Retomando o Espaço Civil

Maina Kiai: “Precisamos retornar ao essencial”

Entrevista com Maina Kiai

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Por Oliver Hudson

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Maina Kiai construiu sua carreira como advogado e ativista de direitos humanos em seu país natal, o Quênia, de onde falou com a Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos sobre a repressão global ao espaço civil. A entrevista ocorreu pouco depois da realização de novas eleições presidenciais no Quênia em outubro de 2017. Kiai tem trabalhado incansavelmente para garantir que a delicada situação do país, incluindo os desafios que a sociedade civil queniana tem enfrentado durante o período, receba a devida atenção internacional.

Há poucas pessoas – se é que existe alguma – mais qualificadas para falar sobre como este fenômeno global tomou forma. Antes de qualquer coisa, Kiai é um ativista e passou os últimos 20 anos defendendo os direitos humanos no Quênia, fundando a Comissão Extra-Oficial de Direitos Humanos do Quênia e atuando em seguida como Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia (2003-2008).

Ele, então, passou a ocupar diversos cargos internacionais em organizações como o Grupo Internacional de Direito dos Direitos Humanos, Anistia Internacional e Conselho Internacional de Política de Direitos Humanos antes de atuar como Relator Especial das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação entre 2011 e 2017. Como Relator Especial, ele se empenhou em facilitar o acesso dos ativistas à ONU, inclusive através do seu site freeassembly.net.

Sua experiência lhe deu uma visão única sobre o fenômeno do fechamento do espaço civil, tanto da perspectiva local como global. Aqui, ele fala sobre as profundas causas por trás do fenômeno, incluindo o papel do setor privado, as estratégias que os atores estão usando para combater as forças estatais e não estatais e como, ao retornarmos ao que é essencial, podemos garantir a sobrevivência da sociedade civil.

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Conectas Direitos Humanos • A partir da sua observação durante sua atuação como Relator Especial, quais teriam sido alguns dos principais impulsores que alimentaram esta repressão global? Você assistiu a alguma fertilização cruzada de ideias, coordenação e conluio entre países ou atores que pudessem estar encolhendo o espaço civil?

Maina Kiai • Em primeiro lugar, prefiro o termo “fechamento” do espaço civil, em oposição a “encolhimento”, porque “fechamento” é um ato consciente. No mandato, usamos “fechamento de espaços civis”.

O principal motor, em primeiro lugar, é o fato de que as lideranças não gostam de dissidências. Os Estados e as autoridades não querem enfrentar discordâncias. Quando os Estados não podem responder a questões, relatórios, ações de advocacy e campanhas promovidas pela sociedade civil, eles acreditam que a melhor resposta seja o fechamento ou a redução do impacto da sociedade civil.

Em segundo lugar, nos últimos 40 anos, a sociedade civil se fortaleceu muito e tornou-se um local para a ação, para que as pessoas se envolvam e se organizem contra os piores excessos do Estado. Anteriormente, esses ataques concentravam-se em indivíduos ou na oposição política. Mas agora muitas autoridades políticas perceberam que a sociedade civil é a grande organizadora. Essa repressão é uma reação ao sucesso da sociedade civil como excelente organizadora, criando movimentos capazes de atravessar diferentes setores.

Um terceiro condutor é o fato de que nos últimos 10-15 anos − desde o 11 de Setembro − acontecimentos que anteriormente eram inenarráveis, acontecimentos vergonhosos, que se costumava esconder, foram revelados e se normalizaram, como a tortura nos EUA, por exemplo. Foi quando outros países começaram a pensar: “Tudo bem, então, se puderam fazer isso, podemos fazer outras coisas”. O enfraquecimento dos EUA e do Ocidente como faróis iluminando os valores democráticos resultou em um maior fechamento do espaço civil.

