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Entrevista com Fernand Alphen

Fernand Alphen

“Desçam do pedestal”

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RESUMO

“Desçam do pedestal”. Foi este o título sugerido, sem vacilo, por Fernand Alphen para sua entrevista à Revista Sur. Fernand é Head of Strategy da JWT - Brasil (Thompson), a quarta maior agência de propaganda do mundo, criada em 1864, nos Estados Unidos, e hoje presente em 90 países. 

Fernand é de origem francesa e se define como “fruto da mestiçagem improvável entre um francês judeu com fama de Indiana Jones e uma brasileira loira que sonhava em ser Esther Williams”. Estudou Administração de Empresas e História e começou no ramo da publicidade aos 22 anos. “Hoje passei dos cinquenta, sou um dinossauro – um dinossauro da internet - e quebrei a cara como profeta do apocalipse das mídias tradicionais.”

Nas poucas horas em que não está propagandeando, escreve para um blog e outras publicações, coleciona arte indígena, briga com seu piano, ouve música barroca e ópera. “E não sei dançar”, completa. Faz questão de deixar claro que não tem ídolos e nem uma marca preferida. 

Em entrevista a Lucia Nader, diretora executiva da Conectas Direitos Humanos, Fernand não foge de polêmicas. Deixa bem claro que as organizações de direitos humanos devem abrir mão de preconceitos caso queiram se comunicar melhor. “Comunicar é engajar ao amplificar uma causa.” Fernand reforça, ao longo da entrevista, que a propaganda não pode ser “ideológica”, ao obrigar alguém a acreditar em algo, sem levar em conta os pensamentos prévios que todos temos. Ele afirma que direitos humanos são uma causa mais importante que qualquer outra e que as organizações devem deixar de se outorgar o “monopólio do bem”.  

Depois de ouvir a sugestão do título “Desçam do pedestal”, a entrevistadora completa: “sem abrir mão dos seus valores”. Os dois concordam. E tudo termina bem.  

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Conectas Direitos Humanos • Os direitos humanos ainda são uma ferramenta importante de transformação social? Essa é uma das questões centrais desta edição comemorativa da SUR. Para aqueles que acreditam que sim, fica sempre a sensação de que precisamos comunicá-los melhor. Dito isso, você acha que a comunicação – mais especificamente, a propaganda – pode ter um papel decisivo na luta pelos direitos humanos?

Fernand Alphen • Não, um papel decisivo, não. Mas acho que a propaganda pode, sim, colaborar com a causa dos direitos humanos. Tanto para um produto ou para uma causa, acredito que a função da propaganda é amplificar – e não criar movimentos ou preferências. A propaganda pode ser demoníaca quando a sua ambição é criar algo ou tentar mudar a opinião de alguém, do nada. Alguns exemplos clássicos do que a propaganda ideológica foi capaz de fazer na história do homem provam isso. É o caso da religião, por exemplo. Quando a aposta é “eu vou fazer as pessoas acreditarem em Deus”, está sendo feito um mau uso da propaganda. Em certa medida, o mesmo é aplicável à propaganda político-partidária. Pode até funcionar, mas eu não acredito que devamos ir por esse caminho e nem que essa seja a função real da propaganda.

Conectas • Mas isso porque ela tenta, forçadamente, embutir uma ideologia na cabeça das pessoas?

F.A. • Sim, e sem levar em consideração as opiniões ou o pensamento prévio das pessoas. Nesses casos a propaganda é manipuladora por excelência. No caso dos direitos humanos, a boa propaganda seria feita pela amplificação da causa e não por tentar criar uma percepção forçada sobre o que são esses direitos.

Conectas • E há algo que uma organização de direitos humanos precise ter ou fazer para que consiga amplificar sua causa? Normalmente as organizações trabalham com muitos temas e desenvolvem uma série de iniciativas diferentes. É possível comunicar todas elas de forma coerente e efetiva?

F.A. • Acho que um primeiro passo é identificar onde existe algum tipo de sensibilidade a ser amplificada. Isso pode ser feito por meio da escolha do público-alvo, do enfoque, da linguagem a ser usada etc. Dentro do amplo espectro de ação da organização, é preciso escolher deliberadamente um único tema por vez, uma ação, uma causa que tenha capacidade de repercutir e chamar atenção para a causa maior. Isso também pode ser feito pela escolha de um determinado público – que idealmente já tenha alguma sensibilidade para o assunto. Nem para uma empresa com fins lucrativos tudo tem que virar propaganda. Você escolhe o que você quer comunicar, quais serão suas bandeiras publicitárias.

Outra coisa fundamental é a organização estar aberta e querer entender o que é a propaganda. Muitas vezes as organizações não governamentais se outorgam como “fazedores do bem contra todos os vilões do mundo capitalista, dentre eles os comunicadores e publicitários”. O diálogo se torna muitas vezes impossível. O mesmo acontece do outro lado, os publicitários não entendem bem o que é uma organização não governamental e podem ter certo preconceito.

