Ensaios

O papel da universalização dos direitos humanos e da migração na formação da nova governança global

André Luiz Siciliano

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RESUMO

O presente artigo trata de tecer breve revisão de literatura diversificada acerca das características políticas e sociais dos tempos atuais, na qual se pretende apresentar um retrato da situação de relativo enfraquecimento do Estado-nação no Sistema Internacional, especialmente quando enfrentadas as questões da universalização dos direitos humanos e da resistência a esse processo manifestada na questão das migrações. Ambas as questões são aspectos opostos de uma mesma realidade, pois significativas evoluções tem ocorrido por meio da universalização dos direitos humanos, como o fortalecimento dos movimentos sociais, o surgimento do conceito de cidadania cosmopolita, ou mesmo o da responsabilidade de proteger, e, assim, a questão da universalização dos direitos humanos tem sido responsável pela relativização das soberanias estatais face ao sistema internacional. A questão migratória, por outro lado, sustentada sobre os ideais do século XVII, invocando um nacionalismo, hoje anacrônico, que confina os seres humanos aos territórios aos quais “pertencem”, exerce uma dupla função: por um lado, a de preservar algumas características fundamentais do Estado-nação westfaliano, como os princípios da soberania e da autodeterminação; por outro, a de obstar a proteção ampla e efetiva dos direitos humanos fundamentais.

Palavras-Chave

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Quando os produtos do trabalho não são bens materiais, mas relações sociais, redes de comunicação e formas de vida, torna-se claro que a produção econômica implica imediatamente uma forma de produção política, ou a produção da própria sociedade. De modo que já não somos tolhidos pela velha chantagem; a escolha não é entre soberania e anarquia.
(HARDT; NEGRI, 2005)

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1. Introdução

As poderosas ideias que deram forma às sociedades humanas até trezentos anos atrás eram quase todas religiosas, excetuando-se o Confucionismo chinês. Desde os acordos de Westfália,1 a principal ideologia secular que tem produzido efeitos ao redor do mundo é o Liberalismo, uma doutrina associada ao surgimento de uma classe média – primeiramente comercial e, depois, industrial – em algumas partes da Europa, no século XVII (FUKUYAMA, 2012). Conforme enunciado por pensadores clássicos como Locke, Montesquieu e Mill, o Liberalismo prega que a legitimidade da autoridade estatal deriva da habilidade do Estado em proteger os direitos individuais de seus cidadãos e que o poder do Estado deve ser limitado pela lei.

Os avanços tecnológicos do século XX, contudo, permitem a configuração de uma nova realidade em que os indivíduos estabelecem relações sociais independentemente do território em que habitam. A popularização da internet e a expansão das emissoras de TV possibilitam que qualquer fato vire notícia e que qualquer notícia circule o mundo em fração de segundos. Novas preocupações globais passam a fazer parte do cotidiano do indivíduo, tal como a preocupação com o aquecimento global, com a proteção aos direitos humanos ou com a escassez de água potável. A percepção de que o indivíduo pertence ao mundo é cada vez mais forte, especialmente quando se encontra solidariedade, ou oportunidade, além das fronteiras nacionais. No mesmo sentido, a crescente internacionalização e transnacionalização das empresas, a possibilidade de comprar e vender produtos em qualquer lugar do mundo, ou mesmo a simples troca de informações por meio das redes sociais da internet reforçam a consciência de pertencimento à uma sociedade global.

O século XXI se inicia sob essa nova perspectiva, com outras ideias poderosas abalando as estruturas políticas e sociais que predominaram nos séculos passados. Novas possibilidades se apresentam à medida que as pessoas se dão conta de que, antes de pertencerem a diferentes Estados, são habitantes de um mesmo e único planeta, quase todo ele acessível. As próprias unidades básicas da política, os Estados-nações territoriais, soberanos e independentes, inclusive os mais antigos e estáveis, estão sendo esfacelados pelas forças de uma economia supranacional ou transnacional e pelas forças infranacionais de regiões e grupos étnicos secessionistas (HOBSBAWM, 1994). Os movimentos sociais internacionais ou transnacionais, ao possibilitarem a articulação política global dos indivíduos, formam novas estruturas de poder no sistema internacional, independentes dos Estados-nações aos quais pertencem.

Desse modo, desenha-se uma nova governança global em que, apesar de não haver um governo supranacional unitário institucionalizado e de os Estados não serem os únicos agentes, valores universais são compartilhados. Os novos agentes promovem certo controle difuso das responsabilidades dos Estados em relação aos seus respectivos cidadãos, exigindo que cada Estado assegure os direitos humanos fundamentais a seus governados, sob pena de intervenção humanitária externa. Surgem os conceitos de Democracia Cosmopolita, de Cidadania Cosmopolita, de Responsabilidade de Proteger e de Fragmigration, que demonstram a internacionalização de valores e a irrelevância das fronteiras territoriais nacionais na configuração dessa nova ordem.

O objetivo deste trabalho é demonstrar que a questão migratória e os desafios apresentados pela universalização dos direitos humanos são importantes elementos constituintes da globalização e da nova governança global que se apresentam de forma a questionar a estrutura existente do Estado-nação. O desafio inicial é, portanto, adotar um método de análise que não esteja impregnado pela ideia de que o Estado-nação é a organização política natural da humanidade. Em seguida, serão analisados alguns desdobramentos específicos, tais como os papeis da imigração e da cidadania em face da universalização dos direitos humanos e da relativização do poder do Estado. Ao final, será demonstrado que a presente governança global possivelmente preservará a tendência de enfraquecimento do Estado-nação e fortalecimento dos direitos do indivíduo no sistema internacional.

