Diálogos

“O relatório causou sensação no CDH”

Michael Kirby

Entrevista com o juiz aposentado do Supremo Tribunal da Austrália Michael Kirby, na posição de presidente da Comissão de Inquérito da ONU sobre direitos humanos na República Popular Democrática da Coreia

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Nesta entrevista exclusiva para a Revista Sur, Michael Kirby discute a Comissão de Inquérito sobre os Direitos Humanos na República Popular Democrática da Coreia (conhecida como “COI sobre a RPDC” ou “COI sobre a Coreia do Norte”), da qual ele foi presidente. Ele descreve como o relatório causou sensação quando foi apresentado ao Conselho de Direitos Humanos (CDH) em 17 de março de 2014. A metodologia única – discutida com detalhes abaixo – usada por Michael Kirby e seus colegas, Marzuki Darusman e Sonja Biserko, permitiu à COI reunir material e documentar as graves violações de direitos humanos que estão ocorrendo na República Popular Democrática da Coreia (RPDC ou Coreia do Norte), incluindo crimes contra a humanidade.

A península coreana foi governada como um único território por pelo menos mil anos até 1945, quando foi dividida pelos países aliados vencedores na Segunda Guerra Mundial, após a derrota do Japão, que ocupava esse território desde 1911. Os aliados desenharam uma linha artificial que passava pelo centro da península. A parte norte foi consignada para a esfera de influência soviética; o trecho sul para a esfera de influência dos Estados Unidos da América. Os regimes estabelecidos imediatamente após a guerra eram ambos altamente autocráticos, levando a grandes tensõesque tiveram seu ápice em 1950, quando as forças do norte atacaram o sul. O resultado foi uma guerra devastadora, que dizimou as duas partes da Coreia, tanto no plano individual como no econômico. O regime comunista do Norte sobreviveu e o primeiro governante supremo da Coreia do Norte, Kim Il-sung, estabeleceu um regime altamente autocrático que não conseguiu proteger e muitas vezes deliberadamente violou os direitos humanos dos seus cidadãos. Essa tendência continua até hoje sob o líder supremo atual, e terceiro membro da dinastia Kim, Kim Jong-un.

Em 2013, após muitos anos de preocupação internacional com os relatos sobre situação dos direitos humanos na Coreia do Norte, o Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu estabelecer uma Comissão de Inquérito (COI), mecanismo utilizado para chamar a atenção internacional sobre um país ou área particular.

Kirby observa como a COI sobre a Coreia do Norte é um estudo de caso muito interessante, com muitas lições sobre como a ONU pode tratar os problemas de direitos humanos de maneira mais eficaz. Segundo ele, a insistência da COI no procedimento adequado e na justiça – mesmo face à um regime como o da Coreia do Norte – é a única maneira de se tratar as questões de direitos humanos. Em última análise, ele diz, isso resultará em um maior comprometimento e consequentemente em uma maior probabilidade de realização de ações de acompanhamento.

O relatório completo da COI sobre a Coreia do Norte pode ser lido aqui.

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Conectas Direitos Humanos • O Escritório do Alto Comissariado dos Direitos Humanos (OHCHR) apoiou ou implementou 50 comissões internacionais de inquérito e missões de inquérito desde 1992.11. “Commissions of Inquiry And Fact-Finding Missions On International Human Rights And Humanitarian Law - Guidance And Practice,” Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), 2015, acesso em 30 mai. 2016. http://www.ohchr.org/Documents/Publications/CoI_Guidance_and_Practice.pdf, p. 114. De que maneira a COI sobre direitos humanos na Coreia do Norte se destaca das outras, especialmente em termos de metodologia e da maneira que o relatório foi apresentado?

M. K. • Nós não esperávamos que a RPDC cooperasse com a COI, e isso de fato não ocorreu. Por isso, nos deparamos com um problema inédito que era não sermos capazes de visitar o país e verificar a situação por nós mesmos. Assim, tivemos que recolher depoimentos fora do país. Nós não tivemos qualquer problema na obtenção de testemunhas. Nós fizemos um chamado público e recebemos um retorno alto, com número muito grande de pessoas que desejavam falar. Há uma comunidade de cerca de 28.000 refugiados norte-coreanos na Coreia do Sul, de onde se originou a maioria das testemunhas.

