Ensaios

Políticas de Proteção a Defensores/as de Direitos Humanos

Alice de Marchi Pereira de Souza, Rafael Mendonça Dias e Sandra Carvalho

Uma análise do contexto latino-americano: Brasil, Colômbia e México

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RESUMO

Este artigo trata, pela perspectiva da sociedade civil, das experiências de políticas de proteção aos/às defensores/as de direitos humanos (DDHs) que estão em curso em três países da América Latina: Brasil, Colômbia e México.11. Grande parte das informações e observações da sociedade civil da Colômbia e do México incorporadas a este artigo foi colhida in loco pela Justiça Global, que esteve nestes dois países entre julho e agosto de 2015, como parte de projeto realizado em parceria com a Terra de Direitos e a Front Line Defenders e apoio da Open Society. Agradecemos especialmente à Protection Desk, da Colômbia, e à SERAPAZ, do México. Apontam-se as principais questões que têm preocupado as organizações que acompanham tais políticas, indicando desafios e a importância da articulação regional em torno do tema. Tomando a experiência do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, plataforma que une organizações não-governamentais e movimentos sociais, o artigo analisa também a implantação do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) no Brasil e sua institucionalidade política.

Palavras-Chave

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1. Introdução

Apesar de a América Latina constituir-se de forma diversificada e plena de particularidades locais, compartilhamos de processos históricos e políticos que nos aproximam. Composta de países cujas democracias são em sua maioria ainda recentes e por muitos consideradas frágeis, a região é marcada por modelos de desenvolvimento baseados no agronegócio, na indústria extrativa e em megaprojetos de infraestrutura (como barragens, hidrelétricas, estaleiros e grandes obras de reordenamento urbano), bem como é atravessada por uma forte militarização. Não por acaso, é cenário de graves violações de direitos humanos, e justamente por isso articulam-se também numerosas organizações da sociedade civil que impulsionam o debate sobre a importância da proteção àqueles que lutam pela garantia de direitos. Dessa forma, é compreensível que a América Latina abrigue três dos poucos países no mundo que possuem mecanismos estatais de proteção a defensores/as de direitos humanos (DDHs): Brasil, Colômbia e México.22. Na região, a Guatemala também possui um mecanismo governamental, enquanto Honduras está em processo de elaboração da política no momento.

O Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) foi instituído no Brasil em 2004. Por ocasião da divulgação do primeiro relatório sobre a situação dos DDHs no país,33. Justiça Global e Front Line Defenders, Na Linha de Frente – Defensores de Direitos Humanos no Brasil (1997-2001), 1ª ed., vol. 1 (Rio de Janeiro: Justiça Global, 2002). foi criado um Grupo de Trabalho para discutir medidas protetivas. Entre os temas abordados pelo grupo, desde a época já se destacava a especificidade da proteção ao DDH (seja com medidas individuais ou coletivas), em que o desafio é mantê-lo/a no local em que desenvolve suas atividades. Nesse sentido, foi fortemente discutida a necessidade de assegurar ampla investigação das ameaças pelo sistema de justiça, como também enfrentar as questões geradoras das ameaças e ataques contra DDHs.

Nesse mesmo bojo, as sociedades civis da Colômbia e do México vêm acumulando debate sobre a efetividade das suas políticas públicas para a proteção e o reconhecimento das pessoas defensoras dos direitos humanos.

A Colômbia foi um dos primeiros países da região a adotar um mecanismo de proteção para DDHs. O contexto do conflito armado, que existe desde a década de 1960, é o principal pano de fundo de agressões e assassinatos de milhares de DDHs naquele território. Para a sociedade civil local, o debate sobre a proteção a DDHs é um tema-chave de longa data, o que permite uma atuação conjunta e fortalecida. Com os olhares da comunidade internacional mais voltados à situação no país, no final da década de 1990o primeiro programa governamental de proteção a defensores/as foi criado.

