nada é prioritário, quando tudo é direitos humanos (a começar por situações que não implicam responsabilidade alguma por parte do Estado), nada é direitos humanos.
Essa colonização burocrática do discurso dos direitos humanos teve um profundo e desigual impacto na prática e nos desdobramentos conceituais, especialmente nos países do Sul do planeta. Neste último caso, a fragilidade, quando não a inexistência, de centros autônomos de conhecimento aumentou a eventual dependência teórico-cultural de organismos internacionais, principalmente daqueles que, especificamente, mais contribuíram para a reformulação conceitual da questão dos direitos humanos. Como resultado, nada que pudesse parecer uma perspectiva crítica surgiu nos últimos anos.
Quase invariavelmente, os “consensos” nessa dimensão foram obtidos por agregação. A conseqüência prática consiste em que toda agenda completa e integral de direitos humanos acabou se constituindo, na verdade, muitas vezes em um eufemismo para designar uma agenda tão politicamente inócua quanto imóvel e intranscendente.
Paradoxalmente, enquanto cresce o caráter conflituoso da política em torno de temas críticos de direitos humanos, ou seja, enquanto se multiplicam as violações flagrantes aos direitos humanos mais elementares, se expande incessante-mente a lista de direitos humanos referentes ao desenvolvi-mento econômico e social. Parece que uma parte importante dos atuais avanços conceituais só foi capaz de refletir a aridez e a superficialidade de um mundo unipolar.
Esse é o contexto no qual me proponho a fazer uma análise crítica tanto das conseqüências práticas de algumas suposições (não demonstradas) sobre as quais se baseiam o discurso e as ações atuais dos direitos humanos (universalidade, interdepen-dência e indivisibilidade) quanto das relações entre a política e o campo dos direitos humanos.
Na concepção ritualista que domina hoje o discurso sobre os direitos humanos, e que se expressa com total clareza em sua dimensão programática, as suposições às quais aludi acima parecem constituir verdades evidentes que não precisam – mas, principalmente, não admitem – de debate e, muito menos, de crítica.
Tal debate, ou mais precisamente a ausência dele, se estrutura, basicamente, em torno do tipo de relação, tanto a existente quanto a desejável, entre os direitos políticos e os direitos econômicos e sociais.
A concepção programática estruturada metodologicamente em torno do consenso por agregação constitui, na verdade, uma concepção acumulativa dos direitos humanos. Desse modo, os direitos econômicos e sociais são um tipo de camada geológica posterior, que se encaixa harmoniosa e naturalmente nos direitos políticos. Torna-se interessante observar um certo parentesco dessa concepção linear e acumulativa com o desenvolvimento, não desprovido de um certo economicismo, da teoria de T. W. Marshall sobre o processo histórico de expansão dos direitos.6
Por tudo que foi mencionado anteriormente, parece-me importante começar a questionar a idéia “politicamente correta” de que a expansão incessante do conteúdo dos direitos humanos, ou seja, daquelas áreas da vida social que se subtraem à contingência e à negociação política, fortalece diretamente a agenda e as lutas pelos direitos humanos. Para tanto é preciso, entre outras coisas, entender o caráter complexo do relacionamento entre estes últimos e a paz social.7
É verdade que o maior acolhimento dos direitos humanos contribui para a paz social. No entanto, não é menos verdade que a paz social e a estabilidade democrática são o único ambiente em que os direitos humanos podem se desenvolver de forma genuína e sustentável.
Costuma-se argumentar que, no plano dos direitos, a incorporação de aspectos anteriormente considerados exclusivos da política social possui a extraordinária vantagem de sua “justiciabilidade”. Sendo essa afirmação estritamente correta, não é menos correto dizer que a ação individual da justiça para prestar de fato os benefícios da política social pode se tornar não apenas fonte de reprodução ampliada de desigualdades sociais, mediante a desigualdade no acesso à justiça,8 mas também uma concessão indesejada de legitimidade a governos que utilizam essa via para atender a bem poucos.