As testemunhas foram autorizadas a dar seu testemunho sem perguntas pré-fixadas e com intervenção mínima da COI. Um dos pontos fortes do relatório da COI sobre a RPDC dizia respeito ao fato de que, em quase todas as páginas havia passagens citadas da transcrição que contavam a experiência dos indivíduos. Isso aumenta o poder e o vigor do relatório, que eu acredito ser um divisor de águas.

Como um juiz oriundo de um país de direito consuetudinário, me senti confortável com a realização da COI sobre a RPDC com base em elementos de direito consuetudinário que eram familiares para mim – em particular a transparência. Isto foi particularmente relevante para uma investigação sobre um local tão resguardado. Um antídoto para o segredo é a transparência. Os meus colegas, Marzuki Darusman (Indonésia) e Sonja Biserko (Sérvia), apesar de terem uma história de trabalho junto ao direito civil, concordaram com essa estratégia e o inquérito foi realizado da maneira mais transparente possível. Isto incluiu a filmagem de audiências públicas, que – com a devida proteção da identidade das testemunhas quando necessário – foram disponibilizadas on-line, juntamente com as transcrições, tanto na língua original, coreano ou japonês, quanto em inglês.

Inicialmente, a ONU não ficou particularmente feliz com o procedimento transparente que adotamos. Eles disseram que pessoas não identificadas tentariam atrapalhar nossas reuniões, que haveria riscos de segurança e que esta não era a maneira que as COIs eram normalmente conduzidas. No entanto, nós persistimos porque não apenas a transparência nos ajuda a convencer a comunidade pertinente quanto à integridade e equidade do procedimento, mas ela também aumenta as expectativas de que dela algo resultará.

Um dos problemas com os relatórios da ONU é que eles podem ser difíceis de ler. Em parte, isso pode surgir por que os funcionários que os escrevem, o fazem utilizando sua própria mentalidade e, por vezes, em idiomas outros que não as suas línguas nativas. Embora o relatório da COI sobre a Coreia do Norte tenha sido elaborado pela nossa secretaria, eu revi cada palavra do relatório. No papel da única pessoa na COI a falar o inglês como idioma nativo, tomei a responsabilidade de certificar-me de que a linguagem era confortável, que era simples e que ela era capaz de comunicar diretamente às pessoas que não eram especialistas os problemas que estávamos tratando.

Também surgiu o questionamento sobre se devíamos fornecer uma cópia do relatório às autoridades da RPDC. Este procedimento teria sido seguido no caso de um inquérito de direito consuetudinário, especialmente quando o sujeito do inquérito não tivesse participado dele. Por isso, enviamos uma cópia do nosso relatório ao líder supremo através da missão da RPDC em Genebra. Na carta de apresentação, eu preveni o líder supremo para o fato de que ele próprio poderia ser responsabilizado pelas violações dos direitos humanos reveladas no relatório. Isto lhe daria a oportunidade e o estímulo para nos responder. Mas ele não respondeu. Alguns funcionários da ONU disseram que isso nunca havia sido feito antes. No entanto, para nós, isso parecia ser um requisito básico do devido processo legal.

Estes são alguns dos recursos que tornam a COI sobre a RPDC diferente. Eu estava muito interessado na metodologia. Ela é importante. Se você optar pela metodologia certa, aumentará a probabilidade de produzir um relatório convincente e que de fato ajudará a mudar as coisas. Minha esperança é que seja possível publicar o relatório através de uma editora privada, porque a RPDC e seus problemas não desapareceram da cena internacional. Acredito que o relatório da COI ainda seja relevante e deva estar disponível o mais amplamente possível.

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Conectas • Existe algo que você faria diferente, caso pudesse voltar no tempo?

M. K. • Estou certo de que há muitas coisas que poderíamos ter feito de forma diferente. Nós oferecemos à Coreia do Norte a oportunidade de ter um representante na COI. Isso foi negociado com o governo da Coreia do Sul e foi por si só um passo incomum na relação entre as Coreia do Norte e do Sul. Por fim, a RPDC recusou a oferta. Por isso, caso pudéssemos voltar atrás, talvez tivéssemos buscado métodos para assegurar que haveria um defensor para a RPDC – mesmo que tivéssemos que nomear um.