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2. O Estado

O Estado-nação não é uma forma natural de organização política e social, tampouco a melhor forma possível, mas apenas a que melhor se adaptou aos valores sociais e políticos vigentes após o fim do domínio religioso na condução da política internacional, formalizado nos Tratados de Münster e Osnabrück (1644-1648). Igualmente, não se deve admitir que a natureza humana seja de acomodação ao local de nascimento, pois, ao contrário, o ser humano é por natureza migrante. Desde os tempos bíblicos há numerosos registros de migrações humanas, seja por guerras, por necessidades básicas ou por catástrofes ambientais, entre outros motivos.

Com o passar dos séculos, a evolução do homem o levou a criar formas de organização social e política que permitissem melhor aproveitamento dos recursos naturais e melhores condições de sobrevivência, especialmente na competição com seus iguais. Os territórios foram cercados para permitir o exclusivo e mais eficiente aproveitamento dos recursos naturais pelo povo que os dominassem.

O fato é que, atualmente, em pleno século XXI, praticamente tudo é apropriável e comercializável e os diferentes povos aceitam coexistir com os demais pacificamente.2 O fluxo de capital, de produtos, de ideias, de informações, é todo global. A produção de riqueza se vale tanto dos recursos e insumos mais baratos, quanto dos mercados mais valorizados. Em 2012, a sociedade e os desafios são globais e os Estados-nações estão relativamente esvaziados de suas funções originais. Na ótica de Marx, Durkhaim, Weber e Parsons, uma crescente diferenciação, racionalização e modernização da sociedade gradualmente reduziria a importância do sentimento nacionalista. O contrassenso dos tempos atuais reside no fato de que, embora ainda haja razões para migração – como guerras, catástrofes naturais, situações de insegurança de qualquer natureza, busca por melhores condições de vida ou mera curiosidade de conhecer outros lugares -, os homens estão confinados ao pedaço de território do qual são tidos como frutos.

2.1 O Estado-nação

A verdade é que o mundo segue ordenado em Estados-nações, soberanos em seus territórios e reciprocamente excludentes, e, não por outro motivo, o imigrante é percebido e recebido ora como invasor, ora como promotor do desenvolvimento, de acordo com o interesse dos Estados em cada momento (WIMMER; GLICK SCHILLER, 2002). A presunção de que nação, Estado e sociedade são expressões políticas e sociais naturais do mundo moderno é chamada, por Wimmer e Glick Schiller, de “nacionalismo metodológico”, o qual, segundo argumentam, estaria dividido de três modos.

O primeiro é o que decorre da ignorância, que se traduziria em uma cegueira sistemática sobre o paradoxo de que a modernização leva à criação de comunidades nacionais em meio a uma sociedade moderna, supostamente dominada pelos princípios da aquisição. Wimmer e Glick Schiller mencionam que Parsons e Merton, Bourdieu, Habermas e Luhman não discutem, em nenhum modelo, o aspecto nacional dos Estados e das sociedades na era moderna. Além disso, essas teorias cegas ao aspecto nacional foram criadas em um ambiente de rápida nacionalização de Estados e sociedades e, no caso de Weber e Durkhein, ao findar de guerras nacionalistas.

Já o segundo, é adotar os discursos nacionais, as agendas, as relações de lealdade e históricas como se fossem uma realidade dada, fatos da natureza, sem problematizá-los ou torná-los objeto de estudo. Economistas, cientistas políticos, antropólogos e historiadores assumiram o Estado como unidade de referência de seus estudos, forjando uma unidade que, até então, não existia. Os economistas, desde Adam Smith e Friedrich List, tomaram a chamada economia interna e as relações externas como principais referências. Cientistas políticos assumiram que o Estado-nação era a unidade de referência ideal no sistema internacional, mas não questionaram por que o sistema era internacional. Antropólogos, ao abandonar o difusionismo e ao adotar a teoria funcionalista, praticamente assumiram que as culturas a serem estudadas eram unitária e organicamente ligadas (e fixadas) ao território. Mesmo a História passou a ser a história das nações e não a dos homens.3 Somente nessa última década foi possível superar a cegueira do nacionalismo metodológico, indo além da dicotomia entre Estado e Nação, sem cair na armadilha do Estado-nação (WIMMER, 1996, 2002).

O terceiro modo é a territorialização do imaginário da ciência social e a redução do foco analítico para dentro das fronteiras dos Estados-nações. Vale dizer que a ciência social ficou obcecada em descrever processos que ocorriam dentro das fronteiras de cada Estado-nação e contrastá-las com outros externos a estes Estados, perdendo completamente a conexão entre esses processos e os territórios determinados como nacionais (WIMMER; GLICK SCHILLER, 2002).

As três vertentes mencionadas se interceptam e se reforçam mutuamente, formando uma estrutura epistemológica coerente que se autoalimenta quanto ao modo de ver e de descrever o mundo social.

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3. As migrações

Visto isso, é preciso compreender a evolução histórica da percepção sobre as migrações, especialmente no período que sucede a formação dos Estados-nações, para que se perceba a mudança no discurso dos Estados. Um primeiro momento pode ser estabelecido como a era pré-guerra (1870-1918),4 em que havia forte crescimento econômico e demanda por mão de obra, com algumas crises econômicas pontuais. Nesse período, muitos países da Europa eliminaram o passaporte e o sistema de vistos, seguindo o exemplo da França, que, desde 1861, havia derrubado as barreiras ao livre trânsito de trabalhadores (WIMMER; GLICK SCHILLER, 2002). Nesse período, havia forte incentivo dos Estados ao fluxo migratório.

O segundo momento, desde a Primeira Guerra Mundial até a Guerra Fria, foi marcado pelo fim do livre trânsito de trabalhadores, pois tanto pela guerra, como pela reconstrução dos países destruídos e de outros recentemente declarados independentes, a mão de obra havia se tornado, por um lado, um bem ainda mais valioso, e por outro, uma grave ameaça. Parte da estratégia de defesa nacional desses novos países foi o processo de fechamento das fronteiras. Não obstante, os modelos de análise social construídos no período tomavam a população de cada território como se fosse um dado estável, desconsiderando a migração. Advogou-se uma arbitrária assimilação. O imigrante passou a ser visto mais do que um risco à segurança, como um elemento destruidor do isomorfismo entre nação e povo e, então, como um obstáculo maior ao projeto de construção do Estado-nação que estava em andamento. Esse foi o período de fechamento das fronteiras e de contabilização.