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Conectas • Alguns críticos da propaganda apontam a impossibilidade de usar instrumentos de marketing e publicidade que são voltados para valores chamados extrínsecos (status, poder, conformidade social, capitalismo) para promover causas que dependam de valores opostos, ou intrínsecos (cooperação, altruísmo, filiação comunitária). Você acha que são valores paradoxais?

F.A. • Não necessariamente. Essa discussão pode ser interessante, mas é muito teórica e não é o tipo de discussão para se ter com um publicitário. Porque o publicitário é pragmático, ao menos deveria ser pragmático. Como disse, eu acredito na propaganda não ideológica. E essa propaganda deve ser pragmática, sem entrar em “eu vou valorizar valores extrínsecos ou intrínsecos”. É até engraçado utilizar esses termos extrínseco e intrínseco. São termos da publicidade para definir outras coisas. Valores extrínsecos de uma marca são os valores emocionais associados a ela, enquanto os intrínsecos são os valores funcionais relacionados à marca.

Conectas • E quais são esses valores intrínsecos e extrínsecos para uma causa, uma organização de direitos humanos?

F.A. • Não sei. Não sei te responder, porque acho que isso não se aplica. É difícil esse paralelo e eu acho que, quando a gente está fazendo propaganda de causas, nós temos que manter os pés no chão. Ser cautelosos.

Conectas • Cautelosos e pragmáticos? Mas como o pragmatismo se aplica, então, para uma causa social?

F.A. • Bom, a propaganda para uma causa tem que ser, necessariamente, mais informativa. Estima-se que uma pessoa receba hoje de 7 a 10 mil impulsos publicitários por dia. Sem julgamento de valor, você precisa pensar em como vai se destacar. Uma pessoa está recebendo todos esses impulsos também sem nenhum tipo de julgamento de valor e vai escolher em qual prestará mais atenção em função do tipo de linguagem mais adequado que irá sensibilizá-la.

Quando eu estou fazendo a propaganda de uma causa, estou informando alguma coisa e usando uma linguagem e um formato e técnicas publicitárias para poder me destacar do resto. A propaganda é isso: eu me destaco e amplifico. Essa é a batalha; eu tenho que fazer com que minha mensagem seja a mais relevante ou que ela apareça mais e que repercuta mais do que todas as outras que estão aí também.

Conectas • E dá para fazer uma comparação entre um produto – cuja finalidade ser vendido e gerar dinheiro – e a propaganda de uma causa social que não visa o lucro?

F.A. • Engajar. É que a gente usa esse termo “propaganda comercial” hoje em dia. O objetivo de uma marca é engajar pessoas. É um pouco forçado, mas ao mesmo tempo tem algum sentido. As marcas gostam de dizer que elas também têm causas.

Para uma causa o objetivo é engajar para a mudança. São dois ou três passos, talvez: o primeiro é destacar – chamar a atenção no meio dessa poluição de impulsos que as pessoas recebem; depois de me destacar, com as minhas técnicas, eu sensibilizo a pessoa. Depois de eu ter sensibilizado a pessoa, eu vou procurar fazer com que ela se engaje e, uma vez engajada, portanto, acho que temos o potencial de transformação.

Conectas • Mas temos a impressão que os direitos humanos causam mais rejeição do que engajamento. No Brasil, por exemplo, quem trabalha com direitos humanos é muitas vezes visto como defensor da impunidade, responsável pela violência urbana etc. Somos taxados de “defensores de bandidos”. De alguma forma, lutar pelos direitos humanos é ser contra majoritário – e não popular. Como conciliar isso com uma comunicação melhor?

F.A. • É um desafio. Mas existe também certa sensibilidade para essas causas que estamos defendendo. Não sei se concordo com você sobre ser sempre impopular ou contra majoritário. É verdade que nenhuma causa é majoritária – se todo mundo acreditar naquilo não tem mais por que dizer que aquilo é uma causa. Mas toda ambição de uma causa é ser majoritária. Eu não consigo acreditar que a ambição de uma causa seja diferente. E quando eu digo majoritária é o paralelo com o popular que você comentou.

Conectas • Sim, mas quais são os limites entre ser mais popular, engajar, e não abrir mão de seus valores fundamentais?

F.A. • Essa tensão acontece com qualquer causa, ousaria dizer. A causa de abraçar árvore também é contra majoritária. Também existem milhões de pressões contra as causas ecológicas que não são tão “mais fáceis de digerir”. E às vezes são intenções mascaradas. Mas quando você vai conversar com o velhinho que investe suas ações na British Petroleum, por exemplo, por um lado ele é aquele homem que investiu suas economias nesse negócio, por outro ele é o que diz “pelo amor de Deus, preservem o mar e os recursos naturais”. Mas ele quer que as ações dele se valorizem, e isso significa, necessariamente, apostar no esquema e na lógica da British Petroleum: poluir o Mar do Norte, por exemplo.

