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Mulheres ativistas de direitos humanos e empresas

Amanda Romero Medina e Júlia Mello Neiva

Vozes de duas ativistas do Brasil e da Colômbia

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RESUMO

Este artigo relata as opiniões de duas mulheres latino-americanas, representantes regionais do Centro de Informações sobre Empresas e Direitos Humanos (CIEDH), em um contexto de discussão sobre os impactos que as empresas têm nos direitos humanos e nos direitos da natureza. Júlia Neiva, do Brasil, trabalhou sete anos no CIEDH como representante para o Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa e, agora, está de volta à Conectas. Amanda Romero é representante regional do CIEDH para a América do Sul há nove anos, cargo que continua exercendo nesta organização. Com mais perguntas do que respostas, elas tornam evidente que o campo de empresas e direitos humanos está em pleno desenvolvimento e requer mais esforços coletivos para superar os sérios problemas que as comunidades enfrentam.

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1. Introdução

Este artigo relata duas experiências de representantes regionais do Centro de Informações sobre Empresas e Direitos Humanos (CIEDH), mulheres latino-americanas, em um contexto no qual os discursos feministas e as práticas dos movimentos de mulheres têm se apropriado, cada vez mais, da discussão sobre os impactos das empresas nos direitos humanos, nos direitos da natureza e nos direitos das mulheres.

Amanda iniciou seu trabalho no CIEDH em 2011, em jornada de meio período, como representante para a América Latina e o Caribe, cobrindo tópicos relacionados a notícias, relatórios, acontecimentos importantes, avanços e retrocessos no campo das empresas e direitos humanos, cargo que mudou em 2013, quando Júlia Neiva ingressou no CIEDH como representante para o Brasil e países de língua portuguesa de outras partes do mundo. Trabalharam juntas por sete anos, quando Júlia retornou à Conectas Direitos Humanos e Amanda continuou, até hoje, como pesquisadora sênior e representante regional para a América do Sul do CIEDH.

Seus caminhos convergiram no CIEDH a partir de duas trajetórias diferentes: a de Amanda, com mais de quatro décadas como ativista e educadora de direitos humanos na Colômbia e na região da América Latina, e a de Júlia, como advogada e ativista afro-brasileira de direitos humanos, ligada ao projeto de transformação social que muitas pessoas em seu país construíram ao redor de governos de esquerda.

É precisamente a partir deste encontro, e com base em suas experiências mútuas, que as anotações aqui relatadas abordam o significado que têm para a América Latina e o Caribe, práticas de uma ONG como o CIEDH em sua constante relação com pessoas, grupos e ativistas de organizações sociais, povos indígenas, afrodescendentes (e quilombolas), mulheres, direitos humanos e meio ambiente, entre outras organizações da sociedade civil.

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2. Empresas na agenda de direitos humanos

A questão das empresas não parecia estar na agenda das organizações de direitos humanos. Desde meados da década de 1970, o interesse nos impactos e violações de direitos humanos por parte das empresas já tinha se desenvolvido em torno dos Tribunais de Russell,11. Nomeados assim para homenagear a vida do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura (1950). O Tribunal teve várias sessões; na primeira, que tratava de crimes de guerra no Vietnã, ele foi chamado de “Tribunal Internacional de Crimes de Guerra”, “Tribunal Sartre-Russell” ou “Tribunal de Estocolmo”, organizado, entre outros, por Russell, juntamente com Jean-Paul Sartre, Lelio Basso, Ken Coates, Ralph Schoenman e Julio Cortázar. O segundo Tribunal abordou de modo específico os impactos negativos das empresas multinacionais na América Latina. posteriormente chamados de “Tribunais dos Povos”. Na realidade, o Tribunal Russell II tratou dessa questão em três sessões separadas (a primeira, em Roma, de 30 de março a 5 de abril de 1974; a segunda, em Bruxelas, de 11 a 18 de janeiro de 1975; e a terceira, novamente em Roma, de 10 a 17 de janeiro de 1975), recebendo cobertura em diversos meios de comunicação europeus. Sua abordagem baseava-se em um discurso de direitos humanos, a partir da análise da violência política na América Latina, da crítica da ciência política, do direito e das relações internacionais:

