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Para criar um movimento global para tornar direitos humanos e justiça social uma realidade para todos

Chris Grove

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RESUMO

Este artigo argumenta que os direitos humanos são uma linguagem relevante e um marco normativo eficaz para mudança social, especialmente quando reconhecidos como historicamente emergentes de lutas populares e permanecem intimamente ligados às realidades vividas por pessoas ao redor do mundo e aos atuais movimentos por justiça social. Ao mesmo tempo em que propicia uma base para unidade e legitimidade moral e política, a defesa de direitos humanos confronta relações sociais, condições econômicas e estruturas políticas desiguais. Em razão disso, quem nós representamos — em termos de escopo, natureza e liderança do “movimento de direitos humanos” — é uma questão crucial se nosso principal objetivo for tornar a justiça social uma realidade para todos. Apesar de diferentes papéis, abordagens e localizações geográficas, idealmente nós nos reconhecemos como parte de um movimento comum por justiça social, necessariamente conduzido pelos pobres, oprimidos, explorados e outros que fizeram um compromisso de tornar os direitos humanos uma realidade para todos.

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“Quem nós representamos?” “Os direitos humanos ainda são uma linguagem eficaz para produzir mudança social?” Essas duas questões feitas às organizações de direitos humanos, dentre as várias levantadas pela Revista Sur para seu número 20, parecem particularmente relevantes à luz dos levantes populares que se espalharam da Tunísia ao Egito à Espanha, Chile aos EUA, da Índia à África do Sul ao Brasil. No Egito, a demanda comum era “pão, liberdade e justiça social”. No Chile, dezenas de milhares de estudantes questionaram a educação com fins lucrativos, que excluiu muitos do ensino secundário ou universitário de qualidade, sob o lema “Chao, lucro!” (“Adeus, lucro!”). Na Espanha, os indignados protestaram contra o desemprego elevado e um sistema eleitoral dominado por dois partidos que não mais representavam os interesses da população. Eles utilizaram métodos de democracia direta que logo ecoaram em renovados protestos contra as políticas de austeridade na Grécia e no movimento Occupy nos EUA. Durante vários anos, o Abahlali baseMjondolo, baseado em Durban, África do Sul, juntou-se ao Movimento dos Sem-Terra, Western Cape Anti-Eviction Campaign e outros movimentos de pessoas pobres para boicotar as eleições, sob o lema: “No Land! No House! No Vote!” (“Sem terra, sem moradia, sem voto!”). A tendência desses manifestantes em cada um desses locais foi combinar demandas por direitos econômicos, maior participação e dignidade, enquanto muitas vezes expressavam solidariedade e aprendiam uns com os outros. Em um nível ainda mais básico, eles questionaram a profunda desigualdade, seja ao evidenciar o empobrecimento em meio à abundância ou a falta de voz política em sistemas voltados para o benefício de poucos (DAVIES et al., 2008; FUENTES-NIEVA; GALASSO, 2014).

Esta reflexão sustenta que os direitos humanos são uma linguagem relevante e um marco normativo eficaz para mudança social, especialmente quando reconhecidos como historicamente emergentes de lutas populares e permanecem intimamente ligados às realidades vividas por pessoas ao redor do mundo e aos atuais movimentos por justiça social. Ao mesmo tempo em que propicia uma base para unidade e legitimidade moral e política, a normativa de direitos humanos e sua defesa confrontam relações sociais, condições econômicas e estruturas políticas desiguais, as quais muitas vezes refletem interesses outros que não sejam comuns ao bem-estar econômico e à democracia efetiva. Nesse sentido, defendo que quem representamos — em termos de escopo, natureza e liderança do “movimento de direitos humanos” — constitui uma questão essencial se tivermos como principal objetivo tornar a justiça social uma realidade para todos.

