Ensaios

Estratégias de litígio estratégico de interesse público para o avanço dos direitos humanos em sistemas domésticos de direito

Vinodh Jaichand

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RESUMO

O avanço dos direitos humanos requer que os tribunais esclareçam o que entendem por direitos para grupos de pessoas. Quando as normas de direitos humanos internacionais e regionais são internalizadas mediante sua implementação num sistema doméstico, o campo se torna fértil para demandas judiciais de interesse público. Talvez a conclusão seja de que há uma evolução gradual quanto ao desenvolvimento de uma legislação de direitos humanos, do sistema internacional ao regional. 

O artigo enfoca a prática do litígio de interesse público na África do Sul discutindo, entre outras, questões de acesso a justiça, educação legal clínica e assistência jurídica à população. Como exemplo de estratégia em uma ação pública, o autor analisa o processo movido contra o governo por uma campanha de ação para o tratamento da aids.

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01

Baseado no tema do colóquio “O Estado de direito e a construção da paz”, este ensaio foi esboçado sob a perspectiva de uma organização não-governamental nacional voltada para a legislação referente aos direitos humanos. As observações partem de uma premissa: o avanço no campo dos direitos humanos requer que se busquem os tribunais para elucidar que sentido têm os direitos humanos para um grupo de pessoas. Certas experiências recentes na África do Sul, algumas das quais não são necessariamente exclusivas desse país, são usadas como referência.1

Nos últimos dias, muito se falou a respeito do desenvol-vimento da legislação internacional e da utilização de sistemas regionais de direitos humanos. Em resumo, pode-se concluir que tem havido uma evolução gradativa dessa legislação, passando dos sistemas internacionais para os regionais. Quando as normas internacionais e regionais de direitos humanos são internalizadas, por meio de sua implementação no sistema doméstico, cria-se um solo fértil para o litígio de interesse público.2

A expressão “litígio de interesse público” tem sido definida como “uma ação legal iniciada em um tribunal para a validação de um interesse público ou de um interesse geral em que o público, ou um grupo de pessoas da comunidade, detém algum interesse econômico ou outro, em relação ao qual seus direitos ou suas responsabilidades legais foram afetados”.3

O Simpósio sobre Direito de Interesse Público4  realizado em Durban adotou uma visão mais ampla desse campo do direito, definindo-o em termos daquilo que ele não é: não se trata de direito público, nem de direito administrativo, nem de direito penal, nem de direito civil. A denominação foi empregada para designar uma forma de trabalhar com a lei e uma atitude perante a lei. Chamou-se a atenção para o fato de que levar aos tribunais casos selecionados não constitui a única estratégia de interesse público, sendo possível incluir reforma da legislação, conscientização legal, alfabetização e prestação de serviços jurídicos. Não é um terreno reservado a advogados, pois pode envolver atividades de lobby, pesquisa, defesa de interesses e conscientização relacionada aos direitos humanos. Finalmente, o litígio de interesse público constitui uma tentativa expressa de validação desse campo, atribuindo significado e conteúdo tangíveis aos direitos humanos.

O conteúdo da estratégia

O direito é muitas vezes intimidativo e atordoante, parecendo nunca ver as coisas do ponto de vista dos marginalizados, vulneráveis ou indigentes. A maioria das pessoas pensa que a lei está a seu lado quando os tribunais declaram seus direitos de maneira positiva, reforçando a crença de que os direitos humanos constituem uma realidade tangível. “Para criar tal sentido de inclusão, muitas coisas são necessárias, inclusive um marketing agressivo do conceito de justiça para os pobres”, diz um crítico.5  Além disso, o êxito nos tribunais representa uma significativa contribuição para apoiar esse marketing, porque os marginalizados, os vulneráveis e os indigentes se acostumaram à idéia de que serão sempre derrotados.

Um bom ponto de partida no que se refere à estratégia em litígios de real interesse público pode ser encontrado no processo que opõe o ministro da Saúde e outros e a Campanha de Ação para o Tratamento e outros,6  no Tribunal Constitucional da África do Sul. A análise da estratégia empregada pode ajudar a formular uma lista dos temas e dos interessados que precisam ser atendidos para que a ação seja bem-sucedida. Um método simplista de divisão poderia ser examinar o “público” como representante da opinião geral; o “interesse público” enquanto plataforma jurídica; e, finalmente, o “litígio”, relacionando-o às questões legais apresentadas ao tribunal e a seus resultados.