O histórico de violência institucional que envolve complexas redes no México também vitima uma enorme quantidade de DDHs. O programa de proteção do governo é recente e foi discutido pelas organizações de direitos humanos como um instrumento adequado para enfrentar os casos recorrentes de violações, ameaças e assassinatos a DDHs e jornalistas.

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2. Histórico e estruturação dos mecanismos no Brasil, na Colômbia e no México

Apesar de ter sido lançado em outubro de 2004, o Programa de Proteção brasileiro só atuou de fato a partir do assassinato da missionária Dorothy Stang,44. Dorothy Mae Stang, conhecida como Irmã Dorothy (Dayton, 7 de junho de 1931 – Anapu, 12 de fevereiro de 2005), foi uma religiosa norte-americana naturalizada brasileira. Desde a década de 1970 realizava trabalhos junto a trabalhadores rurais na Amazônia Brasileira. em 2005, no Pará. O PPDDH é composto por uma Coordenação Geral e uma Coordenação Nacional, das quais vinham participando representantes da sociedade civil e do poder público até o início de 2016. A Coordenação Nacional tem, entre suas atribuições, as tarefas de analisar os casos de defensores/as em situação de vulnerabilidade, pensar estratégias de proteção e de enfrentamento das questões estruturais que geram as ameaças e deliberar nos casos de inclusão e exclusão no Programa. No entanto, as organizações da sociedade civil55. As organizações da sociedade civil que compõem a coordenação nacional do PPDDH são: Comissão Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário, Terra de Direitos, Justiça Global e Movimento Nacional de Direitos Humanos. que vinham integrando o PPDDH ainda tinham pouca capacidade de ação,66. No final do período de escrita deste artigo, foi assinado o decreto nº 8724, que institui o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, suprimindo a participação da sociedade civil na Coordenação Nacional do Programa. Discorreremos sobre o assunto mais adiante nesse texto. especialmente para atender as demandas que se encontram pendentes e que dizem respeito à definição das estratégias de proteção. O Programa conta ainda com uma Equipe Técnica Federal, contratada por meio de uma organização da sociedade civil, que tem como atribuição atender os Estados da Federação onde o PPDDH ainda não foi criado regionalmente.

O Programa chegou a ser implantado em nove estados da Federação, mas por questões distintas deixou de ser executado no Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, além de ter sido interrompido diversas vezes em vários estados. No momento da finalização deste artigo, estava instalado formalmente em seis estados: Pernambuco, Minas Gerais, Espírito Santo, Ceará, Maranhão e Bahia. Ressalvamos que na Bahia não havia convênio estabelecido com uma organização que o executasse e no Maranhão, apesar de havê-lo, o programa ainda não estava funcionando.

A fraca institucionalidade que marca o programa brasileiro se expressa em uma série de problemas que vêm sendo identificados pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, articulação de organizações e movimentos sociais que acompanha apolítica desde o seu início,77. O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos é composto pelas seguintes organizações: AMUS – Associação de Mulheres Unidas da Serra; Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais – AATR – Bahia; Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente – AMENCAR; Comissão Pastoral da Terra – CPT; Dignitatis – Assessoria Técnica Popular; Dom da Terra – AfroLGBT; CDDH – Serra; CDDH Dom Tomás Balduíno; CDDH Pedro Reis – Regional Sul/ES; CADH – Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdício Barbosa dos Santos “Leo”; Fórum Estadual de Juventude Negra/ES – FEJUNES; Fórum Paranaense das Religiões de Matrizes Africanas; Grupo Tortura Nunca Mais – Bahia; Justiça Global; Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH; Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB; Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST; Secretaria de Justiça e Segurança Pública da ABGLT; Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos – SDDH; Sociedade Colatinense Proteção e Defesa dos Direitos Humanos; Terra de Direitos. e levados sistematicamente à Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e a público ao longo dos anos.88. As cartas com recomendações mais recentes podem ser acessadas em: http://global.org.br/programas/carta-aberta-sobre-a-politica-de-protecao-as-defensoras-e-defensores-de-direitos-humanos/;“Carta Enviada à Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos Cobra Melhorias no Programa de Proteção aos Defensores,” Terra de Direitos, 2015, acesso em 05 mai. 2016, http://terradedireitos.org.br/2015/03/04/carta-enviada-a-secretaria-nacional-de-promocao-e-defesa-dos-direitos-humanos-cobra-melhorias-no-programa-de-protecao-aos-defensores/.

