Ensaios

A recusa dos serviços de saúde reprodutiva por motivo de consciência na América Latina

Beatriz Galli e Diya Uberoi

Desafiando políticas e práticas baseadas em normas de direitos humanos

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RESUMO

Nos últimos anos, tem aumentado o uso da objeção de consciência (OC) como meio de negar às mulheres seus direitos de saúde sexual e reprodutiva. Ao mesmo tempo em que os Estados têm a obrigação, conforme o direito internacional dos direitos humanos, de proteger a liberdade de pensamento, consciência e religião dos indivíduos, também têm a obrigação de proteger o direito ao mais alto patamar de saúde e outros direitos fundamentais. Órgãos internacionais e regionais de direitos humanos têm apontado para a necessidade de limitar a OC a fim de proteger os direitos das mulheres.

Como meio de equilibrar o direito dos provedores de serviços médicos de exercer suas crenças morais com a proteção do direito à saúde das mulheres, vários países buscaram maneiras diferentes de regulamentar o uso da OC. Em alguns deles, tomaram-se medidas para regulamentar a OC de forma a proteger os direitos fundamentais das mulheres. Em outros, há poucas diretrizes que visam a garantir a disponibilidade de serviços para as mulheres quando ocorrem recusas. Este artigo oferece uma visão geral das políticas de regulamentação da OC na América Latina. Ele examina essa regulamentação no direito internacional e nas leis de diversos Estados da região e sugere que, para que os direitos reprodutivos das mulheres se tornem realidade, será preciso que os Estados, bem como os órgãos de direitos humanos internacionais e regionais, continuem a encontrar maneiras de esclarecer as diretrizes que envolvem a OC, a fim de que o motivo de consciência não se torne uma desculpa para negar às mulheres o exercício de seus direitos fundamentais.

Palavras-Chave

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Introdução

A objeção de consciência (OC) pode ser entendida como o direito de um indivíduo de se recusar a participar de uma atividade que ele ou ela considere incompatível com suas crenças morais, religiosas, filosóficas ou éticas. Embora, em princípio, o direito de um indivíduo de insistir numa objeção moral ao desempenho de certos deveres possa não parecer problemático, a objeção de consciência, quando levantada por provedores de serviços médicos com o objetivo de recusar certos procedimentos de salvamento de vidas, podem despertar uma série de preocupações no contexto da saúde da reprodução sexual.

Alguns estudos sugerem que o uso da OC tem se tornado uma estratégia utilizada com cada vez mais frequência por prestadores de serviços médicos que procuram se eximir, por motivos morais, de seu dever de prover serviços essenciais de saúde reprodutiva para mulheres.11. Kathleen M. Morrell and Wendy Chavkin, “Conscientious objection to abortion and reproductive healthcare: A review of recent literature and implications for adolescents,” Current Opinion in Obstetrics and Gynecology, 27, no. 5 (2015): 333–338. Em vários países, a OC é praticamente desregulamentada ou regulamentada minimamente, com consequências devastadoras para a saúde e a vida das mulheres. Em certos países, diz-se que o direito a OC pertence não somente aos indivíduos, mas também a instituições.22. No Uruguai, por exemplo, após a descriminalização do aborto, o conceito de objeção ideológica por instituições foi introduzido mediante lei. Ver Lionel Briozzo, “From Risk and Harm Reduction to Decriminalizing Abortion: the Uruguayan Model for Women’s Rights,” International Journal of Gynecology and Obstetrics 134 (2016): S3-S6. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que, sendo uma barreira aos serviços de aborto legal, a OC pode impedir que as mulheres tenham acesso aos serviços para os quais são elegíveis, podendo potencialmente contribuir para o aborto inseguro.33. Ver, WHO. Safe Abortion: Technical and Policy Guidance for Health Systems, 2nd ed. (Geneva: WHO, 2012), 69; Christina Zampas, “Legal and Ethical Standards for Protecting Women’s Human Rights and the Practice of Conscientious Objection in Reproductive Healthcare Settings.,” (2013) 3 International Journal of Gynaecological Obstetrics 123, supl. 3 (2013): S63–S65.

