Panorama Institucional

Perspectivas sobre o movimento internacional de direitos humanos no século XXI

Malak El-Chichini Poppovic e Oscar Vilhena Vieira

As respostas mudam

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RESUMO

Neste artigo, os autores respondem as questões propostas pelos editores deste número da Revista Sur com a experiência de décadas de ativismo em direitos humanos. No que tange à representatividade de ONGs de direitos humanos, os autores sustentam que a legitimidade delas não advém de seu respaldo majoritário, mas sim da integridade de sua atuação. No que diz respeito a aliar novas formas de atuação de ONGs e seu impacto de longo prazo, os autores endossam uma visão pluralista do movimento de direitos humanos, sugerindo que a chance de sucesso na ampliação do respeito aos direitos humanos aumentará à medida que houver maior diversidade entre as organizações e suas estratégias de ação. Sobre a linguagem de direitos humanos, os autores apostam em seu potencial atual de transformação: argumentam que os direitos humanos tiveram e ainda têm prestado uma enorme contribuição de natureza retórica e prática. No que diz respeito a novas formas de tecnologia, para os autores, o desafio das organizações é tentar compreender qual o seu novo espaço e como devem reposicionar seus programas, de forma que eles sejam necessários àqueles que buscam mudança social via direitos humanos. Por fim, analisam a interação Norte-Sul no cenário internacional, onde tem sido cada vez mais questionado, desde o Sul Global, que somente as organizações do Norte seriam internacionais e as do Sul deveriam se dedicar apenas à agenda local.

Palavras-Chave

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Muitas das perguntas feitas pelos editores da Revista Sur coincidem com as diversas indagações que nos fizemos e dúvidas que tivemos no percurso de criação da Conectas Direitos Humanos, como organização internacional sediada no Sul, há mais de uma década.

Seguimos o roteiro proposto pelos editores para tentar identificar quais foram as principais mudanças que poderiam ter influenciado a política das organizações de direitos humanos nesse período. Aludindo à famosa justificativa apresentada por Albert Einstein, quando perguntado por que aplicara em dois anos seguidos o mesmo teste aos mesmos alunos, “apesar das perguntas serem as mesmas, as respostas mudam”.

Se as questões continuam a nos parecer muito relevantes, as respostas foram enriquecidas com o aprendizado cotidiano, os erros, as conquistas alcançadas por novos atores e as causas que ganharam visibilidade e reconhecimento.

Talvez a mudança mais marcante tenha sido uma maior democratização ou participação da sociedade civil e mesmo dos Estados emergentes no processo de globalização. A emergência das vozes do que se definiu como o Sul Global trouxe novas demandas e novos modus operandi na gramática dos direitos humanos.

Na época, já vislumbrávamos que o início da democracia não coincidia necessariamente com a universalização do respeito aos direitos humanos. Que seria necessário zelar pela proteção dos “grupos vulneráveis” e monitorar o bom funcionamento das instituições que sustentam a democracia e asseguram o cumprimento das leis de forma igual para todos.

Ainda assim, sempre há uma frustração com a insuficiência das novas democracias em superar obstáculos e legados de arbítrio. A desigualdade social persistente e crescente, as promessas não cumpridas de melhoria de vida e a falta de prestação de contas das políticas públicas tencionam não apenas os regimes políticos, como também as próprias organizações. Essa tensão tem levado a novas formas de participação e protestos, como atestaram as manifestações de todo tipo que se multiplicaram no Brasil e no mundo nos últimos anos. A conquista mais significativa foi, sem dúvida, a introdução de um discurso de maior pluralidade e tolerância.

Qual é o papel das ONGs nesse novo cenário de reivindicações? As ONGs são instâncias de organização de vontade que eventualmente escapam à agregação de interesses feita pelo mercado, que visa substancialmente a maximização do lucro, ou pelos partidos, voltada à maximização do poder. Nesse sentido são “micropoderes” que podem “desestabilizar” a política tradicional, tornando mais difícil a vida dos líderes de democracias e de autocracias, em face de imperativos de justiça articulados pelos direitos. Isto não significa, no entanto, que tenham o poder de levar adiante ou mesmo implementar uma agenda mais ampla.