Na Colômbia, apesar de não existir uma lei nacional que aborde especifica e plenamente o tema, as leis 199, de 1995, e 418, de 1997, serviram de base para a criação do primeiro programa governamental voltado para pessoas em situação de risco, vinculado à Direção de Direitos Humanos do Ministério do Interior deste país.99. María Martín e Luis Enrique Egure,“Protección de Defensores/as de Derechos Humanos: Buenas Prácticas y Lecciones a partir de la Experiencia.” Protección Internacional, 2012, acesso em 20 mai. 2015, http://protectioninternational.org/wpcontent/uploads/2013/04/Proteccion_de_defensores/as_buenas_praticias.pdf. Desde o seu nascimento, a sociedade civil o monitora e questiona as suas debilidades. A partir dessa pressão, diversos decretos, normas e protocolos regulatórios foram promulgados e, em 2011, o decreto 4.065 criou a Unidad Nacional de Protección (UNP), sempre sob responsabilidade do Ministerio del Interior.1010. “Informe Especial - Protección al Tablero,” Programa Somos Defensores,2014, acesso em 06 mai. 2016, http://www.somosdefensores.org/attachments/article/88/proteccion_al_tablero_version_eb.pdf.

Além da política governamental, a sociedade civil já vem se articulando para desenvolver estratégias de proteção independentes desde 1997. O Comité para La Protección de Defensores foi criado como resposta aos assassinatos dos defensores de direitos humanos Mario Calderón e Elsa Alvarado, que chamaram a atenção do país à gravidade da situação naquele momento e à urgência da proteção para defensores/as. Em 1999 surge o programa não-governamental de proteção Somos Defensores, que contou com diversos apoios, entre os quais das Organizações das Nações Unidas(ONU), da União Europeia (UE) e de redes de direitos humanos ao redor do mundo.

A proposta do Somos Defensores visa à proteção integral da vida dos/as defensores/as de direitos humanos e à prevenção de agressões. O trabalho é desenvolvido em diferentes linhas: ações de proteção direta e acompanhamento de casos, principalmente com deslocamento de defensores/as dentro da Colômbia e para fora do país em situações de grave risco, bem como no apoio financeiro direto, por meio de um fundo; ações de pedagogia; incidência política; estratégias de comunicação; e o Sistema de Información sobre Agresiones contra Defensores y Defensoras – o SIADDHH. Graças a uma ampla articulação com organizações e movimentos sociais colombianos (mais de 500 atualmente), este sistema documenta e sistematiza informações de caso visando produzir informes periódicos sobre o tema que são importantes subsídios para ações de articulação e pressão doméstica e internacional.1111. Programa Somos Defensores, acesso em 12 set. 2015, http://www.somosdefensores.org/index.php/en/. Algumas dessas publicações são temáticas, trazendo análises políticas qualificadas. O Somos Defensores ocupa um lugar de grande reconhecimento junto ao governo, sendo chamado a consultas e emitindo críticas a respeito da UNP.

Desde 2009, o Programa, junto a outras organizações da sociedade civil que compõem as quatro principais plataformas de direitos humanos na Colômbia, participa da Mesa Nacional de Garantías, a mais alta instância de interlocução com o governo, acompanhada pela comunidade internacional e criada para discutir e tomar medidas efetivas em relação à prevenção, proteção e investigação dentro da temática de defensores/as de direitos humanos. Esse espaço tem sido muito bem avaliado pela sociedade civil local pelos avanços que tem permitido.

