Dossiê SUR Direitos Humanos das Pessoas em Movimento: Migrantes e Refugiados

Respostas aos fluxos migratórios mistos

Katharine Derderian e Liesbeth Schockaert

Uma perspectiva humanitária

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RESUMO

A atuação internacional de Médicos sem Fronteiras (MSF) com refugiados revela uma transição que cada vez mais entrelaça as diversas formas de migração de origem política e econômica. A evolução da natureza das migrações e dos deslocamentos, em particular os fluxos de refugiados, e as respostas dos governos a essas movimentações, representam um novo dilema para a assistência humanitária. Nesse artigo, MSF documenta o impacto concreto dessas transformações e a reação de nossa abordagem operacional. Argumentamos que essas transformações representam um desafio às organizações humanitárias com relação ao acesso e à assistência prestada às pessoas fugindo da violência e em busca de refúgio, assistência e proteção em outros países. Em contextos de violência e deslocamento, MSF há tempos defende a preservação de espaços humanitários, o reconhecimento e o respeito por parte dos Estados e de outros atores pelas ações humanitárias independentes, para que avaliem as necessidades e assistam os mais vulneráveis. As barreiras legais e operacionais cada vez mais restritivas enfrentadas pelos migrantes e refugiados nos confronta a encontrar meios para alcançá-los onde estiverem, como também a encontrar uma linguagem e caminhos que nos possibilitem advogar junto aos Estados a ampliação de suas responsabilidades na promoção de assistência e proteção aos refugiados, garantindo que os agentes humanitários tenham espaço para acessar e assistí-los onde ainda seja necessário.

Palavras-Chave

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A atuação internacional de Médicos sem Fronteiras (MSF) com refugiados revela uma transição no sentido de uma diversificação crescente nas formas de migração de origem política e econômica. “Fluxos mistos” de deslocados podem sugerir movimentos populacionais que incluem pessoas fugindo de perseguição política ou violência e pessoas que migram por motivações econômicas. Ainda, em muitos casos, essas distinções apresentam-se obscuras, uma vez que pessoas que buscam refúgio provenientes de conflitos e regimes opressivos, também estão em busca de emprego e oportunidades econômicas para assegurar sua sobrevivência1. A terminologia e distinção entre refugiados “políticos” e migrantes “econômicos” permanecem em grande medida construções artificiais.

Ao mesmo tempo, MSF testemunha o enfraquecimento e/ou a ausência de aplicabilidade direta do direito ao refúgio àqueles que fogem de perseguição e violência, invisíveis ou intencionalmente ignorados, em meio a esses fluxos mistos – levando à conseqüências reais e preocupantes em suas vidas e saúde.

A natureza irregular das repostas governamentais à migração e ao deslocamento, particularmente aos fluxos de refugiados, representa um novo desafio fundamental à assistência humanitária. Neste artigo, MSF documenta o impacto concreto dessas mudanças e desenvolvimento de nossa abordagem operacional em resposta a elas.

Argumentamos que essas mudanças profundas representam um desafio fundamental aos atores de ajuda humanitária em termos do alcance e da assistência prestada a pessoas fugindo da violência em busca de refúgio, auxílio e proteção em outros países. É essencial às agências humanitárias reconsiderar as mudanças nas respostas governamentais aos atuais movimentos populacionais para que possam redefinir e retomar espaços humanitários visando alcançar e assistir de forma independente as pessoas que estão fugindo da violência.

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1. Histórico: resposta de MSF aos refugiados em contextos de mudança

Fundado em 1971, MSF possui longa trajetória na assistência a refugiados, com ou sem reconhecimento legal de seu status de refugiado. Começando com alguns de seus projetos de grande escala de assistência a refugiados do Camboja na Tailândia, em 1975, e de El Salvador em Honduras, em 1980, MSF atuou em muitas das maiores crises de refugiados no mundo nas décadas seguintes. Entre elas, a assistência a refugiados ruandeses em campos no Zaire, somalis no Quênia, afegãos no Paquistão e Irã, e refugiados de Darfur no Chade. Além das operações de assistência em campo, MSF informa regularmente à opinião pública sobre as precárias condições dos refugiados e sobre seu trabalho humanitário nos campos de refugiados2.