Embora os Estados tenham a obrigação de proteger o direito dos prestadores de serviços médicos à liberdade de pensamento, consciência e religião nos termos do direito internacional, eles também têm a obrigação de proteger o direito à vida e à saúde das mulheres. Os órgãos de monitoramento de tratados das Nações Unidas (ONU), através de uma série de recomendações e observações finais, sustentaram que, como meio de proteger o direito à saúde, a OC deve ser regulamentada.44. Ver, por exemplo, United Nations, Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CEDAW), “Concluding Observations regarding Slovakia,” A/63/38, 14 July 2008, para. 42–43; United Nations, Human Rights Committee (OHCHR), “Concluding Observations regarding Poland,” CCPR/C/POL/CO/6, 29 September 2010, para 12. Este artigo sugere que existe uma necessidade concreta de que os Estados, bem como os organismos de direitos humanos, imponham limites e diretrizes claras ao uso da OC, a fim de proteger os direitos fundamentais das mulheres. Embora o direito internacional possa fornecer orientações úteis nesse contexto, o exemplo proporcionado por alguns tribunais nacionais pode ser ainda mais benéfico.

A primeira parte deste artigo examina os argumentos em torno da OC e de seu status no âmbito do direito internacional e regional dos direitos humanos. A segunda parte aborda as diferentes maneiras pelas quais os Estados têm procurado regulamentar a OC para garantir que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sejam totalmente protegidos. Em particular, examina o status da OC na América Latina. O exemplo latino-americano é relevante porque o direito das mulheres ao acesso a serviços de saúde reprodutiva nessa região tem sido consistentemente atacado, na medida em que as normas em torno do aborto e da contracepção de emergência têm estado em constante estado de fluxo. Ao longo dos anos, à medida que países da região tentaram descriminalizar o aborto, houve uma reação de médicos que reivindicaram a proteção de seu direito à OC, o que está causando impactos devastadores na vida e na saúde das mulheres. Por fim, o artigo analisa alguns estudos de caso de países da América Latina e conclui com sugestões para os governos, a fim de garantir a proteção dos direitos fundamentais das mulheres.

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Direitos de saúde sexual e reprodutiva e limites à OC conforme o direito internacional dos direitos humanos

A OC traz para o primeiro plano a necessidade dos governos de equilibrar sua obrigação de proteger as crenças morais dos indivíduos com o direito dos pacientes de receber cuidados adequados. Embora o direito ao pensamento, à consciência e à religião seja reconhecido pelo direito internacional dos direitos humanos, o mesmo acontece com o direito ao mais alto patamar de saúde.

Hoje, os direitos à saúde sexual e reprodutiva estão bem estabelecidos pelo direito internacional dos direitos humanos. E o direito internacional, por meio do pronunciamento de órgãos de monitoramento de tratados, reconheceu a necessidade de regulamentar a OC para acomodar tanto as crenças dos provedores médicos quanto os direitos das mulheres à assistência médica. As regulamentações, por exemplo, devem assegurar a disponibilidade de provedores concordes e deveriam estabelecer com clareza os tipos de serviços e circunstâncias em que a OC pode ser invocada. Deveriam ainda estabelecer mecanismos de supervisão, prever sanções para os profissionais de saúde que não cumpram suas obrigações55. Tysiac v Poland, Application no. 5410/03, Merits and Just Satisfaction, 2007, para 116–117. e permitir que as mulheres reivindiquem remédio legal quando os seus direitos forem violados.66. O direito a um recurso efetivo é um direito fundamental reconhecido na maioria dos tratados de direitos humanos internacionais e regionais. Ver, por ex., International Covenant on Civil and Political Rights, adotado em 16 dez. 1966, Art. 2, para 3, G.A. Res. 2200A XXI, UNGAOR, 21st Sess., Supp. no.16, U.N.Doc. A/6316 (1966), 999 U.N.T.S. 171 (entrou em vigor 23 mar. 1976).

O Comitê de Direitos Econômicos e Sociais e órgãos de direitos humanos dos Estados consideraram que, para proteger o direito à saúde e à vida das mulheres, os direitos à objeção de consciência podem ser limitados.77. Ver, por ex., United Nations, Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), “Concluding Observations: Poland,” U.N. Doc. E/C.12/POL/CO/5 (2009) para 28. O Relator Especial da ONU sobre Saúde chegou a explicar que o exercício da OC não pode se sobrepor ao direito à saúde, integridade e privacidade das mulheres.88. United Nations, “Special Rapporteur on Health,” supra note 29 para 8. As leis que protegem os direitos à consciência e que restringem o acesso ao aborto e outros serviços reprodutivos violam os direitos das mulheres à privacidade e à tomada de decisão reprodutiva. Quando a OC é usada para negar esses serviços, ela prejudica a capacidade das mulheres de controlar sua autonomia reprodutiva e atenta contra sua capacidade de ter controle sobre seus próprios corpos.

O Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Comitê da CEDAW) considerou que “é discriminatório que um Estado Parte recuse a prestação legal de certos serviços de saúde reprodutiva para as mulheres”.99. United Nations, Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CEDAW), “General Recommendation no. 24: Article 12 (women and health),” 20th Sess., 1999), in Compilation of General Comments and General Recommendations Adopted by Human Rights Treaty Bodies, Vol. II, p. 358, para 11, U.N. Doc. A HRI/GEN/1/Rev.9 (2008). Assim, quando a OC é invocada, ele recomenda que “sejam introduzidas medidas para garantir que as mulheres sejam encaminhadas para provedores de saúde alternativos”.1010. CEDAW, “General Recommendation no. 24”. No que se refere ao aborto, observa especificamente que as políticas que permitem a OC sem garantir meios alternativos de acesso aos serviços de aborto violam os direitos reprodutivos das mulheres e recomenda que sejam tomadas medidas para garantir indicações alternativas nessas circunstâncias.1111. Ver, por ex., United Nations, Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CEDAW), “Concluding Observations: Slovakia,” U.N. Doc. A/63/38 (2008) para 42–43. O Comitê de Direitos Humanos, que monitora o cumprimento pelos Estados do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR), reconheceu a OC como uma barreira ao aborto. Ele recomenda que os Estados, conforme sua obrigação de proteger o direito à vida, removam barreiras ao procedimento.1212. Ver, por ex., United Nations, Human Rights Committee (OHCHR), “Concluding Observations: Poland,” U.N. Doc. CCPR/C/ POL/CO/6 (2010) para 12.

Os órgãos da ONU também especificaram as condições em que a OC pode ser limitada. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR) e o Comitê de Direitos Humanos identificaram que, para proteger o direito ao mais alto patamar de saúde, os Estados podem restringir a OC, desde que a restrição: 1) obedeça à lei; 2) seja compatível com outros direitos humanos; 3) tenha objetivos legítimos; e 4) seja estritamente necessária para promover o bem-estar geral.1313. United Nations, Human Rights Committee (OHCHR), “General Comment no. 22, The Right to Freedom of Thought, Conscience and Religion (Article 18),” UN Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Add.4 (1993) para 8; United Nations, Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), “General Comment no. 14, The Right to the Highest Attainable Standard of Health,” UN Doc. no. E/C.12/2000/4 (2000). Assim, vê-se a necessidade de que as isenções e limites da OC sejam declaradas com clareza, para que haja um equilíbrio entre o direito à objeção de consciência e o direito das mulheres à saúde. Além disso, é importante que os limites sejam explicitamente declarados e que existam mecanismos de responsabilização para garantir que a OC não se torne um meio de negar às mulheres cuidados que salvam vidas. Em 2011, em seu relatório preliminar sobre a criminalização do aborto, o Relator Especial da ONU sobre o Direito ao Mais Alto Patamar de Saúde recomendou especificamente que os Estados definissem com clareza as exceções à OC,1414. United Nations, “Special Rapporteur,” para 65. e o Comitê da CEDAW instou os Estados a “tomar medidas para prevenir e impor sanções por violações de direitos cometidas por pessoas e organizações privadas”.1515. CEDAW, “General Recommendation no. 24,” para 14–15. Quando a legislação impõe limites claros à OC e exige a criação de formas de accountability, ela esclarece qualquer mal-entendido que possa ocorrer quando diferentes direitos entram em conflito.