Dessa violência, o Tribunal Russell II indagou as formas institucionais comuns aos vários países, a doutrina subjacente a tais formas institucionais, o tipo de Estado a que esta deu lugar, suas origens e suas causas profundas, sua relação com as dinâmicas econômicas e a conjuntura mundial. Contudo, este relevante esforço de investigação e compreensão da realidade não foi exercido no olimpo da academia ou das grandes instituições culturais – mesmo sendo o resultado do empenho conjunto de muitos ilustres acadêmicos e prêmios Nobel de várias disciplinas – mas, recolhendo o grito de dor das vítimas e de todos os que lutavam contra aquela violência; e alimentando-se dela.22. “As Multinacionais na América Latina - Tribunal Russell II,” Ministério de Justiça do Brasil, 2014, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/as-multinacionais-na-al-miolo-final.pdf.

Em outras palavras, eles tratavam das questões relativas aos efeitos das empresas sobre as pessoas e comunidades com uma perspectiva política, relacionando, em particular, a interferência das empresas transnacionais nos países do chamado “Terceiro Mundo”. O relatório do Tribunal Russell II apresentava, por exemplo, as maneiras pelas quais as violações dos “direitos dos homens” se combinavam com a presença de empresas multinacionais, especialmente as norte-americanas,33. Ver a decisão da Corte, dos pontos 5 ao 7, sobre a poluição da natureza e dos direitos dos povos indígenas. Disponível em: “Tribunal Russell II,” Paris at night, 15 de abril de 2008, acesso em 22 de julho de 2020, https://esperanzando-mano.blogspot.com/2008/04/tribunal-russell-ii.html. avaliando assim aspectos que ainda estão sendo discutidos em toda a região: a instalação de empresas cujo interesse em recursos naturais causam degradação ambiental, a exploração de mão de obra, os benefícios fiscais acordados com os governos anfitriões bem como o excessivo impacto negativo em comunidades indígenas e as consequentes violações de direitos. Tudo isso aproveitando o marco de repressão política característica das ditaduras militares e medidas de controle social, assim como o quase permanente estado de sítio (como no caso colombiano), prevalecentes na época.

Foi nesse contexto que Amanda iniciou seu trabalho em direitos humanos, em 1976, ano que coincide com a promulgação da Declaração de Argel, ou Declaração dos Direitos dos Povos, por intelectuais ligados ao Tribunal Permanente dos Povos. É neste mesmo ano que os dois Pactos Internacionais de Direitos Humanos entram em vigência em âmbito global. Esses pactos permitiriam, pela primeira vez, o início de um ativismo sem precedentes, especialmente perante o Comitê de Direitos Humanos, estabelecido para monitorar a conformidade do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. E, no nosso caso latino-americano, isso se combinaria com a possibilidade de acessar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978.44. Somente em 1980, a Colômbia ratificou e aceitou a jurisdição da Comissão e da Corte Interamericana, enquanto vários países assinaram com declarações de reserva. O Brasil ratificou ainda mais tarde que a Colômbia, apenas em 1992. “Convencion Americana sobre Derechos Humanos Suscrita en La Conferencia Especializada Interamericana Sobre Derechos Humanos (B-32),” Organização dos Estados Americanos, (s.d.), acesso em 22 de julho de 2020, http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos_firmas.htm.

No entanto, nas duas últimas décadas do século XX, a ênfase nas violações dos direitos civis e políticos foi mantida. Com a imposição de medidas de austeridade dentro das políticas de privatização, redução do tamanho do Estado e “tratados de livre comércio”, as questões referentes às graves consequências das empresas em nossa região seriam retomadas na década seguinte. Nesse contexto, surgiria o Business & Human Rights Resource Centre (Centro de Informações sobre Empresas e Direitos Humanos – CIEDH, em português), em 2002, que, nas palavras de seu fundador, Chris Avery, seguiria o modelo da Anistia Internacional, onde havia trabalhado. Esse modelo implica que, para manter a independência e poder criticar as ações das empresas no mundo, o CIEDH não receberia recursos de empresas, fundações de empresas ou diretores executivos de empresas.55. Ver em “Nuestro enfoque” acerca de la comprensión de independencia: “Acerca de Nosotros,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos (CIEDH), (s.d), acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/es/acerca-de-nosotros/introducci%C3%B3n.