Hoje em dia, de fato, autoridades dos países hospedeiros, bem como algumas agências e financiadores internacionais, demonstram resistência para a instalação de novos campos de refugiados devido a ressalvas injustificadas sobre a provável longa duração dessas situações (UNHCR, 2006; PONT, Amy, 2006)3, alegando que os campos atuariam como elementos de atração para novos fluxos, fomentando a “dependência” dos refugiados em relação a estrutura montada em lugares onde a integração local pode permanecer impossível4. Na realidade, o prolongamento de situações envolvendo refugiados são, principalmente, o resultado combinado da manutenção da situação dos países de origem, das respostas em termos de políticas implementadas pelos países de asilo e da ausência de engajamento dos governos doadores nessas situações (LOESCHER; MILNER, 2006).

Como resultado dessas realidades políticas locais, os refugiados não recebem mais assistência nos campos e precisam deslocar-se para áreas urbanas, onde vivem escondidos e tentam sobreviver do setor informal. Refugiados urbanos vivenciam as mesmas situações prolongadas de refúgio – só que fora dos campos. Consequentemente, eles estão mais vulneráveis tanto em termos de saúde mental, devido ao estresse e ao medo permanente de deportação, como em termos de saúde física, provocada por condições precárias de vida e a falta de acesso aos serviços básicos, como assistência de saúde.

Refugiados não-reconhecidos e migrantes sem documentação em áreas urbanas estão frequentemente desprotegidos e tornam-se alvo de xenofobia e outras formas de violência, como testemunhamos recentemente, em larga escala, na África do Sul (MSF, 2008d) e em incidentes pontuais em outros contextos. Na Malásia, dos 248 incidentes envolvendo violência registrados por MSF, 26% foram cometidos por malaios comuns contra migrantes sem documentação e refugiados que vivem na região. Esses abusos ficaram impunes, pois os refugiados e migrantes sem documentação estavam assustados demais para defender seus direitos básicos ou entrar com ação judicial. Reportar os incidentes à policia malaia não os ajudaria, visto que teriam que enfrentar acusações de serem “ilegais” (MSF, 2007d).

Nos últimos dez anos temos presenciado políticas para refugiados cada vez mais restritivas nos países receptores em todo o mundo, como em nível regional dos países vizinhos onde refugiados poderiam buscar proteção. Os refugiados gozam de amplos direitos assegurados pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e pelo direito internacional em geral (a própria definição de refugiado foi ampliada regionalmente pela Convenção da Organização da Unidade Africana [OUA] de 1969 e pela Declaração de Cartagena de 1984). Esses direitos incluem o direito de atravessar as fronteiras em busca de asilo em outros países; o direito de solicitar asilo e desfrutar de, pelo menos, proteção temporária se o retorno ao país de origem envolver risco de vida; e o direito a não ser repatriado de maneira forçada (refoulement). Entretanto, esses direitos têm sido interpretados de forma cada vez mais restrita, incluindo o fechamento de fronteiras por Estados e de territórios em conflito e a manipulação política da ajuda humanitária dentro dos países.

Essas políticas e práticas resultaram em uma mudança nos padrões das fugas da violência e do conflito – cada vez mais deslocados internos, refugiados urbanos, fluxos “mistos” de refugiados, migrantes e sans papier.

Nos últimos anos houve um aumento do número de deslocados internos e no início de 2007 registrou-se 24,5 milhões de pessoas em todo o mundo. Mesmo com estrutura jurídica e operacional mais frágil para assistir deslocados internos em seus próprios países (sem mencionar a recorrente ausência de medidas de proteção), MSF tem sido capaz de auxiliar e defender os interesses dos deslocados internos em muitas das grandes crises, tais como Angola, Sudão, Afeganistão, Colômbia, RDC e Libéria.