O público

A Campanha de Ação para o Tratamento fez da atitude do governo em relação ao tratamento dos pacientes portadores do vírus do HIV uma questão nacional.7  Mobilizou ONGs que se mostravam sensíveis à indiferença do governo para com os que sofrem de aids, capitalizando a incapacidade do Estado em articular uma postura coerente diante da doença.8  Grande número de cidadãos interessados foram às ruas para mostrar seu inconformismo com a atitude oficial.9  Os portadores de HIV eram vistos como vítimas da incapacidade do governo em lidar com a doença.

Em conseqüência, quando um funcionário da Campanha de Ação para o Tratamento introduziu clandestinamente no país remédios genéricos contra a aids por uma fração do preço de venda habitual, as ameaças de processá-lo recuaram lentamente diante do que parecia ser o gesto de um indivíduo corajoso, decidido a mostrar a hipocrisia do sistema.10  Em uma ação anterior, a Campanha de Ação para o Tratamento se opusera, em comum com o governo, à ação judicial movida pelo Sindicato da Indústria Farmacêutica, para bloquear uma legislação de apoio aos remédios genéricos e mais baratos. Sob pressão, o sindicato retirou sua ação no tribunal. Um dos líderes da Campanha, que também é soropositivo, se recusou a tomar remédios anti-retrovirais até que estes estivessem à disposição de todos, em hospitais públicos e clínicas. A Campanha de Ação para o Tratamento continuou a questionar a letargia do governo, agora apoia­da no “interesse público” que buscava.

O interesse público

Surgiu então um caso judicial ideal para ser capitalizado pela Campanha de Ação para o Tratamento: a incapacidade política do governo em fornecer aos estabelecimentos públicos de saúde a nevaripina, um anti-retroviral altamente recomendado, usado para reduzir a transmissão de mãe para filho. O medicamento estava disponível em apenas dois locais por província. E as vítimas dessa política estatal insensível eram bebês inocentes. Ao julgar uma ação movida no Supremo Tribunal de Pretória, em 14 de dezembro de 2001, o juiz Chris Botha determinou que era dever do governo fornecer nevaripina às mulheres grávidas soropositivas. O governo recorreu dessa decisão em diversas ocasiões, até que o Tribunal Constitucional examinou o caso, em 2 e 3 de maio de 2002. O “interesse público” foi realçado pela aparente incapacidade do governo em aceitar a derrota com um mínimo de elegância.

O litígio

Em relação ao aspecto do “litígio”, a Campanha de Ação para o Tratamento reuniu os melhores especialistas jurídicos na abordagem dos direitos socioeconômicos – que em muitos países não são sequer considerados direitos. A campanha contou com o apoio de várias ONGs: Legal Resources Centre; Child Rights Centre; Community Law Centre,11  Institute for Democracy in South Africa e Cotlands Baby Sanctuary. Os três últimos eram amici curiae, ou seja, especialistas designados para elucidar questões técnicas perante o tribunal, com base em seus conhecimentos.12  Após a Campanha de Ação para o Tratamento ter vencido na Suprema Corte, o governo entrou com recurso no Tribunal Constitucional. Este, por sua vez, decidiu em favor da Campanha de Ação para o Tratamento, declarando que o programa do governo para evitar a transmissão de mãe para filho era inadequado.

Os resultados mais amplos do processo

O tribunal consagrou vários outros princípios importantes no processo da Campanha de Ação para o Tratamento, que viriam a ser igualmente valiosos para os marginalizados (vítimas da aids), os vulneráveis (filhos e mães) e os indigentes (pessoas pobres que não podem pagar pelo tratamento). Esses princípios poderão ser usados em vá­rios casos no futuro.

