O objetivo deste artigo é demonstrar como o campo dos estudos sobre deficiência consolidou o conceito de deficiência como desvantagem social. Por meio de uma revisão das principais ideias do modelo social da deficiência, o artigo traça uma gênese do conceito de deficiência como restrição de participação ao corpo com impedimentos, tal como adotado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 2008.
Habitar um corpo com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais é uma das muitas formas de estar no mundo. Entre as narrativas sobre a desigualdade que se expressam no corpo, os estudos sobre deficiência foram os que mais tardiamente surgiram no campo das ciências sociais e humanas. Herdeiros dos estudos de gênero, feministas e antirracistas, os teóricos do modelo social da deficiência provocaram uma redefinição do significado de habitar um corpo que havia sido considerado, por muito tempo, anormal (DINIZ, 2007, p. 9). Assim como para o sexismo ou o racismo, essa nova expressão da opressão ao corpo levou à criação de um neologismo, ainda sem tradução para a língua portuguesa: disablism (DINIZ, 2007, p. 9). O disablism é resultado da cultura da normalidade, em que os impedimentos corporais são alvo de opressão e discriminação.1 A normalidade, entendida ora como uma expectativa biomédica de padrão de funcionamento da espécie, ora como um preceito moral de produtividade e adequação às normas sociais, foi desafiada pela compreensão de que deficiência não é apenas um conceito biomédico, mas a opressão pelo corpo com variações de funcionamento. A deficiência traduz, portanto, a opressão ao corpo com impedimentos: o conceito de corpo deficiente ou pessoa com deficiência devem ser entendidos em termos políticos e não mais estritamente biomédicos.
Essa passagem do corpo com impedimentos como um problema médico para a deficiência como o resultado da opressão é ainda inquietante para a formulação de políticas públicas e sociais (DINIZ, 2007, p. 11).2 Deficiência não se resume ao catálogo de doenças e lesões de uma perícia biomédica do corpo (DINIZ et. al, 2009, p. 21) é um conceito que denuncia a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras a um corpo com impedimentos. Por isso, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas menciona a participação como parâmetro para a formulação de políticas e ações direcionadas a essa população, definindo as pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” ( ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS [ONU], 2006a, artigo 1º. ). Deficiência não é apenas o que o olhar médico descreve, mas principalmente a restrição à participação plena provocada pelas barreiras sociais.
O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2008. Isso significa que um novo conceito de deficiência deve nortear as ações do Estado para a garantia de justiça a essa população. Segundo dados do Censo 2000, 14,5% dos brasileiros apresentam impedimentos corporais como deficiência ( Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2000 ). Os critérios utilizados pelo Censo 2000 para recuperar a magnitude da população com impedimentos corporais no país foram marcadamente biomédicos, tais como a gradação de dificuldades para enxergar, ouvir ou se locomover. Isso se deve não apenas ao modelo biomédico vigente na elaboração e gestão das políticas públicas para essa população no Brasil, mas principalmente à dificuldade de mensuração de o que vem a ser restrição de participação pela interação do corpo com o ambiente social.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência não ignora as especificidades corporais, por isso menciona “impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial” ( ONU, 2006a, artigo 1º. ). É da interação entre o corpo com impedimentos e as barreiras sociais que se restringe a participação plena e efetiva das pessoas. O conceito de deficiência, segundo a Convenção, não deve ignorar os impedimentos e suas expressões, mas não se resume a sua catalogação. Essa redefinição da deficiência como uma combinação entre uma matriz biomédica, que cataloga os impedimentos corporais, e uma matriz de direitos humanos, que denuncia a opressão, não foi uma criação solitária da Organização das Nações Unidas. Durante mais de quatro décadas, o chamado modelo social da deficiência provocou o debate político e acadêmico internacional sobre a insuficiência do conceito biomédico de deficiência para a promoção da igualdade entre deficientes e não deficientes (BARTON, 1998, p. 25 ; BARNES et al, 2002, p. 4).