Como resultado de políticas cada vez mais restritivas e lacunas na assistência a solicitantes de asilo e migrantes sem documentação, MSF lançou progressivamente operações em países receptores desde o final da década de 1990, paralelamente à assistência aos refugiados e deslocados em suas próprias regiões. Inicialmente, esses esforços focaram-se em países europeus (Bélgica, França, Espanha, Itália, Grécia, etc.), e recentemente foram ampliados para reconhecer situações análogas em países prósperos do sul, incluindo África do Sul, Malásia, Tailândia e países de trânsito, tais como Marrocos e Iêmen (MSF, 2005a, 2008a, 2007d).

Essas operações relativamente novas de MSF lidam com um sintoma da globalização que permite um crescente fluxo internacional de bens, capital e serviços, mas nem sempre de pessoas – especialmente os refugiados. Interpretações cada vez mais restritas da definição de refugiado5, bem como obstáculos concretos ao acesso à condição legal e a serviços básicos, como o direito à saúde, fazem com que refugiados e migrantes estejam vulneráveis em cada passo de sua jornada.

Como uma organização humanitária, MSF provê assistência médica a essas populações mistas de refugiados e migrantes, sem considerar a condição legal do paciente, já que para MSF não existe o conceito de “população ilegal” ou “pacientes ilegais”. As intervenções de MSF são uma resposta a seres humanos com necessidade de assistência. Ao mesmo tempo em que as equipes de MSF tratam geralmente de refugiados e migrantes, solicitantes de asilo e sans papier(migrantes sem documentação), o principal critério para MSF é a necessidade humanitária – respondendo à falta de acesso a assistência médica básica, bem como à condições de vida precárias e abusos que afetam a saúde física e mental das pessoas. Com uma abordagem frequentemente próxima àquela encontrada nas regiões de origem dos refugiados, as equipes de MSF envolvidas em cada um dos projetos fornecem primeiros socorros e triagem médica, facilitam acesso aos serviços públicos de saúde e lidam com as conseqüências psicológicas relacionadas às suas fugas e à situações de angústia no país receptor. MSF também denuncia e aponta ao governo receptor as lacunas na assistência aos solicitantes de asilo e migrantes sem documentação e a maneira desumana como muitos são tratados, com o intuito de melhorar sua situação.

Em Malta6 e na ilha italiana de Lampedusa7, somalis, etíopes, nigerianos e outros se lançam ao mar em barcos precários. Atravessam o mar mediterrâneo em condições perigosas, em botes e barcos superlotados e frágeis, com pouca comida a bordo. Eles permanecem muitos dias e noites no mar, expostos a condições extremas e à mercê dos ventos e ondas. As frequentes condições de risco de vida enfrentadas durante a jornada são experiências traumatizantes. Em muitos casos, os recém chegados necessitam de imediato socorro por choque, desidratação, hipotermia, queimaduras e outras lesões físicas adquiridas durante a viagem. Devido à falta de assistência adequada pelas autoridades locais, a presença humanitária é necessária na costa da Europa. MSF fornece assistência médica e tratamento emergencial nos pontos de chegada, ao mesmo tempo em que luta por maior envolvimento dos governos na assistência e proteção dos recém ingressos para que garantam o acesso aos procedimentos de asilo.

No Iêmen, somalis e etíopes chegam após terem arriscado suas vidas para escapar do conflito e da extrema pobreza. Tanto a travessia pelo mar desde o Chifre da África quanto a aproximação do litoral do Iêmen são muito perigosos. No intuito de escapar do exército deste país, muitos barcos chegam à noite e os contrabandistas obrigam os passageiros a pular em alto mar, distantes da costa. Como conseqüência, muitos se afogam, pois não conseguem nadar e/ou não conseguem se mover devido à dormência dos membros. Muitos disseram a MSF que estavam cientes dos riscos, mas não tinham alternativas a não ser essa estratégia de sobrevivência para escapar da violência e privação.