O Tribunal Constitucional, a mais alta corte do país, reiterou13  seu poder de julgar direitos socioeconômicos porque a Constituição lhe concedeu tal poder. Disse ainda que, no debate sobre a separação dos poderes, estava autorizado a examinar a questão mesmo que houvesse implicações financeiras.14  Já anteriormente, o Tribunal Constitucional havia aplicado o critério de racionabilidade ao direito socioeconômico em questão, no caso Grootboom:15

Os contornos e o conteúdo precisos das medidas a serem adotadas são fundamentalmente uma questão da alçada do legislativo e do executivo. Eles devem, contudo, assegurar que as medidas adotadas sejam razoáveis. Um tribunal que examine a racionabilidade não irá inquirir se outras medidas mais desejáveis ou favoráveis poderiam ter sido adotadas, ou se o dinheiro público poderia ter sido mais bem gasto. A questão resume-se a determinar se as medidas adotadas foram razoáveis. É necessário reconhecer que uma ampla variedade de medidas possíveis pode ser adotada pelo Estado para cumprir suas obrigações. Muitas delas atendem à exigência de racionabilidade. Uma vez demonstrado que tais medidas o fazem, essa exigência será dada como cumprida.

É habitual considerar que os assuntos de política social constituem esferas de atuação do poder executivo.16  O Tribunal Constitucional chamou a atenção para o fato de que a maioria de suas decisões tem alguma implicação financeira. No caso Grootboom,17  o tribunal reafirmou o que fora dito anteriormente:18  se fosse ordenada assistência jurídica para um indivíduo acusado, como direito civil, isso também teria implicação financeira.

O juiz Albie Sachs, um dos onze juízes do Tribunal Constitucional, em palestra intitulada “Execução de direitos sociais e econômicos”, no Centro de Estudos dos Direitos Humanos, da Faculdade de Economia de Londres,19  afirmou:

A aplicação de direitos sociais e econômicos não se baseia em uma indiferença por todas as questões levantadas por serem legítimas. Não se trata de uma vitória dos direitos sociais e econômicos sobre uma filosofia conservadora que considera como função dos tribunais simplesmente defender as liberdades básicas. Baseia-se na reconciliação de princípios fundamentais profundos relacionados ao papel dos tribunais no século 21. […]
É bem possível que uma afirmação que tive a ocasião de ouvir recentemente em Paris venha a se tornar verdade. O século 19 foi o século em que o executivo assumiu o comando do Estado. O século 20 foi o século em que o Parlamento assumiu o comando do executivo. O século 21 será o século em que o judiciário assegurará as regras, os processos e os valores básicos de funcionamento tanto do Parlamento quanto do executivo. Devo ressaltar que foi um magistrado quem fez esse vaticínio. Mas penso que estamos ingressando agora em um novo tipo de era, e a questão está deixando de ser se podemos ou não implementar direitos sociais e econômicos por meio dos tribunais, e passou a ser: qual a melhor maneira de se fazer isso?

Em relação à Campanha de Ação para o Tratamento, o Tribunal Constitucional levou em devida conta a adequação dos tribunais para julgar direitos sociais e econômicos ao declarar: “Os tribunais não são instâncias apropriadas para julgar questões em que ordens judiciais poderiam resultar em múltiplas conseqüências sociais e econômicas para a comunidade. A Constituição prevê um papel restrito e focado do tribunal – a saber, exigir que o Estado tome medidas para cumprir suas obrigações constitucionais e avaliar a racionabilidade de tais medidas. A determinação da racionabilidade pode efetivamente ter implicações orçamentárias, mas não tem por objetivo ajustar orçamentos. Nesse sentido, as funções judiciais, legislativas e executivas conseguem um equilíbrio mais apropriado”.20

O Tribunal Constitucional conduziu também um exame da jurisprudência em outras jurisdições, a respeito da questão da doação de remédios, em que ocorrera uma violação de direitos, inclusive socioeconômicos. O tribunal analisou as práticas dos Estados Unidos, da Índia, da Alemanha, do Canadá e do Reino Unido e concluiu que enquanto três países haviam expedido algum tipo de interdição estrutural, o Reino Unido e o Canadá haviam sido relutantes em fazê-lo, preferindo ordens declaratórias, em vista do fato de seus governos costumeiramente atenderem às decisões de seus tribunais.21