A experiência do mecanismo colombiano serviu de inspiração para o programa desenvolvido no México. Neste país, o Plano Nacional de Direitos Humanos (2008-2012) definiu competências dos organismos de Estado e suas responsabilidades na proteção aos DDHs. O Escritório da Alta Comissária para os Direitos Humanos no México publicou um informe em 2010 destacando a importância da criação de um mecanismo nacional de proteção e colaborando na elaboração da lei.

Em 2011, as organizações mexicanas participaram de diversas audiências públicas no Senado para a criação da proposta da política de proteção. Essa ação resultou na redação de um Projeto legislativo para a proteção de Pessoas Defensoras de Direitos Humanos e Jornalistas, que foi aprovado e publicado em 25 de julho de 2012.1212. “Ley para la Protección de Personas Defensoras de Derechos Humanos y Periodistas y Reglamento de la Ley para la Protección de Personas Defensoras de Derechos Humanos y Periodistas,” Secretaría de Gobernación, 2012,acesso em 15 mar. 2015, http://www.derechoshumanos.gob.mx/es/Derechos_Humanos/Ley_para_la_Proteccion_de_Personas_Defensoras_de_Derechos_Humanos_y_Periodistas. Um Conselho Consultivo do mecanismo de proteção foi eleito em 19 de outubro de 2012 com quatro representantes de defensores/as, quatro jornalistas e dois acadêmicos que vêm se reunindo regularmente. No entanto, o mecanismo tem enfrentado problemas burocráticos e a frágil resposta à grande demanda encaminhada para o mecanismo de proteção. Dessa forma, o programa do México vive impasses similares àqueles verificados na Colômbia.

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3. Avaliação da sociedade civil dos programas de proteção

De modo geral, as organizações da sociedade civil no Brasil, na Colômbia e no México têm apontado para várias dificuldades e desafios em comum em relação aos mecanismos de proteção de seus países. Recomendações concretas também têm sido feitas, mas infelizmente tardam a ser adotadas pelos governos.

Talvez a principal delas seja a necessidade dos programas articularem políticas públicas e, sobretudo, enfrentarem as questões estruturais que levam à vulnerabilidade dos DDHs e dos movimentos sociais.1313. Rafael Dias, Sandra Carvalho e Isabel Mansur, Na Linha de Frente: Criminalização dos Defensores de Direitos Humanos no Brasil (2006-2012), 1ª ed.,vol.1 (Rio de Janeiro: Justiça Global, 2013). Nenhuma proteção reativa, de caráter primordialmente policial ou de cunho unicamente material será suficiente para DDHs ameaçados/as enquanto não houver vontade política para enfrentar os problemas geradores das ameaças e situações de vulnerabilidade.

Igualmente fundamental é que as ameaças sejam devida e efetivamente investigadas, levando à responsabilização dos atores que investem contra os DDHs. Sem essa orientação de justiça, os papeis são perversamente trocados, de forma a manter as já generalizadas criminalização e deslegitimação de DDHs, enquanto os violadores seguem imunes.