Contudo, a trajetória e a importância do contexto latino-americano ainda não ocupavam um lugar de destaque no trabalho do CIEDH ou nas formas pelas quais o assunto era abordado nas Nações Unidas. Após o, lamentavelmente, fracassado processo de promoção de um documento dentro do então Subcomitê de Direitos Humanos da ONU (2002-2003), o CIEDH iniciou seu trabalho de incluir no seu site algumas situações que ocorreram na América Latina. Em 2006, graças à incorporação de Mauricio Lazala, da Colômbia, a dimensão da região no site e nas metodologias e trabalhos do CIEDH começaram a ganhar mais relevância.

Assim, durante este período, enquanto a ONU discutia o falso dilema de como conseguir a aprovação pelos Estados de princípios relativos aos impactos negativos das empresas nos direitos humanos, sem gerar sua rejeição imediata ou a das empresas, especialmente, as sediadas no Norte Global, a entrada de Amanda no CIEDH coincidiu com a aprovação, alguns meses depois, em 2011, dos Princípios Orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos e com o primeiro Fórum Latino-Americano e do Caribe organizado pelo governo colombiano, em 2013, com a chegada da Júlia ao CIEDH.

Nossa amizade foi construída e consolidada ao longo dos anos, pela coincidência na defesa de comunidades afrodescendentes, povos indígenas e associações rurais e sindicais afetadas por empresas nos países que atuamos. Desenvolvemos afinidades, oportunidades de apoio mútuo, mas também percebemos que tínhamos que enfrentar desafios muito complexos no trabalho, como mencionaremos a seguir.

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3. O diálogo com as empresas: mais do que desafios cotidianos, dilemas éticos

Um dos primeiros desafios que encontramos no nosso caminho foi a necessidade de interagir com as empresas. Como os quakers ensinaram para Amanda, é necessário falar com o poder de cara com a verdade. Entretanto, muitas vezes isso pode ser arriscado, especialmente quando enfrentamos pessoas de empresas que consideram que as organizações da sociedade civil que as criticam são suas inimigas, e que nós, que trabalhamos no campo dos direitos humanos, temos agendas ocultas e queremos acabar com aquelas zonas de conforto onde as empresas se movem com o consentimento de nossos governos.

De modo cotidiano, recebemos reclamações de vítimas de operações comerciais. De fato, nossos países são, infelizmente, campeões de ataques e assassinatos de defensoras e defensores de direitos humanos.66. Ver, por exemplo, o relatório da Relatoria da ONU sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos: “Global: Relator sobre Personas Defensoras de Derechos Humanos (2014-2020) Publica Compendio de Informes,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, 2020, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/es/global-relator-sobre-personas-defensoras-de-derechos-humanos-2014-2020-publica-compendio-de-informes; e sobre a situação na Colômbia: “Latinoamérica: Análisis sobre Seis de Los Países del Mundo Más Letales para Defensores Ambientales en 2018, Incluyendo Mujeres Colombianas,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, 29 de outubro de 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/es/latinoam%C3%A9rica-an%C3%A1lisis-sobre-seis-de-los-pa%C3%ADses-del-mundo-m%C3%A1s-letales-para-defensores-ambientales-en-2018-incluyendo-mujeres-colombianas. Sobre a situação do Brasil, ver “Deadliest Year on Record for Land & Environmental Defenders: New Global Witness Report Says 207 Activists Killed in 2017,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, https://www.business-humanrights.org/en/deadliest-year-on-record-for-land-environmental-defenders-new-global-witness-report-says-207-activists-killed-in-2017; e “América Latina: Informe Señala que Sigue Siendo La Región Más Riesgosa para Personas Defensoras del Medio Ambiente,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/es/am%C3%A9rica-latina-informe-se%C3%B1ala-que-sigue-siendo-la-regi%C3%B3n-m%C3%A1s-riesgosa-para-personas-defensoras-del-medio-ambiente. O trabalho que parecia simples, até rotineiro, ficou cada vez mais triste, cheio de más notícias, com tragédias anunciadas que poderiam ser evitadas, como as que ocorreram no Brasil com a mineradora de ferro e carvão Vale 77. As tragédias ambientais de responsabilidade da Vale deixaram centenas de vítimas. Sobre Brumadinho: “La Tragedia por El Colapso de Una Presa en Brasil Cumple un Mes y Deja 179 Muertos,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/es/brasil-tragedia-por-ruptura-de-dique-de-relaves-de-vale-deja-decenas-de-muertos-y-cientos-de-desaparecidos#c184308; e sobre Rio Doce, incluindo a BHP, já que a represa pertencia a Samarco, uma joint venture de Vale e BHP: “BHP Billiton & Vale Lawsuit (Re Dam collapse in Brazil, Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, (s.d.), acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/en/bhp-billiton-vale-lawsuit-re-dam-collapse-in-brazil. Após muitos anos, suas ações não cumpriram com as expectativas e os direitos das vítimas, ver “Série: Brumadinho, Um Ano Depois da Maior Tragédia Socioambiental do País,” Conectas Direitos Humanos, 25 de janeiro de 2020, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.conectas.org/noticias/serie-brumadinho-um-ano-depois-da-maior-tragedia-socioambiental-do-pais; e “A Situação dos Atingidos, 4 Anos Depois da Tragédia do Rio Doce,” Conectas Direitos Humanos, 5 de novembro de 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.conectas.org/noticias/4-anos-de-mariana. Por isso, o caso foi levado a um tribunal na Inglaterra: “Reino Unido: Tribunal Julgará Processo Contra a Mineradora BHP por Colapso de Barragem em Mariana,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, 16 de julho de 2020, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/pt/reino-unido-tribunal-julgar%C3%A1-processo-contra-a-mineradora-bhp-por-colapso-de-barragem-em-mariana. e que custaram centenas de vidas, causaram danos aos arredores de dezenas de cidades ribeirinhas e o mal-estar da ausência ou atraso na aplicação da justiça contra os responsáveis. Antes disso, as comunidades procuravam respostas que não tínhamos ou não temos a partir do trabalho do CIEDH. O que pode ser feito, além de chamar a atenção internacional para os diversos fatos que conhecemos todos os dias em nosso trabalho? Como podemos impedir que o horror de perder tudo, devido à irresponsabilidade do avanço de grandes empreendimentos empresariais, aconteça novamente, inclusive com a cumplicidade dos Estados? Seria possível mudar o modus operandi das empresas no capitalismo ou ele faz parte de sua essência? Como reagir ao modelo de extrativismo predatório? Trata-se de uma nova forma de colonialidade que, de maneira não tão disfarçada, continua a usar o mecanismo do racismo para promover a opressão e a desigualdade?