O modelo biomédico da deficiência sustenta que há uma relação de causalidade e dependência entre os impedimentos corporais e as desvantagens sociais vivenciadas pelas pessoas com deficiência. Essa foi a tese contestada pelo modelo social, que não apenas desafiou o poder médico sobre os impedimentos corporais, mas principalmente demonstrou o quanto o corpo não é um destino de exclusão para as pessoas com deficiência (BARNES et al, 2002 p. 9; TREMAIN, 2002 p. 34). Os impedimentos são significados como desvantagens naturais por ambientes sociais restritivos à participação plena, o que historicamente traduziu os impedimentos corporais como azar ou tragédia pessoal (BARNES et al, 2002, p. 6). Se, no século 19, o discurso biomédico representou uma redenção ao corpo com impedimentos diante da narrativa religiosa do pecado ou da ira divina, hoje, é a autoridade biomédica que se vê contestada pelo modelo social da deficiência (FOUCAULT, 2004, p. 18). A crítica à medicalização do corpo deficiente sugere a insuficiência do discurso biomédico para a avaliação das restrições de participação impostas por ambientes sociais com barreiras. Por isso, para a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, a desvantagem não é inerente aos contornos do corpo, mas resultado de valores, atitudes e práticas que discriminam o corpo com impedimentos (DINIZ et. al, 2009, p. 21).
O objetivo deste artigo é demonstrar como o campo dos estudos sobre deficiência consolidou a compreensão da deficiência como desvantagem social, provocando a hegemonia discursiva da biomedicina sobre o normal e o patológico. Por meio de uma revisão histórica das principais ideias do modelo social da deficiência, o artigo procura traçar um panorama do conceito de deficiência como restrição de participação ao corpo com impedimentos. Esse foi o conceito adotado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 2008.
Há pelo menos duas maneiras de compreender a deficiência. A primeira a entende como uma manifestação da diversidade humana. Um corpo com impedimentos é o de alguém que vivencia impedimentos de ordem física, intelectual ou sensorial. Mas são as barreiras sociais que, ao ignorar os corpos com impedimentos, provocam a experiência da desigualdade. A opressão não é um atributo dos impedimentos corporais, mas resultado de sociedades não inclusivas. Já a segunda forma de entender a deficiência sustenta que ela é uma desvantagem natural, devendo os esforços se concentrarem em reparar os impedimentos corporais, a fim de garantir a todas as pessoas um padrão de funcionamento típico à espécie. Nesse movimento interpretativo, os impedimentos corporais são classificados como indesejáveis e não simplesmente como uma expressão neutra da diversidade humana, tal como se deve entender a diversidade racial, geracional ou de gênero. Por isso, o corpo com impedimentos deve se submeter à metamorfose para a normalidade, seja pela reabilitação, pela genética ou por práticas educacionais. Essas duas narrativas não são excludentes, muito embora apontem para diferentes ângulos do desafio imposto pela deficiência no campo dos direitos humanos.
Para a primeira compreensão, a do modelo social da deficiência, a garantia da igualdade entre pessoas com e sem impedimentos corporais não deve se resumir à oferta de bens e serviços biomédicos: assim como a questão racial, geracional ou de gênero, a deficiência é essencialmente uma questão de direitos humanos (DINIZ, 2007, p. 79). Os direitos humanos possuem uma alegação de validade universal importante, que devolvem a responsabilidade pelas desigualdades às construções sociais opressoras (SEN, 2004). Isso significa que os impedimentos corporais somente ganham significado quando convertidos em experiências pela interação social. Nem todo corpo com impedimentos vivencia a discriminação, a opressão ou a desigualdade pela deficiência, pois há uma relação de dependência entre o corpo com impedimentos e o grau de acessibilidade de uma sociedade (DINIZ, 2007, p. 23). Quanto maiores forem as barreiras sociais, maiores serão as restrições de participação impostas aos indivíduos com impedimentos corporais.