Assim como a Revista Sur, a Rede Internacional para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Rede-DESC) também está comemorando seu décimo aniversário e surgiu a partir de uma visão semelhante de fortalecer as conexões entre ONGs, ativistas de movimentos sociais e acadêmicos em todo o Sul Global, e também entre o Sul e o Norte, facilitando maior engajamento em âmbito internacional. Para a Rede-DESC, isso foi impulsionado pela percepção de que empresas transnacionais, comércio internacional e acordos de investimento, assim como outros desafios globais estavam afetando comunidades ao redor do mundo, as quais muitas vezes eram incapazes individualmente de influenciar essas tendências ou forças. Trabalhando “para construir um movimento global para tornar os direitos humanos e a justiça social uma realidade para todos”, a Rede-DESC buscou criar uma plataforma para o intercâmbio estratégico e defesa conjunta, atualmente conduzida por mais de 200 organizações e 50 membros individuais em 70 países. Como atual diretor do Secretariado da Rede-DESC, ainda que o que segue sejam minhas próprias reflexões, elas se beneficiam do diálogo constante e trabalho coletivo entre os membros da rede, muitos dos quais são citados ao longo deste artigo.

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1.  Direitos humanos, uma linguagem relevante

Ecoando as histórias de vários membros de movimentos sociais, o argumento de direitos humanos “de baixo para cima” ou emergindo de aspirações comuns e lutas por justiça é reforçado por várias histórias que se originam de escolas filosóficas de pensamento, lutas sociais e tradições religiosas de todo o mundo. A esse respeito, os direitos humanos se originam como exigências morais e muitas vezes políticas, que foram sendo incorporadas em padrões e normas de direitos humanos em determinados momentos históricos. De acordo com uma das visões a respeito, o movimento de abolição, rebeliões de escravos e a Revolução Haitiana, em sua radicalização da concepção restrita de direitos que baseou as Revoluções Americana e Francesa, deram à luz aos direitos humanos com base na “liberdade, igualdade e humanidade comum”, que foram codificados após a Segunda Guerra Mundial, com a China e os Estados latino-americanos demandando tanto direitos políticos, quanto econômicos (BLACKBURN, 2011, p. 477). Trazendo outra perspectiva, a organização NAACP – National Association for the Advancement of Colored People dos EUA, formada em 1909 e conduzida por W.E.B. DuBois, apresentou um “Apelo ao Mundo” nas Nações Unidas em 1947, denunciando a subordinação racial como uma violação de direitos humanos, que abrange tanto os direitos civis como os direitos econômicos, e vinculando a igualdade racial dos afro-americanos à descolonização (ANDERSON, 2003). Em 1955, a Declaração Universal de Direitos Humanos foi endossada pelo Movimento dos Países Não-Alinhados em Bandung (INDONESIA, 1955). De acordo com outro relato, que representa uma das muitas lutas anticoloniais pelo direito à autodeterminação, Amilcar Cabral, então Secretário-Geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde (PAIGC), em seu discurso final à Assembleia Geral da ONU em 1972, discorreu sobre “direitos inalienáveis” e “as legítimas aspirações dos povos africanos para viver com dignidade”, reforçando uma demanda para convencer os portugueses a “respeitar a moralidade e a legalidade internacionais” (CABRAL, 1973, p. 16-17).

Analisando os movimentos organizados de populações empobrecidas nos EUA, mais recentemente por meio de sua liderança conjunta na Poverty Initiative, Willie Baptist e Liz Theoharis (2011) destacam três razões pelas quais eles e outros líderes de movimentos de base têm utilizado a normativa de direitos humanos. Em primeiro lugar, seguindo a liderança do Rev. Dr. Martin Luther King Jr. e seu movimento pelos direitos humanos e a Campanha dos Pobres, nos anos finais de sua vida, eles sugerem: “Os direitos humanos econômicos oferecem uma estrutura para unir pobres e trabalhadores de todas as cores em uma luta comum, recorrendo a certos valores fundamentais da tradição e da cultura dos EUA”. Em segundo lugar, a demanda por “direitos humanos econômicos para todos!” permitiu-lhes levantar questões fundamentais sobre “por que a pobreza existe no país mais rico do mundo, e para levantar outra questão básica sobre a relação entre o crescimento da pobreza nos Estados Unidos e seu crescimento em todo o mundo”. Em terceiro, o reconhecimento internacional de direitos humanos, principalmente a Declaração Universal de Direitos Humanos, trouxe legitimidade moral e política para esses movimentos (BAPTIST; THEOHARIS, 2011, p. 172-173).