Em Mytilini, na Grécia, visitas de MSF aos centros de detenção revelaram as degradantes condições de vida às quais os refugiados e migrantes estão expostos, muitos dos quais fugiram da guerra, perseguição, fome e trabalhos forçados no Afeganistão, Somália ou Palestina. A intervenção emergencial de MSF concentra-se na melhoria das condições de vida e infra-estrutura destes centros e no fornecimento de assistência médica básica e apoio psicológico.

Em Musina, África do Sul (MSF, 2008b, 2008c), as atividades médicas de MSF estão focadas em uma comunidade de zimbabuenses que fugiram de condições desesperadoras em seu país de origem para enfrentar falta de assistência, juntamente com ameaças e violência associadas à travessia da fronteira, patrulhas policiais em áreas onde buscam refúgio, e o risco constante de serem presos e deportados. MSF documentou situações similares no Iêmen, Marrocos e em outros países (MSF, 2005b, 2008e).

Na Tailândia, os rohingyas chegam fracos e traumatizados. Perseguidos em Burma e frequentemente fugindo de condições terríveis dos campos de Bangladesh, eles buscam abrigo seguro na Malásia após cruzarem o território tailandês. Aqueles que conseguem chegar à Tailândia vêem seu sofrimento estar longe de terminar, pois detenções, deportações ou a vida em campos de refugiados superlotados e sem saneamento básico os aguarda. MSF monitora sua situação e os auxilia no acesso à assistência médica, tanto nos centros de detenção quanto em atendimento a céu aberto.

Onde está o problema? Para os refugiados que batem nas portas dos Estados, a reação é alarmante. Como resposta aos movimentos mundiais de refugiados e migrantes, os Estados têm aprimorado e implementado um leque cada vez mais de medidas restritivas. Políticas recentes incluem controle mais rígido das fronteiras e ações de interceptação no intuito de evitar entradas irregulares,8 interpretações restritas do direito do refugiado e medidas de dissuasão como a utilização de centros de detenção e limitação no acesso a serviços básicos, incluindo a assistência médica. As reais conseqüências dessas políticas não podem ser subestimadas. Elas têm impacto direto na saúde dos recém chegados e pessoas que tornam-se miseráveis durante sua estada.

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2. O real impacto das políticas restritivas de refugio e migração

Interpretações restritivas do direito dos refugiados fazem com que pessoas fiquem em um limbo jurídico, resultando em um constante medo de deportação. Os Estados não apenas podem defender o retorno dos refugiados a um “terceiro país seguro” pelo qual eles passaram, mas também argumentar que o seu país de origem é completamente seguro ou ainda que eles poderiam tentar uma “fuga alternativa interna” buscando em outra região de seu país uma área segura, ao invés de procurarem refúgio fora. Como resultado desta interpretação restritiva, apenas 0,03% dos solicitantes de asilo na Grécia receberam proteção (HRW, 2009). Na África do Sul, durante o primeiro trimestre de 2008, mais de 10 mil zimbabuenses solicitaram asilo, dos quais apenas 19 receberam o status de refugiado.

Isto, por si só, acarreta diretamente barreiras no acesso a tratamento médico: ou as pessoas não recebem o pleno direito de acesso à assistência de saúde ou temem a deportação ao buscar assistência médica. Zimbabuenses na África do Sul vivem em estado de medo constante de serem deportados. Apesar da constituição sul-africana teoricamente garantir o acesso à assistência de saúde e outros serviços essenciais a todos que vivem em seu país, essa política nem sempre é respeitada, e o medo da deportação – e mais recentemente da violência decorrente de xenofobia – mantém muitos zimbabuenses sem acesso à assistência de saúde.

Tais leituras restritivas do direito internacional combinadas com o bloqueio da migração legal também têm contribuído para crescentes fluxos migratórios mistos. Diferentes migrantes – voluntários ou forçados – e refugiados podem encontrar-se obrigados a fugir e permanecer em outros países sem qualquer proteção legal, já que oportunidades para migração regular são limitadas ou mesmo não-existentes nos países receptores.