Talvez a nova inquietação das ONGs de direitos humanos tenha a ver hoje com a redefinição do seu papel frente à multiplicação das várias formas de outros micropoderes. Como navegar para ser visto, ouvido e influenciar de maneira significativa as políticas públicas e ao mesmo tempo ter um papel relevante em saber ouvir, ver e dialogar com essas novas formas de protesto?

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1.  Quem representamos?

Organizações de direitos humanos não são representativas, em sentido estrito, na medida em que não recebem delegação para atuar em nome de indivíduos ou mesmo coletividades. Organizações de direitos humanos têm natureza identitária. São estabelecidas pelos seus associados com o objetivo de promover um vasto conjunto de direitos de natureza jurídica, política e moral, com os quais esses associados se identificam. A legitimidade dessas organizações não se coloca, assim, nos mesmos termos daquela exigida para os partidos, movimentos, organizações sindicais ou governos. Estes, ao reivindicarem exercer o poder em nome de outros, devem se mostrar representativos. No caso das organizações de direitos humanos, a sua eventual legitimidade é de outra natureza – ela decorre da integridade com que buscam promover esses direitos politicamente reconhecidos pela comunidade internacional ao longo da História.

Por integridade entenda-se, em primeiro lugar, a indissociabilidade entre os fins que devem orientar a ação das organizações de direitos humanos e os meios que podem empregar para atingir seus objetivos. Os fins estão necessariamente ligados à promoção, proteção e defesa dos direitos humanos e essa atividade não pode ser levada a cabo por intermédio de ações que afrontem tais direitos. Daí a latitude de conduta desse tipo de organização ser mais restrita do que de outras organizações que operam nos âmbitos político e social. A ideia de integridade também deve estar associada à acuidade, clareza e transparência com que as organizações desenvolvem as suas ações, de forma a não fragilizar a própria ideia de direitos humanos.

Múltiplas podem ser as formas de relacionamento das organizações de direitos humanos com a comunidade. Porém, no momento em que uma organização coloca a representação como seu mandato fundamental, ela está necessariamente assumindo uma natureza distinta, que pode ser mais do que legítima e louvável, mas não se confunde com a de uma organização de direitos humanos em sentido estrito.

É evidente que as organizações de direitos humanos devem construir canais de diálogo com a sociedade, ser sensíveis aos anseios da comunidade e, entre as suas múltiplas estratégias de ação, contemplar ferramentas de diálogo, essenciais para que se possa determinar prioridades e mesmo ampliar a possibilidade de sucesso de suas ações. Em muitas circunstâncias, como na luta contra regimes autoritários, discriminatórios, colonialistas etc., a ação de grupos de direitos humanos esteve e está ao lado de movimentos sociais e da maioria da sociedade em que atua. O mandato de uma organização de direitos humanos, no entanto, não deveria depender da vontade da maioria, ou daqueles que detêm o poder, seja no partido, no movimento, no Estado, na economia ou mesmo na comunidade. Em síntese, não é porque a maioria é favorável à tortura ou discriminação racial em um determinado momento e local que as organizações de direitos humanos devem promover esta causa. Estar sintonizado com a sociedade e eventualmente com a maioria favorece imensamente o avanço dos direitos humanos, mas estes direitos são, em determinados momentos, mecanismos contramajoritários.

Esse eventual distanciamento pode transformar as organizações de direitos humanos em entidades pouco eficazes e até mesmo muito vulneráveis em certas circunstâncias. Mas sua legitimidade depende, sobretudo, da integridade com que cumprem seu mandato.

Não parece, assim, que as organizações de direitos humanos devam preocupar-se em se transformar em verdadeiros partidos políticos dos direitos humanos, o que não significa dizer que não devam buscar influenciar os partidos para que estes operem a favor dos direitos humanos, inclusive para que direitos humanos se tornem políticas de Estado.