Para a segunda compreensão, a do modelo biomédico da deficiência, um corpo com impedimentos deve ser objeto de intervenção dos saberes biomédicos. Os impedimentos são classificados pela ordem médica, que descreve as lesões e as doenças como desvantagens naturais e indesejadas. Práticas de reabilitação ou curativas são oferecidas e até mesmo impostas aos corpos, com o intuito de reverter ou atenuar os sinais da anormalidade. Quanto mais fiel o simulacro da normalidade, maior o sucesso da medicalização dos impedimentos (THOMAS, 2002, p. 41). Na ausência de possibilidades biomédicas, as práticas educacionais compõem outro universo de docilização dos corpos: a controvérsia sobre práticas oralistas ou manualistas para crianças surdas é um exemplo de como diferentes narrativas disputam a resposta sobre como os surdos devem habitar sociedades não bilíngües (LANE, 1997, p. 154). Essa foi, inclusive, uma disputa contemplada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que reconheceu a “facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda” (ONU, 2006a, artigo 24, 3b).
A deficiência já foi tida como um drama pessoal ou familiar, com explicações religiosas que a aproximaram ora do infortúnio, ora da benção divina em quase todas as sociedades (LAKSHMI, 2008). A contestação da narrativa mística e religiosa pela narrativa biomédica foi recebida como um passo importante para a garantia da igualdade (BARTON, 1998, p. 23; COURTINE, 2006, p. 305). As causas dos impedimentos não estariam mais no pecado, na culpa ou no azar, mas na genética, na embriologia, nas doenças degenerativas, nos acidentes de trânsito ou no envelhecimento. A entrada do olhar médico marcou a dicotomia entre normal e patológico no campo da deficiência, pois o corpo com impedimentos somente se delineia quando contrastado com uma representação do corpo sem deficiência. O desafio, agora, está em recusar a descrição de um corpo com impedimentos como anormal. A anormalidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral sobre os estilos de vida, não o resultado de um catálogo universal e absoluto sobre os corpos com impedimentos (DINIZ, 2007, p. 23).
Uma das tentativas iniciais de aproximar a deficiência da cultura dos direitos humanos foi feita na Inglaterra nos anos 1970 ( Union of the Physically Impaired Against Segregation [UPIAS] , 1976). A primeira geração de teóricos do modelo social da deficiência tinha forte inspiração no materialismo histórico e buscava explicar a opressão por meio dos valores centrais do capitalismo, tais como as ideias de corpos produtivos e funcionais (DINIZ, 2007, p. 23 ). Os corpos com impedimentos seriam inúteis à lógica produtiva em uma estrutura econômica pouco sensível à diversidade. Já o modelo biomédico afirmava que a experiência de segregação, desemprego, baixa escolaridade, entre tantas outras variações da desigualdade, era causada pela inabilidade do corpo com impedimentos para o trabalho produtivo. Hoje, a centralidade no materialismo histórico e na crítica ao capitalismo é considerada insuficiente para explicar os desafios impostos pela deficiência em ambientes com barreiras, mas se reconhece a originalidade desse primeiro movimento de distanciamento dos corpos com impedimentos dos saberes biomédicos (CORKER; SHAKESPEARE, 2002, p. 3).
Outras abordagens passaram a compor o campo dos estudos sobre deficiência, mas o modelo social se manteve hegemônico. Diferentemente da matriz do materialismo histórico dos teóricos da primeira geração, abordagens feministas e culturalistas ganharam espaço nos debates, ampliando as narrativas sobre os sentidos da deficiência em culturas da normalidade (CORKER; SHAKESPEARE, 2002, p. 10). Foi assim que, de um lado, os impedimentos passaram a ser descritos como atributos corporais neutros, assim como as narrativas de gênero e antirracistas; e, de outro lado, a deficiência passou a resumir a opressão e a discriminação sofrida pelas pessoas com impedimentos em ambientes com barreiras. O modelo social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos, ofereceu novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a natureza quem oprimia, mas a cultura da normalidade, que descrevia alguns corpos como indesejáveis.
Essa mudança de causalidade da deficiência, deslocando a desigualdade do corpo para as estruturas sociais, teve duas implicações. A primeira foi a de fragilizar a autoridade dos recursos curativos e corretivos que a biomedicina comumente oferecia como única alternativa para o bem-estar das pessoas com deficiência. Para essas pessoas, não era possível negar os benefícios dos bens e serviços biomédicos, mas a exclusividade que a cura e a reabilitação possuíam endossava a ideia do corpo com impedimentos como anormal e patológico (CANGUILHEM, 1995, p. 56). A segunda implicação foi a de que o modelo social abriu possibilidades analíticas para uma redescrição do significado de habitar um corpo com impedimentos. O drama privado e familiar da experiência de estar em um corpo com impedimentos provocava os limites do significado do cuidado na vida doméstica, muitas vezes condenando as pessoas com maior dependência ao abandono e ao enclausuramento. Ao denunciar a opressão das estruturas sociais, o modelo social mostrou que os impedimentos são uma das muitas formas de vivenciar o corpo.
