Ensaios

Tornando visível o invisível

Alice M. Nah e Juliana A. Mensah

o destaque das jornadas emocionais de defensoras e defensores dos direitos humanos por meio da prática artística

Brian Smith

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1.Introdução

Defensoras e defensores dos direitos humanos navegam por jornadas emocionais complexas e intensas enquanto se defrontam com riscos. Algumas dessas jornadas são vividas de forma coletiva; outras, empreendidas de forma solitária. O grau em que essas pessoas se sentem à vontade para expressar suas emoções aos outros é definido por padrões (invisíveis) do que deve ser sentido – o que a socióloga Arlie Hochschild chama de “regras de sentimento”.11. Arlie Hochschild, “Emotion Work, Feeling Rules, and Social Structure,” American Journal of Sociology 85 (1979): 551-575. Essas “regras de sentimento” marcadas por gênero, que dotam defensoras e defensores dos direitos humanos de valores como coragem, comprometimento, abnegação e altruísmo, moldam o que sentem que seja possível expressar aos outros.22. Alice M. Nah, “Navigating Mental and Emotional Wellbeing in Risky Forms of Human Rights Activism,” Social Movement Studies (2020), https://doi.org/10.1080/14742837.2019.1709432.

Em um projeto de pesquisa internacional que examinou a experiência de mais de quatrocentas pessoas defensoras dos direitos humanos no México, Colômbia, Egito, Quênia e Indonésia, constatamos que defensoras e defensores experimentaram uma ampla variedade e profundidade de emoções, entre elas raiva, indignação, medo, ansiedade, apreensão, tristeza, pesar, resignação, decepção e desesperança, bem como determinação, confiança, alegria, esperança, surpresa, entusiasmo, amor e solidariedade. Essas experiências são mais bem descritas como “jornadas”, pois as emoções são raramente vivenciadas de maneira estática. Defensoras e defensores passam de uma emoção para outra; seus sentimentos estão conectados, mesmo quando são contraditórios. Descobrimos nesse estudo que muitas dessas pessoas acham que não podem ou não devem compartilhar algumas de suas emoções pelo bem de outras pessoas, o que às vezes leva a sentimentos de isolamento e solidão.

Nesse projeto, queríamos tornar visível a amplitude e a profundidade dessas emoções para públicos mais amplos e repassar as experiências de defensoras e defensores para si mesmos, a fim de que soubessem que não estão sozinhos. Desse modo, convidamos um grupo internacional de artistas com habilidades diversas para produzir respostas criativas a algumas das descobertas da pesquisa. Neste artigo, examinamos esse processo criativo, bem como alguns dos principais temas que emergiram dessa pesquisa.

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2.Prática de pesquisa criativa

Os enfoques artísticos têm sido amplamente utilizados na pesquisa de direitos humanos, ganhando destaque como meio de produzir conhecimento holístico e amplificar vozes marginalizadas.33. Patricia Leavy, Method Meets Art: Arts-Based Research Practice (New York: Guilford Publications, 2014). As artes ganharam força nas pesquisas de ciências sociais como uma “crítica à predominância das epistemologias positivistas”, pois considera-se que elas possibilitam “novas formas de imaginar” e “novos registros de análise”.44. Sarah Nuttall e Cheryl-Ann Michael, Senses of Culture (Cidade do Cabo: Oxford University Press, 2000). As formas de arte oferecem um léxico criativo que complementa e desafia paradigmas dominantes.

Em nossa pesquisa, engajamos artistas na medida em que procurávamos criar oportunidades para que os testemunhos reunidos fossem compartilhados amplamente e de diferentes formas. Dez pesquisadores – cinco homens e cinco mulheres – realizaram entrevistas, conduziram grupos focais e aplicaram um questionário a 407 defensoras e defensores em cinco países, entre julho de 2015 e novembro de 2016. 52% das pessoas participantes eram homens, 47% mulheres e 1% era de pessoas transgêneras.55. Alice M. Nah (ed.). A sair. Protecting Human Rights Defenders (Abingdon: Routledge).

O processo criativo começou quando Juliana Mensah trabalhou com transcrições sem identificação de entrevistas e grupos focais para criar uma série de poemas baseados nesses textos. Eu (Mensah) lia as transcrições procurando o centro emocional: as questões de que as defensoras e os defensores falavam com mais paixão ou preocupação. Eu buscava pôr em prática o conceito de Leavy de poesia como método para criar palavras “cercadas por espaço e ponderadas pelo silêncio” que pudessem “romper o ruído para apresentar uma essência”.66. Patricia Leavy, Method Meets Art: Arts-Based Research Practice (New York: Guilford Publications, 2014): 63. Por conseguinte, editei as transcrições das entrevistas, transformando as palavras literais em poemas, para colocar em primeiro plano as emoções e destacar realidades sociais difíceis.