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2.  Como aliar atualidade e impactos de longo prazo?

Assegurada a ideia de integridade de mandato como o elemento que distingue a natureza das organizações de direitos humanos, as formas de implementação desse mandato devem ser as mais diversificadas, e por muitas razões. Dada a enorme complexidade da sociedade e da relação entre os fenômenos sociais, não há como prever o desfecho de uma determinada ação realizada por uma organização de direitos humanos. Às vezes a derrota em um litígio pode gerar efeitos inesperados na promoção dos direitos humanos, em face da indignação causada pela injustiça. Outras vezes, um esplêndido relatório, narrando práticas bárbaras, simplesmente cai no vazio. Assim, a chance de sucesso na ampliação do respeito aos direitos humanos aumentará à medida que houver maior diversidade entre as organizações e suas estratégias de ação. É do conjunto de ações de longo e curto prazo, estruturais e conjunturais, de impacto público e diplomáticas que podem surgir oportunidades para o avanço dos direitos humanos. Dessa forma, mais importante do que buscar uma linha de conduta hipoteticamente mais eficiente que todas as demais, as organizações devem estabelecer suas estratégias conforme o que julgam ser necessário e factível, de acordo com os recursos humanos, financeiros e políticos de que disponham. Indispensável ter em mente que persistência, consistência e integridade são o segredo para o sucesso.

Se, por um lado, são importantes as ideias de planejamento, organização e avaliação, por outro também deve-se lembrar que um elevado grau de profissionalização pode gerar inúmeros problemas, como burocratização, falta de flexibilidade e alta dependência de recursos financeiros. Organizações da sociedade civil em geral e de direitos humanos em particular deveriam não ter tanta preocupação em mimetizar organizações mais complexas, como empresas, partidos ou sindicatos. Parte do sucesso de muitas organizações decorre da capacidade de assumir riscos, ajustar metas, redefinir planos, testar múltiplas estratégias e aproveitar as oportunidades. A regulação excessiva das organizações da sociedade civil, assim como a dependência de recursos profissionais, financeiros e organizacionais cada vez mais volumosos, pode reduzir a autonomia e vitalidade das organizações de direitos humanos.

A forma mais adequada para lidar com a alta complexidade social, a baixa previsibilidade e o baixo controle sobre o resultado das ações, é buscar aumentar, em primeiro lugar, a pluralidade das organizações. Em vez de uma competição fratricida por reputação, monopólio temático, exposição midiática e recursos, organizações deveriam agir de maneira mais concertada, pois as mudanças normalmente decorrem de um conjunto de forças, e não da conduta de apenas uma organização. No que diz respeito ao funcionamento interno das organizações, estas deveriam buscar uma composição mais pluralista, tanto dos que participam da gestão, como daqueles que compõem o conselho de cada organização. Expor as propostas de ação a grupos com múltiplos talentos, trajetórias e perspectivas pode favorecer a condução de ações mais positivas no campo dos direitos humanos, ampliar parceiras e reduzir erros.

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3.  Os direitos humanos ainda são uma linguagem eficaz para produzir mudanças sociais?

A linguagem dos direitos humanos, assim como as ideias de democracia, Estado de Direito e transparência, compõe um repertório ideológico que tem favorecido um rápido processo de emancipação social nas últimas décadas. Se por um lado democracia e Estado de Direito são ideias mais associadas ao funcionamento das instituições, por outro os direitos humanos têm a virtude de também estabelecer padrões de emancipação nos contextos político, social, comunitário e mesmo familiar. Nesse sentido, não seria incorreto afirmar que os direitos humanos tiveram e ainda têm prestado uma enorme contribuição de natureza não apenas retórica, mas também prática, para todos aqueles que se veem constrangidos na sua dignidade, não apenas pelas autoridades estatais, mas pelos seus próprios contextos sociais. A verdadeira revolução de veludo vivida nas últimas décadas, que teve a linguagem dos direitos humanos como lastro, não permite que se despreze a força desse conceito, ainda mais quando o socialismo, como ideologia de mudança social, perde sua capacidade de convencimento e o neoliberalismo se apresenta tão insuficiente para transformar o destino dos grupos mais vulneráveis.