O terceiro momento, da Guerra Fria, foi o momento em que o ponto cego se transformou em cegueira, pois se apagaram quase que completamente as memórias históricas dos processos transnacionais e globais. A teoria da modernização fez com que a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América parecessem ter desenvolvido suas identidades nacionais e seus Estados modernos confinados dentro de suas fronteiras territoriais, e não em profunda relação com a economia global e o fluxo de ideias. Um exemplo marcante desse período foi o da Alemanha Ocidental, que, em concorrência com a Alemanha Oriental, forjou um consenso nacional, desenvolvendo o Estado de bem-estar social baseado em generosos benefícios sociais restritos aos cidadãos anteriormente estabelecidos em seu território, o que fez com que o conceito de cidadania assumisse papel determinante na estrutura social, garantindo direitos a alguns trabalhadores e não a outros (como àqueles que não eram considerados alemães e que foram utilizados para a reconstrução do país no pós-guerra). Cristaliza-se a ideia de que o imigrante não é um cidadão e poucas instituições modernas são tão emblemáticas sobre os direitos do que a cidadania. Em uma definição estrita, cidadania descreve a relação legal, incompleta, entre o indivíduo e a política (SASSEN, 2006).

No mesmo sentido, Zolberg argumenta que a organização política do espaço territorial no mundo passa a ser de exclusão mútua de soberanias (ZOLBERG, 1994). Vale dizer que cada espaço é de soberania de algum Estado, que exclui a de todos os demais, e nessa perspectiva o imigrante não é mais aquele que surge da natureza do movimento (algo intrínseco à natureza humana), mas da transferência de uma jurisdição à outra. O imigrante, então, começa a ser visto como o desviador da norma do novo mundo politicamente organizado. Zolberg alerta que o fluxo de pessoas, a saber, o direito de deixar um país e transitar entre fronteiras, reduziria significativamente a autoridade soberana sobre aquele território, o que nos leva à reflexão de que, mais do que uma questão de segurança ou de viabilidade econômica de gerir um território, a livre migração implica perda de poder do governo soberano sobre seu território e seu povo. Nas palavras de Catherine Dauvergne, “in contemporary globalizing times, migration laws and their enforcement are increasingly understood as the last bastion of sovereignty 5 (DAUVERGNE, 2008, p. 2).

Um governo soberano, contudo, não se limita ao aspecto negativo de autoridade coatora sobre as pessoas num dado espaço, mas detém, antes, outro aspecto de extrema importância que é o da proteção e do amparo ao indivíduo. Isso significa dizer que o problema principal reside no fato de que, nessa estrutura moderna, o único ente legitimado para cuidar do indivíduo seria o Estado-nação. A comunidade internacional protege, de alguma forma, apenas os refugiados e aqueles que são perseguidos; quanto aos demais, “a comunidade internacional, na forma como constituída atualmente, demonstra-se incapaz ou indisposta para atender as suas necessidades(ZOLBERG, 1994, p. 170).

3.1 Resistência dos Estados à imigração

A questão migratória, como se viu, em última análise diz respeito fortemente à manutenção do poder e à preservação do status quo. Impedir o livre fluxo de pessoas significa, em grande medida, preservar o remanescente poder dos Estados, bem como o interesse de pequenos grupos de muita influência política nos Estados desenvolvidos (FACCHINI; MAYDA, 2008, p. 695). Os discursos nacionais, desde o momento da Guerra Fria, apresentam o imigrante como o estrangeiro, com direitos limitados (SASSEN, 2006), e como responsável pela redução dos salários e pelo aumento do desemprego, o que, como será demonstrado a seguir, não se justifica.

A restrição à imigração impede a proteção aos direitos humanos, uma vez que o imigrante, não sendo cidadão, tem seus direitos limitados. Uma situação alarmante e paradoxal foi deflagrada em 2011 na Europa, quando as nações desenvolvidas exigiram a saída de governantes ditatoriais de países do norte da África, alegando que estes violavam os direitos humanos das populações daqueles países, sendo que essas mesmas populações, buscando refúgio e proteção na Europa, eram barradas em condições igualmente desumanas ao chegar ao continente europeu. A restrição ao fluxo migratório, ao classificar pessoas em status que as diferenciam dos cidadãos nacionais, visa, portanto, eximir os Estados do dever de assegurar os direitos humanos a esses indivíduos.

Em artigo intitulado “People flows in globalization”, Richard Freeman desconstrói os argumentos ditos econômicos e desenvolvimentistas, examina as causas e as consequências da migração e argumenta que o fluxo de pessoas é fundamental para a economia global e que a interação entre imigração, capital e comércio é essencial para se compreender como a globalização afeta a economia. De acordo com as Nações Unidas (INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION, 2009), embora o número de imigrantes tenha mais que dobrado entre 1970 e 2005, passando de 82,5 para cerca de 190 milhões, o número de imigrantes nos Estados Unidos durante a década de 1990 foi praticamente o mesmo que o da década de 1900, mas tanto a população norte-americana quanto a mundial eram significativamente maiores na década de 1990 (FREEMAN, 2006, p. 148).