Existe fertilização cruzada? Sim, sem dúvida. Assistimos aos governos aprendendo uns com os outros, “se eles podem se safar disso, então também podemos”. O exemplo mais significativo disso são as restrições ao financiamento estrangeiro impostas pelos Estados como ferramenta para o fechamento do espaço civil. Esse movimento teve início na Etiópia, chegou à Rússia e agora está presente em muitas partes do mundo, incluindo Hungria, Polônia, Israel e está em vias de aterrissar no Reino Unido, nos EUA e na Austrália. O que os Estados não entendem é que, com ou sem financiamento estrangeiro, os verdadeiros ativistas, as pessoas que de fato acreditam em valores democráticos, sempre encontrarão uma maneira de trabalhar.

Existe coordenação? Eu acho que isso é um pouco mais difícil. Nos antigos países soviéticos é possível encontrar coordenação − nos antigos espaços soviéticos, o Quirguistão literalmente copiou as leis russas, mas foram derrotados, e o Camboja parece estar copiando as leis chinesas para restringir o espaço civil. Na África, os vizinhos da Etiópia − sendo o Quênia e o Sudão do Sul os melhores exemplos disso − estão tentando fazer o mesmo que a Etiópia, porque a Etiópia acabou com esse movimento. Cerca de metade do orçamento da Etiópia é proveniente de doadores estrangeiros − mas o que quer que o governo da Etiópia faça para os direitos humanos, para o espaço civil, para os valores democráticos, ele consegue se safar, mas ainda assim os doadores comparecem. O investimento estrangeiro também chega ao país em níveis muito elevados. Por isso, os países estão começando a aprender que, contanto que você pareça estar preocupado com o investimento, desde que você possa desempenhar um papel na guerra global contra o terrorismo, você pode sair impune pelo fechamento do espaço civil.

Conectas • Você mencionou brevemente os EUA e o Ocidente, mas de que maneira a discussão sobre o Norte e o Sul Globais pode ser relevante em relação à questão da repressão à sociedade civil?

M. K. • Eu acredito ser extremamente relevante. O que acontece no Norte Global certamente afeta os países do Sul neste debate. O Norte Global agora está tão introspectivo; a política externa “America First” do Trump é apenas um exemplo disso. O Sul vê que o Norte Global já não tem qualquer compromisso com os valores que eles defendem − e, em alguns casos, eles nem defendem mais esses valores. Os países do Norte não querem refugiados. Os países do Norte estão em aliança com as empresas para extrair o máximo possível, da maneira mais barata, sem proteção para os trabalhadores, em benefício de algumas elites, mesmo dentro de seus próprios países. O Sul − incluindo certos países do Norte, como Polônia, Hungria e outros − estão vendo que esses países são apenas hipócritas, cujos apelos aos direitos humanos são mais retóricos do que reais. Porque esses países querem legitimar a tortura conforme os EUA fizeram; eles atacam duramente os protestos pacíficos, além de usar força excessiva; querem espionar a todos e todas em todos os lugares, como no Reino Unido e nos EUA.

Conectas • Certos movimentos, por exemplo, o movimento LGBTI, argumentariam que, para as suas bases, o espaço civil nunca foi totalmente aberto. Por que, então, esse assunto tem atraído tanta atenção nos últimos anos?

M. K. • Porque a questão do fechamento do espaço civil se espalhou de maneira ampla e muito rapidamente. O número de pessoas afetadas, interessadas e que estão preocupadas com essa tendência aumentou. Não é mais um tópico isolado. Não é “apenas” sobre a comunidade LGBTI. Já não é “apenas” sobre sindicatos ou grupos ambientais, casos em que o argumento do movimento LGBTI também poderia ser utilizado. Essa questão é agora transversal.