Conectas • O relatório da COI foi inabalável quanto à condenação do regime da RPDC, descrevendo como ” sistemáticas, generalizadas e graves violações dos direitos humanos” foram e estão sendo cometidas pela RPDC, por suas instituições e seus funcionários – incluindo crimes contra a humanidade – e recomendou que o Estado seja submetido ao Tribunal Penal Internacional (TPI).22. United Nations General Assembly, A/HRC/25/63, “Report of the commission of inquiry on human rights in the Democratic People’s Republic of Korea,” acesso em 7 de fev. de 2014, para. 24 e 94(a). Apesar da completa rejeição de Pyongyang à COI e às suas conclusões, após a publicação do relatório, a Coreia do Norte se envolveu pela primeira vez com a Revisão Periódica Universal (UPR), além de ter embarcado em várias iniciativas diplomáticas na ONU e União Europeia.33. Ver, por exemplo: David Hawk, “a Coreia do Norte responde à Comissão de Inquérito da ONU.” 38 North, Oct. 16, 2014, acesso em 30 de mai. de 2016, http://38north.org/2014/10/dhawk101614/. No entanto, após a Assembleia Geral das Nações Unidas ter encaminhado as conclusões da Comissão ao Conselho de Segurança em dezembro de 2014, Pyongyang recusou qualquer cooperação adicional com os mecanismos de direitos humanos da ONU.44. Ver, por exemplo: Christine Chung, “Moving Forward on North Korean Human Rights.” 38 North, 27 de jul. de 2015, acesso em 30 de mai. de 2016, http://38north.org/2015/07/cchung072715/. Quantas destas manobras diplomáticas você atribui à pressão criada a partir do relatório e como você lida com a crítica de que – até o momento recusando qualquer cooperação com os mecanismos de direitos humanos da ONU – o relatório pode ter resultado em um maior isolamento da Coreia do Norte?

M. K. • É claro que o relatório causou sensação no CDH e pressionou a Coreia do Norte por uma resposta. Portanto, a sequência temporal sugere que a resposta foi produto do relatório. A consequência foi o embarque da Coreia do Norte em uma tentativa de sedução com a finalidade de dissuadir os organismos das Nações Unidas de prosseguirem com o relatório, em especial, quando o mesmo fosse crítico ao líder supremo, ou de encaminhá-lo ao Conselho de Segurança. Em todos os seus esforços, a Coreia do Norte falhou porque a comunidade internacional ficou devidamente indignada e alarmada com o conteúdo do relatório. Os passos que foram tomados pela RPDC, no entanto, foram bem-vindos. A RPDC foi o único país do mundo a ser submetido à revisão periódica universal (RPU) e afirmar que não havia problemas de direitos humanos que precisavam resolver. Nem um sequer.

Assim que o nosso relatório foi publicado, a Coreia do Norte adotou um papel mais ativo no segundo ciclo da RPU. Concordou que havia um número significativo de pontos – por exemplo, a execução pública de inimigos do regime – que devem ser considerados face aos padrões de direitos humanos. Tudo isso foi um bom resultado e, certamente, deve ser bem-vindo. Mas, quando se tornou claro que o assunto seria submetido ao Conselho de Segurança e, quando o Conselho de Segurança, por voto processual, colocou o assunto em sua agenda – duas vezes – a Coreia do Norte deixou de cooperar.

A COI não era um corpo político; era uma comissão independente formada para realizar um inquérito. Nossa obrigação não era a mesma que a dos diplomatas, comercializando e negociando favores em troca de objetivos geopolíticos. A nossa obrigação era fazer uma investigação e um relatório preciso, justo e íntegro. E isso foi o que fizemos. Não se faz progressos no tema de direitos humanos ignorando ou agindo com suavidade em relação aos crimes contra a humanidade. Portanto, é simplesmente incompatível com crimes tão graves contra a ordem jurídica internacional a sugestão de que os crimes, embora aparecendo no testemunho, deveriam ter sido suprimidos ou mantidos em segredo, ou isolaríamos a RPDC. O país já estava isolado – ele isola a si próprio. Mas ele não se isola da ONU, da qual é membro, nem dos tratados de direitos humanos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos através da qual ele está vinculado. Essas são proteções para o povo da RPDC que desejam a presença da ONU. Nós cumprimos nosso dever ao revelar a situação. No devido tempo, quando a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte melhorar, isso se dará apenas por conta da maneira chocante com que o povo da RPDC foi tratado, algo que foi trazido à atenção mundial pela COI.