A tese central do modelo social permitiu o deslocamento do tema da deficiência dos espaços domésticos para a vida pública. A deficiência não é matéria de vida privada ou de cuidados familiares, mas uma questão de justiça (NUSSBAUM, 2007, p. 35). Essa passagem simbólica dacasa para a rua abalou vários pressupostos biomédicos sobre a deficiência. Afirmou-se, por exemplo, que deficiência não é anormalidade, não se resumindo ao estigma ou à vergonha pela diferença. A crítica ao modelo biomédico não significa ignorar o quanto os avanços nessa área garantem bem-estar às pessoas (DINIZ; MEDEIROS, 2004a, 1155). As pessoas com impedimentos corporais sentem dor, adoecem, e algumas necessitam de cuidados permanentes (KITTAY, 1998, p. 9). Mas os bens e serviços biomédicos são respostas às necessidades de saúde, portanto, direitos universais. Diferentemente das pessoas não deficientes, os impedimentos se constituem em estilos de vida para quem os experimentam. Por isso, há teóricos do modelo social que exploram a ideia da deficiência como identidade ou comunidade, tal como as identidades culturais (LANE, 1997, p. 160).
Com o modelo social, a deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de desigualdade compartilhada por pessoas com diferentes tipos de impedimentos: não são cegos, surdos ou lesados medulares em suas particularidades corporais, mas pessoas com impedimentos, discriminadas e oprimidas pela cultura da normalidade. Assim como há uma diversidade de contornos para os corpos, há uma multiplicidade de formas de habitar um corpo com impedimentos. Foi nessa aproximação dos estudos sobre deficiência dos estudos culturalistas que o conceito de opressão ganhou legitimidade argumentativa: a despeito das diferenças ontológicas impostas por cada impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade. O dualismo do normal e do patológico, representado pela oposição entre o corpo sem e com impedimentos, permitiu a consolidação do combate à discriminação como objeto de intervenção política, tal como previsto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006a). Para além das formas tradicionais de discriminação, o conceito de discriminação presente na Convenção inclui a recusa de adaptação razoável, o que demonstra o reconhecimento das barreiras ambientais como uma causa evitável das desigualdades experienciadas pelas pessoas com deficiência.
O modelo social sustentava originalmente que um corpo com impedimentos não seria apto ao regime de exploração e produção do capitalismo (BARTON; OLIVER, 1997). A centralidade da crítica ao capitalismo foi provocada pelos estudos culturais, que deslocaram ainda mais a deficiência da autoridade biomédica sobre o corpo. Com isso, os impedimentos físicos, intelectuais e sensoriais passaram a ser diferenciados da opressão pela deficiência: é possível um corpo com impedimentos não vivenciar a opressão, a depender das barreiras sociais e da crítica à cultura da normalidade em cada sociedade (DINIZ, 2007, p. 77). Os teóricos do modelo social ofereceram evidências para a tese de que habitar um corpo com impedimentos não significa receber uma sentença de segregação (YOUNG, 1990, p. 215). Nas últimas duas décadas, o crescimento da agenda de estudos populacionais sobre envelhecimento fortaleceu a estratégia argumentativa do modelo social da deficiência como uma questão de direitos humanos: um corpo com impedimentos é condição de possibilidade para a experiência da velhice (WENDELL, 2001, p. 21; DINIZ; MEDEIROS, 2004b, 110).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem duas classificações de referência para a descrição das condições de saúde dos indivíduos: a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, que corresponde à décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), e a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). A CIF foi aprovada em 2001 e antecipa o principal desafio político da definição de deficiência proposta pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: o documento estabelece critérios para mensurar as barreiras e a restrição de participação social. Até a publicação da CIF, a OMS adotava uma linguagem estritamente biomédica para a classificação dos impedimentos corporais, por isso o documento é considerado um marco na legitimação do modelo social no campo da saúde pública e dos direitos humanos (DINIZ, 2007, p. 53).