Um dado simbólico da restrição do movimento de pessoas em época tão globalizada é o fato de que os imigrantes representam apenas 3% da força de trabalho global, enquanto as exportações globais representam 13% do PIB mundial (2004) e o investimento estrangeiro direto corresponde a 20% da formação bruta de capital global (FREEMAN, 2006). Outra constatação bastante significativa é que a globalização não diminuiu a diferença entre o valor da mão de obra entre os diferentes lugares e, deste modo, verifica-se que os salários pagos em países desenvolvidos é de 4 a 12 vezes maior que os salários pagos nos países em desenvolvimento para uma mesma atividade (FREEMAN, 2006). Esses dados explicam, em grande parte, a razão do fluxo migratório estar direcionado dos países em desenvolvimento para os países desenvolvidos, pois ainda que as condições de trabalho nos países desenvolvidos sejam ruins em relação aos padrões locais, o valor recebido pelo imigrante será muito superior àquele que seria obtido em seu país de origem, permitindo-lhe, assim, remeter valores para seus familiares.

O argumento protecionista de que as barreiras são para proteger os empregos e os níveis de salários de seus cidadãos não se justifica absolutamente. Em primeiro lugar, porque imigrantes com baixa qualificação (como majoritariamente são aqueles advindos de países mais pobres) não concorrem com a mão de obra local, mas a complementam; em segundo, porque geralmente o país receptor é intensivo em capital e o país emissor é intensivo em mão de obra; em terceiro, porque os migrantes, em sua ampla maioria, são jovens em idade economicamente ativa; e, finalmente, porque o fluxo de imigrantes incentiva o fluxo de investimentos (FREEMAN, 2006, p. 157).

Portanto, o aumento do fluxo de imigrantes não deprecia os salários dos trabalhadores locais,6 de modo que as possíveis justificativas para barrá-lo são, acima de tudo, políticas e ideológicas, não guardando qualquer relação com questões econômicas ou desenvolvimentistas. Não obstante, se os países desenvolvidos permitissem maior imigração, o PIB mundial aumentaria e a desigualdade de salários entre os países diminuiria. Segundo Dani Rodrik, “If international policy makers were really interested in maximizing worldwide efficiency, […] they would all be busy at work liberalizing immigration restrictions”7 (RODRIK, 2001). Contudo, a liberação do fluxo migratório e, em última instância, a permissão à livre circulação de pessoas através dos territórios diminuiria sobremaneira o poder dos Estados-nações (ZOLBERG, 1994).

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4. Direitos humanos, cidadania e o Estado-nação

A função primordial do Estado-nação é proteger seus cidadãos, o que, aliás, é a origem de sua legitimidade. Assim, em sua origem, o dever do Estado de proteger dizia respeito apenas aos cidadãos reconhecidos como tais, ou seja, dotados de cidadania. A natureza da cidadania, todavia, tem sido questionada, por exemplo, tanto pela erosão do direito à privacidade, quanto pela proliferação de velhos temas que ganham nova atenção, tais como o status de comunidades aborígenes, de expatriados, de refugiados, etc. (SASSEN, 2006). Essa consciência internacional de necessidade de proteção dos direitos básicos de todos os povos, através de algum parâmetro universalmente aceitável, influenciou, em boa medida, a Carta das Nações Unidas, de 1945, na qual se reafirma a “fé nos direitos humanos fundamentais, na igualdade de direito entre homens e mulheres e entre nações grandes e pequenas” (IBHAWOH, 2007).

O compromisso de promover os direitos humanos expressos na Carta de 1945 foi seguido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (UDHR, em inglês). Essas convenções, posteriormente replicadas regionalmente na Europa, nas Américas e na África, constituem, atualmente, a base dos padrões internacionais contemporâneos de direitos humanos. A universalização dos direitos humanos visa assegurar direitos e garantias individuais a qualquer homem, em qualquer território, resguardados pela comunidade internacional. Porém, essa distinção entre homens e cidadãos criou um sério problema para a teoria política internacional: como conciliar a atual diversidade e divisão das comunidades políticas com a crença recém-descoberta da universalidade da natureza humana (LINKLATER, 1981).

O indivíduo, agora detentor de direitos universais,8 independente do Estado-nação em que se encontra,9 passou a ser objeto de preocupação da comunidade internacional, acima do princípio internacional da soberania e da não intervenção, o que pode ocasionar uma possível mudança estrutural do sistema que permitiria uma autodeterminação individual ou coletiva, independente dos Estados (LINKLATER, 1981). Assim sendo, embora sem radicalismos, há uma corrente de teóricos (cosmopolitas) que visualiza o surgimento de uma democratização global, tanto das instituições como da participação política dos indivíduos na arena global como um todo. Deve-se ponderar, contudo, que, enquanto o sistema predominante for o de Estados-nações, a proteção aos direitos dos indivíduos, bem como a cidadania e sua garantia de direitos e deveres, permanecerá dependente, primordialmente, dos Estados (CHANDLER, 2003).

Os cosmopolitas afirmam que a globalização ocasionou uma justaposição de jurisdições, de maneira que, em um mesmo local, o poder soberano pode estar dividido entre as autoridades internacionais, nacionais e locais, como ocorre na União Europeia, e acreditam que está em curso uma reconfiguração do poder político, não mais norteada pelas demarcações tradicionais de interno/externo e territorial/não territorial (HELD, 2004). Deste conceito, decorrem dois outros: a democracia cosmopolita, que trata da possibilidade de novas estruturas de poder representativas, e a cidadania cosmopolita, que é o reconhecimento dos direitos e garantias individuais independentemente da subsunção do indivíduo a algum Estado Nacional.