Outro ponto nevrálgico é a fragilidade institucional dos mecanismos de proteção na região. No caso brasileiro, ela é marcada pela ausência de um marco legal e pela crise financeira e política que levou ao desmonte dos programas estaduais e, no início de 2016, à ameaça de desmonte da política de proteção como um todo, com graves retrocessos na pasta de direitos humanos no país. Na Colômbia e no México, apesar da legislação que sustenta tais programas (ainda que na Colômbia, como já dito, a UNP seja sustentada por decretos e normativas, e não por uma lei específica) e das altas dotações orçamentárias, há uma distância entre o que está no papel e o que é cumprido na realidade. O volume e a qualidade das normas e dos regulamentos não garantem a efetividade da proteção, muitas vezes reduzida a medidas puramente materiais e paliativas (como pesados coletes à prova de balas, celulares, veículos e escoltas). Em 2014, a Colômbia testemunhou um escândalo de corrupção envolvendo a UNP, revelando favorecimentos e desvios de recursos milionários no repasse para empresas de segurança,1414. “Carrusel de Contratos en la UNP Dejó Pérdidas por $600 Millones,” El País, 2014, acesso em 06 mai. 2016, http://www.elpais.com.co/elpais/judicial/noticias/capturan-gerente-financiero-unidad-proteccion-por-corrupcion; “Director de la UNP Denunciará Más Casos de Corrupción,” El Espectador, 2014, acesso em 06 mai. 2016, http://www.elespectador.com/noticias/judicial/director-de-unp-denunciara-mas-casos-de-corrupcion-articulo-515260. terceirizadas na estrutura do programa de proteção. O envolvimento de companhias de segurança privada na execução das medidas de proteção dos mecanismos de México e Colômbia, por sinal, é alvo de grande preocupação. Essas empresas foram largamente denunciadas por envolvimento com paramilitares, grupos de extermínio e agentes de segurança corruptos.1515. Ignacio de los Reyes, “Além do Narcotráfico, México Teme Agora os Paramilitares.” BBC, 2011, acesso em 06 mai. 2016, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/10/111007_mexico_mata_zetas_paramilitar_mm.shtml; Daniel Valero, “Temen que Proyecto de Cooperativas de Seguridad Reviva las Convivir.” El Tiempo, 2011, acesso em 06 mai. 2016, http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-10314228; Zósimo Camacho, “Seguridad Privada: 50% de Empresas, Irregulars.” Contralínea, 2013, acesso em 06 mai. 2016, http://contralinea.info/archivo-revista/index.php/2013/05/21/seguridad-privada-50-de-empresas-irregulares/.

Ao mesmo tempo, a presença de órgãos de segurança pública também é grande nos mecanismos dos três países. O peso da participação desses órgãos, seja nas instâncias de gestão ou na “ponta” da execução das medidas de proteção – através das escoltas, por exemplo – é altamente criticável, uma vez que em diversos casos são esses os autores de ameaças e violações a DDHs. Muitos/as defensores/as não confiam nos seguranças que fazem sua escolta, além destes de fato não receberem formação adequada para o trabalho, sem valorizar a luta daqueles/as sob proteção. Perante este problema, o melhor caminho parece ser o de manter funcionários públicos envolvidos com os mecanismos, contanto que sejam civis.

Outra expressão da fragilidade institucional é a alta rotatividade na gestão dos programas, relatada no Brasil e no México. Essa descontinuidade apenas mostra a falta de compromisso dos governos com essa agenda. No Brasil, o programa ainda carece de uma estruturação mais sólida, mas é preciso atentar para o fato de que o excesso de estruturas institucionais pode significar uma burocratização excessiva que limita a participação da sociedade civil nas instâncias de tomada de decisão e retardar medidas de proteção urgentes – conforme alertam organizações da sociedade civil colombiana e mexicana. O quadro brasileiro se agrava no momento em que, em 27 de abril de 2016, o decreto nº 87241616. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8724.htm. é assinado de forma a descaracterizar o PPDDH e retroceder em pontos já estabelecidos pelo anterior decreto 6.044/2007, que criava o Programa. O novo decreto apresenta pontos extremamente problemáticos: não contempla sujeitos coletivos e instituições que atuam na defesa de direitos humanos, considerando apenas indivíduos; refere-se meramente a “pessoas ameaçadas”, deixando de incluir o termo “em situação de risco e vulnerabilidade”, mais abrangente; e exclui a participação, antes paritária, da sociedade civil e órgãos públicos, na Coordenação ou Conselho Deliberativo do Programa.1717. O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos posicionou-se de modo crítico ao novo decreto, encaminhando ao então Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos (extinto, em maio de 2016, pelo governo Michel Temer) um documento que sugeria alterações.

Sobre a metodologia de avaliação de risco, há pouca clareza daquela utilizada pelo PPDDH brasileiro, que carece ainda de uma metodologia mais detalhada e consolidada para o trabalho das equipes técnicas. Já na Colômbia e no México, apesar de bastante objetivas, as avaliações de risco têm sido apontadas pela sociedade civil como insuficientes, pouco flexíveis e demasiadamente embasadas por uma lógica instrumental, deixando de fora complexidades e especificidades inerentes aos contextos dos DDHs.