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4. A crítica das empresas ao nosso trabalho

Diante dos discursos do setor privado como ator de progresso, de eficiência e de oferta de empregos de qualidade para que as pessoas tenham mais renda, enfrentamos um dilema ético, que atinge os próprios fundamentos do capitalismo. Não seria, por acaso, o próprio modelo que gera suas consequências? Quando as empresas latino-americanas começaram a vivenciar a perda de seus lucros, devido à crise mundial do petróleo e das fontes de energia de combustíveis fósseis, em geral, a queda de seus ganhos foi imediatamente compensada por aquilo que as empresas haviam anunciado como sua maior contribuição: centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras demitidos, abandonados à sua própria sorte, doentes e sem a possibilidade de obter um salário digno.

Sendo assim, como dialogar com as empresas quando suas premissas se contradizem a todo momento? Como podemos fazê-las notarem que os direitos humanos não são algo que elas podem ou não cumprir, mas um imperativo moral e legal? Há muita frustração em nosso trabalho diário. As coisas precisam mudar. É preciso que, mais que declarações de boas intenções, princípios baseados em discrição voluntária e, até mesmo, belos relatórios impressos em documentos coloridos para impedir a destruição do meio ambiente (especialmente em nossos países, Brasil e Colômbia, que são as duas nações de maior biodiversidade no planeta) possam ser feitas propostas sobre a impunidade, a cumplicidade, a responsabilidade. O que teremos no final? Que vulcão entrará em erupção em nossa região por causa deste desastre? Todos os dias somos confrontados com essas e diversas outras perguntas sem resposta.