De acordo como os cosmopolitas, a democracia, enquanto sistema de governo, expandiu-se largamente após o fim da Guerra Fria e a vitória do Ocidente sobre o sistema soviético (ARCHIBUGI, 2004). De fato, como decorrência de movimentos populares, muitos países do Leste Europeu e do sul adotaram constituições democráticas e, apesar de inúmeras contradições, aos poucos governos autônomos têm se expandido e se consolidado. Os eventos ocorridos no Oriente Médio, chamados de Primavera Árabe, reforçaram a tese de Archibugi, pois, ainda que não surjam novas democracias, o processo de revisão e discussão dos sistemas políticos atuais naquela região demonstra-se profundo, complexo e inegável.10

Essa mesma corrente teórica pondera, entretanto, que existe déficit democrático dentro dos Estados-nações, destacando o fato de que uma decisão nacional pode não ser verdadeiramente democrática se ela afetar os direitos de cidadãos que não pertençam àquela comunidade. Lamenta-se, ainda, que outro desenvolvimento igualmente importante, decorrente da vitória dos Estados liberais, não ocorreu: a expansão da democracia enquanto modelo de governança global (ARCHIBUGI, 2004). Neste aspecto, embora haja indícios de mudanças, como a discussão da representatividade dos países no Fundo Monetário Internacional (FMI), o surgimento do G-20 como ator decisivo na seara econômica ou mesmo a reforma do Conselho de Segurança da ONU, cogitada a todo momento, ainda assim não é possível dizer que há qualquer perspectiva de democratização da governança mundial, que espelha graves distorções quanto ao exercício do poder, seja na Organização Mundial do Comércio (OMC), na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no próprio Conselho de Segurança, ou mesmo na representatividade das decisões tomadas pela Assembleia Geral da ONU.11

Danielle Archibugi, contudo, ressalta que cada vez mais os Princípios do Estado de Direito (the rule of law) e da Participação Compartilhada (Shared Participation) são aplicados às relações internacionais, o que consistiria na ideia básica por trás do conceito de Cosmopolitan Democracy. A intenção de Archibugi, portanto, é a de reafirmar os conceitos básicos que norteiam a Cosmopolitan Democracy, sugerindo que pode haver ampliação e aprofundamento da participação de cidadãos e de grupos de pessoas em âmbito global, bem como o enfraquecimento do Estado Nacional enquanto representante legítimo e unitário do interesse das pessoas.

Quanto à cidadania cosmopolita, há um argumento contrário a ser observado, o qual sustenta que o quadro proposto pela regulação cosmopolita, baseado em uma cidadania global de direitos ainda fictícios, não reconhece os direitos democráticos dos cidadãos, nem a expressão coletiva desses direitos na soberania estatal, o que poderia implicar na perda da garantia da proteção de um Estado-nação (CHANDLER, 2003). Por outro lado, o quadro da regulação do sistema democrático moderno seria histórica e logicamente decorrente da presunção formal de autogovernança individual igualitária (CHANDLER, 2003, p. 341).

Embora haja alguma divergência sobre os benefícios resultantes, os direitos universais dos cidadãos globais podem levar a novas formas de gestão da ordem pública internacional e das garantias individuais. Além de centralizar a atenção nos direitos de cidadania limitados territorialmente pelos Estados Nacionais, deve haver a preocupação com o transbordamento da democracia e dos direitos humanos globalmente. O fortalecimento do regime internacional de direitos humanos, nesse sentido, pode levar à transferência de direitos do cidadão para o indivíduo, de modo que a cidadania poderá ser o elemento garantidor de direitos relacionados, então, à dignidade inerente da pessoa humana, e não mais à sua nacionalidade (REIS, 2004). Um passo concreto nessa direção seria a possibilidade de que alguns direitos inerentes aos cidadãos sejam, paulatinamente, estendidos aos imigrantes, como o direito de voto em eleições locais, por exemplo.

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5. Uma nova governança global

O framework observado por Archibugi é, em boa medida, o mesmo que o tratado por Rosenau, ao identificar o processo de fragmegration, o qual consiste no quadro de fragmentação do Estado, cumulado com o de integração de grupos sociais. A fragmentação se verifica quando os grupos e os indivíduos deixam de ter no Estado-nação a expressão legítima de seus interesses, de modo que passam a agir por conta própria em defesa de seus interesses que não são mais atendidos pelos Estados. Isso é o que se verifica, por exemplo, na questão de Belo Monte,12 em que grupos indígenas locais se manifestam contra à opinião e às iniciativas do governo brasileiro quanto ao uso dos recursos da região da Volta Grande do Xingu, no Pará. Tais grupos, por sua vez, identificam-se com outros grupos igualmente isolados em outros Estados, de modo que ambos se unem para obter maior força, num movimento de integração social entre seus pares de diversas regiões ou nações. Seguindo ainda pelo mesmo exemplo, observa-se que esses indígenas brasileiros da região do Xingu se uniram a indígenas da região de Rondônia e também do Peru para, com maior envergadura, manifestarem-se na esfera internacional13 contra os projetos de uso de suas terras pelos seus respectivos governos nacionais. Além disso, buscaram em um órgão internacional, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, o respaldo às demandas não atendidas pelo governo brasileiro (SICILIANO, 2011). Assim, nesse caso, temos a fragmentação dentro do Estado (vertical) e a integração social (horizontal) (ROSENAU, 1997).

As fronteiras se tornaram bastante permeáveis e os novos temas escapam às jurisdições até então estabelecidas. A governança existente local e nacionalmente não atende mais às demandas de um mundo global e não existe uma governança supranacional global legitimada para resolver essas novas questões. Nesse contexto, quatro desafios assumem particular relevância para o processo de construção da governança global (ROSENAU, 1997): i) a velocidade com a qual as questões normativas precisam ser tratadas, uma vez que a revolução nas telecomunicações impõe nova velocidade aos processos de tomada de decisão no âmbito das relações internacionais; ii) a possibilidade de que a tensão inerente ao processo de fragmegration pode tornar os preceitos da civilização ocidental não legítimos enquanto guias de conduta individual ou coletiva, pois fragmegration significa que a sociedade, ao mesmo tempo em que se fragmenta em relação a um velho modelo (estrutura hierárquica estatal), integra-se em relação a um novo (social, reticular e horizontal); iii) algumas normas (valores) de alcance global podem ser identificadas tanto na esfera do Estado, quanto na esfera de uma ordem multipolar; e iv) áreas em que a clivagem pode ser tão profunda a ponto de impedir a evolução de normas amplamente compartilhadas.