É difícil afirmar se o uso sistemático da linguagem dos direitos humanos erode sua autoridade e impacto ou se, em sentido contrário, transforma os direitos humanos em um padrão básico sobre o que pode e o que não pode ser feito.

É ainda mais complexo responder essa questão de forma unidimensional. Enquanto em algumas sociedades parece ter havido rápidas e estruturais transformações em sintonia com a linguagem dos direitos humanos, outras parecem ter regredido. Outras linguagens ou ideologias concorrentes, como o fundamentalismo religioso, formas extremadas de nacionalismo, supremacia do mercado ou um desenvolvimentismo anacrônico, estabelecem pontos de tensão com a lógica dos direitos humanos, em diversas circunstâncias.

É equivocado afirmar que terminou a necessidade de estabelecer parâmetros de direitos humanos (standard-setting), como se a História houvesse chegado ao seu fim. A cada momento vislumbramos o surgimento de novas lutas por reconhecimento e de novas demandas de bem-estar. As mudanças tecnológicas e ambientais já estão impactando o modo como nos relacionamos, assim como nos organizamos como sociedade. Essas mudanças constantes demandam uma também constante necessidade de renovação, ampliação e refundação de mecanismos que proponham lastros de natureza moral, para pautar o convívio social, bem como a relação com as diversas formas de poder, assegurando igual respeito e consideração aos seres humanos.

Evidente que a vertente normativa dos direitos humanos, que normalmente é a mais realçada, não pode nos afastar das dimensões políticas e sociais. O estabelecimento de padrões tão rigorosos de igualdade e as demandas substantivas de liberdade e dignidade certamente encontram barreiras nas estruturas de poder das mais diversas sociedades. Algumas mais, outras menos, mas em todas elas há hierarquias e abusos. Isto nos põe a pensar que qualquer processo de mudança que tome os direitos humanos como meta deve levar em consideração a necessidade de operar tanto no plano das estruturas sociais, como das instituições políticas. Ou seja, é necessário expandir o ideário dos direitos humanos por intermédio da educação e da cultura, assim como é necessário buscar estabelecer os direitos humanos como pontos inegociáveis para os que buscam o exercício legítimo do poder dentro da sociedade.

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4.  Como as novas tecnologias de informação e comunicação influenciam o ativismo?

É evidente que as novas tecnologias de informação e comunicação impactam o campo dos direitos humanos, como, aliás, impactam quase todos os outros setores da vida social. O tempo fica mais curto e ocorre uma substancial redução no monopólio da informação. Ambos os fenômenos são extremamente positivos para o processo de emancipação social ao qual a gramática dos direitos humanos também concorre. O desafio para as organizações é tentar compreender qual o seu novo espaço e como devem reposicionar seus programas, de forma que eles sejam necessários àqueles que buscam mudança social via direitos humanos.

Se tomarmos as recentes mobilizações que utilizaram as redes sociais como plataforma comunicacional ao redor do mundo, é significativa a presença do discurso de direitos humanos, seja demandando a qualidade dos serviços públicos, a democracia ou a igualdade. A questão é saber se as organizações ainda desempenham um papel central, como parece ter sido o caso nas últimas décadas do século XX. Assim como os jornais e as redes de comunicação, as organizações encontrarão seu novo espaço ou perecerão.

Há mudanças positivas mais claras, no entanto, que se referem à possibilidade hoje real de mobilização de enorme quantidade de pessoas em relação a determinados temas e questões, a um baixíssimo custo operacional. Da mesma forma, a tecnologia já permite que a documentação de violações ocorra de maneira difusa e exponencialmente mais ampla que no passado. Essas novas possibilidades, contudo, não esgotam a necessidade das organizações de galvanizar o debate. A forma sintética, fragmentada e multitemática com que as pessoas parecem se integrar em grande parte por meio da internet abre um novo espaço importante para formulações mais sistemáticas e consistentes, que, se adequadamente disponibilizadas, podem ser potencializadas em um novo campo de militância.