Os refugiados podem não ter informação, assistência jurídica ou outro tipo de auxílio que os permita ter acesso ao procedimento de pedido de asilo e, portanto, acabam sem o status legal e os direitos decorrentes deste. Na Itália, MSF testemunhou a expulsão de 300 pessoas para a Líbia que não haviam sido informadas e/ou não haviam tido a chance de requerer asilo. MSF presenciou situação similar com zimbabuenses na África do Sul, rohingyas na Tailândia e refugiados subsaarianos no Marrocos. Ao mesmo tempo, in situ ou asilo diplomático é frequentemente negado, conforme presenciou MSF no Zimbábue em 2008, quando centenas de pessoas tiveram seu pedido de asilo rejeitado e foram expulsas da embaixada da África do Sul em Harare e entregues às autoridades locais.

Situações como estas consistem em claras violações das obrigações legais internacionais de prover acesso aos procedimentos legais, incluindo asilo, para refugiados. Tais situações poderiam ainda constituir uma violação do princípio fundamental de não-refoulement9, que defende o direito de um indivíduo de não ser forçado a retornar a um país onde estaria em perigo. O principio de não-refoulement estabelece que qualquer indivíduo que entre no território de outro país, mesmo ilegalmente, tem o direito de submeter um pedido de asilo e ter o seu caso considerado. É de primordial que as pessoas tenham acesso aos procedimentos de asilo quando chegam a um país.

Apesar da falta de opção em seu país ou fora dele, quase todas as grandes crises humanitárias na África subsaariana fizeram com que pessoas fugissem das regiões afetadas pela violência para a Europa, conforme verificado em fluxos específicos através dos nossos projetos em torno do mar Mediterrâneo. Como resultado do conflito em suas regiões de origem, as equipes de MSF testemunharam liberianos chegando em 2003 e sudaneses do sul em 2004 e 2005 (MSF, 2003b), enquanto que em 2008, 30% das pesquisas realizadas pelos projetos de MSF na Itália indicaram que as pessoas fugiram do Chifre da África quando as lutas na região se intensificaram.

Repetidos controles de fronteira e deportações – às vezes envolvendo violência ou ameaça de violência – resultam em trauma físico, estresse e ansiedade. No Marrocos, lesões causadas pela violência da polícia, outras autoridades e contrabandistas são uma das causas mais freqüentes que leva os migrantes a solicitar tratamento médico de MSF.

Essas políticas que impedem o ingresso também forçam os refugiados a assumir riscos maiores para alcançar um abrigo seguro – resultando não em uma redução de novos ingressos, mas em cada vez mais mortes e riscos à saúde daqueles que buscam refúgio. No Iêmen, mais de 1400 pessoas foram consideradas mortas e desaparecidas ao tentar cruzar o Golfo de Aden, apenas no ano de 2007. No Marrocos, equipes de MSF perceberam que o aumento no controle das fronteiras entre a costa do país com a Espanha teve um impacto marcante nas rotas percorridas pelos migrantes, Pessoas costumavam tentar cruzar a cerca de arame farpado em Ceuta e Millilla, os dois enclaves espanhóis na fronteira com o território marroquino, ou navegar pelo minguado Estreito de Gibraltar com “pateras” (pequenos barcos). Atualmente aumentou o número daqueles que viajam em barcos maiores desde o sul da Mauritânia e Senegal até as Ilhas Canárias – tornando a viagem mais longa e perigosa. Ao mesmo tempo, apesar de contra-medidas rígidas, em 2008 houve um significativo aumento do número de barcos que atracaram em Lampedusa, Itália. Até agosto de 2008, 17.340 pessoas já haviam chegado – comparado com 11.889 pessoas durante todo o ano anterior.

Esses refugiados não apenas enfrentam riscos adicionais e maiores para alcançar a segurança, mas políticas restritivas também levam a um fracasso na distinção de pessoas em busca de proteção dos outros migrantes que chagam com a ajuda de contrabandistas. De fato, por forçar pessoas a fugir com a ajuda de contrabandistas no intuito de alcançarem segurança, tais restrições também expõem os refugiados tanto à violência criminal dos contrabandistas (por exemplo, gangues gumaguma na África do Sul, máfia na Malásia e Iêmen), quanto à percepção pública e política dos refugiados menos como vítimas dos contrabandistas e mais como criminosos associados a eles.