No caso Grootboom, a senhora Irene Grootboom fora despejada de seu barraco, situado em um terreno que havia sido alocado para a implementação de um projeto habitacional de baixo custo para pessoas como ela e seus filhos. Ela ocupava esse terreno juntamente com outras pessoas cujas casas, na estação chuvosa, eram vítimas freqüentes de inundações. O juiz Yacoob, do Tribunal Constitucional, determinou que a política do governo não atendia ao requisito da racionabilidade. Afirmou que a racionabilidade pode ser aferida no âmbito da programação legislativa e no de sua implementação: “As medidas legislativas em si mesmas não constituem cumprimento da Constituição. A mera legislação não é suficiente. O Estado é obrigado a agir para conseguir o resultado pretendido e as medidas legislativas terão invariavelmente de ser apoiadas por políticas e programas apropriados e bem direcionados, a ser implementados pelo executivo. O próprio programa também deve ser implementado atendendo à racionabilidade. Um programa razoável que não seja implementado de maneira razoável não constituirá cumprimento das obrigações do Estado”.22

O juiz Yacoob acrescentou ainda:

A racionabilidade deve ser também entendida no contexto da Declaração de Direitos como um todo. O direito de acesso à moradia adequada já está arraigado, porque valorizamos os seres humanos e queremos garantir que suas necessidades básicas sejam atendidas. Uma sociedade baseada na dignidade humana, na liberdade e na igualdade deve procurar assegurar que as necessidades básicas da vida sejam oferecidas a todos. Para serem razoáveis, as medidas não podem deixar de levar em conta o grau e a extensão da negação do direito que elas buscam efetivar. Aqueles cujas necessidades são mais urgentes e cuja capacidade de gozar de todos os direitos corre maior perigo não devem ser ignorados pelas medidas que visam atingir a realização do direito. Pode não ser suficiente para o teste de racionabilidade que as medidas se mostrem capazes de representar um avanço estatístico na efetivação dos direitos. Além disso, a Constituição exige que todos devam ser tratados com cuidado e atenção. Se as medidas, ainda que bem-sucedidas no aspecto estatístico, falharem em responder às necessidades daqueles mais desesperados, elas podem não passar no teste.23

Os princípios sistematizados na Campanha de Ação para o Tratamento e no caso Grootboom são aplicáveis em lití­gios futuros sobre direitos econômicos, sociais e culturais.

02

A abordagem em rede

De modo geral, a estratégia de esforço combinado, ou abordagem em rede, é um processo vantajoso, com o benefício adicional de permitir estabelecer uma área definida de atendimento de casos adequados de interesse público.

Acesso à justiça

Os advogados nem sempre são eficientes na mobilização da opinião pública – os líderes comunitários costumam fazer isso melhor. Na África do Sul, uma figura importante nesse aspecto é a do paralegal comunitário, indivíduo oriundo da comunidade na qual atua. Em futuro próximo, é possível que o meio jurídico da África do Sul admita a profissão de paralegal como fornecedor de serviços advocatícios, nos termos propostos pela Legal Practice Bill.

Embora a definição de paralegal não fique clara e a classe dos advogados seja contrária à idéia de os paralegais representarem um cliente sem supervisão, eles ficaram conhecidos como “advogados descalços”: oferecem aconselha-mento jurídico ao cidadão em assuntos legais ou quase-legais. Recebem treinamento sobre a mecânica de uma determinada legislação e orientam os cidadãos em relação a ela.

Ainda que isso amplie o acesso à justiça, permitindo educar a população em relação a seus direitos, o aspecto da prestação de serviços jurídicos suscita questões de qualidade e igualdade: os ricos podem pagar pelo melhor, enquanto os pobres ficam com os paralegais. Os pobres não conhecem a diferença entre um advogado e um paralegal e os resultados prometidos por alguns paralegais são notoria­mente extravagantes.

Se, como propõe a Legal Practice Bill, a maioria dos paralegais migrar para o exercício legal do direito, um vínculo muito importante com a comunidade será rompido. Isso constituiria uma grande perda, porque os paralegais encaminharam bons casos, como o da senhora Grootboom, que veio de um escritório paralegal.