As organizações de direitos humanos desses países também têm relatado dificuldades dos Estados em dialogar com os DDHs e suas demandas concretas de proteção. Canais de participação e a escuta atenta às demandas específicas do/a defensor/a ameaçado/a são fundamentais não só para a qualificação da política como também para a adoção de medidas de proteção adequadas para cada caso. Estes governos tampouco desenvolvem estratégias voltadas para grupos de minorias, no sentido de levar em conta suas especificidades. Não existem medidas voltadas para mulheres, público LGBT ou indígenas, por exemplo, atingidos de formas singulares. Assim, há muito a se avançar numa perspectiva coletivizada da proteção: nos três países em questão, as medidas adotadas priorizam ações individuais, o que em alguns casos não só não é suficiente – pois se trata de comunidades ou grupos inteiros/as ameaçados/as – como negligencia um olhar mais politizado para o contexto em questão.

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4. Conclusão

Observando as dificuldades e desafios aqui analisados, torna-se explícita a questão que perpassa os contextos de Brasil, México e Colômbia e que se constitui como a principal geradora das situações de risco e ataques a defensores/as de direitos humanos. Trata-se da contradição entre o já mencionado modelo de desenvolvimento adotado por esses países – ancorado na indústria extrativa, no agronegócio, em grandes projetos de infraestrutura – e a atuação desses/as defensores/as. Nos três países, os DDHs mais atingidos/as são trabalhadores rurais, indígenas e originários de populações tradicionais. Isto é, aqueles envolvidos na luta por terra e território. Em seguida – e o México é o caso mais grave – destaca-se o direito à liberdade de expressão: jornalistas e todos aqueles que denunciam redes de corrupção, grupos de políticos, grandes proprietários de terras e grupos criminosos que mantêm domínio de território e poder são fortemente ameaçados e atacados. No caso do Brasil, importa ressaltar a forte repressão das forças de segurança sobre manifestantes nos últimos dois anos, bem como o processo de criminalização que vêm sofrendo as formas de protesto social1818. Dias, Carvalho e Mansur, Na Linha de Frente. – questão que não deixa de marcar também o contexto da frágil democracia colombiana. É crucial, portanto, que avancemos no debate sobre a violação dos direitos fundamentais daqueles que, em sua maioria, defendem os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Tais arranjos político-econômico-histórico-sociais, como se vê, assumem nuances singulares de acordo com o país e a região, mas as forças em jogo variam muito pouco: projetos de desenvolvimento acelerados e agressivos, amparados por forte militarização, que só fazem acentuar desigualdades sociais e outros problemas estruturais de longa data. Enquanto não houver o enfrentamento sério e comprometido politicamente dessas causas basilares, mais defensores/as continuarão a ser atacados e mais direitos humanos seguirão sendo violados de forma generalizada na América Latina. Para promover melhores práticas, faz-se necessária a articulação regional e internacional das organizações da sociedade civil que vêm monitorando as políticas de proteção sobre o tema há anos, no sentido de intercambiar suas experiências e fortalecer-se enquanto redes. Essa estratégia em bloco tem se mostrado uma importante lição aprendida, pois confere maior peso político aos atores da sociedade civil, maior visibilidade global e mais valorização do trabalho de defensores/as, de maneira a pressionar os Estados a instituir políticas públicas de fato eficazes na proteção integral dos/as defensores/as de direitos humanos.

Alice de Marchi Pereira de Souza - Brasil

Alice De Marchi Pereira de Souza é Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora da ONG Justiça Global.

Recebido em março de 2015

Original em português.

Rafael Mendonça Dias - Brasil

Rafael Mendonça Dias é Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, foi pesquisador da ONG Justiça Global e atualmente é professor no curso de Psicologia da UFF.

Recebido em março de 2015

Original em português.

Sandra Carvalho - Brasil

Sandra Carvalho é Coordenadora-Geral da ONG Justiça Global.

Recebido em março de 2015

Original em português.