Espero que a comunidade LGBTI não veja este interesse recente como capaz de deslegitimar a sua causa. Não há dúvidas de que ele a legitima e demonstra que estes movimentos estavam certos ao levantar essa questão e a ela se oporem, há muito tempo. O movimento LGBTI é um dos movimentos mais bem-sucedidos dos últimos 15 anos. Embora ainda haja restrições e limitações na comunidade LGBTI, mesmo as regiões mais conservadoras agora falam sobre questões LGBTI. Vemos hoje em dia o Uruguai, a Argentina e o Chile fazendo pressão em torno dos direitos LGBTI em nível internacional − algo que era absolutamente impossível prever na década de 1990. Hoje, pelo menos 60 por cento das populações no Norte Global apoiam o casamento gay − algo que era impensável há apenas cinco anos. A sociedade civil mais ampla precisa aprender com o movimento LGBTI a mudar a narrativa de maneira bem-sucedida. Devemos comemorar e aprender com esses sucessos.

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Conectas • O setor privado está cada vez mais envolvido em repressões contra ativistas. Quais os desafios específicos que isso representa para os ativistas quando resistem a essa repressão corporativa (em oposição à resistência às repressões estatais) e como você vê o papel do setor privado ascendendo sobre a questão do fechamento do espaço civil?

M. K. • Uma das questões mais importantes para nós nos próximos cinco, dez e quinze anos é lidar com o setor privado e seus abusos.

O vasto número de defensores ambientais que desapareceram ou foram assassinados nos últimos tempos mostra a péssima situação em que vivemos. Tanto que o jornal Guardian dedicou uma seção especial a essa questão.11. “The Defenders - 185 Environmental Defenders Have Been Killed So Far in 2017,” The Guardian, 15 de dezembro de 2017, acesso em 18 de dezembro de 2017, https://www.theguardian.com/environment/ng-interactive/2017/jul/13/the-defenders-tracker. A maioria desses crimes não são resolvidos, provavelmente porque atores privados estão atuando em conluio com o Estado.

Depois, há toda uma motivação por trás do conluio Estado-empresariado. Às vezes, trata-se de corrupção pura e suborno, às vezes é o Estado promovendo a economia a qualquer custo e às vezes é um determinado setor que domina políticos através de corrupção “mais suave” (doações de campanha). E mesmo em lugares onde é mais difícil enxergar a corrupção, você ainda vai enfrentar o aparelho do Estado (polícia, talvez o exército, o sistema legal mobilizado em favor deles etc.) defendendo interesses comerciais.

O desafio é que, a partir do paradigma de direitos humanos, o setor privado não possui o mesmo grau de responsabilidade que o Estado em termos de proteção para os direitos humanos. No entanto, o que se vê cada vez mais é que o setor estatal e privado são uma coisa só. Pode-se argumentar que a ascensão de Donald Trump ao poder nos EUA simboliza o casamento entre o setor privado e o Estado.

É por isso que sou muito favorável a um tratado vinculante em nível internacional que ligará o setor corporativo à observância dos direitos − porque esse é o setor mais poderoso do mundo. Temos que encontrar uma maneira de gerenciar e controlar as grandes empresas − e uma maneira de fazer isso é através de um tratado internacional vinculante.

Há também que haver um trabalho que destaque o papel negativo do setor privado na área dos direitos humanos. Isso é muito difícil porque todos os países do mundo abriram suas portas para o setor privado. Eu escrevi um relatório em que centrei meu olhar em ambientes habilitadores para empresas versus sociedade civil, e as diferenças são brutais.22. “Comparing States’ Treatment Of Businesses And Associations Worldwide,” Free Assembly, outubro de 2015, acesso em 18 de dezembro de 2017, http://freeassembly.net/reports/sectoral-equity/. O Estado está aberto a isso e é quase como se desejasse que o setor privado o comandasse. Então, estamos em uma situação difícil em que o trabalho a ser feito – e ele precisa ser feito de baixo para cima e de cima para baixo − deve ser uma avaliação crítica do setor privado.