Nos últimos anos, MSF também presenciou Estados intensificarem o uso da detenção como medida de dissuasão diante de solicitantes de asilo e migrantes sem documentação. Conforme verificado em muitos dos projetos de MSF, detenções frequentemente envolvem condições de vida cruéis – às vezes por longo prazo – sob as quais a saúde das pessoas é desnecessariamente colocada em risco. Em Malta, dados de MSF confirmam que mais de 30% dos novos ingressantes estão com boa saúde. No entanto, consultas posteriores revelam um padrão diferente de morbidade, em grande medida devido às condições de vida nos centros de detenção. Entre os refugiados e migrantes nos centros de detenção, MSF verifica ampla presença de doenças de pele, diarréia, infecções respiratórias e problemas de saúde mental, todos ligados aos problemas de superlotação e condições de higiene precárias. Ao mesmo tempo em que muitos refugiados e migrantes sobrevivem a eventos traumáticos em suas vidas e desenvolvem mecanismos e estratégias efetivas de adaptação, o estresse posterior relacionado à detenção, como superlotação, falta de privacidade, condições cruéis e a incerteza sobre seu futuro, podem ter impactos profundos em sua saúde mental, bem-estar e capacidade de sobrevivência. Quanto mais tempo as pessoas permanecem em centros de detenção, maior a incidência de distúrbios mentais como ansiedade e depressão. Dentro dos centros de detenção, MSF apóia autoridades de saúde em assegurar assistência médica a pessoas detidas temporariamente, enquanto monitora as condições de vida que afetam a saúde dos presos. Finalmente, MSF trabalha para garantir atenção especial e/ou transferência para áreas mais abertas de indivíduos particularmente vulneráveis – doentes, menores e mulheres grávidas.

Ao abrir mais projetos em centros de detenção, MSF encontra-se caminhando sobre uma linha tênue entre prover cuidados necessários e transformar-se em um prestador de serviços para o Estado. Documentar e dar publicidade sobre as condições destes centros e qual o seu impacto é, portanto, uma parte integral destes projetos10.

Desde as medidas iniciais que não permitem o ingresso e a falta de um sistema que garanta o status às detenções e deportações, são políticas que possuem conseqüências sérias e diretas na saúde, bem-estar e dignidade das pessoas em movimento, que pedem por uma resposta humanitária onde a responsabilidade do Estado falhou.

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3. Obstáculos ao acesso à assistência de saúde

Complicando uma situação já precária, diversas barreiras jurídicas e práticas impedem que os refugiados e migrantes acessem assistência de saúde básica. Em alguns países o acesso à assistência de saúde para migrantes sem documentação é explicitamente restringido pela lei às situações de emergência. Em outros, migrantes sem documentação têm amplo acesso à assistência de saúde – mas mesmo nestes casos, na prática, o acesso é complexo devido aos custos, obstáculos administrativos e a ausência geral de informações legais e práticas tanto aos migrantes quanto àqueles que os assistem. Além disso, migrantes sem documentação podem enfrentar barreiras lingüísticas e culturais, temer ser denunciados e enfrentar deportação e/ou necessitar navegar entre complicados e instáveis procedimentos. Se refugiados e migrantes chegam a um Estado já debilitado, essas barreiras apenas contribuem para a deterioração de sua saúde. Alguns Estados também impõem multas ou outras sanções contra pessoas, incluindo médicos, que dão assistência a migrantes sem documentação e não denunciam seu status legal às autoridades.