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Conectas • Uma das descobertas mais chocantes do relatório da COI é o tratamento dos refugiados norte-coreanos. Você poderia explicar aos nossos leitores os desafios específicos que este grupo de pessoas enfrenta?

M. K. • Um dos capítulos mais impactantes do relatório é o que trata da alimentação e das consequências da grande fome – a chamada “Árdua Marcha” – em meados da década de 1990. Um grande número de pessoas morreu de fome. Os números exatos são controversos, mas não menos que 300.000, e pode ter chegado a mais de um milhão, em uma população com 23 milhões de pessoas. Portanto, houve um sofrimento generalizado. A consequência disso foi um grande número de pessoas tentando fugir para a China. Na época, a fronteira nordeste da China não era fortemente protegida durante o inverno. Muitas pessoas, especialmente mulheres, saindo da RPDC cruzaram os rios congelados e entraram na China. Elas sofreram grandes abusos na China – em alguns casos, tráfico de seres humanos, mas na maior parte dos casos, condições de trabalho e de vida muito difíceis. Muitas dessas pessoas se foram apenas para fazer dinheiro suficiente e assegurar os meios para sustentar suas famílias até que voltassem para a Coreia do Norte.

O etos da RPDC é a exclusividade racial. Portanto, houve grande preconceito em relação a qualquer um que voltasse para a Coreia do Norte, particularmente se a repatriada tivesse tido filhos com pais chineses. Em um exemplo, uma testemunha nos disse que ela tinha sido forçada a afogar seu filho em um balde porque o pai da criança era chinês. As pessoas que retornaram da China foram submetidas a castigos cruéis e muitas vezes presos em campos de detenção. As autoridades chinesas tomaram medidas para cooperar com a Coreia do Norte na devolução dos refugiados. A COI alertou a China de que isso era incompatível com as obrigações da China em relação à Convenção dos Refugiados e seu Protocolo. A China respondeu que estes não eram refugiados e sim migrantes econômicos. No entanto, a COI insistiu que quando as pessoas fugiram para a China, mesmo que inicialmente o tivessem feito por razões econômicas, dado o conhecimento das condições na Coreia do Norte, estes eram tecnicamente refugiados e, portanto, tinham direito à proteção como refugiados. A China não concordou com essa posição.

Conectas • O relatório diz que “a comunidade internacional deve aceitar sua responsabilidade de proteger o povo da Coreia do Norte”.55. United Nations General Assembly, A/HRC/25/63, para. 86. Como e em que medida você encara esta responsabilidade expressa em curto e longo prazo? Existe alguma evidência de que esta responsabilidade já tenha sido reconhecida?

M. K. • O relatório contém muitas recomendações para a ONU. Uma delas foi implementada, nomeadamente o estabelecimento de um escritório local em Seul, na Coreia do Sul. Ele coleta testemunhos e, dessa forma, dá continuidade ao trabalho que a COI começou. O relatório também recomendou que o assunto seja submetido ao Conselho de Segurança, a fim de que possa invocar a sua competência sob abrigo do Estatuto de Roma e remeter o processo da RPDC ao TPI. O primeiro passo nesse processo foi alcançado pela referência ao assunto feita pela Assembleia Geral ao Conselho de Segurança – um passo que foi incomum e, em termos de direitos humanos, só tinha sido tomado uma vez antes no caso de Mianmar (Birmânia). Esta decisão foi reafirmada em dezembro de 2015 em votação semelhante para trazer o assunto ao Conselho. Por conseguinte, em fevereiro de 2016, o Conselho de Segurança aprovou por unanimidade resoluções impondo sanções muito mais fortes sobre a Coreia do Norte, após o quarto teste nuclear e de mísseis.