Organizações não-governamentais que prestam assistência jurídica são também vitais para a estratégia de litígio de interesse público. Na África do Sul há algumas que oferecem esse serviço. O já referido Legal Resources Centre é uma ONG de interesse público muito bem-sucedida e que atuou como parte no caso da Campanha de Ação para o Tratamento. Outras ONGs incluem a Black Sash, a mais antiga das que se dedicam aos direitos humanos na África do Sul; e a Lawyers for Human Rights. Se considerarmos a definição de direito de interesse público dada pelo Simpósio de Durban, a ONG Lawyers for Human Rights atende a muitos dos critérios para a prática desse direito. A organização fornece aconselhamento jurídico, litigação, instrução e defesa em questões de direitos humanos.

A Lawyers for Human Rights também esteve envolvida em casos marcantes de interesse público, inclusive o caso Makwanyane,24  que aboliu a pena de morte, na qual atuou comoamicus curae. Mais recentemente, teve êxito em obter uma declaração de inconstitucionalidade na nova lei de imigração, para aspectos centrais referentes à prisão e à detenção de estrangeiros.25  Com seu Projeto para Segurança dos Trabalhadores Rurais, estabeleceu o precedente de um marido adquirir o direito de permanecer em uma fazenda a partir do direito de sua esposa, com base no direito à vida familiar.26

Centros de educação jurídica

O aconselhamento e a assistência jurídicos são componentes vitais do direito de interesse público, mas trata-se de um serviço caro. Para ONGs que não lidam com questões legais, é vital dispor de acesso a uma assessoria jurídica consistente. Em várias partes do mundo, estudantes de direito se incumbem de prestar esse tipo de serviço, supervisionados, em centros universitários de atendimento jurídico, como parte de seu estágio. Além dos Estados Unidos, não há muitos outros países em que os regulamentos de estágio profissional permitam tal procedimento.27  Na África do Sul, os vários centros de atendimento formaram uma associação própria, que oferece seu trabalho aos pobres e compete com as ONGs por financiamentos para a melhoria do serviço.

Assistência legal

Embora haja alguma forma de assistência jurídica na maioria dos países, existem dificuldades em atender à demanda com os recursos disponíveis, o que limita o trabalho a ser realizado. Na África do Sul, o Legal Aid Board (conselho de assistência jurídica) passou por uma grande transformação, de um sistema de judicare28  para um modelo remunerado, com centros de justiça implantados em todas as grandes cidades e em algumas áreas rurais. O modelojudicare tornou-se impraticável, na medida em que as ações promovidas pelos advogados não eram examinadas em tempo hábil.29  O sistema de verificação das reivindicações era incômodo e moroso. Por isso, o conselho decidiu reduzir as taxas, e muitos advogados se sentiram traí­dos. Encaravam o sistema como uma forma de complementar suas rendas, e não como uma prestação de serviços de atendimento aos setores pobres, marginalizados e vulneráveis de nossa sociedade. Jeremy Sarkin30  afirma que durante “o exercício de 1997-1998, 196.749 pessoas receberam assistência legal ao custo de 210 milhões de rands. Destas, 193.177 foram representadas por advogados particulares”.

Os centros de justiça empregam atualmente advogados remunerados e mantêm funcionários que desempenham a representação jurídica de alguns tipos de caso apenas, a um custo fixo e previsível. Visto que o padrão de rendimentos exigido pelo Legal Aid Board é bem baixo, muitos não conseguem se habilitar para receber a assistência estatal. Estes formam a maior parte de qualquer grupo com necessidade de assistência e são conhecidos como “grupo lacuna”.

Pro bono público

Uma maneira de enfrentar a imensa falta de aconselhamento de qualidade é a introdução ou, em muitos casos, a reintrodução do conceito de trabalho pro bono, que se tornaria uma parte integral da responsabilidade social de todo advogado.31  O vice-presidente do Tribunal Superior da África do Sul assim resumiu essa necessidade: “Nossa sociedade precisa confiar em nossos tribunais e nas outras estruturas destinadas à execução da justiça. Essa confiança será acentuada pela habilidade dos tribunais em atingir e ajudar os mais pobres entre os pobres e os mais fracos entre os fracos. A capacidade de o judiciário e os tribunais fazerem isso será gravemente prejudicada se o envolvimento na interação entre os tribunais e as pessoas que precisam dos serviços jurídicos for insuficiente e ineficiente”.32

A prática do serviço gratuito está presente em muitos sistemas legais, geralmente como ato de caridade, mas raramente é institucionalizada. É possível criar para os advogados a obrigação de empreender esse tipo de trabalho. Uma associação de advogados (ou o órgão estatal competente) poderia deixar de emitir a habilitação para a prática, em determinado ano, se não fosse prestada uma quantidade mínima de horas de trabalho em favor da população pobre, marginalizada e vulnerável. Outro dispositivo seria exigir que, para participar de uma licitação pública, o advogado apresentasse sua ficha de trabalho de assistência jurídica dativa.