Compartilhamos os poemas e algumas das transcrições sem identificação de autoria com uma seleção de artistas dos cinco países incluídos no estudo e do Reino Unido. Entre as respostas criativas, ricas e diversificadas produzidas estavam um cobertor (de Rosa Borrás, que ilustra a capa desta edição da Sur),77. Ver o ensaio de Rosa Borrás nesta edição da Revista Sur, “Um Cobertor Para Defensoras e Defensores de Direitos Humanos”. filmes baseados em poemas, canções e músicas, curtas-metragens, poemas, animações, desenhos, pinturas e um mural, alguns dos quais são descritos abaixo.88. Todas essas obras artísticas estão disponíveis no site multilinguístico em inglês, espanhol, árabe, indonésio e suaíle: “The Security and Protection of Human Rights Defenders at Risk,” Homepage, Security of Defenders Project, 2020, acesso em 15 de junho de 2020, https://securityofdefendersproject.org/.

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3.Enfrentando riscos e insegurança

No filme multimídia Greater Than Love (Maior que o amor),99. Também disponível em inglês aqui: “Greater Than Love,” vídeo do Vimeo, 04:17, postado por Alejandra Jiménez films, 6 de julho de 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, https://vimeo.com/224473562; e em espanhol: “Mas Grande que el Amor | Greater Than Love - Spanish Version,” vídeo do Vimeo, 04:18, postado por Alejandra Jiménez films, 9 de janeiro de 2018, acesso em 31 de agosto de 2020, https://vimeo.com/250362991. Alejandra Jimenez usa sons encontrados e ruídos ilustrativos, o movimento de dançarinos e silhuetas desenhadas a lápis para evocar as interações intangíveis entre vida, risco e morte e os esforços contraditórios para garantir que membros da família e entes queridos sejam mantidos próximos e seguros, mantendo os agressores afastados. Já o medo que as pessoas que defendem os direitos humanos sentem ao testemunhar violações é captado na pintura a óleo The Witness (A testemunha), de Ndereva Mutua, cujo desenho a lápis grafite Backstabbed (Traída) presta homenagem a uma defensora queniana cujo filho foi morto numa tentativa de deter seu trabalho.

Como Mutua, vários artistas usaram o material da pesquisa para explorar questões enfrentadas por defensoras e defensores de direitos humanos que eram seus amigos, colegas e aliados pessoais. Divine (Divino) é uma obra de arte visual criada por Ruben Ochoa, na qual as estatísticas dos ataques a defensoras e defensores dos direitos humanos no México são visualizadas como três painéis opacos que ficam cada vez maiores, formando barras em um painel de vidro. Atrás das grades, com as mãos para cima, vê-se o padre mexicano Alejandro Solalinde, um defensor local dos direitos humanos que foi alvo de violência. Tons de medo, tristeza, raiva, determinação, confiança e alegria são explorados na obra de arte digital interativa de Amira Hanafi, We are Fragmented (Somos fragmentados),1010. Também disponível em inglês aqui: “We Are Fragmented,” Homepage, 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, http://wearefragmented.amiraha.com/. que exibe citações do estudo à medida que o público se envolve com o site, rolando a tela e clicando em círculos coloridos que representam emoções cambiantes. Com cuidado e atenção, cada artista tomou a pesquisa e criou uma resposta que ampliou as interpretações e os entendimentos iniciais do material.

Usando ilustrações, Deena Mohamed1111. Também disponível em inglês aqui: “What Factors Make You Feel Insecure? What Factors Make You Feel Secure?,” Egypt Defenders, 23 de julho de 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, https://egyptdefenders.tumblr.com/; e em árabe: Egypt Defenders, 24 de julho de 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, https://egyptdefenders-arabic.tumblr.com/. destaca fatores que fazem defensoras e defensores se sentirem inseguros, como testemunhar violações de direitos humanos cometidas com impunidade, sentir o julgamento da sociedade e viver num “Estado governado por tirano”. Ela também mostra que entre os fatores que fazem pessoas defensoras de direitos humanos se sentirem seguras estão a solidariedade na comunidade de direitos humanos, a crença na justiça inerente ao seu trabalho e medidas práticas, como manter a “segurança digital e (ter) um bom advogado”. Mohamed termina a série com a citação de uma defensora do Egito: “a fim de continuar nosso trabalho, devemos de alguma forma ignorar os riscos”.

4.O bem-estar mental e emocional de defensoras e defensores

Neste estudo, 86% das defensoras e dos defensores manifestaram estar “um pouco preocupados” ou “muito preocupados” com seu próprio bem-estar mental e emocional; isso gerava preocupação tanto quanto sua segurança física e digital. Não obstante, tendiam a dar uma atenção apenas secundária ao seu próprio bem-estar, priorizando o bem-estar das vítimas de violações de direitos humanos e dos seus familiares e entes queridos.