Resta saber se parte disso não seria uma confirmação dos conteúdos do relatório da COI. Não posso responder o que se passava na mente dos Estados-Membros do Conselho de Segurança em relação a qualquer uma dessas etapas ao longo do caminho, mas acredito que o relatório da COI tenha aberto um espaço que não existiria caso a comunidade internacional não fosse informada sobre a peculiaridade da situação na Coreia do Norte e a ocorrência de crimes contra a humanidade e gritassem por uma resposta.

O Conselho de Segurança ainda não encaminhou o processo para o TPI, conforme recomendamos. No entanto, isso ainda pode ocorrer futuramente, especialmente se a Coreia do Norte continuar a agir de forma beligerante, hostil e militar. No final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional, ao criar a ONU, resolveu que nunca mais o mundo viraria as costas para os crimes contra a humanidade. Os crimes contra a humanidade não são apenas violações comuns de direitos humanos, dentre as milhares que existem no mundo em que vivemos. Elas são as formas mais graves de crimes internacionais, que, juntamente com o genocídio e certos crimes de guerra, clamam por uma resposta por parte da consciência da humanidade. E estes são os crimes registrados no relatório da COI. Acredito que a comunidade internacional continuará a pressionar a Coreia do Norte e, em última análise, a culpar os responsáveis pelos crimes contra a humanidade que, comprovadamente, tenham ocorrido.

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Conectas • Qual o papel da China nos esforços para aprimorar os direitos humanos na RPDC e quão preocupante é a evidência recente de um esfriamento das relações bilaterais entre a RPDC e a China?

M. K. • A China é a chave para o progresso na RPDC. A China é o maior parceiro comercial da RPDC enquanto a Federação Russa tem agora interesses econômicos relativamente menores. Isso me traz a esperança de que a China continuará a procurar maneiras de lidar com o problema que está à sua porta. Obviamente, a China deve estar profundamente preocupada seja em relação aos perigos para o seu próprio ambiente ou quanto aos seus próprios arranjos políticos no nordeste de seu país. Mas também em relação às terríveis armas que a RPDC possui e ao sistema governamental de certa forma instável que eles têm, que tornam o possível uso acidental ou equivocado dessas armas uma clara realidade que deve ser encarada pela China.

Tudo isso indica ser provável a futura evolução da posição da China. No entanto, existem vários indícios de que a Coreia do Norte tenha prejudicado as relações que tinha com a China. O assassinato de Jang Song-Thaek, tio do líder supremo, em dezembro de 2013 foi um exemplo disso. Após a morte de Kim Jong-II, ele alegadamente exortou a necessidade da Coreia do Norte em avançar no sentido de uma melhoria de sua economia e política interna à exemplo da China.

Uma diplomacia silenciosa junto à China, incluindo discussões secretas longe do escrutínio internacional, servirão para alavancar a pressão sobre a RPDC e melhorar a situação dos direitos humanos.

Conectas • Olhando de forma mais ampla para a política externa de outros países do Sul Global com representação em Pyongyang (incluindo, entre outros, Brasil, Indonésia, Índia e Nigéria) – qual deveria ser o papel desses países e como seus representantes diplomáticos poderiam fortalecer suas atuações no sentido de melhorar a situação dos direitos humanos?

M. K. • Uma das características decepcionantes da resposta da ONU ao relatório da COI foi o não-envolvimento dos países africanos e do BRICS, tendo eles próprios já sentido a dor das privações de direitos humanos. A Índia, por exemplo, se absteve repetidas vezes em relação à análise do relatório na Assembleia Geral. A votação na Assembleia Geral foi 120 a 20, com a abstenção de 55 países. Dentre estas abstenções havia muitos países que são líderes mundiais em desenvolvimento e que tiveram experiência direta com abusos de direitos humanos.

Muitos dos países do mundo em desenvolvimento continuam a viver no mundo do faz-de-conta do não-alinhamento. Eles não ajustaram suas respostas internacionais para o mundo pós-1989. Percebi isso ao observar os debates da ONU. No entanto, nunca devemos esquecer que 120 países – um número expressivo de votos em se tratando de uma questão de direitos humanos – votaram a favor do relatório da COI e contra a tentativa de sedução da RPDC. Da mesma forma, no Conselho de Segurança, 11 Estados-membros inicialmente votaram a favor em uma votação processual seguidos por outros 10 países posteriormente. E, finalmente, em fevereiro de 2016, o Conselho votou por unanimidade em prol de sanções mais fortes.