Ao lutar para garantir os direitos humanos de suas comunidades em face de poderosas forças transnacionais, de maneira semelhante lideranças indígenas se inspiraram em “padrões internacionais, não apenas soluções locais”. Esses líderes se comprometeram por duas décadas na árdua tarefa de formular reivindicações comuns, desempenhando um papel sem precedentes na elaboração e negociação que finalmente levou à adoção da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 13 de setembro de 2007 (GELBSPAN; PRIOSTE, 2013, p. 86-103). Em 2013, na abertura do Fórum dos Povos sobre Empresas e Direitos Humanos, Legborsi Saro Pyagbara, presidente do Movimento para a Sobrevivência do Povo Ogoni (na Nigéria), ressaltou a importância da construção de uma rede global de direitos humanos, que foi vital para a luta nas terras do povo Ogoni, mas também para garantir padrões internacionais de direitos humanos que beneficiam outras numerosas lutas. Ele enfatizou: “Não importa o poder das forças que temos que enfrentar, eu ainda acredito firmemente que com nosso esforço coletivo, com nosso poder coletivo […] podemos alcançar o objetivo de obter uma regulamentação internacional vinculante para as empresas. […] Nós podemos mudar o nosso mundo” (PYAGBARA, 2013).

Essas e outras lutas populares relacionadas têm sido fundamentais para a codificação de direitos humanos no âmbito internacional e continuam a orientar sua evolução constante, quer reforçando os direitos dos povos indígenas, mulheres e pessoas com deficiência ou as obrigações extraterritoriais dos Estados para regulamentar as atividades de empresas e investidores privados no exterior. Na sequência da Grande Depressão, fascismo e genocídio, com base em diversas tradições filosóficas e lutas por justiça, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, afirmando “o advento de um mundo em que os seres humanos gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum”. Pode-se dizer que em ressonância com a experiência vivida pelos povos, a DUDH foi traduzida para 418 idiomas (UNITED NATIONS, 2014). Na Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, representantes de 171 Estados e mais de 800 grupos de base e outras ONGs reafirmaram: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados” (UNITED NATIONS, 1993, Art. 5). A Declaração de Viena levou à criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; demandou o exame de protocolos facultativos ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o que resultou em um mecanismo internacional de solução para as violações dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC); e exortou os Estados a incorporar no âmbito nacional normas de direitos humanos, sendo a promulgação da Constituição da África do Sul no ano seguinte um importante modelo (UNITED NATIONS, 1993, Art. 18, 75, 83).

O exposto acima começa a responder à pergunta: “Os direitos humanos ainda são uma linguagem eficaz para produzir mudança social?” A questão pode ser reformulada como: a justiça social tem se tornado uma realidade para um número crescente de pessoas devido à defesa de direitos humanos? Defendo que “sim”. Depois de mais de uma década de advocacy sobre direitos humanos e empresas na ONU, são poucas as grandes corporações, especialmente com marca reconhecida, que podem evitar abordar a responsabilidade social corporativa, tendo que pelo menos acenar aos direitos humanos e garantias ambientais. Os procedimentos atuais da ONU produziram os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, um mandato para um Grupo de Trabalho das Nações Unidas “formular recomendações no âmbito nacional, regional e internacional para melhorar o acesso a mecanismos efetivos de reparação” (UNITED NATIONS, 2011, Art. 6e), e mais de 20 Estados demandando a elaboração de um instrumento juridicamente vinculante no âmbito do Conselho de Direitos Humanos em 2013 (ECUADOR, 2013). Da mesma forma, a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas tem aprofundado o reconhecimento do direito ao consentimento livre, prévio e informado para realização de investimentos de empresas em terras indígenas, por meio da inclusão desse direito tanto no mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, quanto no Padrão de Desempenho 7 do International Finance Corporation1. Esse direito também foi alegado em disputas bem sucedidas perante órgãos regionais de direitos humanos (por exemplo, ver INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS, Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador, 2012). Além disso, em um caso recente, a cobertura da mídia e pressão política se intensificaram em 1 de outubro de 2013 quando oito titulares de mandatos da ONU emitiram um comunicado de imprensa sobre as cartas que enviaram para Índia, Coréia do Sul e para a empresa sul-coreana Posco destacando as obrigações de direitos humanos de cada um desses atores em relação ao maior projeto de investimento estrangeiro direto na história da Índia (UNITED NATIONS, 2013). No entanto, apesar desses sucessos, persistem violações generalizadas de direitos humanos envolvendo empresas, especialmente em face da fragilidade dos compromissos de caráter voluntário e mecanismos frágeis de reparação.