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Desenvolvimentos regionais de normas de direitos humanos para limitar a OC

Os órgãos regionais de direitos humanos também procuraram estabelecer limites à OC em contextos de saúde. A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), por exemplo, tratou da necessidade de restringir a OC em questões de saúde sexual e reprodutiva em várias instâncias. Essa instituição sustentou que os farmacêuticos não podem se recusar a vender anticoncepcionais, pois o direito de exercer suas crenças em público nem sempre é garantido.1616. Ver Pichon and Sajous v. France no. 49853/99, Merits and Just Satisfaction, 2 de outubro de 2001. Além disso, concluiu que a OC só pode ser exercida por indivíduos e não por instituições.1717. Pichon and Sajous v. France. No que se refere ao aborto, considerou que os Estados têm uma obrigação positiva de regulamentar a prática da OC.1818. R.R. v. Poland no. 27617/04, Merits and Just Satisfaction, 26 de maio de 2011, para 197. No caso de RR vs. Polônia, por exemplo, quando se negou a uma mulher o acesso a um exame genético pré-natal devido a uma objecção do médico, a CEDH considerou que a implementação eficaz das leis do aborto é um meio necessário para garantir o respeito pela vida privada.1919. R.R. v. Poland, para 213–214.

Reafirmando essa decisão um ano mais tarde, no caso de PS vs. Polônia, em que uma adolescente ficou grávida em consequência de estupro, a CEDH decidiu que as normas legais em torno do aborto devem garantir o acesso efetivo ao procedimento.2020. P and S v. Poland no. 57375/08, Merits and Just Satisfaction, 5 de novembro de 2012. Negar serviços de salvamento de vida em tais circunstâncias constitui uma violação do direito das mulheres à privacidade e à vida, e pode até mesmo equivaler à tortura.2121. P and S v. Poland. Levando em conta os direitos das mulheres à luz do direito à vida de um feto, a CEDH, em Vo vs. França explicou que os direitos dos nascituros estão limitados pelos direitos e interesses da mãe.

Regulamentação da OC e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Enquanto foram feitos alguns progressos em relação à OC e a saúde sexual e reprodutiva das mulheres no sistema regional na Europa, normas nesse sentido não foram estabelecidas no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.2222. Porém, estabeleceram-se normas a respeito da OC nas forças militares. Ver, por ex., Case 12219, Cristian Daniel Sahli Vera et al. v Chile, Report no. 43/05 (2005); Case 14/04, Alfredo Diaz Bustos v Bolivia, Report no. 97/05 (2005). A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, ainda não decidiu sobre um caso que exija explicitamente um equilíbrio entre os direitos à consciência e à saúde. A Corte, no entanto, abordou tangencialmente a questão no processo de Artavia Murillo vs Costa Rica. Nesse caso, a Corte Interamericana reconheceu explicitamente os direitos reprodutivos e procurou estabelecer obrigações estatais a respeito da regulamentação desses direitos. Ela afirmou especificamente que “os Estados são responsáveis pela regulamentação e supervisão da prestação de serviços de saúde reprodutiva, a fim de garantir a proteção efetiva dos direitos à vida e à integridade pessoal”.2323. Case of Artavia Murillo et al. v Costa Rica, IACtHR Series C 257 (2012) para 148. Embora a decisão per se não faça referência específica à OC no contexto da saúde, mesmo assim marca um reconhecimento significativo pelo Sistema Interamericano da necessidade de proteção da saúde sexual e reprodutiva através de um marco regulatório efetivo.