Enquanto isso, apesar das dificuldades, mantemos, como os sindicatos, nossa abertura para conversar com as empresas, para tentar influenciar em uma mudança de seus comportamentos na prática cotidiana. Porém, as empresas são estruturas complexas, dependentes de várias camadas de hierarquias que geralmente não se comunicam bem entre si, com matrizes mais abertas ao diálogo em comparação com as filiais em nossa região, uma vez que aqui as posições de chefia estão nas mãos de quem detém poder político e econômico, muitas vezes, se movendo de lá para cá, entre postos públicos e do setor privado. Às vezes, encontramos mulheres jovens e profissionais que têm clareza sobre as obrigações empresariais com os direitos humanos, mas elas mesmas enfrentam decisões que vêm de um nível mais alto na hierarquia empresarial. Portanto, uma boa lição aprendida é que as mudanças devem vir dos níveis gerenciais e, mais ainda, dos investidores88. Ver Maurício Angelo, “Investidores que Controlam R$ 76 Trilhões Cobram a Vale e Outras Mineradoras a Garantir a Segurança de Barragens.” Observatório da Mineração, 7 de maio de 2020, acesso em 22 de julho de 2020,, https://observatoriodamineracao.com.br/investidores-que-controlam-r-76-trilhoes-cobram-a-vale-e-outras-mineradoras-a-garantir-a-seguranca-de-barragens/; e Isis Almeida e Sabrina Valle, “Church of England Vende Ações da Vale por ‘Questão Ética’.” UOL, 24 de setembro de 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/09/24/church-of-england-vende-acoes-da-vale-por-questao-etica.htm. (reconhecendo que eles devem ter responsabilidade legal e moral pelos efeitos, violações e crimes envolvidos em seus investimentos, mas como responsabilizá-los?), como demonstrou a experiência brasileira no caso do Rio Doce,99. Ver “Brasil: Atingidos Vão a Londres Buscar Justiça Três Anos Após o Desastre no Rio Doce,” Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, (s.d), acesso em 22 de julho de 2020, https://www.business-humanrights.org/pt/brasil-atingidos-v%C3%A3o-a-londres-buscar-justi%C3%A7a-tr%C3%AAs-anos-ap%C3%B3s-o-desastre-no-rio-doce. de Brumadinho1010. Ver “Vítimas de Mariana e Brumadinho Denunciam Violações a Investidores,” Conectas Direitos Humanos, 4 de dezembro de 2019, acesso em 22 de julho de 2020, https://www.conectas.org/noticias/na-inglaterra-vitimas-de-mariana-e-brumadinho-denunciam-violacoes-a-investidores-internacionais. e também na questão da proteção da Amazônia.1111. Ver Fábio Pupo, “Pressão de Investidores Contra Desmatamento Gera Alerta na Equipe Econômica.” Folha de S. Paulo, 23 de junho de 2020, acesso em 22 de julho de 2020, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/investidores-pressionam-brasil-para-proteger-amazonia-e-geram-alerta-na-equipe-economica.shtml. Demo-nos conta, muitas vezes, que essas pessoas parecem ter boas intenções (pelo menos publicamente), parecem acreditar que suas empresas vão mudar por dentro, mas sabemos que isso, na verdade, não é possível. E nos perguntamos se elas são muito ingênuas ou conformadas. Acreditamos que, muitas vezes, as áreas que tratam com os temas de direitos humanos, usando a nomenclatura da área de sustentabilidade (como uma maneira de evitar falar sobre direitos e deveres com os direitos humanos, ou pela sustentabilidade ter um vocabulário mais digerível), existem principalmente para manter as aparências de se importarem com suas obrigações sobre esses assuntos, mas que, na realidade, não o fazem de verdade, funcionando, muitas vezes, como uma captura corporativa, adotando a linguagem dos direitos humanos mas sem efetivamente mudarem suas ações.

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5. As críticas das organizações de vítimas e ONGs ao nosso trabalho

No entanto, além de constatar, por meio de notícias, depoimentos, estudos de especialistas, decisões de órgãos internacionais, de instituições de direitos humanos e sentenças judiciais que é necessário transformar as condições que geram a assimetria de poder entre as empresas e as comunidades; as pessoas e as organizações que são vítimas ficam incomodadas porque esperam mais de nós e nem sempre entendem o motivo de dialogar com as empresas que causam seus males. Obviamente, muitas pessoas e comunidades convivem com as empresas, pois elas estão localizadas em seus territórios. Lá, elas veem desfilar de profissionais de psicologia, antropologia, assistência social, a engenheiros, arquitetos, funcionários que representam o Estado, mas que, às vezes, parecem representar mais as empresas.