Em Room at Region (X) (Sala na Região (X)),1212. Disponível aqui em árabe com legendas em inglês: “Room At Region (X),” vídeo do YouTube, 12:05, postado por Nada Hasan, 28 de julho de 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, https://youtu.be/sNEKy4XyeZg. narrado em árabe com legendas em inglês, Nada Hassan se concentra nas experiências de mulheres defensoras dos direitos humanos ao se confrontar com desaparecimentos forçados e lidar com isolamento e exaustão. No filme de dança Vis-à-vis, de Simona Manni,1313. Também disponível em inglês aqui: “Vis a Vis,” video do YouTube, 08:44, postado por Simona Manni, 29 de agosto de 2017, acesso em 31 de agosto de 2020, https://youtu.be/ZB5BhHg0DzU; e com legendas em espanhol: “VisAVisSpanighSubs,” vídeo do YouTube, 08:44, postado por Simona Manni, 17 de outubro de 2018, acesso em 31 de agosto de 2020, https://youtu.be/y1tej7ai1r8. uma dançarina se move para expressar ansiedade, medo, desconfiança, nervosismo, exaustão e depressão, comunicando a necessidade de perdão, esperança e amor. Narradores leem trechos de entrevistas, compartilhando as experiências de vigilância, desaparecimentos e violência das pessoas defensoras dos direitos humanos.

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5.Conclusão

O trabalho artístico tornou-se uma peça central para a reflexão coletiva da equipe de pesquisa; foi um meio pelo qual pudemos repassar às defensoras e aos defensores que haviam participado da pesquisa nossas respostas às histórias que compartilharam. Por fim, a arte também foi um estímulo para discussão em conferências, exposições e eventos públicos com formuladores de políticas, ONGs, outras pessoas defensoras dos direitos humanos e públicos mais amplos.

A arte nos fala em níveis sensoriais e emocionais e, ao fazê-lo, tem o potencial de provocar compaixão, empatia e compreensão. Trabalhar com artistas permitiu que tivéssemos acesso a diferentes lentes conceituais para examinar o material da pesquisa e possibilitou uma conexão e uma interrogação mais profundas em relação às questões levantadas na pesquisa. Cada uma das peças dessa coleção refletia as histórias de defensoras e defensores e o significado de suas vidas para os outros. Como observa o músico e compositor John Otieno Oduor Rapasa em sua canção Wan Kale,1414. Disponível em luo aqui: “Wan Kale,” YouTube Music, 04:06, postado por Rapasa Nyatrapasa Otieno, 2019, acesso em 31 de agosto de 2020, https://music.youtube.com/watch?v=kbVNJh2dCbM&feature=share. escrita no idioma luo, “eles enxugaram gotas de lágrimas; eles deram água a pessoas sedentas”.

Defensoras e defensores dos direitos humanos em todo o mundo perseveram, apesar dos graves riscos que enfrentam, e esperamos que o conjunto dessas obras torne visível – tanto para eles quanto para outras pessoas – as jornadas emocionais que experimentam e que mudam suas almas. Terminamos este artigo ecoando as palavras de Ndungi Githuku, que, em um videoclipe edificante intitulado Amba,1515. Disponível em inglês aqui: “AMBA by NDUNGI GITHUKU (subtitled),” video do YouTube, 03:53, postado por cahruoy, 29 de janeiro de 2019, acesso em 31 de agosto de 2020, https://youtu.be/q2-sAS5FuJ4. pede a celebração pública do trabalho e da vida de “heróis e heroínas”, do passado e presente. Ele exorta defensoras e defensores dos direitos humanos de todo o mundo ao cantar:

Levantem-se, levantem-se
Não desistam
Nós venceremos
Levantem-se, levantem-se

Alice M. Nah - Reino Unido

Alice M. Nah é professora do Departamento de Política e do Centro de Direitos Humanos Aplicados da Universidade de York, Reino Unido. Ela realiza pesquisas sobre segurança e proteção de defensoras y defensores de direitos humanos em risco e sobre migração e asilo no sudeste da Ásia.

Recebido em junho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Pedro Maia Soares.

Juliana A. Mensah - Reino Unido

Juliana A. Mensah é escritora e pesquisadora. Foi artista residente em Leverhulme no Centro de Direitos Humanos Aplicados da Universidade de York e possui doutorado em literatura e escrita criativa pela Universidade de Newcastle. Seu primeiro romance ganhou o prêmio NorthBound Book Award.

Recebido em junho de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Pedro Maia Soares.