Na Tailândia, onde MSF tem auxiliado os refugiados e migrantes vindos da Birmânia desde março de 2005, os birmaneses enfrentam um processo complicado de registro concomitante com dificuldades decorrentes de discriminação, idioma e custo de transporte quando procuram por assistência médica. O longo e custoso processo para o registro legal na Tailândia fica ainda mais complicado devido às alterações quase anuais das regulamentações para definição do status de imigrante ou refugiado. Em alguns casos, migrantes pagam despachantes para auxiliá-los com a papelada necessária e para contatar as autoridades. Sem status legal e carteira de saúde, trabalhadores migrantes precisam pagar o preço total e frequentemente exorbitante dos tratamentos médicos. Por exemplo, um parto por cesárea em um hospital custa mais de 10,000 baht (US$ 300) – equivalente a mais de três vezes o salário médio de um migrante. A busca por assistência médica também expõe os migrantes a possíveis detecções enquanto se deslocam para os locais de assistência e a serem denunciados pelos funcionários do hospital, o que pode resultar em detenção ou deportação.

Além do registro, muitos outros obstáculos impedem refugiados e migrantes birmaneses a buscar assistência médica: diferença de idioma, custo do transporte e do tratamento e a falta de confiança no sistema público de saúde devido à diferença de idioma somada à atitude hostil de alguns médicos. Todos esses fatores juntam-se para impedir que muitos migrantes obtenham tratamento até que suas condições tornem-se muito sérias. Refugiados e migrantes birmaneses na Tailândia são apenas um exemplo – MSF testemunhou problemas similares na África do Sul, Bélgica e em outros lugares.

Como uma organização humanitária, MSF responde à ausência do acesso à assistência provendo cuidados médicos e outras necessidades básicas a refugiados e migrantes, independente de seu status legal. Muitos dos que buscam assistência de MSF fugiram da guerra e da violência, chegando em condições vulneráveis à países onde também trabalhamos para lidar com os impactos da violência. Ainda assim, nos países receptores, as conseqüências das barreiras jurídicas, políticas e práticas enfrentadas por migrantes deixam MSF com diversos obstáculos para acessá-los e assisti-los.

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4. Conclusão: fluxos “mistos” e os desafios aos agentes humanitários

Com as atuais pressões, refugiados e migrantes – chegados em fluxos mistos – permanecem escondidos em locais urbanos e são praticamente impossíveis de serem abordados abertamente e de maneira segura para assistência. Em contraste com os campos de refugiados clássicos, poucas estruturais legais especificam os direitos dessa população à assistência, obrigações dos Estados em garantir acesso à agências humanitárias ou orientações gerais para negociação do acesso humanitário. Também em contraste com os antigos típicos campos de refugiados, muitos países receptores são dirigidos por governos fortes que podem resistir ao reconhecimento de refugiados ou necessidades humanitárias dentro de suas fronteiras.

Neste contexto de violência e deslocamento, MSF tem lutado há muito tempo pela preservação de espaços humanitários – o reconhecimento e respeito dos Estados e de outros atores pelas ações independentes das agências humanitárias em avaliar as necessidades e auxiliar os mais vulneráveis. As barreiras legais e práticas cada vez mais restritivas enfrentadas pelos refugiados e migrantes nos desafiam a encontrar caminhos para alcançá-los onde quer que estejam – e para encontrar uma linguagem e meios de pressionar os Estados por maior responsabilidade na assistência e proteção dos refugiados e em assegurar que atores humanitários tenham liberdade para acessar e assistir onde ainda existam lacunas.

Fornecer assistência médica e pressionar pelo acesso à saúde dos migrantes em fluxos mistos é um ponto de partida – mas nós e outros atores humanitários somos desafiados a permanecer vigilantes e prontos a atender às necessidades das populações em movimento, que permanecem vulneráveis e frequentemente escondidas de nossa visão.

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Notas

1. Exemplo de um refugiado da Birmânia – paciente de um projeto de MSF na Malásia: “A vida em casa era impossível. Nós não tínhamos praticamente renda alguma. Só comíamos carne uma vez por mês. Meu pai tinha um pequeno pedaço de terra e plantava comida. Mas, quando ele morreu, o governo tomou nossa terra. Se eu quisesse usar a terra do meu pai, teria que alugá-la. Eu não tinha como pagar. Eu parti porque tinha que sobreviver”. Por exemplo, pessoas que partiram do Zimbábue frequentemente contam à funcionários de MSF histórias de fuga, que incluem tanto perseguição política quanto fuga por sobrevivência econômica.