A profissão jurídica deveria considerar o trabalho gratuito “não como um ato de caridade, nem como uma ferramenta de marketing, e sim como um passo deliberado na construção do tipo de sociedade que queremos, na qual todo nosso povo possa exercer seus direitos”.33  Mas devem ser encontrados meios de reconhecer a contribuição dada, sempre que os advogados forem além do mínimo exigido, estabelecendo-se prêmios ou a divulgação de seus nomes nos jornais.

Para o êxito desse trabalho, é fundamental uma operação organizada, reunindo os dados referentes às necessidades e uma lista dos provedores de serviço. Vinculados a isso poderiam estar as ONGs não-jurídicas, o sistema de assistência legal, os paralegais e as ONGs jurídicas voltadas a casos adequados aos processos de interesse público. O sistema não deve ser montado para isentar o Estado de sua responsabilidade de prover representação legal, mas para complementar o sistema existente de assistência jurídica. Conferências sobre a advocacia gratuita na Argentina, na África do Sul e no Chile examinaram minuciosamente muitas dessas idéias. Estão em fase de planejamento conferências similares a serem realizadas no Brasil e na Austrália.

Algumas observações conclusivas

O papel desempenhado pelas organizações da sociedade civil na África do Sul na cooperação com a profissão jurídica organizada fornece uma ilustração útil de como suas contribuições para os direitos humanos melhoraram e fortaleceram os direitos de um grupo específico de pessoas. O impacto das vitórias legais sobre os direitos socioeconômicos em uma jurisdição doméstica reverbera em todo o mundo em solidariedade com outras populações pobres, vulneráveis e marginalizadas. Um comentarista fez a seguinte observação: “Um dos desdobramentos mais empolgantes, contudo, é justificar os direitos econômicos e sociais no plano nacional. Exemplos de implementação de direitos culturais podem ser encontrados no Canadá e na Europa, mas os direitos econômicos e sociais têm sido vistos há muito tempo como matéria de políticas e, portanto, sujeitos a um baixo grau de prioridade. Elevá-los da arena das políticas para o domínio dos direitos abre uma nova dimensão, que pode conferir um significado substantivo ao conceito da indivisibilidade de todos os direitos humanos”.34

O desafio em muitas outras jurisdições talvez seja mais fundamental: criar alguma medida para tornar vigentes os direitos socioeconômicos, mediante proteção consti-tucional. Mas as constituições são molduras nas quais todos os direitos são supostamente contemplados: os interde-pendentes e indivisíveis direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. Não nos deixemos confundir e pensar que não há quadro se não houver moldura. Os Estados assumiram obrigações, na Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “de empregar todos os meios a seu dispor para efetivar os direitos reconhecidos na convenção. A esse respeito, deve-se ter em mente as exigências fundamentais da legislação internacional dos direitos humanos. Sendo assim, as normas da convenção devem ser reconhecidas pela legislação nacional, com previsão de formas apropriadas de indenização ou compensação a qualquer indivíduo ou grupo lesado, e deverão ser implementados os meios apropriados para assegurar a responsabilidade das autoridades públicas”.35

Um exame mais atento de muitas jurisdições pode revelar que há proteção para alguns desses direitos no direito administrativo ou em peças específicas da legislação.36  Foi o que sustentou o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ao afirmar: “O direito a um recurso efetivo não precisa ser interpretado como se esse recurso devesse ser sempre judicial. Em muitos casos, os acordos administrativos serão adequados, e aqueles que vivem sob a jurisdição de determinado Estado têm a expectativa legítima, baseada nos princípios da boa-fé, de que todas as autoridades administrativas levarão em conta as exigên­cias da convenção, no processo de tomada de decisões”.