A Corte Constitucional colombiana

A falta de um precedente estabelecido pela Corte Interamericana, no entanto, não impediu que tribunais nacionais da região tomassem decisões. Alguns desses tribunais deliberaram sobre a OC e procuraram definir os seus limites. A Corte Constitucional da Colômbia, por exemplo, emitiu uma série de decisões para esclarecer os limites da OC e definir seus componentes normativos no que diz respeito a questões de saúde. Nas decisões históricas T-209 (2008), T-946 (2008) e T-388 (2009), a Corte liberalizou o aborto e, especificamente, estabeleceu marcos legais para a forma como as instituições de saúde devem acomodar o direito à objeção de consciência dos prestadores de serviços médicos e o direito a serviços médicos legítimos das mulheres.2424. Colombia, Corte Constitucional (C.C.) (Tribunal Constitucional), Sentencia C-355/06, May 10, 2006; Colombia, Corte Constitucional (C.C.) (Tribunal Constitucional), Sentencia T-209/08, February 28, 2008; Colombia, Corte Constitucional (C.C.) (Tribunal Constitucional), Sentencia T-388/09, May 28, 2009, acesso em nov. 30 2016, http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2009/t-388-09.htm. A Corte, por exemplo, estabeleceu que: a) a OC só pode ser invocada por prestadores diretos de abortos e não por assistentes médicos, enfermeiros etc.;2525. Essa exigência foi recentemente apoiada também pela Corte Suprema do Reino Unido no processo de Doogan & Woods. Nesse caso, duas parteiras que trabalhavam como Coordenadoras da Enfermaria de Parto queriam invocar o direito de objeção de consciência, de acordo com a seção 4 da Lei do Aborto de 1967 que estipula que “nenhuma pessoa deve ser obrigada (...) a participar de qualquer tratamento (...) ao qual ela tenha objeção de consciência”. O Health Board rejeitou a alegação das parteiras, declarando as atividades delas não estavam suficientemente próximas do procedimento de aborto para cumprir os requisitos da seção 4. Embora o recurso das parteiras à Inner Court tenha sido aceito, a Corte Suprema reafirmou o teste de proximidade que fora aceito inicialmente. (Doogan and Woods v Greater Glasgow and Clyde Health Board, UKSC 68, 2014). b) a OC é um direito individual e não pode ser reclamado por instituições; c) as alegações de OC devem ser feitas por escrito; d) os médicos podem ser processados ​​por não cumprir as normas relativas à OC, e e) “Uma vez que a OC não pode ser invocada com o efeito de violar os direitos fundamentais das mulheres aos cuidados de saúde […] os médicos objetores têm o dever de encaminhamento imediato e as instituições devem manter informações sobre médicos não objetores a quem as pacientes possam ser prontamente encaminhadas”.2626. Rebecca J. Cook, Mónica Arango Olaya e Bernard M. Dickens, “Health care responsibilities and conscientious objection,” International Journal of Gynecology and Obstetrics 104, no. 3 (2009): 250. Em um relatório intitulado Acesso à informação sobre saúde reprodutiva de uma perspectiva de direitos humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos até se referiu às decisões da Corte Constitucional da Colômbia e legitimou suas diretrizes quanto à OC como normas de direitos humanos para a região.2727. OAS, Inter-American Commission on Human Rights (IACHR), Access to Information on Reproductive Health from a Human Rights Perspective, OEA/Ser.L/V/II., doc. 61 (2011) para 63. Para alguns estudiosos, essas decisões fornecem uma abordagem holística à OC e servem de “modelo” efetivo que os países podem levar em consideração na regulamentação da OC.2828. Luisa Cabal, Monica Arango Olaya, e Valentina Montoya Robledo, “Striking a Balance: Conscientious Objection and Reproductive Health Care from the Colombia Perspective,” Health & Human Rights 16 (2014): 77.

A posição conforme o direito internacional dos direitos humanos é clara. Ao mesmo tempo em que devem proteger os direitos à consciência e à crença dos prestadores de serviços médicos, os Estados podem limitar a manifestação do direito ao pensamento para proteger os direitos fundamentais das mulheres. Seguindo essa tendência, os Estados encontraram maneiras diferentes de regulamentar a OC no contexto médico. Até agora, há poucas pesquisas e evidências sobre a prática da OC em nível internacional. Não obstante, alguns casos emblemáticos em países da América Latina, tais como Colômbia, Argentina, Brasil e Uruguai, proporcionam uma análise interessante para uma abordagem baseada nos direitos humanos da regulamentação da OC na esfera reprodutiva.

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A OC na América Latina

A objeção de consciência torna-se, cada vez mais, uma questão contenciosa em vários países da América Latina. Na região, há algumas das leis mais restritivas ao aborto. Enquanto o aborto é crime na Nicarágua, na República Dominicana, no Chile, em Honduras e em El Salvador, nos outros países é uma prática legalizada, mas sujeita a restrições. Para proteger tanto os interesses dos prestadores como o direito das mulheres à saúde, Estados em toda a região tomaram medidas significativas para regulamentar a OC na esfera médica.