A passagem do modelo biomédico para o modelo social da deficiência foi resultado de um extenso debate político nas etapas consultivas da CIF. O documento que a antecedeu, a International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (ICIDH), pressupunha uma relação de causalidade entre impairments, disabilities e handicaps (OMS, 1980). Nesse modelo interpretativo da deficiência, um corpo com impedimentos experimentaria restrições de habilidades que levavam a desvantagens sociais. A desvantagem seria resultado dos impedimentos, por isso a ênfase nos modelos curativos ou de reabilitação. Durante quase 30 anos, o modelo biomédico da deficiência foi soberano para as ações da OMS, o que significou a hegemonia de uma linguagem centrada na reabilitação ou na cura dos impedimentos corporais para as políticas públicas de diversos países vinculados àquela entidade. No Brasil, o modelo biomédico fundamenta as pesquisas populacionais, as ações de assistência e, em grande parte, as políticas de educação e saúde para os deficientes (FARIAS; BUCHALLA, 2005, p. 192).
A linguagem proposta pela ICIDH em 1980 foi alvo de severas críticas do então emergente campo dos estudos sobre deficiência (OMS, 1980). Houve diferentes níveis no debate, mas um deles foi particularmente incorporado pelo texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: a sensibilidade linguística para a descrição da deficiência como uma questão de direitos humanos e não apenas biomédica. Assim como nos estudos raciais e de gênero, a relação entre os discursos sobre a natureza e a cultura impõe um pêndulo permanente entre o que se define como destino do corpo ou opressão social ao corpo. Se, nos anos 1960, o corpo foi a matéria onde os discursos sobre gênero se instauravam, hoje, a compreensão é que também ele é uma construção narrativa sobre a opressão sexual (BUTLER, 2003, p. 186). A dicotomia natureza e cultura foi desconstruída em seus próprios termos narrativos: ignora-se o caráter primordial do sexo como matéria constitutiva da existência dos gêneros. Sexo e gênero são categorias intercambiáveis para a análise do sexismo (BUTLER, 2003, p. 25).
Um movimento analítico semelhante foi provocado no campo dos estudos sobre deficiência para o enfrentamento do disablism, a ideologia que oprime o corpo com impedimentos corporais. Para os primeiros teóricos do modelo social, o corpo deveria ser ignorado, pois se pressupunha que sua emergência nos debates favoreceria a compreensão biomédica da deficiência como tragédia pessoal (DINIZ, 2007, p. 43). Nessa compreensão, falar do corpo, da dor, da dependência, do cuidado ou das fragilidades seria subsumir à autoridade biomédica de controle da deficiência como desvio ou anormalidade (WENDELL, 1996, p. 117; MORRIS, 2001, p. 9). O resultado foi um silenciamento sobre o corpo como instância da habitabilidade, como autoridade discursiva para a deficiência e como contorno para a existência com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais. O simulacro da normalidade para todos os corpos foi a tônica dos debates e das lutas políticas da década de 1970 para o modelo social.
Mas esse silêncio foi desafiado com a entrada de outras perspectivas analíticas ao modelo social, em especial com o feminismo. Não por coincidência, o modelo social da deficiência teve início com homens adultos, brancos e portadores de lesão medular (DINIZ, 2007, p. 60), um grupo de pessoas para quem as barreiras sociais seriam essencialmente físicas e mensuráveis. A inclusão social dessas pessoas não subverteria a ordem social, pois, no caso deles, o simulacro da normalidade era eficiente para demonstrar o sucesso da inclusão. Ainda hoje, os sinais de trânsito ou as representações públicas da deficiência indicam um cadeirante como ícone. A metonímia da deficiência pelo cadeirante não deve ser subestimada em uma cultura da normalidade repleta de barreiras à participação social de pessoas com outros impedimentos, para quem tais barreiras não são apenas físicas, mas da ordem simbólica ou comportamental.