Esclarecer o conteúdo dos direitos requer uma estratégia parecida com a que discutimos. Para tanto, é fundamental assegurar o acesso à justiça, inclusive com a colaboração de diversos atores da sociedade civil, conforme ilustrado pelas experiências recentes na África do Sul. Alguns podem querer categorizar a abordagem da Campanha de Ação para o Tratamento da aids como um movimento social. A esse respeito, Neil Stammers diz: “Os movimentos sociais foram tipicamente definidos como atores coletivos constituídos por indivíduos que consideram a alternativa de compartilhar algum interesse comum e que se identificam uns com os outros, pelo menos até certo ponto. Os movimentos sociais estão principalmente interessados em defender ou mudar pelo menos algum aspecto da sociedade, e contam com a mobilização de massa, ou a ameaça da mobilização, como sua principal sanção política”.37

Ele prossegue, afirmando que há uma função potencial para os movimentos sociais na reconstrução dos direitos humanos,38  citando finalmente as palavras de Richard Devlin: “Se os direitos humanos vierem a ser entendidos como um desafio ao poder, como uma forma de resistência à dominação, então precisamos confrontar o poder em todas as suas manifestações”.39

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Notas

1. O litígio de interesse público está bem estabelecido nos Estados Unidos, no Canadá e na Índia, por exemplo. Em relação à experiência indiana, ver “Circle of Rights” em http://hrlibrary.umn.edu/edumat/IHRIP/circle/justiciability.htm. Acesso em 15 abr. 2004.

2. É interessante notar que “o sistema internacional teve maior impacto onde as normas dos tratados foram incorporadas à lei nacional de forma mais ou menos espontânea (por exemplo, como parte da reforma constitucional e legislativa), e não como resultado do cumprimento da norma (por relatórios individuais, queixas, ou procedimentos de inquérito confidencial)”. Christof Heyns & Frans Viljoen, “The Impact of the United Nations Human Rights Treaties on the Domestic Level”. Rights Quarterly, 23.3, 2001, 483-6.

3. Black’s Law Dictionary.

4. Ocorrido de 29 de junho a 8 de julho de 1997, sob os auspícios da Public Interest Law Initiative, Columbia University, patrocinado pela Ford Foundation e pelo Open Society Institute na Universidade de Natal, Durban, África do Sul. Ver http://www.pili.org/publications/durban/preface.html. Acesso em 15 abr. 2004.

5. Hernando de Soto, “The Economist versus the Terrorist”, em http://www.economist.com/node/1559905. Acesso em 15 abr. 2004.

6. Minister of Health et al. vs Treatment Action Campaign et al. Caso número CCT 8/02; 2002 (5) SA 721 (CC); 2002 (10) BCLR 1033 (CC).

7. Foi relatado que o presidente Thabo Mbeki questionou a ligação entre o HIV e a aids, o que parece ter tido impacto sobre o programa de combate à doença pelo Ministério da Saúde.

8. “As autoridades de saúde e o presidente Thabo Mbeki atraíram críticas por terem falhado em reconhecer a magnitude de um problema que poderia devastar a população, segundo alguns prognósticos médicos.” Claire Keeton, “South African Government Ordered to Provide Nevaripine”, em http://www.q.co.za/2001/2001/12/14-tacwins.html. Acesso em 15 abr. 2004.

9. Sally Sara, da Australian Broadcasting Corporation, registrou uma das muitas manifestações, no dia 27 de novembro de 2001, quando haveria uma audiência sobre a questão no Supremo Tribunal de Pretória: “Os manifestantes traziam cruzes brancas em memória das pessoas que já haviam morrido em decorrência da epidemia […]”.

10. Foi realizado um filme sobre a vida de Zackie Achmat intitulado It’s My Life. Ver http://www.q.co.za/2001/2001/11/28-STEPSzachie.html. Acesso em 15 abr. 2004.

11. Uma nota à imprensa emitida pelo Community Law Centre, em 30 de abril de 2002, afirmava que “acreditavam que as mulheres grávidas com HIV têm direito ao tratamento com base em um direito essencial de todos terem acesso a um nível básico de assistência médica, inclusive de medicina reprodutiva, consistente com a dignidade humana. Os ricos gozam automaticamente desse acesso, mas os pobres só podem dispor significativamente dele se o Estado fornecê-lo gratuitamente. Toda criança também tem direito à assistência médica necessária para reduzir o risco de transmissão de HIV pela mãe”.