2. Para mais informações sobre as campanhas públicas de MSF sobre refugiados, acesse: <http://www.doctorswithoutborders.org/education/refugeecamp/movie.cfm> e <http://www.alterfocus.com/DossiersFuiteHistoire/index.htm>.

3. UNHCR define como situação prolongada de refugiado como: “situação na qual refugiados encontram-se em uma longa e difícil situação de limbo. Suas vidas podem não estar em perigo, mas seus direitos básicos e necessidades econômicas, sociais e psicológicas essenciais permanecem descumpridas após anos no exílio. Um refugiado nessa condição é frequentemente incapaz de se libertar da dependência de ajuda externa.” (UNHCR, 2004, p. 1).

4. Para uma análise crítica sobre a questão de dependência da ajuda humanitária (frequentemente através de uma visão sobre situações dos refugiados), argumentando que assistência transparente e confiável dada as necessidades deveria ser o foco da ajuda, e não a relutância à dependência dela, ver HARVEY; LIND, 2005.

5. Por exemplo, em 2007 só a Grécia recebeu mais de 112.000 migrantes. No entanto, de um total de aproximadamente 25.000 pedidos de asilo registrados, apenas oito pessoas receberam o status de refugiado – as principais nacionalidades apontadas pelas pesquisas de MSF foram de pessoas originárias do Iraque, Afeganistão, Somália e Paquistão.

6. MSF tem estado ativo em Malta desde agosto de 2008.

7. MSF trabalhou na ilha mais ao sul da Itália, Lampedusa, de 2002 a 2008 (MSF, 2007a).

8. Por exemplo, no âmbito da União Européia há agora políticas de visto, sanções a pessoas que transportam migrantes sem documentos, bem como controles extraterritoriais realizados pelas equipes de companhias aéreas e oficiais de imigração localizados no estrangeiro para impedir entradas de pessoas indesejadas na União Européia. Uma agência da União Européia, Frontex, foi criada para aumentar a cooperação no controle da fronteira. Para mais informação sobre esta organização, ver: http:/www.frontex.europa.eu/

9. Art. 33 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e considerada lei consuetudinária.

10. Ver, por ex, MSF, 2007c, juntamente com um relatório mais aprofundado MSF, 2007b. Trabalho similar em centros de detenção foi realizado na Malásia.

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REFERÊNCIAS

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HARVEY, Paul; LIND, Jeremy. Dependency and Humanitarian Relief: A critical analysis. HPG Report, n. 19. 2005. Disponível em: <http://www.odi.org.uk/resources/hpg-publications/reports/19-dependency-humanitarian-relief-critical-analysis.pdf>. Último acesso em: maio 2009.

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Katharine Derderian

Katharine Derderian trabalha na unidade de Análise e Advocacy de Médicos sem Fronteiras na Bélgica. Junto ao MSF desde 2001, Katharine trabalhou em missões de campo na Libéria, Angola e Quênia. Desde que começou a atuar na sede da organização em 2005, ela concentrou-se em situações de conflito, mais recentemente Darfur, Somália, e regiões próximas, bem como no impacto das políticas e práticas do exército e da ONU sobre as ajudas humanitárias. Katherine tem Ph.D em Filologia Clássica pela Princeton University.

E-mail: katharine.derderian@brussels.msf.org

Original em inglês. Traduzido por Andre Degenszajn.

Liesbeth Schockaert

Liesbeth Schockaert trabalha atualmente na Unidade de Análise e Advocacy de Médicos sem Fronteiras, na sua sede em Bruxelas. Junto ao MSF desde 1999, Liesbeth possui ampla experiência de campo em locais de refugiados e deslocados, como em Kosovo, leste da África, Chade, Quênia e Indonésia. Ela também coordenou trabalhos de advocacy e campanhas de MSF sobre refugiados. Liesbeth é graduada em Direito pela Ghent University e licenciada em Política Européia e Internacional pela University of Edinburgh.

E-mail: liesbeth.schockaert@brussels.msf.org

Original em inglês. Traduzido por Andre Degenszajn.