Diante disso, tentamos conectar as pessoas com organizações, escritórios de advocacia, agências governamentais, instituições nacionais e redes internacionais de direitos humanos que possam ajudá-las – na medida em que o CIEDH não faz defesa legal, nem advocacy direto com os Estados, limitando-se à tarefa, não menos importante, de documentar casos – a entrar em contato com empresas e a dar visibilidade internacional às situações enfrentadas pelas comunidades, sindicatos e indivíduos. Na Conectas, foi possível representar também grupos de pessoas afetadas em processos perante o Supremo Tribunal Federal, no sistema internacional de proteção de direitos humanos ou em mecanismos de denúncia, como o Ponto de Contato Nacional da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essas estratégias são complementares.

Por outro lado, também foi difícil aceitar as críticas de organizações não governamentais com relação ao nosso trabalho. Ninguém espera que as críticas venham do seu próprio grupo, mas isto é uma realidade. Para muitas organizações que prestam defesa jurídica, por exemplo, não é válido, segundo nenhum ponto de vista, dialogar com as empresas sobre as denúncias que são apresentadas contra elas, pois para isso existem os tribunais. É lá onde estão as ferramentas legais apropriadas para demonstrar o dano e exigir reparação, e isso não em uma troca epistolar. Elas têm razão, é claro, e essa posição é mais do que legítima. No entanto, nas ações para mitigar, prevenir e buscar reparações, o tipo de diálogo que se busca obter das empresas pode ser muito útil para conscientizar essas instituições em seu âmago sobre a gravidade da ocorrência de ações que violem os direitos humanos. Assim, muitos nos acusaram de estarmos a favor das empresas, inclusive em público. Mas sabemos que isso não é verdade, que nossa opção é a favor das vítimas, das comunidades afetadas, a partir de nossa convicção como defensoras de direitos humanos. E a decisão do CIEDH de publicar as respostas das empresas sem edição contribui de várias maneiras para manter um certo espaço para a sociedade civil, lembrando ao setor privado que as alegações das pessoas afetadas são e continuarão a existir, porque a realidade está mudando e diversos efeitos que não foram vislumbrados no início de um projeto econômico surgem ao longo dos anos, às vezes, com consequências desastrosas. Também se trata de uma oportunidade para expor internacionalmente as violações que ocorreram nos territórios, em um website que seja relevante para as vítimas e para as pessoas afetadas, e que seja respeitado pelas empresas, governos, organizações internacionais, além de, quem sabe, poder contribuir para a reparação e justiça das vítimas e responsabilização das empresas.

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6. As potencialidades do trabalho na área de empresas e direitos humanos

Dentro da discussão sobre marcos regulatórios e a necessidade de ir além da economia e do direito, nós acreditamos que, na luta para restituir os direitos afetados por terceiros, como as empresas, as perspectivas “indisciplinadas” são válidas, ou seja, aquelas que, independentemente dos estreitos marcos de uma determinada disciplina, empregam perspectivas, métodos e contribuições de vários campos do conhecimento. Desta forma, entendemos as importantes contribuições das ciências sociais e seu diálogo – nem sempre fácil – com as ciências jurídicas.

Muitas comunidades, por exemplo, beneficiaram-se de estudos acadêmicos de antropologia que, combinados com a história, coletam, por meio da etnografia, memórias de experiências locais, interpretam com a agronomia e agroecologia, em estreita relação com a geografia e a geologia, a perda de acesso à água ou às terras ancestrais dos camponeses, ou dos povos indígenas e afrodescendentes rurais. Elas também se beneficiaram das perspectivas dos feminismos latino-americanos que, por meio de estratégias e metodologias associativas, conseguem organizar as mulheres e dar a elas espaço para que suas vozes sejam levadas em consideração na análise dos impactos empresariais. Sem deixar de reconhecer que esses espaços reproduzem as assimetrias de poder e o racismo, estruturantes de nossas sociedades. E, por fim, beneficiaram-se dos diálogos epistêmicos contemporâneos em nossa região, que formulam críticas aos modelos sindicais para recuperar outros possíveis cenários de luta, nos quais se assumem como princípio a não discriminação por qualquer motivo (étnica/racial, orientação sexual, deficiência ou gênero) e que propõem uma revisão das abordagens economicistas que continuam com as concepções de um marxismo eurocêntrico, que não corresponde às maneiras pelas quais a resistência ao capital se concebe em nosso contexto.