No caso de Belo Monte, ou mesmo na questão da Primavera Árabe, são claras as demonstrações da perda de importância relativa dos Estados-nações e do protagonismo crescente dos movimentos sociais, cujos interesses, muitas vezes, transcendem as fronteiras e divergem da posição oficial dos governos nacionais. Nesses dois exemplos, a “comunidade internacional” foi chamada a se manifestar e, de alguma forma, interferir em socorro dos mais frágeis, afrontando, talvez, a soberania dos Estados envolvidos. E qual será a reação da “comunidade internacional”? Quais precedentes serão abertos? Quais valores serão, a partir de casos concretos como esses, estabelecidos ou reforçados?

Tais situações tendem a se repetir cada vez mais e os questionamentos que suscitam apontam para a configuração de um novo paradigma nas relações internacionais.

5.1  Novas estruturas

No início da década de 1980, Robert W. Cox tratou das “forças sociais” como um ente que possivelmente abalaria as estruturas políticas estatais. Previu, então, três cenários possíveis decorrentes dessa força: i) o surgimento de uma nova hegemonia baseada na estrutura global do poder social gerado pela internacionalização da produção; ii) o surgimento de uma estrutura global não hegemônica decorrente do conflito entre os poderes centrais; ou iii) o surgimento de uma contra-hegemonia baseada em uma coalização do Terceiro Mundo contra a dominação dos países centrais. Independentemente do acerto em qualquer dos cenários previstos, há mais de trinta anos as “forças sociais” foram identificadas como motrizes de alteração paradigmática da relação de poder dos Estados-nações (COX, 1981).

No final do século passado, o fenômeno identificado por Rosenau como fragmegration decorre, então, da observância do mesmo objeto que, com alguma variação, Della Porta definiu como “movimentos sociais”, os quais têm como característica serem uma estrutura organizativa segmentada, com grupos que nascem, se mobilizam e declinam continuamente; policéfala; com uma estrutura de liderança plural; e reticular, com grupos e indivíduos conectados por múltiplos vínculos (DELLA PORTA, 2007, p. 125). Essa definição nos permite dizer que movimentos sociais podem ser tanto grupos de trabalhadores sem-terra pleiteando reforma agrária, como grupos indígenas que demandam a inviolabilidade de suas terras, ou mesmo uma grande parcela da população de determinado território que não aceita mais estar submissa ao seu governante.

Essas formas de organização social que ganharam força na década de 1990 foram objeto de recente análise do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,14 que afirmou que os movimentos sociais foram impulsionados não somente pela evidente incapacidade dos Estados de suprir as demandas sociais, mas também, em boa medida, pelo descrédito da sociedade na política exercida pela democracia representativa, ou seja, pelos seus parlamentares eleitos. Cardoso sintetizou seus argumentos afirmando que os movimentos sociais são muito eficientes para impor resistência, mas enfrentam grandes dificuldades para implementar políticas, e citou o exemplo da Primavera Árabe, em que a população conseguiu se organizar para derrubar ditadores do poder, porém não consegue se organizar para constituir um novo governo.

De maneira similar, Della Porta esclarece que as organizações não governamentais que afluíram à Seattle15 eram um exemplo de tudo aquilo que os negociadores do comércio não eram. Eram bem organizadas, tinham construído coalizões incomuns (ambientalistas e sindicalistas, por exemplo, superaram antigas divisões para agir contra a OMC). Tinham uma agenda clara: impedir as negociações (DELLA PORTA, 2007, p. 141). Em que pese essa relativa incapacidade construtora dos movimentos sociais, sua força social e política é notável e todos os indícios apontam para o seu fortalecimento.

O surgimento dos movimentos sociais só foi possível devido à redução do tempo e dos espaços possibilitada pela globalização (CARDOSO, 2011), argumento corroborado por David S. Grewal, o qual afirma que a globalização pode ser definida como a intensificação das relações sociais mundiais que conectam distantes localidades de tal modo que os acontecimentos locais são moldados por eventos que estão acontecendo há muitas milhas de distância e vice-versa (GREWAL, 2008).

A globalização, pode-se dizer, é o nome popularmente atribuído à capacidade recente de as pessoas se inter-relacionarem estando em qualquer lugar do mundo e é, entre outras coisas, o processo ímpar pelo qual as convenções são determinadas (GREWAL, 2008, p. 2). Para Milton Santos,

A globalização não é apenas a existência de um novo sistema de técnicas. Ela é também o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes. Desse modo, os fatores que contribuem para explicar a arquitetura da globalização atual seriam a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada.
(SANTOS, 2007, p. 24).

Aquilo que estamos experimentando agora, com a globalização, é a criação de um grupo internacional que envolve o globo inteiro dentro de parâmetros estabelecidos: uma nova ordem mundial em que o clamor pela conexão entre todos se vale de padrões que são oferecidos para uso universal (GREWAL, 2008, p. 3). E os padrões que possibilitam tamanha coordenação global refletem o Poder de Rede. Este conceito, como concebido por Grewal, pressupõe duas coisas: i) os padrões que permitem a coordenação têm mais valor à medida que um número maior de pessoas os utilizarem; e ii) essa dinâmica pode levar à progressiva eliminação de padrões concorrentes. Pode-se dizer, por exemplo, que a mais-valia globalizada possui um enorme Poder de Rede, assim como o sistema financeiro internacional, o Facebook, ou o sistema métrico de medidas. A Rede é o grupo de pessoas interconectadas, ligadas umas às outras, de modo que sejam capazes de se beneficiar com a cooperação e esse benefício possa assumir várias formas, incluindo o intercâmbio de bens e ideias (GREWAL, 2008).