Atuando com base na Constituição da África Sul e na Corte Constitucional independente do país, o Legal Resources Centre e o Community Law Centre, entre outras organizações de direitos humanos, foram centrais para garantir precedentes positivos nos primeiros e fundamentais casos sobre DESC, incluindo a obrigação de respeitar o direito à moradia, exigindo do governo a adoção de medidas razoáveis ??para garantir o acesso à moradia adequada e proporcionar assistência para aqueles em situação de extrema necessidade, e o direito à saúde, obrigando o governo a disponibilizar em toda a nação um medicamento para prevenir a transmissão do HIV/AIDS de mãe para filho (SOUTH AFRICA, Government of RSA & Others v. Grootboom & Others 2000; SOUTH AFRICA, Minister of Health & Others v. Treatment Action Campaign & Others, 2002). Em 2013, o Centre for Human Rights and Development levou um caso ao Supremo Tribunal da Mongólia, que estabeleceu um precedente importante ao considerar ilegais duas licenças de extração e seis licenças de exploração para uma empresa de mineração com fundamento no direito constitucional de viver em um ambiente saudável e seguro (MONGOLIA, 2013). O Centro considerou que a ratificação pela Mongólia do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a possibilidade de apresentar uma denúncia a um comitê de tratado internacional ajudou a garantir um julgamento justo e, ao final, a justiça para os pastores locais envolvidos no caso. Por outro lado, embora a justiciabilidade de direitos econômicos, sociais e culturais tenha sido comprovada por meio de casos em todos os âmbitos, os litigantes e advogados devem agora lidar com a frequente falta de implementação das decisões favoráveis. Além disso, apesar de imensas vitórias judiciais, a pobreza e a desigualdade substantiva ainda assolam a África do Sul, vinte anos após o fim do apartheid, enquanto a indústria extrativista continua a remodelar a Mongólia de uma forma que frequentemente prejudica os direitos humanos.

Os direitos humanos oferecem uma linguagem relevante para a construção da unidade, proporcionando legitimidade e reconhecimento internacional das demandas, ao mesmo tempo em que garantem a justiça em muitos casos individuais. No entanto, os parágrafos acima sugerem que a “eficácia” de direitos humanos enfrenta relações de poder bastante desiguais. Com o avanço da longa disputa envolvendo o caso Belo Monte na Amazônia brasileira no final de 2013, Padre Claret Fernandes, líder do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), refletiu:

a velocidade imposta pelo capital nas suas prioridades atropela tudo (…) sem as oitivas indígenas (…) o dia da expulsão do alagado em Altamira é [só na aparência] como um oásis em meio a esse padrão histórico de violação ao direito humano na construção de barragens.
(FERNANDES, 2014).

Frederick Douglass, ex-escravo e abolicionista, foi claro: “Toda a história do progresso da liberdade humana mostra que todas as concessões que já foram feitas em prol de suas demandas augustas nasceram de intensas lutas. […] O poder não concede nada sem demanda. Nunca fez e nunca fará” (DOUGLASS, 1950 [1857], p. 437). O movimento abolicionista envolveu luta moral e até mesmo física, negociação política, alteração legislativa e batalhas jurídicas e o fim da escravidão foi o primeiro de muitos passos no sentido da igualdade formal nos EUA, ainda não consolidada em plena igualdade substantiva. Isso, sem dúvida, conduz e acrescenta urgência para a pergunta: Quem nós representamos?