12. A Comissão dos Direitos Humanos, citada originalmente como amicus no caso, “foi notada por sua ausência – de fato, sob alegações de que se retirou por pressão do governo” segundo a doutora Rachel Murray, da Birkbeck College, da Universidade de Londres. Ver “Is the HRC Playing Fair?” de Michael Morris, em http://allafrica.com/stories/200303210601.html. Acesso em 15 abr. 2004.

13. Soobramoney vs Minister of Healht, KwaZulu-Natal 1998 (1) SA; 1997 (12) BCLR 1969 (cc) e Government of the Republic of South Africa et al. vs Grootboom et al. 2001 (1) SA (CC); 2000 (11) BCLR 1169 (CC).

14. Ver nota 18.

15. Ver nota 13, parágrafo 41.

16. Ver Kevin Hopkins, “Shattering the Divide – When Judges Go too Far”, em http://www.derebus.org.za/archives/2002Mar/articles/divide.htm. Acesso em 15 abr. 2004.

17. Ver nota 13.

18. Ex parte Chairperson of the Constitutional Assembly: in re Certification of the Constitution of the Republic of South Africa 1996 (4) SA 744 (CC).

19. “Enforcement of Social and Economic Rights”, 27 fev. 2003. Center for the Study of Human Rights, London School of Economics. Rascunho da transcrição.

20. Ver nota 6, parágrafo 38.

21. Ver nota 6, parágrafos 107 a 111.

22. Ver nota 13, parágrafo 42.

23. Ver nota 13, parágrafo 44.

24. 1995 (3) SA 391 (CC).

25. Nota à imprensa datada de 22 abr. 2003: Lawyers for Human Rights et al. vs Minister of Home Affairs et al.

26. Conradie vs Hanekom LCC 8 / RR.

27. Jeremy Sarkin, “Promoting Access to Justice”, 41. Indicator SA, vol. 19, n. 3, dez. 2002, 44.

28. Advogados particulares foram contratados para representar determinados clientes que atendiam aos requisitos do padrão de rendimentos. Foram remunerados pelo Legal Aid Board, com base em análise caso a caso.

29. Jeremy Sarkin, nota 27, 42.

30. Idem, 41.

31. Vinodh Jaichand, “A Social and Moral Responsibility”. 37 Indicator SA, vol. 19, n. 3, dez. 2002; e “LHR Calls on Lawyers to Embark on Pro Bono Work”. De Rebus, fev. 2002.

32. Juiz Pius Langa, “Making Rights a Reality”. 38 Indicator SA, vol. 19, n. 3, dez. 2002, 39.

33. Geoff Budlender, “Proposals for a New System”. 50 Indicator SA, vol. 19, n. 3, dez. 2002, 51.

34. Roland Rich, “Solidarity Rights Give Way to Solidifying Rights”. Academy of Social Sciences, 2002, 25, 31.

35. Parágrafo 2º, General Comment Number 9 (Nineteenth Session, 1998). Relatório do Committee on Economic, Social and Cultural Rights, UN doc.E/1999/22, pp. 117-21.

36. Idem, parágrafo 9º.

37. Neil Stammers, “Social Movements and the Social Construction of Human Rights”. Human Rights Quarterly, 21 abr. 1999, 980 a 983.

38. Ver nota 37, 1003/4.

39. Ver nota 37, 1008.

Vinodh Jaichand

Vinodh Jaichand é Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul; anteriormente ocupou o cargo de Diretor do Intercâmbio Internacional de Direitos Humanos da Escola de Ciências Sociais da mesma universidade. Antes disso, foi vice-diretor do Centro Irlandês para os Direitos Humanos, da Universidade Nacional da Irlanda, em Galway. Seus diplomas de pós-graduação incluem um LLM (magna cum laude) e um SJD (summa cum laude) pela Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame e um LLM pela Faculdade de Direito da Universidade de Miami. Foi Diretor Executivo da organização sul-africana Lawyers for Human Rights e Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Durban Westville, África do Sul.

E-mail: Vinodh.Jaichand@wits.ac.za