As primeiras teóricas feministas do modelo social foram as que lançaram a questão dos impedimentos intelectuais e do cuidado no centro das discussões (KITTAY, 1998, p. 29). Seriamente considerar a diversidade de impedimentos não se resolvia com o simulacro da normalidade, pois era preciso desafiar a cultura da normalidade. As barreiras sociais para a inclusão de uma pessoa com impedimentos intelectuais graves são múltiplas, de difícil mensuração e permeiam todas as esferas da vida pública. Foi assim que as narrativas sobre o corpo com impedimentos e o tema do cuidado como uma necessidade humana passaram a ser discutidos no campo dos estudos sobre deficiência. No entanto, considerar o cuidado como uma necessidade humana é também aproximar a questão da deficiência dos estudos de gênero e sobre as famílias. O tema da igualdade de gênero é um plano de fundo na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, desde o preâmbulo até as seções específicas sobre a proteção às meninas e mulheres com deficiência e o papel das famílias das pessoas com deficiência (ONU, 2006a).
A CIF surge, então, após um longo processo de reflexão sobre as potencialidades e os limites dos modelos biomédico e social da deficiência. Em uma posição de diálogo entre os dois modelos, a proposta do documento é lançar um vocabulário biopsicossocial para a descrição dos impedimentos corporais e a avaliação das barreiras sociais e da participação. A despeito da diversidade de experiências das pessoas com impedimentos corporais, relativa tanto ao corpo quanto às sociedades, a CIF tem ambições universais (CENTRO COLABORADOR DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE PARA A FAMÍLIA DE CLASSIFICAÇÕES INTERNACIONAIS, 2003, p. 18). Mas essa pretensão universal pode ser entendida de duas maneiras. A primeira, como um reconhecimento da força política do modelo social da deficiência para a revisão do documento: de uma classificação de corpos anormais (ICIDH) para uma avaliação complexa da relação entre o indivíduo e a sociedade (CIF). Uma pessoa com deficiência não é simplesmente um corpo com impedimentos, mas uma pessoa com impedimentos vivendo em um ambiente com barreiras. A segunda maneira de compreender a afirmação universalista da CIF é também resultado do modelo social: o corpo com impedimentos não é uma tragédia individual ou a expressão de uma alteridade distante, mas uma condição de existência para quem experimentar os benefícios do progresso biotecnológico e envelhecer. Velhice e deficiência são conceitos aproximados pela CIF e pela nova geração de teóricos da deficiência (DINIZ, 2007, p. 70).
Mas nesse processo de revisão da ICIDH para a CIF uma das questões mais sensíveis foi sobre como descrever o fenômeno da deficiência. O mesmo desafio esteve na elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A ICIDH utilizava os termosimpairments, disabilities e handicaps. A demanda do modelo social da deficiência era por descrever os impedimentos como uma variável neutra da diversidade corporal humana, entendendo o corpo como uma instância da habilidade individual – portanto, diversa em sua condição. O sistema proposto pela ICIDH classificava a diversidade corporal como consequência de doenças ou anormalidades, além de considerar que as desvantagens eram causadas pela incapacidade do indivíduo com lesões de se adaptar à vida social.
A revisão da CIF procurou resolver essa controvérsia, incorporando as principais críticas feitas pelo modelo social (CENTRO COLABORADOR DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE PARA A FAMÍLIA DE CLASSIFICAÇÕES INTERNACIONAIS, 2003, p. 32). Pelo novo vocabulário, deficiência é um conceito guarda-chuva que engloba o corpo com impedimentos, limitações de atividades ou restrições de participação. Ou seja, a deficiência não se resume aos impedimentos, pois é o resultado negativo da inserção de um corpo com impedimentos em ambientes sociais pouco sensíveis à diversidade corporal das pessoas. O corpo é a esfera da habitabilidade, mas não há caráter primordial em sua existência, ignorando-se qualquer tentativa de resumi-lo a um destino. Essa redefinição conformou-se à crítica proposta pelos teóricos do modelo social: deficiência é uma experiência cultural e não apenas o resultado de um diagnóstico biomédico de anomalias. Foi também com esse espírito que se abandonou o conceito de handicap, em especial em razão de sua etimologia, que remetia as pessoas com impedimentos corporais a pedintes (“chapéu na mão”) (DINIZ, 2007, p. 35).