Em vários países, a legislação exige especificamente que os prestadores de serviços médicos e as instituições encaminhem os pacientes para prestadores que não sejam objetores,2929. Ver Argentina, Decreto No. 1282/03, 26 maio, 2003, Boletin Oficial; Argentina Lei No. 26130, 28 ag. 2006, Boletin Oficial 29 aug. 2006; Uruguai, Decreto No. 375, 2012, 22 nov. 2012, Diario Oficial 29 nov. 2012 (); México, Ley de Salud del Distrito Federal (LSDF), Gaceta Oficial del Distrito Federal (G.O.D.F) 17 de septiembre de 2009, Artigos 58 e 59. que as declarações de OC sejam feitas por escrito3030. Ver por ex., Uruguai, Decreto No. 375, 2012, 22 nov. 2012. e que os médicos expliquem por que a realização de determinados procedimentos contraria suas crenças mais profundas.3131. Colombia, Corte Constitucional (C.C.), (Tribunal Constitucional), Decision T-388/09, Gaceta de la Corte Constitucional (G.C.C.), 28 mai. 2010, para 53. Apesar dessas melhorias, a OC ainda representa impedimentos aos direitos das mulheres.

Mesmo em países que procuraram impor restrições à OC, há poucos mecanismos de supervisão para responsabilizar os objetores. Com a falta de regulamentação e de mecanismos de supervisão adequados, os prestadores de serviços médicos têm podido cada vez mais invocar alegações de consciência como meio de “abusar” do direito. À luz desses fatos, existe uma necessidade real de que os Estados continuem a aperfeiçoar as regulamentações em torno da OC para garantir que os direitos das mulheres não sejam comprometidos pela necessidade de proteger as liberdades de pensamento, consciência e religião.

A Argentina é um exemplo disso. Embora o aborto seja legal, desde que sujeito a certas condições, e que a OC seja amplamente regulamentada por lei, os provedores de serviços médicos recusam-se consistentemente a prestar serviços essenciais para as mulheres.3232. O aborto é legal na Argentina sempre que a vida da mulher está em risco ou em caso de estupro. Ver Argentina, Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN) (Supreme Tribunal Federal), “F., A. L. s/ medida autosatisfactiva” F. 259. XLVI, 13 mar. 2012. Desde 2003, o Congresso Nacional procura regulamentar a OC na esfera da saúde reprodutiva e sexual.3333. Argentina, Lei No. 25673/03, 26 mai. 2003, Boletin Oficial (Programa Nacional de Saúde Sexual e Reprodução Responsável); Argentina, Decreto No. 1282/03, 26 mai. 2003, Boletin Oficial; Argentina, Lei No. 26130, 28 aug. 2006, Boletin Oficial (contracepção cirúrgica); Argentina, Ministerio de Salud, Guía Técnica para la Atención Integral de los Abortos No Punibles, (Buenos Aires, junho, 2010). Embora as normas estipulem de várias formas que a OC não seja invocada de forma a negar o acesso das mulheres aos serviços de saúde sexual e reprodutiva,3434. Por exemplo, o Decreto No. 1282/03 estipula que as instituições devem garantir a execução do Programa Nacional de Saúde Sexual e Reprodução Responsável e que, em casos de OC, as instituições devem encaminhar as pacientes a profissionais que não sejam objetores, e que no caso de recusa, que as instituições proporcionem a interrupção da gravidez por meio de outro provedor na própria instituição dentro de cinco dias, ou de imediato, se a situação é urgente (Argentina, Decreto no. 1282/03). elas ainda são limitadas, pois não restringem o direito apenas aos indivíduos e não fornecem meios para que se considere os objetores responsáveis ​​por suas obrigações.3535. Luisa Cabal, Monica Arango Olaya, e Valentina Montoya Robledo, “Striking a Balance: Conscientious Objection and Reproductive Health Care from the Colombia Perspective,” Health & Human Rights 16 (2014): 79. Desse modo, tanto instituições públicas como privadas e os profissionais da área médica podem negar acesso a serviços. Vários estudos indicam que a falta de mecanismos legais de responsabilização propiciou aos prestadores de serviços médicos do país um estímulo para negar às mulheres informações e acesso a serviços de reprodução por motivos de objeção de consciência.3636. Marcelo Alegre, “Conscious Oppression: Conscientious Objection in the sphere of sexual and reproductive health,” Seminario en Latinoamérica de Teoría Constitucional y Política (Asunción, Paraguay, 2009) 94. Paper 66. Em alguns casos, profissionais de saúde e farmacêuticos até alegaram objeção de consciência como forma de recusar-se a dar informações sobre aborto ou encaminhar mulheres para outros provedores concordes, mesmo quando obrigados pela lei.3737. Alegre, “Conscious Oppression”. O acesso à informação é um componente vital do direito à saúde, e valer-se da OC para negar às mulheres informações sobre a disponibilidade de serviços reprodutivos essenciais é uma violação do direito dos indivíduos à informação e à privacidade na saúde.3838. Sandra Coliver, ed., Article 19, The Right to Know: Human Rights and Access to Reproductive Health Information (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995), 39, 61–72. Não obstante, uma pesquisa realizada pelo CEDES em 2001 mostrou que 50% dos profissionais entrevistados consideravam que não deveriam realizar vasectomias ou laqueaduras, ou fornecer informações sobre esses serviços.3939. Alegre, “Conscious Oppression,” 94, citing to Silvina Ramos et al., Los médicos frente a la anticoncepción y el aborto ¿Una transición ideológica? (Buenos Aires, CEDES, 2001). Mais de 30% tinham a mesma posição a respeito da contracepção.4040. Ibid. 94.