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5.  Quais são os desafios de trabalhar internacionalmente a partir do Sul?

Sendo fruto de uma conjuntura histórica e de um conjunto de decisões de natureza política, tomadas em um determinado tempo e lugar, os direitos humanos necessariamente não encontram eco cultural e adesão de maneira semelhante nas mais diversas sociedades. Politicamente, no entanto, os direitos humanos vêm se transformando em uma espécie de âncora moral. Apesar da sistemática violação por inúmeros governos e das reticências ou tensões de natureza cultural, tornou-se muito difícil para um regime ou governo sustentar que a violação desses direitos é algo legítimo.

Esse novo consenso sobre os direitos humanos como pressuposto do exercício legítimo do poder não significa, no entanto, que as disputas sobre o seu conteúdo e a sua forma de implementação não façam parte das disputas diárias das nações. Tensão entre leituras mais individualistas e comunitaristas divide Ocidente e Oriente. Tensão entre interpretações mais liberais e sociais costuma dividir o Norte e o Sul Global. Por mais que se busque reduzir essas aporias, com a construção de uma retórica elástica que fala em indissociabilidade e interdependências das chamadas gerações de direitos, o fato é que países posicionados em distintos blocos buscam enfatizar o que lhes é conveniente nesse largo universo dos direitos humanos.

Se por um lado essa tensão corresponde a legítimas diferenças entre as múltiplas nações, por outro se apresenta como mero subterfúgio voltado a encobrir a falta de compromisso de diversas nações com uma noção mais ampla de direitos humanos. Em outras palavras, os Estados são seletivos ao falarem e empregarem os instrumentos de direitos humanos.

Em alguma medida as organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, ao definir os seus mandatos, também são obrigadas a reduzir a sua atuação a determinadas esferas dos direitos humanos. Como boa parte das organizações que projetaram uma atuação internacional tiveram origem nos países do Norte ocidental, elas estabeleceram uma agenda mais focada nos direitos civis e políticos, sobretudo em face do desafio de lutar contra o arbítrio de regimes autoritários de direita e esquerda ao redor do mundo. Independentemente da enorme relevância dessas organizações, a sua atuação passou a ser questionada, não apenas como recurso retórico daqueles que buscavam se evadir de suas obrigações em relação aos direitos humanos, mas também de maneira mais legítima, visto que a unidimensionalidade e o controle da agenda eram danosos para o avanço da causa dos direitos humanos.

Com a terceira onda de redemocratização, que se inicia em Portugal e Espanha, passa pela América Latina e depois chega à Europa do Leste e a diversos países africanos, surgem, fora do eixo do Norte, uma imensa e vibrante massa de movimentos e organizações que tomam a linguagem dos direitos humanos como fio condutor de suas ações. Com as conferências internacionais das Nações Unidas que ocuparam os anos 1990 e o início do novo século, muitas dessas organizações tiveram a possibilidade de se tornarem mais cosmopolitas, abrindo espaço para o surgimento de alguns movimentos efetivamente internacionais com raízes no Sul.

Essas organizações trazem para a agenda internacional novas demandas e práticas políticas. Questionam as condutas de seus próprios Estados, mas também das chamadas democracias centrais e, por fim, também questionam as organizações mais tradicionais e hegemônicas do Norte.

O resultado mais tangível foi a incorporação de algumas dessas novas demandas na agenda internacional por intermédio de mecanismos também novos, como as Metas de Desenvolvimento do Milênio e diversas plataformas de luta contra a pobreza, a AIDS etc.

Da mesma forma que a agenda da política internacional dos direitos humanos foi ampliada, as organizações mais tradicionais e hegemônicas, como Anistia Internacional e a Human Rights Watch, também se viram obrigadas a qualificar seu discurso e sua atuação, seja ampliando o escopo dos direitos protegidos, seja mudando o padrão de relacionamento com as chamadas organizações locais ou regionais.