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2.  Quem representamos

Em parte, quiçá nós representamos a nós mesmos, nossas famílias e amigos, nossas próprias comunidades que enfrentam diferentes formas de injustiça, os movimentos de base aos quais muitos de nós pertencemos em nossos próprios países, e a compromissos políticos ou morais que fizemos. O Conselho da Rede-DESC é eleito pelas organizações-membros, com base nos princípios de diversidade regional, equilíbrio de gênero e inclusão dos movimentos sociais. Dois de nossos sete conselheiros atuais são líderes de movimentos sociais; os demais são oficialmente representantes de organizações não-governamentais. No entanto, isso talvez ofereça uma imagem demasiadamente simples. Todos os membros do conselho passaram a maior parte de suas vidas comprometidos politicamente e lutando pelos direitos humanos. Nossa mais recente reunião de conselho foi iniciada com as perguntas: O que levou você a se tornar um defensor de direitos humanos? Por que você está empenhado em liderar e ajudar a construir uma rede global ou movimento para promoção dos DESC? Dois de nossos membros do conselho — um de movimento social e um de ONG — tornaram-se politicamente engajados na faculdade lutando contra governos repressivos, passaram um período na clandestinidade, e dedicaram suas vidas para o avanço de direitos humanos. Outro representante de ONG relatou a perda de uma pequena fazenda familiar e então ter tomado consciência das tendências mais amplas que impactam tanto o Norte quanto o Sul Global.

No entanto, há diferenças substanciais e tensões periódicas entre muitos movimentos sociais e ONGs, assim como entre diferentes tipos de movimentos. Líderes de movimentos sociais prestam contas ??diretamente perante suas comunidades, geralmente surgindo delas e enfrentando semelhante empobrecimento, desapropriação, discriminação ou repressão. Acadêmicos, não necessariamente com origem em um determinado movimento, muitas vezes oferecem análises úteis, e muitas ONGs fornecem o necessário conhecimento jurídico ou de mídia ou acesso a tomadores de decisão. No entanto, a análise estratégica, os processos de tomada de decisão e a relevância política de movimentos sociais são muitas vezes desvalorizados ou ignorados. Desde seus primeiros protestos questionando desapropriações e despejos em Durban, África do Sul, o movimento Abahlali baseMjondolo foi acusado de ser liderado por uma “Terceira Força” de agitadores externos. O termo foi originalmente usado para descrever o apoio secreto das forças de segurança brancas aos nacionalistas Zulus que lutavam contra o CNA – Congresso Nacional Africano, nos últimos anos do apartheid na África do Sul. Atualmente o termo sugere manipulação branca e falta de organização dos pobres. S’bu Zikode, um morador de favela, frentista e primeiro Porta-Voz do movimento Abahlali baseMjondolo, questionou vigorosamente várias críticas feitas por ONGs, acadêmicos e membros do governo, que não estavam seriamente comprometidos com o movimento, mas falavam por ou sobre eles:

Devo advertir os camaradas, funcionários de governo, políticos e intelectuais que falam sobre a Terceira Força que eles não fazem ideia do que estão falando. Eles estão alto demais para realmente sentir o que sentimos. Eles sempre querem falar por nós e sobre nós, mas eles devem nos permitir falar sobre nossas vidas e nossas lutas. (…) A Terceira Força é toda dor e sofrimento a que os pobres são submetidos a cada segundo de nossas vidas. (…) Somos movidos pela Terceira Força, o sofrimento dos pobres. Nossos traidores são a Segunda Força. A Primeira Força foi nossa luta contra o apartheid. A Terceira Força irá parar quando a Quarta Força vier. A Quarta Força é a terra, moradia, água, eletricidade, saúde, educação e trabalho. Nós só estamos pedindo o que é fundamental – não o que é de luxo. Esta é a luta dos pobres. Chegou o momento para os pobres mostrarem a si mesmos que podemos ser pobres na vida, mas não na mente.
(ZIKODE, 2006, p. 185).