No Brasil, onde a OC esta regulamentada desde 2005, nega-se às mulheres o acesso ao aborto porque os médicos se recusam a prestar esse serviço. Embora o Ministério da Saúde tenha baixado em 2005 a Portaria 1.508/20054141. Brasil, Ministério da Saúde, Portaria no 1.508/GM, 1º. de setembro de 2005. como forma de limitar a OC e proteger a saúde sexual e reprodutiva das vítimas de estupro, houve incidentes em que os médicos descaradamente ignoraram a portaria. Outro documento do ministério da mesma época estipula especificamente que a palavra da mulher deve “ser recebida com presunção de veracidade”.4242. Brasil, Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica, 2 ed. (Brasília: Ministério da Saúde, 2005). Não obstante, houve casos em que se negaram abortos legais às mulheres porque os médicos não estavam dispostos a acreditar em suas histórias.4343. Beatriz Galli e Edlaine C. Gomes, “Representações dos profissionais de saúde em relação ao aborto: entre direitos e deveres na atenção,” Seminário Internacional Fazendo Gênero, 7 (Florianópolis: EDUFSC, aug. 2006). Algumas pesquisas mostram que os médicos, ao interrogar as vítimas de estupro, muitas vezes exigem extensa documentação, com fatos detalhados, criando barreiras desnecessárias para o aborto legal.4444. Debora Diniz, Alberto Pereira Madeiro e Cristião Rosas, “Conscientious objection, barriers, and abortion in the case of rape: a study among physicians in Brazil,” Reproductive Health Matters 22, no. 43 (2014): 141.

Na Colômbia, onde os regulamentos estipulam consequências legais para os objetores na área da saúde, os médicos ainda tentam abusar de seus direitos. Depois que a Corte Constitucional liberalizou o aborto em 2006 e estabeleceu suas diretrizes inovadoras para a regulamentação da OC, casos recentes mostraram que os prestadores de serviços médicos se recusam a realizar abortos, embora sejam obrigados a fazê-lo.4545. O’Neill Institute & Women’s Link Worldwide, T-388/2009: Conscientious Objection and Abortion A Global Perspective on the Colombian Experience, (Colômbia: Women’s Link Worldwide & O’Neill Institute: 2014), 10. A Decisão T-388/09, em que a Corte procurou esclarecer suas diretrizes em matéria de OC – estipulando que as autoridades públicas, os juízes e os prestadores de serviços de saúde, públicos ou privados, poderiam estar sujeitos a sanções legais4646. Colômbia, Sentencia T-388/09. se não fossem respeitadas as normas a respeito da OC – foi desafiada. Imediatamente após a decisão, “três cidadãos e o próprio Inspetor-Geral da Colômbia entraram com uma petição para que a Corte Constitucional revogasse a decisão, com o argumento, entre outros, de que a criação de regras sobre a objeção de consciência ao aborto”4747. O’Neill Institute & Women’s Link Worldwide, T-388/2009, 10. ia além de sua Decisão de 2006.