Embora existam algumas empresas que levam suas responsabilidades a sério, a grande maioria é impulsionada pela motivação de lucro − o que eu chamo de “fundamentalismo de mercado”. Toda a ilusão do fundamentalismo de mercado está tornando as coisas tão difíceis que de fato precisamos de mudança.33. “Report of the Special Rapporteur on the Rights to Freedom of Peaceful Assembly and of Association,” Free Assembly, A/HRC/32/36, 2016, acesso em 18 de dezembro de 2017, http://freeassembly.net/wp-content/uploads/2016/05/A.HRC_.32.36_E.pdf. E a mudança não acontecerá a partir de discussões educadas entre o povo e o setor privado. O mesmo nível de pressão imposto aos Estados para proteger os direitos e a dignidade humana deve ser colocado sobre o setor privado. Isso inclui machucá-los onde dói mais − no bolso; talvez então começaremos a ver as mudanças.

Conectas • A complexidade de fatores e atores que conduzem ou permitem a repressão (incluindo o crime organizado, os fundamentalistas religiosos, o modelo neoliberal de mercado etc.) expôs as deficiências de nossas estratégias estabelecidas no clima atual. O que precisamos fazer para entender o poder e usá-lo para obter estratégias mais eficazes?

M. K. • Esses novos atores não estatais são poderosos – essa é realmente uma questão que nos preocupa a todos, se quisermos resolver algumas das deficiências e fraquezas da ordem estabelecida, como expus no meu relatório à 32ª sessão do Conselho de Direitos Humanos.44. Ibid.

Precisamos lidar com esses elementos de poder considerando o que de fato são, ao invés de os tratarmos como aliados em potencial. Parte das fraquezas do paradigma envolvendo as corporações e os direitos humanos é que ele trata as corporações como aliadas em potencial.

E a questão da desigualdade deve ser abordada. Precisamos examinar a questão dos direitos dos trabalhadores, salários justos, boas condições e depois trabalhar com sindicatos e trabalhadores − e entender como podemos nos organizar contra esse poder. Temos de nos perguntar “como podemos aproveitar o poder dos vulneráveis para que eles possam combater e enfrentar esse poder?”. A menos que se juntem com todas as pessoas que sofrem por conta do crime organizado, sobreviventes de cultos religiosos fundamentalistas, sobreviventes do fundamentalismo de mercado, não seremos capazes de realizar mudanças sérias.

Conectas • Quais as estratégias mais eficazes, segundo sua experiência, utilizadas por ativistas em resposta ao fechamento do espaço civil?

M. K. • Eu sou um grande fã da liberdade de associação e do papel dos protestos e das manifestações como uma via de progresso. Isso é o que há de mais eficaz. Por exemplo, no Quênia, com as tentativas de se restringir o espaço civil legalmente, uma coalizão emergiu envolvendo todos os tipos de diferentes organizações da sociedade civil para formar uma oposição. Resumidamente, o Estado queria promulgar leis que essencialmente “matariam de fome” OSCs essenciais, limitando o financiamento estrangeiro e também criando um órgão estadual que determinaria quais OSCs poderiam trabalhar onde e com quais recursos. Mas porque o projeto de lei era muito amplo, as ONGs de direitos humanos que eram o alvo dessa ação fizeram com que as OSCs de desenvolvimento assumissem a liderança e mostrassem o tamanho do prejuízo a ser causado pela lei ao trabalho humanitário e de desenvolvimento.

Eu também sou um grande fã de alianças, coalizões e mobilizações que se estendem para fora de nossas zonas de conforto. Os sul-coreanos são realmente bons nisso, reunindo sindicatos, movimentos estudantis, ONGs, professores e outros setores para trabalhar em conjunto por objetivos comuns. A Malásia também está sendo bem-sucedida nesse trabalho, ligando estudantes, ONGs, advogados, políticos da oposição e alguns grupos religiosos para lutar por reformas eleitorais. Os silos que temos em nosso trabalho estão errados e isso nos enfraquece. Precisamos avançar rapidamente, deixando de encarar os direitos humanos como projetos que competem entre si por financiamento para enxergá-los de forma mais holística como uma luta. Precisamos começar a cooperar de maneira mais eficaz.