Desse modo, os movimentos sociais são, em larga escala, transnacionais, vide os movimentos ambientalistas, de direitos humanos e de ajuda humanitária, entre outros. Entretanto, ainda que haja um espaço global de relações sociais, não existe uma governança global soberana que lhe dê ordem, tal como a conhecemos em âmbito nacional, e, por isso, fala-se em globalização da sociabilidade, distinguindo as relações de sociabilidade daquelas de soberania para enfatizar o principal ponto de tensão na globalização contemporânea, que é o fato de tudo estar sendo globalizado, exceto a política (GREWAL, 2008, p. 50). O mesmo autor esclarece que inclusive os teóricos da Democracia Cosmopolita normalmente argumentam que a democracia deve ser fortalecida considerando os espaços nacionais, de modo que haveria apenas uma reprodução do sistema atual em escala maior.

A globalização política a que Grewal se refere é, por exemplo, a organização de ambientalistas internacionais, de seringueiros e de indígenas que conseguiram o apoio do Congresso e do Departamento do Tesouro norte-americano acerca de demandas locais (HOCHSTETLER; KECK, 2007, p. 155). Entretanto, esses movimentos não se apresentam como um processo de desenvolvimento cumulativo de instituições e de organizações que respondam a questões e problemas internos e externos aos países – ao contrário, verifica-se evidente descontinuidade, contingenciamentos e, também, oportunidades repentinas (HOCHSTETLER; KECK, 2007, p. 223).

Os movimentos sociais transnacionais exercem uma função democratizante na globalização no sentido de possibilitar alguma participação direta do indivíduo em questões políticas, pois aumentam a representação em instituições internacionais, provendo-as com ideias e vozes que antes não eram ouvidas (KHAGRAM; RIKER; SIKKINK, 2002, p. 301). As redes e as organizações não governamentais transnacionais, quando analisadas sob os aspectos da representatividade, da democracia interna, da transparência e dos processos deliberativos, são bastante falhas e imperfeitas, pois são, em verdade, instituições informais, assimétricas e que funcionam como antídotos ad hoc para imperfeições representativas domésticas e internacionais (KHAGRAM; RIKER; SIKKINK, 2002). Esse papel específico de corrigir imperfeições representativas, no entanto, é de suma importância e não deve ser subjulgado, pois dele advém a capacidade de elevar a demanda local à esfera de interesse internacional.

Conclui-se, portanto, que os movimentos sociais não apenas utilizam padrões e redes propiciados pela globalização, como também a alimentam, criando novas redes e fomentando novos padrões, de modo a se estabelecer um path dependence que, a princípio, não se contrapõe às estruturas dominantes. Della Porta alerta, entretanto, que pode haver alterações substanciais movidas pelo crescente poder das corporações multinacionais e organizações governativas internacionais, bem como para o risco de enfraquecimento do modelo representativo de democracia, de modo que haveria espaço para a reflexão sobre novas formas de democracia (participativa, direta, deliberativa, etc.). Milton Santos afirma que uma outra globalização é possível, pois a atual seria muito menos um produto das ideias atualmente possíveis e muito mais o resultado de uma ideologia restritiva propositalmente estabelecida.

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6. Conclusão

A globalização permitiu que o mundo seja visto como a nova unidade de referência, seja econômica, política, antropológica ou histórica. As relações financeiras e o comércio não respeitam as fronteiras territoriais dos Estados-nações, as organizações políticas em muitos aspectos transcendem e se impõem sobre os Estados, o homem volta a ser visto como um ser ocupante do planeta e a sua história é também a da humanidade.

O indivíduo e os grupos de indivíduos passaram a se organizar em rede e conseguiram criar movimentos sociais com força política capaz de interferir diretamente nas tomadas de decisão de governos nacionais. No sistema internacional, igualmente, as decisões não podem desconsiderar a repercussão nos movimentos sociais ou a sua influência. Há um crescente distanciamento entre o indivíduo e o Estado que permite que diversos temas (ambientais, culturais, laborais e comerciais, entre outros) sejam tratados internacionalmente sem que haja ingerência estatal. Porém, esse movimento, por mais forte que seja, não demonstrou ser capaz de abalar as estruturas das relações de poder criadas desde os Tratados de Westfália, ao contrário, coexiste com elas em certa harmonia.

As questões da universalização dos direitos humanos e da restrição à ampla migração internacional são as únicas capazes de levar a atual estrutura de poder, hierárquica e estatal, a um processo de profunda reestruturação. Quanto à primeira, esse poder particular consiste no fato de o indivíduo, seja no sistema internacional ou dentro do próprio Estado, passar a ser detentor de direitos independentemente dos Estados. Ademais, considerando que a legitimidade do poder do Estado decorre basicamente da sua capacidade de proteger seus nacionais, o reconhecimento internacional de direitos individuais subjulga o princípio de autodeterminação e, mais grave, em caso de ofensa do Estado aos direitos do indivíduo, legitima a intervenção externa, o que se sobrepõe a soberania do Estado.

A questão migratória representa outro aspecto do mesmo dilema, pois impossibilita, ao impedir a livre mobilidade de pessoas, fixando determinada população em dado território, que haja a universalização de direitos, o que se verifica, por um lado, pelo não reconhecimento dos direitos daquelas pessoas que não são cidadãos nacionais, e por outro, pela não garantia dos direitos dos cidadãos fora de seu território. A cidadania, elo político e jurídico do cidadão ao Estado, é a garantia do Estado da existência de seu poder sobre seus nacionais.

Assim, embora os movimentos sociais, por meio do fortalecimento do poder das redes, estejam alterando as relações de força nas políticas domésticas e internacional, a nova governança global segue coexistindo com a estrutura westfaliana de Estados-nações e, em que pesem as numerosas evoluções, não se avista qualquer reestruturação radical no sistema. Em primeiro lugar, porque a universalização dos direitos humanos ainda é modesta; em segundo, porque a questão migratória não está colocada na agenda dos movimentos sociais.