Em consonância à CIF, e como resultado das discussões internacionais entre os modelos biomédico e social, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência propôs o conceito de deficiência que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impedimentos. O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno determinante para a identificação da desigualdade pela deficiência. A importância da Convenção está em ser um documento normativo de referência para a proteção dos direitos das pessoas com deficiência em vários países do mundo. Em todos os países signatários, a Convenção é tomada como base para a construção das políticas sociais, no que se refere à identificação tanto do sujeito da proteção social como dos direitos a serem garantidos. A CIF, por sua vez, oferece ferramentas objetivas para a identificação das diferentes expressões do disablism, possibilitando um melhor direcionamento das políticas.
O reconhecimento do corpo com impedimentos como expressão da diversidade humana é recente e ainda um desafio para as sociedades democráticas e para as políticas públicas. A história de medicalização e normalização dos corpos com impedimentos pelos saberes biomédicos e religiosos se sobrepôs a uma história de segregação de pessoas em instituições de longa permanência. Apenas recentemente as demandas dessas pessoas foram reconhecidas como uma questão de direitos humanos. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas é um divisor de águas nesse movimento, pois instituiu um novo marco de compreensão da deficiência (ONU, 2006a). Assegurar a vida digna não se resume mais à oferta de bens e serviços médicos, mas exige também a eliminação de barreiras e a garantia de um ambiente social acessível aos corpos com impedimentos físicos, intelectuais ou sensoriais.
A desvantagem social vivenciada pelas pessoas com deficiência não é uma sentença da natureza, mas o resultado de um movimento discursivo da cultura da normalidade, que descreve os impedimentos corporais como abjetos à vida social. O modelo social da deficiência desafiou as narrativas do infortúnio, da tragédia pessoal e do drama familiar que confinaram o corpo com impedimentos ao espaço doméstico do segredo e da culpa. As propostas de igualdade do modelo social não apenas propuseram um novo conceito de deficiência em diálogo com as teorias sobre desigualdade e opressão, mas também revolucionaram a forma de identificação do corpo com impedimentos e sua relação com as sociedades. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial de Saúde propôs um vocabulário para a identificação das pessoas deficientes de modo a orientar as políticas públicas de cada país. Desde 2007, a CIF foi adotada na legislação brasileira para a implementação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício assistencial de transferência de renda a pessoas com deficiência e idosos pobres. A tendência é que a CIF seja utilizada tanto na identificação da deficiência para a política de assistência social como em todas as outras políticas públicas brasileiras.
A adoção da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência reconhece a questão da deficiência como um tema de justiça, direitos humanos e promoção da igualdade. A Convenção foi ratificada em 2008 o que exigirá a revisão das legislações infraconstitucionais e o estabelecimento de novas bases para a formulação das políticas públicas destinadas à população com deficiência. Uma das exigências da Convenção é a revisão imediata do conjunto de leis e ações do Estado referentes à população com deficiência. O cumprimento dessa medida trará resultados diretos para a garantia do bem-estar e a promoção da dignidade das pessoas com deficiência no Brasil.
1. Sobre as especificidades e desafios da tradução dos conceitos do modelo social da deficiência para a língua portuguesa, vide Diniz, D; Medeiros, M. e Squinca, F., 2007. Neste artigo, os autores adotaram dois conceitos propostos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que são o de pessoa com deficiência e impedimentos corporais. O primeiro anuncia o caráter político de como os impedimentos corporais são objeto de discriminação e opressão em sociedades pouco inclusivas e descreve a pessoa que habita corpos com impedimentos; ao passo que os impedimentos corporais descrevem as variações corporais, em geral, catalogadas pela narrativa biomédica como desvantagens naturais. Deficiência é um conceito guarda-chuva, ora entendido como o resultado da negociação de significados sobre o corpo com impedimentos, ora como um dos efeitos da cultura da normalidade que ignora os impedimentos corporais.
2. Em atenção ao debate nacional e internacional sobre deficiência, este artigo utiliza a expressão pessoa com deficiência, mas também deficiente e pessoa deficiente.
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