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Conectas • Em nível internacional, qual a forma de uso mais estratégico do sistema ONU da qual um ativista pode se beneficiar na defesa do espaço civil?

M. K. • Você precisa ser minimamente realista sobre as possibilidades dentro do sistema ONU. Esta não pode ser sua principal estratégia. A ONU trabalha puramente em nível moral para pressionar, para atuar como um amplificador do que está acontecendo nas bases. E essa é a parte mais importante do sistema ONU.

Encontrar procedimentos especiais [também conhecidos como Relatores Especiais, Representantes Especiais, Grupos de Trabalho, Peritos Independentes] que podem ajudar é crucial. Eles podem atuar como um megafone sobre o assunto. Às vezes, as missões de seus países podem ter um impacto, mas acho que precisamos ser realistas e ter sempre em mente que as lutas acontecem primeiramente em nível nacional e só então pensar em como fazer uso do sistema ONU. Eu acredito que minha missão na Geórgia, por exemplo, contribuiu para a reversão de uma lei que teria restringido as atividades das OSCs. Eventualmente, o trabalho das OSCs contribuiu para a primeira transferência de poder pacífica no espaço pós-soviético. E na Coreia do Sul, minha visita ajudou a desafiar a narrativa de que os sindicatos eram ruins e ajudou a reforçar a necessidade de alianças. E no Reino Unido, meu apoio a um inquérito público e conduzido por juízes sobre o policiamento secreto das OSCs ajudou a trazer equilíbrio para a questão.

Conectas • Considerando sua observação cautelosa, o sistema internacional poderia fazer mais para proteger os ativistas que operam na recuperação do espaço civil e, em caso afirmativo, o que pode ser feito?

M. K. • O que o sistema internacional pode fazer melhor é se pronunciar mais, embora o Alto Comissariado para os Direitos Humanos já se pronuncie bastante em torno da proteção de ativistas. O que a ONU não fez bem o suficiente é fazer com que a ONU como um todo se preocupe mais com os direitos. O que eu aprendi durante o tempo em que trabalhei para a ONU é que o escritório de Genebra é tão pequeno dentro do sistema mais amplo da ONU que é fácil ver seus esforços dispersados neste âmbito. Seria necessário que o Secretário-Geral da ONU dissesse: “Esta é a nossa prioridade e se você está trabalhando na ONU Habitat, nas Forças de Manutenção de Paz ou na ONU Mulheres − seu trabalho deve englobar a proteção dos direitos humanos”.

Conectas • Estariam os financiadores respondendo adequadamente às demandas colocadas por ambientes restritivos sobre os ativistas? Quais são as principais estratégias a serem implementadas por financiadores para garantir que estejam apoiando os ativistas da melhor maneira?

M. K. • Precisamos nos afastar do sistema de financiamento que possuímos hoje, que é competitivo. Todos esses convites à apresentação de propostas fazem com que as pessoas compitam, e, de fato, eles apenas beneficiam os grupos com aptidões, que contam com funcionários que tiveram acesso à educação formal mais sofisticada e que são capazes de escrever uma proposta fantástica, em oposição aos ativistas que se encontram na base.

Os financiadores têm que se afastar do financiamento de projetos e reconhecer que a única maneira de combater esta repressão é financiar os ativistas de forma que sejam livres para fazer o que precisam fazer. Isso significa se afastarem de todas as demandas que eles atualmente colocam. A responsabilização deve ser mantida, é claro, mas com menos ênfase – um relatório recente55. Jeri Eckhart Queenan, “Global NGOs Spend More on Accounting Than Multinationals.” Harvard Business Review, 23 de abril de 2013, acesso em 18 de dezembro de 2017, https://hbr.org/2013/04/the-efficiency-trap-of-global/. mostrou que os departamentos contábeis das principais organizações da sociedade civil são maiores do que os departamentos contábeis das principais empresas.