Essas mudanças também foram paulatinamente afetando o universo filantrópico e da cooperação internacional. A noção de que as organizações internacionais estavam necessariamente plantadas no Norte e que as do Sul deveriam se dedicar apenas à agenda local foi fortemente questionada, desde o Sul Global.

É importante afirmar que não se tratava de uma crítica meramente instrumental, voltada a ampliar o poder de suas organizações do Sul, mas de um movimento necessário para de fato dar uma dimensão mais cosmopolita e integral à realização dos direitos humanos. Com o tempo, a retórica dos direitos civis passou a ser vista com desconfiança, pelo seu uso instrumental pelos países liberais; por outro lado, o discurso dos direitos sociais também demonstrou estar sendo utilizado de maneira um tanto quanto hipócrita para encobrir violações aos direitos civis.

O surto de otimismo com o avanço dos direitos humanos ocorrido nas primeiras décadas dos anos 1990 e espelhado nas Conferências do Rio, em 1992, e de Viena, em 1993, foi lentamente se esvaindo pelo fato de que o compromisso das novas democracias se demonstrou apenas parcial, isto para não falar do novo grande player internacional, a China, que literalmente refuta um compromisso com os imperativos dos direitos humanos. Por outro lado, a postura extremamente seletiva dos Estados Unidos, e alguns dos seus aliados, também tem contribuído para um ambiente não muito construtivo no plano internacional. A própria discussão em torno da inclusão de cláusulas de justiça, Estado de Direito e segurança nas novas Metas de
Desenvolvimento do Milênio, em especial a resistência dos países do Sul em incluir essas metas em favor de suas próprias populações, demonstra o nível das tensões.

A retórica Norte-Sul, ou Ocidente-Oriente, tem sido em muitas circunstâncias utilizada para encobrir violações, estruturas de exclusão e arbítrios ou simplesmente para promover interesses hegemônicos.

O desafio das organizações locais, regionais ou internacionais, sejam elas do Norte ou do Sul, do Ocidente ou do Oriente, é atender à dimensão fundante dos direitos humanos, que é tomar cada pessoa como um fim em si mesmo, como sujeitos de igual respeito e consideração nos múltiplos contextos em que se inserem.

Malak El-Chichini Poppovic

Malak El-Chichini Poppovic, atualmente Coordenadora do Grupo de Direitos Humanos e Empresas da FGV Direito SP, foi Diretora Executiva da Conectas, de 2005 a abril de 2011. Foi Consultora Sênior para a área de Paz, Segurança e Direitos Humanos da Fundação das Nações Unidas (2001-2004). Trabalhou anteriormente como Pesquisadora Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (1989-1994); e para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR (1975-1988). Possui pós-graduação em Economia e Relações Internacionais pelo Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais em Genebra e bacharelado em Economia pela Universidade do Cairo. Malak tem escrito vários artigos sobre refugiados, direitos humanos e questões humanitárias.

E-mail: mpoppovic@gmail.com

Original em português. 

Recebido em agosto de 2014.

Oscar Vilhena Vieira

Oscar Vilhena Vieira é Diretor da FGV Direito SP, onde leciona nas áreas de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito e Desenvolvimento. Possui Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1988), Mestrado em Direito pela Universidade de Columbia, Nova York (1995), Mestrado e Doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1991-1998) e Pós-doutorado pelo Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford (2007). Foi Diretor Executivo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Crime (ILANUD), assim como fundador e Diretor da organização Conectas Direitos Humanos. É editor da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos. Além disso, é membro de diversos conselhos de organizações da sociedade civil, entre os quais Instituto Pro Bono e Open Society Foundations. Possui diversos artigos e livros publicados na área de direitos humanos e direito constitucional. Entre eles, podem ser citados: “Direitos Fundamentais: uma Leitura da Jurisprudência do STF” (2006), “Supremo Tribunal Federal - Jurisprudência Política” (2002) e “A Constituição e sua Reserva de Justiça” (1999).

E-mail: oscar.vilhena@fgv.br

Original em português. 

Recebido em agosto de 2014.