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7. Conclusão

Nosso trabalho nos convoca a aprender com as novas narrativas, necessárias a partir de discursos contra-hegemônicos para alcançar a sobrevivência dos setores mais vulneráveis perante o modelo empresarial vigente. As contribuições de nossa experiência consideram central a tarefa de vincular as lutas dos movimentos de direitos humanos com os movimentos ambientais, sindicais e sociais, principalmente com base na lógica do questionamento (como Hall fez na época, em relação à identidade).1212. Stuart Hall, “Etnicidad: Identidad y Diferencia,” in Sin Garantías. Trayectorias y Problemáticas en Estudios Culturales, 2ª edição, eds. Eduardo Restrepo, Catherine Walsh e Víctor Vich (Popayán: Universidad del Cauca, Envión, 2014). Quem precisa do extrativismo? Quem precisa da energia (inclusive da energia de tipo “renovável”), tendo como padrão analítico as acentuadas transformações na cultura, as tradicionais formas de subsistência, as geografias e a maneira como as pessoas se relacionam com a natureza que, em meio à pandemia, nos trouxeram muito mais reflexão sobre o presente e o futuro do nosso planeta?

Por fim, independentemente da instituição a partir da qual empreguemos nosso ativismo, acreditamos que é necessário repensar o papel do trabalho sobre empresas e direitos humanos, ou melhor, dos direitos humanos e empresas. Em primeiro lugar, os direitos humanos como corpo teórico seguem sendo um discurso da modernidade que se transformou graças às lutas particulares do século passado, incluindo a das mulheres, do antirracismo e do anticolonialismo, e que foi adaptado às necessidades de nossos povos. Contudo, precisamente devido à sua genealogia, carece de mecanismos explícitos de sanção, em âmbito nacional e internacional, quando se trata de violações de direitos fundamentais por parte de empresas ou violações de direitos humanos cometidas por indivíduos de empresas em associação com os militares, com a polícia ou com funcionários públicos do Estado. Como mulheres ativistas de direitos humanos e como acadêmicas, consideramos que essa articulação ambivalente entre empresas e direitos humanos contém muitas contradições devido às “promessas não cumpridas da modernidade”, como diz Santos,1313. Boaventura de Sousa Santos, “La Transición Posmoderna, Derecho y Política,” Doxa no. 6 (1989): 225, acesso em 22 de julho de 2020, http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Transicion_Postmoderna_Doxa6.PDF. já que não somos iguais, nem fraternos, nem livres, como tampouco o “livre mercado” é livre. O interesse do capital em aumentar os lucros a todo custo e em manter seus privilégios colide com as necessidades e a escassez de milhões de pessoas que este modelo está criando.

Portanto, ter um instrumento vinculativo, como um tratado da ONU, seria um grande passo, mas retomando o início da discussão sobre os tribunais de opinião, como as sessões do Tribunal de Russell, ainda haveria muito a ser desenvolvido no campo do direito internacional privado para fazer as empresas respeitarem os direitos humanos. O caminho a seguir propõe uma disputa epistêmica sobre a crise civilizatória sobre a qual muitos especialistas latino-americanos dizem, na qual o capitalismo, até agora – embora cambaleante –, continua devastando comunidades inteiras sem que exista vontade política estatal para impedi-lo. E, talvez, um esforço pequeno, mas sustentado, nesta disputa seja a ação decidida de nomear, expor, desafiar e confrontar as empresas a partir dos meios que a própria sociedade civil constrói para suas resistências.

Amanda Romero Medina - Colômbia

Amanda Romero Medina é doutora em educação pela Universidade Pedagógica Nacional da Colômbia (2012), trabalha em Bogotá como professora titular do mestrado em Direitos Humanos, Gestão de Transição e Pós-Conflito na Escola Superior de Administração Pública (ESAP) e como pesquisadora sênior e representante regional para a América do Sul do Centro de Informações sobre Empresas e Direitos Humanos (CIEDH).

Recebido em julho de 2020.

Original em espanhol.
Traduzido por Fernando Sciré.

Júlia Mello Neiva - Brasil

Júlia Mello Neiva é doutoranda no Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, em Nova Iorque (LLM, com ênfase em direitos humanos), especialista em direitos humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e coordenadora do Programa de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas Direitos Humanos em São Paulo. Júlia trabalhou por diversos anos como representante e pesquisadora sênior do Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos (CIEDH), além de outras ONGs e na academia.

Recebido em julho de 2020.

Original em espanhol.
Traduzido por Fernando Sciré.