Neste ambiente restritivo, os financiadores devem ser criativos e devem ser motivados pelo direito internacional, e não pelo direito interno, como fizeram na era da Guerra Fria! Se eles precisam transferir dinheiro por meio de outras agências, outros lugares, que façam isso, e que continuem a serem capazes de fazê-lo. Quando as ONGs e a sociedade civil estão sob o ataque de um país em particular, os financiadores devem sofisticar seu trabalho envolvendo-se com as organizações que estão sendo atacadas. Isso enviará aos governos e às autoridades repressivos uma mensagem afirmando que “você pode fazer o que quiser, mas nós não pararemos. Na verdade, apoiaremos os ativistas ainda mais”.

Conectas • Como os ativistas podem, por um lado, trabalhar para recuperar espaços democráticos e proteger as liberdades fundamentais de expressão, associação e reunião e também combater a disseminação do discurso de ódio e valores não baseados em direitos? Como os ativistas podem responder à crítica de que tal posição é contraditória?

M. K. • Os americanos afirmam que o discurso de ódio é aceitável, desde que não leve à violência. Precisamos conter isso − primeiro intelectualmente, mas também na prática. Temos o dever de defender os valores. Quando os valores não são baseados em direitos humanos e os valores não contribuem para a dignidade humana e a tolerância, então eles são valores que precisam ser enfrentados e isso inclui o discurso de ódio. Não acho isso contraditório. Não acredito que o direito à expressão e o direito à associação signifiquem que tudo seja aceitável. Os direitos humanos não têm a ver com anarquia, eles dizem respeito a valores.

Precisamos ser criativos na forma como trabalhamos. Devemos ser corajosos na maneira que o fazemos e defendermos isso. Temos que estar atentos sobre como o fazemos.

Também deve haver uma abordagem de baixo para cima na maneira como trabalhamos com todas as pessoas. Uma das coisas que mais me impressionou ao longo dos anos é como poucas organizações têm organizadores e mobilizadores entre os seus funcionários. Eles têm profissionais, advogados, contadores, mas ainda não têm mobilizadores e organizadores. Eu acho que isso é algo que devemos tratar. É preciso que passemos mais tempo com as pessoas do que com um laptop. Deve ser assim.

Conectas • Você tocou na questão de como podemos avançar, mas, com tantas histórias negativas na imprensa, que esperança ou que futuro você vê para proteger o espaço civil? O que devemos fazer para recuperar a narrativa e fomentar o apoio público em torno da sociedade civil?

M. K. • “Precisamos retornar ao que é essencial.” Temos que começar a falar sobre as coisas boas que fazemos. Mas tenhamos cuidado. A narrativa não pode ser apenas positiva e não se trata apenas de relações públicas. Conversei com alguns grupos e eles dizem: “Tudo o que precisamos fazer é contratar um especialista em relações públicas”. De fato precisamos de relações públicas dentro do movimento de direitos humanos porque não somos tão bons nisso. Mas também precisamos saber que as relações públicas não podem nos conduzir.

Temos que realizar o duro trabalho de ir de porta em porta, de casa em casa, de aldeia em aldeia. Acredito que, como ativistas, nos acostumamos aos nossos sucessos. Com a ascensão do populismo e da direita, temos que perguntar, engajar e descobrir por que as pessoas estão tão frustradas e com tanta raiva. Pensávamos que o caminho levava apenas para frente sem imaginar que poderia haver obstáculos. Acho que isso nos prejudicou em grande medida. Então, retornemos ao que é essencial. Trabalhemos com as pessoas nas bases − trabalhemos com os camponeses, com os moradores dos bairros, com os trabalhadores, com todos e todas.