Mas o problema mais importante e preocupante dessa concepção expandida dos direitos humanos não se encontra, na minha opinião, no exemplo anterior. O problema mais grave surge, especificamente, da transformação em tema de direitos humanos daqueles assuntos políticos que, ao mesmo tempo, se tornam altamente conflitantes do ponto de vista moral.
Nas palavras do filósofo inglês John Gray (1997, p. 22):
Converter um assunto político profundamente conflituoso do ponto de vista moral em assunto de direitos fundamentais é convertê-lo em não-negociável. Os direitos, ao menos como são entendidos na escola contemporânea dominante da jurisprudência anglo-americana, geram adjudicações incondicionais, não suscetíveis de discussão. É justamente por essa razão que o direito não permite que assuntos altamente conflituosos possam ser objeto de compromissos legislativos. [No campo do direito] as possibilidades são só de vitória ou rendição incondicional. A questão do aborto nos Estados Unidos, onde o assunto é tratado como objeto de direito constitucional em vez de ser tratado como problema de [política] legislativa, constitui o mais claro exemplo de um assunto conflituoso que se transformou em maior perigo para a paz social, desde que foi elevado a problema de direito constitucional e da teoria dos direitos.
Efetivamente, o tratamento dado ao tema do aborto, em termos comparativos entre Europa e Estados Unidos, ilustra bem o que vem a ser o veio central do pensamento que tento aqui expor.
Surgido praticamente de forma simultânea na Europa e nos Estados Unidos, no início da década de 70, o tema do aborto rompeu literalmente o tecido social europeu, sendo provavelmente o caso italiano o mais claro desses exemplos. Foram anos de intensos e agitados debates, nos quais a Igreja Católica, de um lado, e o movimento feminista, de outro, lideraram e arregimentaram uma sociedade profundamente dividida pela questão moral. Os primeiros vislumbres de consenso não chegaram pelo lado do conteúdo do debate, e sim pelo lado de um procedimento para dirimir o conflito. Esgotada a sociedade por anos de debate, houve finalmente acordo para entender a dimensão política de um problema de profunda raiz moral. Plebiscitos e leis resolveram politicamente a questão, de forma pacífica e duradoura.
Concomitantemente, o rumo tomado nos Estados Unidos foi totalmente diferente. Pouco tempo depois do início de um debate que prometia virulência ainda maior do que a ocorrida na Europa, a Corte Suprema dos Estados Unidos, no conhecido caso Roe vs Wade, truncou o debate político declarando o aborto um direito constitucional.9 Exatamente trinta anos depois, a sociedade americana encontra-se mais dividida e a paz social mais ameaçada, justamente por ter pretendido solucionar dentro do campo dos direitos humanos, e não dentro do campo da política, um problema que moralmente dividia (e até hoje divide) profundamente essa sociedade.
Por último, sem nenhuma pretensão conclusiva, mas principalmente com o intuito de estimular o debate, gostaria de enfrentar o tema da relação entre política e direitos humanos. O problema é complexo em aparência e muito mais em essência.
Sob a perspectiva de uma democracia ser levada a sério, existe um amplo consenso no sentido de exigir e aceitar a necessidade de vedar à política algumas áreas da vida social e institucional, como condição necessária para o funcionamento do Estado de direito. No entanto, isso não deveria ser confundido com o fato de se pensar os direitos humanos à margem ou acima da política. Em geral, o consenso de vedar determinados assuntos à política não é resultado de outra coisa senão de acordos políticos, cuja solidez e durabilidade estão em relação direta com o grau de consenso moral em que se apóiam. Segundo afirma Ignatieff (p. 22), “a linguagem dos direitos humanos existe para que nos lembremos que alguns abusos são realmente intoleráveis e que algumas desculpas por esses abusos são realmente insuportáveis”.
Se concordarmos com a citação anterior, deveremos estar dispostos a admitir então a possibilidade de que a falta de prioridade explícita dos direitos políticos contribuiu para esvaziar o conteúdo e relativizar a existência de um núcleo resistente dos direitos humanos.