Apesar dessa crítica, Abahlali baseMjondolo formou fortes alianças — aprovadas por membros do movimento — para que a organização Socio-Economic Rights Institute of South Africa atue como assessor jurídico, e com Sleeping Giant para produzir o documentário Dear Mandela, e com acadêmicos como Richard Pithouse.

Em vez de “quem representamos”, a questão poderia ser: quem deve ser central para o nosso movimento? Em parte, a resposta da Rede-DESC, Revista Sur, e um número crescente de atores de direitos humanos ao longo da última década têm sido organizações da sociedade civil de todas as regiões do mundo, com especial atenção para o Sul Global, que frequentemente tem enfrentado desapropriação e exploração via políticas de governos e instituições financeiras internacionais do Norte Global. No entanto, as desigualdades também existem dentro de países e regiões. Algumas organizações da sociedade civil têm acesso, ainda que imperfeito, a formadores de opinião e tomadores de decisão em âmbito nacional e internacional, enquanto outras organizações permanecem marginalizadas. Mais importante ainda, uma única organização da sociedade civil, independentemente de seu perfil ou localização, quando trabalha de forma isolada, geralmente tem capacidade mínima para causar mudança na sociedade e garantir os direitos humanos em nível sistêmico. Isto sugere a necessidade de um movimento crescente e interconectado de grupos de base e organizações estabelecidas em todas as regiões do mundo.

Ao chamar para uma Campanha dos Pobres para marchar em Washington, DC, meses antes de seu assassinato, Rev. Dr. Martin Luther King Jr. delineou sua análise de como a mudança da sociedade ocorreria:

Os despossuídos desta nação — os pobres, brancos e negros — vivem em uma sociedade cruelmente injusta. Eles devem organizar uma revolução contra a injustiça, não contra a vida das pessoas que são seus concidadãos, mas contra as estruturas por meio das quais a sociedade se recusa a adotar os meios necessários, e que estão disponíveis, para aliviar a carga de pobreza. Há milhões de pessoas pobres no país que têm muito pouco, ou mesmo nada, a perder. Se elas forem ajudadas a agir em conjunto, elas o farão com uma liberdade e um poder que será uma força nova e inquietante em nossa vida nacional complacente.
(KING, 1967, p. 59-60).

Essa desapropriação e empobrecimento cresceram nos EUA e na maior parte do mundo, e muitos dentre os pobres começaram a criticar as injustiças perpetuadas pelos sistemas econômicos e políticos existentes. A centralidade e liderança desse grupo social eram fundamentais para Dr. King, mas ele também imaginou que muitos “de todos os grupos da vida do país” iriam se juntar e por fim se tornariam líderes, assim como ele, nesse movimento pelo fim da pobreza e da injustiça. Em segundo lugar, ele entendeu que esse movimento deveria ao final se tornar internacional, observando que “nós no Ocidente devemos ter em mente que os países pobres são pobres principalmente porque os exploramos” e apelando para a unidade com os movimentos da América Latina e as lutas contra o apartheid na África do Sul (KING, 1967, p. 62).

Um estudo recente mapeando os protestos no mundo, “World Protests 2006-2013”, documentou 843 protestos em 87 países e sugeriu que o maior número (488) contestou a injustiça econômica e austeridade, seguido de insatisfação com o fracasso da representação política. Muitos utilizaram a linguagem de direitos, sendo que 70 eram de natureza “mundial” ou organizados em diferentes regiões. Depois de observar o crescimento e tamanho desses protestos como “um novo período de crescente indignação e descontentamento” comparável a 1848, 1917 ou 1968, os autores sugerem:

Embora a amplitude da demanda por justiça econômica seja de grave consequência, a constatação mais preocupante do estudo é a grande demanda (218 protestos) não por justiça econômica em si, mas para aquilo que impede que problemas econômicos sejam abordados: a falta de “democracia real”, que é um resultado da crescente conscientização das pessoas de que a política não tem lhes priorizado, mesmo quando isso tenha sido reivindicado, e frustração com a política como de costume e uma falta de confiança nos agentes políticos existentes, seja de esquerda ou de direita.
(ORTIZ et al., 2013, p. 5-6).