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Notas

1. Os tratados celebrados nas cidades de Münster e Osnabrück são chamados de Tratados de Westfália e foram os acordos que selaram a paz após a Guerra dos Trinta Anos na Europa (1618-1648). Esses tratados configuram uma nova lógica normativa nas relações internacionais e mesmo internamente em cada país, pois os Estados soberanos ignoram propositadamente a Igreja nas tomadas de decisões. A influência da Santa Sé nos temas políticos europeus é anulada pelos Estados soberanos (Romano, 2008).

2. A principal exceção é a disputa entre israelenses e palestinos, que provavelmente é a única que talvez possa impactar o sistema internacional. Existem, evidentemente, outros episódios bélicos de intolerância registrados no continente africano, no Oriente Médio, no Leste Europeu e no Oeste Asiático, porém esses conflitos envolvem um contingente relativamente pequeno de pessoas, ou de recursos limitados, e são incapazes de influenciar o sistema internacional.

3. A história do Brasil é uma das poucas exceções no mundo ocidental, pois os brasileiros consideram que o país tem mais de 500 anos, ou seja, que sua origem é anterior ao surgimento da nação brasileira. A regra é que os países considerem como marco inicial de sua existência as respectivas unificações ou proclamações de independência, ou seja, o surgimento de uma unidade de identidade nacional exclusiva.

4. A divisão em três momentos (i- era pré-guerra; ii- durante as duas Guerras até a Guerra Fria; e iii- Guerra Fria), proposta por Wimmer e Glick-Schiller, diz respeito a diferentes “momentos” em que se identificam padrões de comportamentos e tendências normativas nas políticas públicas em diversos Estados, de modo que a divisão não comporta uma data específica, pois não há uma fato a ser destacado como divisor de águas. Portanto, mesmo que imprecisas, reproduz-se aqui as datas sugeridas por Wimmer e Glick-Schiller.

5. Em tradução livre: nesses tempos de globalização contemporânea, as leis de migração e sua aplicação são, cada vez mais, o último bastião da soberania.

6. “In fact, studies find the opposite. For the United States, Friedberg and Hunt (1995) report that 10% increase in the fraction of immigrants in the population reduce native wages by at most 1%”. Citado em Freeman (2006, p. 157).

7. Em tradução livre: Se aqueles que tomam decisões políticas em âmbito internacional estivessem realmente preocupados em maximizar a eficiência mundial, …eles todos estariam ocupados em liberar as restrições à imigração.

8. Consolidados principalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

9. As convenções relativas aos refugiados e apátridas reconhecem, pela primeira vez, a existência do indivíduo no cenário internacional (REIS, 2004, p. 151). Em seguida, o princípio da Responsabilidade de Proteger (UNITED NATIONS, 2006) foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em Nova York, 2005 (A/RES/60/161), por mais de 170 Estados e tem sido invocado para permitir a ocupação de Estados violadores dos direitos humanos pela comunidade internacional.

10. A chamada “Primavera Árabe” tem sido objeto de diversos estudos, com diversas interpretações acerca de suas causas e consequências, como podese observar em debate realizado por Salem Nasser, Arlene Clemesha e Gunther Rudzit e coordenado por Willian Waack, cujo vídeo está disponível em: <http://globotv.globo.com/globo-news/globo-newspainel/t/todos-os-videos/v/segundo-turno-da-eleicaono-egito-traz-expectativas-diversas-para-toda-aregiao/1986106/>. Último acesso em: 14 Jan. 2012.

11. “In the UN General Assembly, those member states whose total number of inhabitants represents just 5% of the planet’s entire population have a majority in the Assembly. Would it then be a more democratic system were the weight of each state’s vote proportional to its population? In such a case, six states (China, India, the United States, Indonesia, Brazil and Russia) that represent more than half of the world’s population would have a stable majority.” (ARCHIBUGI, 2004)

12. Usina Hidrelétrica que está sendo construída pelo governo brasileiro no rio Xingu, no Estado do Pará, que enfrenta forte resistência de comunidades indígenas, de grupos de ambientalistas e de parte da comunidade internacional, especialmente de organizações não governamentais ligadas à defesa de minorias e do meio ambiente.

13. Três indígenas da Amazônia protestaram em Londres contra as hidrelétricas que ameaçam destruir as terras e a vida de milhares de indígenas. Ruth Buendia Mestoquiari, uma indígena Ashaninka do Peru, Sheyla Juruna, uma indígena Juruna da região do Xingu, e Almir Suruí, da tribo Suruí, no Brasil, estão pedindo que três projetos controversos de hidrelétricas na Amazônia sejam interrompidos. Os índios protestaram, com os apoiadores da organização Survival International, em frente ao escritório do Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES, que está fornecendo a maior parte do financiamento para as represas (SURVIVAL INTERNATIONAL, 2011).

14. Em reunião celebrada pelo Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), em 23 de novembro de 2011, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso abordou o tema “A crise econômica e a mudança na ordem global: o papel do Brasil” (CARDOSO, 2011).

15. Em 1999, em Seattle, durante a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, diversos grupos da sociedade civil se reuniram para manifestar suas indignações. Havia desde grupos mais formais, como associações ambientais e de defesa dos direitos humanos, como pequenos grupos, de até 20 pessoas cada, e a organização dos protestos ocorria por meio de canais virtuais.

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Referências

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André Luiz Siciliano

André Luiz Siciliano é advogado, formado pela PUC-SP em 2003, e mestrando em relações internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da USP. Em 2006, residiu em Vancouver, no Canadá, onde iniciou seus estudos na área de direito internacional. Atualmente, desenvolve estudos nas áreas de Direitos Humanos e Imigrações.

Email: alsiciliano@usp.br

Original em português.

Recebido em janeiro de 2012. Aprovado em abril de 2012.