No Uruguai, por exemplo, o aborto é legal até a 12ª semana de gravidez.4848. Uruguai, Lei No. 18.987, 22 out. 2012, D.O. 30 out. 2012, Nº 28585, Artigo 6. Como meio de garantir o acesso ao aborto e outros serviços de saúde reprodutiva, o governo implementou a Lei 18.987 e o Decreto 375 (2012), que regulam o alcance da lei liberal do aborto e visam a esclarecer os limites da OC.4949. Uruguai, Lei No. 18.987, 22 out. 2012; Decreto No. 375, 2012, 22 nov. 2012, D.O. 29 nov. 2012. Esses documentos exigem que as instituições que se opõem à prática do aborto declarem suas objeções à Junta Nacional de Saúde.5050. Luisa Cabal, Monica Arango Olaya, e Valentina Montoya Robledo, “Striking a Balance: Conscientious Objection and Reproductive Health Care from the Colombia Perspective,” Health & Human Rights 16 (2014) 80. Além disso, os regulamentos também tentam prever situações em que a OC pode equivaler à desobediência civil ou ser super-utilizada. Por conseguinte, os regulamentos estipulam que a OC pode ser revogada a qualquer momento e pode ser “implicitamente revogada sempre que um médico presta serviços de aborto”.5151. Ibid. Tendo em vista o alcance abrangente das disposições, alguns médicos contestaram o decreto, argumentando que ele restringia indevidamente o direito à liberdade de pensamento. Assim, em agosto de 2015, o mais alto tribunal administrativo do país anulou várias das disposições que limitavam o exercício da OC.5252. Ver Alonso, Justo and others v Poder Ejecutivo, no 586 (11 aug. 2015); Lucia Berro Pizzarossa, “Conscientious Objection or Conscious Oppression?: The Uphill Battle to Access Abortion Services in Uruguay,” Oxford Human Rights Hub 11 sep. 2015, acesso 10 out. 2015, http://ohrh.law.ox.ac.uk/conscientious-objection-or-conscious-oppression-the-uphill-battle-to-access-abortion-services-in-uruguay/. Em particular, o Tribunal tornou nulo o artigo 12, que proíbe os médicos de formular qualquer julgamento de valor sobre a decisão do paciente.5353. Alonso, Justo and others v Poder Ejecutivo, no. 586; Pizzarossa, “Conscientious”. Tendo em vista o efeito da decisão, há uma preocupação de que quaisquer outros ganhos que possam ser alcançados no campo da sexualidade reprodutiva também sejam frustrados.

Na América Latina, a variada amplitude com que a OC tem sido utilizada como estratégia para negar sistematicamente o acesso das mulheres aos serviços de saúde reprodutiva criou um ambiente em que as mulheres têm mais dificuldades para exercer seus direitos fundamentais. Diante da preocupação que causa o uso abusivo da OC na saúde e nos direitos das mulheres, é necessário que os governos reforcem a legislação a respeito da OC e providenciem mecanismos de fiscalização para garantir a accountability no interior do sistema de saúde. Quando as políticas legais carecem de base para a sua aplicação, aumenta seu potencial de serem negligenciadas, violando, assim, os direitos humanos das mulheres, visto que são apenas “princípios” a considerar.

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Conclusão

O uso ilegítimo da OC representa uma grande preocupação para o acesso das mulheres aos serviços essenciais de saúde reprodutiva e constitui não apenas uma violação do direito à saúde, mas também do direito à informação, à não discriminação e à igualdade nos serviços de saúde e à privacidade das mulheres, tal como estabelecidos pelo direito internacional dos direitos humanos. A esse respeito, a orientação proporcionada pela Corte Constitucional da Colômbia sobre OC e as recomendações feitas por órgãos de monitoramento de tratados fornecem meios efetivos para os Estados levarem em consideração na implementação de suas políticas. É óbvio que, para que a saúde sexual e reprodutiva das mulheres se torne uma realidade, são necessárias medidas para garantir que o direito de uma pessoa à objeção consciência não pode ser objeto de abuso, de tal modo que se negue o acesso ao tratamento que salva vidas de mulheres em todo o mundo.

Beatriz Galli - Brasil

Beatriz Galli é consultora sênior de Política Regional para a América Latina da Ipas.

Recebido em novembro de 2016.

Original em inglês. Traduzido por Pedro Maia Soares.

Diya Uberoi - EUA

Diya Uberoi é candidata a PhD em Direito Internacional no Graduate Institute of International and Development Studies, Genebra.

Recebido em novembro de 2016.

Original em inglês. Traduzido por Pedro Maia Soares.