Conectas • Você conseguiu ter acesso a quaisquer organizações da sociedade civil na Coreia do Norte durante a COI – que operavam secretamente, por exemplo? Em caso positivo, como elas estão organizadas e que papel desempenham no sentido de chamar atenção sobre o regime?

M. K. • Uma característica surpreendente da nossa investigação foi a ausência de evidências de uma sociedade civil organizada na RPDC. Pode ser que ela exista, mas teria que agir de maneira extremamente cautelosa e dissimulada, porque o país é um lugar violento e cruel para quem se opõe ao regime.

Mesmo na Coreia do Sul, uma característica surpreendente é o fracasso da organização da sociedade civil em emergir representando os muitos refugiados do norte. A razão alegada é que a Coreia, constitucionalmente, é um único país. Os refugiados juntaram-se à “Coreia real” e, portanto, não precisam de uma sociedade civil independente. Mas talvez seja a consequência residual de viver em um regime totalitário e opressivo, que faz com que, mesmo com altos níveis de liberdade cívica na Coreia do Sul, os refugiados da Coreia do Norte ainda não tenham formado organizações da sociedade civil com algum grau de importância.

Apesar disso, a COI manteve constante diálogo com a sociedade civil em outros países da ONU. A sociedade civil desempenhou um papel importante nos movimentos que levaram à decisão unânime do Conselho de Direitos Humanos que criou a COI. A sociedade civil desempenha um papel muito importante no mecanismo de direitos humanos da ONU. Ela incentiva, estimula e provoca ações para proteger os princípios quando a inércia ou interesses econômicos, por vezes, levam os Estados a não agirem.

Conectas • Indo além, como nossos leitores poderiam mobilizar-se para ajudar a melhorar a situação dos direitos humanos na Coreia do Norte?

M. K. • Temos que nos voltar para os princípios da Carta da ONU. Muitos na Austrália ou na América do Sul dirão “o que a Coreia do Norte tem a ver conosco? Este é um país muito distante e não há muito que possamos fazer em relação à essa situação e, portanto, devemos cuidar das nossas vidas e deixar isso de lado”. Não é isto o que dizem os princípios da Carta. Os princípios da Carta, motivados pelo enorme sofrimento da Segunda Guerra Mundial e pelos horrores dos crimes contra a humanidade nos campos de extermínio e aqueles provocados pelas explosões nucleares sobre o Japão, chamaram a atenção para o fato de que todos somos uma única espécie, vivendo em um planeta minúsculo e um tanto quanto insignificante. Temos que buscar, e defender, um terreno comum e o mesmo inclui a dignidade fundamental e os direitos humanos de todas as pessoas, incluindo as pessoas na Coreia do Norte.

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Entrevista realizada em maio de 2016 por Oliver Hudson (Conectas Direitos Humanos).

Michael Kirby - Austrália

Michael Kirby aposentou-se do Supremo Tribunal da Austrália em 2009, como o juiz com a mais longa carreira, tendo ocupado duas vezes o cargo de Chefe Interino da Justiça Australiana. Além de ser o presidente da Comissão de Inquérito da ONU sobre direitos humanos na República Popular Democrática da Coreia (2013-14), ele ocupou uma série de cargos de alto nível, nacional e internacionalmente, incluindo o de presidente da Comissão Internacional de Juristas (1995- 98) e Representante Especial da ONU para os Direitos Humanos no Camboja (1993-6). Atualmente, ele é membro do Grupo de Referência da UNAIDS sobre HIV e Direitos Humanos (2004-) e atua como editor-chefe da publicação Leis da Austrália (2009-). Em dezembro de 2015, foi nomeado pelo Secretário-Geral da ONU como membro de seu Painel de Alto Nível sobre Acesso a Medicamentos.

Original em inglês. Traduzido por Adriana Guimarães.

Foto por Sasha Hadden