Gostaria de reiterar a extrema importância dos protestos recentes, tanto seu alcance como conteúdo. A desigualdade econômica e as questões sistêmicas, que culminaram em muitos protestos, ainda permanecem. Enquanto incerteza, queda do valor da moeda e escassez de investimento assolam economias emergentes, a recuperação morna nos países mais ricos aparece principalmente como uma recuperação do sistema financeiro, que tem evitado aquisição pública ou mesmo regulamentação substancial, apesar das críticas generalizadas e das recuperações financeiras levadas a cabo com dinheiro dos contribuintes. Onde as taxas de desemprego estão em queda, isso é muitas vezes devido a uma diminuição das taxas de participação na força de trabalho e crescimento de trabalhos temporários, com remuneração inferior. As revoluções na computação e robótica podem oferecer benefícios que poderiam ser distribuídos amplamente no futuro, no entanto, parece que testemunharemos ainda um longo período de deslocamento, trabalho redundante e crescente desigualdade em nosso modelo econômico atual. Além disso, em muitos países, houve aparentemente um aumento da criminalização, difamação e repressão dos defensores de direitos humanos e do protesto social, cerceando o espaço para a participação que é fundamental para a “democracia real” e em tentativa de silenciar o debate público sobre a natureza de nosso futuro compartilhado.

Para ser relevante perante os protestos e movimentos populares, minha impressão é que temos de reconhecer o potencial de direitos humanos para levantar questões críticas sobre nossos sistemas econômicos e políticos por meio de uma estrutura internacionalmente reconhecida, que surgiu a partir de luta social e incorpora demandas por uma sociedade justa. Mesmo que muitos de nós demandemos reformas legislativas e políticas, maior responsabilização e prestação de contas, e cooperação internacional em consonância com a evolução das normas de direitos humanos, nossas origens em organizações de direitos humanos incentivam uma conexão permanente com a indignação moral que condena a pobreza em meio à abundância global, incorpora a igualdade substantiva e eleva o bem comum acima do privilégio de poucos. Da mesma forma, apesar de diferentes papéis, abordagens e localizações geográficas, idealmente nos reconhecemos como parte de um movimento por justiça social e direitos humanos, liderado pelos pobres, oprimidos, explorados e outros de nós que fizeram um compromisso de tornar os direitos humanos uma realidade para todos. Esse não é um movimento para outra pessoa em um lugar distante. Das forças de mudança tecnológica e capital global aos impactos das mudanças climáticas e conflitos militares, nossa profunda interdependência global sugere que esse deve se tornar um movimento para o nosso futuro comum e dignidade humana e bem-estar coletivos.

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Notas

1. A International Finance Corporation, um braço do Grupo do Banco Mundial voltado para o setor privado, estabeleceu padrões de desempenho sobre sustentabilidade socioambiental que seus clientes devem cumprir durante o período de investimento concedido pela IFC. O Padrão de Desempenho 7, sobre povos indígenas, atualmente detalha as circunstâncias que exigem o consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas por projetos de desenvolvimento.

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Referências

Bibliografia e outras fontes

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Chris Grove

Chris Grove foi nomeado Diretor do Secretariado da Rede Internacional para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Rede-DESC) em 2012, tendo atuado como Assistente de Programa de 2004-2007, com foco em responsabilidade empresarial e política econômica. Ele tem facilitado o trabalho em direitos humanos em diversos países, inclusive nos EUA. Ele possui pós-graduação em relações internacionais (Columbia University) e antropologia (The Graduate Center, City University of New York, EUA).

Email: cgrove@escr-net.org

Original em inglês. Traduzido por Akemi Kamimura.

Recebido em março de 2014.