A insistência em expandir incessantemente as áreas da vida econômica e social que devem ser entendidas como direitos humanos debilita de forma considerável qualquer agenda política confiável e sobretudo mobilizadora em matéria de direitos humanos. Não me parece que seja expandindo a lista dos direitos humanos, como uma espécie de fuga para o futuro, que se recupere a credibilidade perdida.
Aos partidários da interdependência e da indivisibilidade dos direitos humanos, principalmente àqueles com responsabilidades no desenvolvimento da dimensão programática dos direitos humanos, convém lembrar que não se conserva indefinidamente uma hegemonia cultural fugindo sempre do debate e demonizando as posturas críticas nessa matéria, consideradas inconvenientes ou anacrônicas.
1. Um exemplo representativo dessa conhecida perspectiva filosófico-metafísica, tributária, entre outros, do pensamento do filósofo argentino Carlos Nino, pode ser encontrado em Pedro Nikken (p. 21): “O reconhecimento dos direitos humanos como atributos inerentes à pessoa, que não são uma concessão da sociedade nem dependem do reconhecimento de um governo […]”. Por outro lado, argumentos decisivos para demonstrar a fragilidade do conceito de “natureza humana” com relação ao fundamento dos direitos humanos são apresentados por Norberto Bobbio (pp. 118 e ss.).
2. Para uma visão radicalmente crítica da associação entre o pensamento humanista e a idéia de progresso e, em conseqüência, para uma visão que trate da crise profunda do pensamento humanista, ver o recente trabalho de J. Gray (2002, sobretudo pp. 3-4).
3. Tanto essa caracterização quanto essa crítica à visão idolátrica dos direitos humanos estão muito bem explicadas no livro de Michael Ignatieff (2001, sobretudo p. 83).
4. Uma breve porém clara reconstrução desse debate entre Nino e Rabossi pode ser encontrada em G. Carrio. Embora o assunto da fundamentação dos direitos humanos esteja presente e disperso em muitos lugares da vasta e brilhante obra de Carlos Nino, permito-me fazer referência, especificamente neste ponto, a sua obra Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. Quanto à perspectiva de Rabossi, permito-me também fazer referência direta a seu texto “La teoría de los derechos humanos naturalizada”.
5. O suposto caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos não deriva de outro lugar que não seja de sua própria declaração. Assim o consagra a declaração da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, de junho de 1993. Nesse ponto, parece-me importante não confundir o caráter não discutido (por algum tempo) de um conceito com o caráter indiscutível de um conceito. Esta última característica só pode pertencer a alguma variável do fundamentalismo. O documento mais completo e profundo sobre o tipo de relacionamento entre os direitos políticos e os direitos econômicos e sociais, que inclui uma identificação das causas mais determinantes de suas violações, assim como recomendações específicas para seu cumprimento, é o Relatório Final do Relator das Nações Unidas para os Direitos Econômicos e Sociais, Danilo Turk.
6. Refiro-me especificamente ao conhecido ensaio de 1950, Ciudadanía y clase social.
Ver T. H. Marshall & Tom Botommore.
7. A insistência no vínculo entre estabilidade política e vigência efetiva dos direitos humanos está presente, com muita força, no trabalho de Ignatieff.
8. Esse alerta específico pode ser encontrado, inclusive, no excelente trabalho de Vitor Abramovich & Christian Courtis (p. 42) que defendem, contrariamente ao que sustento aqui, uma concepção expandida dos direitos humanos.
9. Uma excelente descrição e uma análise desse processo foram publicadas em um relatório especial da revista inglesa The Economist: “The War that Never Ends” (Special Report Abortion in America), 18-24 jan. 2003, pp. 24-6.
Abramovich, Victor & Courtis, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madri: Trotta, 2002.
Birules, Fina. Introducción a Hanna Arendt “¿Qué es la política?”. Barcelona: Paidós, 1997.
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