Acho que para os direitos humanos é a mesma coisa. Existe uma chantagem: “Mas se vierem com um revólver na cabeça de sua mãe, você atira na pessoa? Você vai querer a pena de morte? Mas e se estuprarem a sua filha? O que fazer com o estuprador? Perdoar?”. É chantagem típica. É a mesma coisa em relação ao acionista da British Petroleum. Ele diz assim: “Eu sou contra a poluição do Mar do Norte, mas preservem minhas ações!”. “Eu sou contra a pena de morte, com exceção do estuprador da minha filha.” Eu só estou dizendo que todas as causas são assim.

Conectas • Mas você vê uma especificidade? Que estratégia você usaria para tornar os direitos humanos mais simpáticos e conhecidos?

F.A. • Aí só consigo responder como pessoa, não como profissional. Eu acho a causa dos direitos humanos dez vezes mais importante que qualquer outra causa social. São os direitos do Homem, com maiúscula, da humanidade. Meu direito. Minha defesa.

É a coluna vertebral da humanidade. É o que faz a gente evoluir como sociedade, como civilização. É muito assustadora sua afirmação de que pessoas não valorizam os direitos humanos. Mas como assim? Pergunto-me.

Conectas • No cenário brasileiro esses direitos estão relacionados à criminalidade. Mas em outros países a resistência também existe: talvez, na França, com os direitos dos migrantes; nos Estados Unidos, com a guerra contra o terror etc. Que estratégias podemos usar? Devemos ir pelo lado mais emocional ou de alguma forma tentar convencer “pelas bordas”?

F.A. • Devemos ir pelas bordas, com baby steps. A questão dos direitos humanos, latu sensu, é uma questão altamente complexa e técnica. A maioria das pessoas não quer compreender assuntos filosóficos, complexos, grandiosos. A complexidade assusta. O filme do Al Gore (Uma Verdade Inconveniente), por exemplo, foi incrível, premiado, ganhou repercussão. Mas é ao mesmo tempo tão assustador e complexo que imobiliza. Não mudou nada, em minha opinião.

Temos que começar com temas pequenos, fáceis de entender, fáceis de equacionar, fáceis de sensibilizar, para depois ir subindo. E não precisa dizer que “Isso aqui é um direito humano”, necessariamente. “Eu sou contra a revista vexatória nas prisões brasileiras”, “eu sou contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte na Amazônia”. Ser simples.

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Conectas • Você entende que nesse trabalho o publicitário pode ter um papel fundamental junto à organização? Porque, talvez, diante da complexidade e da multiplicidade dos temas, a organização não consiga identificar facilmente qual é a borda para começar.

F.A. • Eu acho que sim. Fazendo uma crítica geral, e é essa a dificuldade do diálogo do publicitário ou da imprensa com as organizações, é porque vocês se colocam num papel muito grandioso. Muito do “monopólio do saber”. “Quem sabe tudo desse assunto complexo, enorme, que é quase de direito divino, sou eu”. O diálogo fica difícil, porque nem eu, que estou a serviço de vocês – porque estou trabalhando para vocês –, consigo entender; eu também tenho certa rejeição. Assim, vocês acabam muitas vezes falando apenas com os convencidos, com vocês mesmos.

Conectas • Resumindo, se queremos repercussão e aliados para a causa, temos que…

F.A. • Temos que simplificar as nossas causas.

Conectas • E quebrar esse “monopólio do bem”? Mas há também abertura do lado dos publicitários?

F.A. • Sim, temos que quebrar o monopólio. Talvez atualmente isso esteja um pouco mais fácil, porque muitas organizações estão fazendo essa autocrítica. É comum isso. Já ouvi de outras organizações os dilemas que você coloca para a causa dos direitos humanos.

Sobre a abertura do mundo publicitário… Publicitário só quer falar de combate às drogas e de proteção às baleias. Porque é mais fácil. Generalizando, o que o mercado publicitário gosta de fazer é: causas ecológicas, crianças, câncer, drogas…

Conectas • Por que essas causas são mais atrativas?

F.A. • Isso eu não sei te responder. Agora, pensando junto com vocês aqui, o que eu acho é que talvez eu, publicitário, não saiba o que são direitos humanos. Um publicitário precisa de um briefing. Quando eu trabalhava na área de criação, dentro da agência de publicidade, o que eu mais falava era: “Tá bom, mas o que eu tenho que falar?”. Era a única coisa que eu queria saber, o que eu tinha que dizer. Dizer é meu trabalho, mas o que deve ser dito é você que tem que me falar – o cliente.

E agora, quando se fala “direitos humanos”, eu não sei o que dizer. Não sei se é medo, mas é que realmente eu fico sem saber. Agora, se você me diz: “Estão obrigando as mulheres a abrirem as pernas para ver se tem celulares em suas vaginas, antes de visitarem seus parentes nas prisões” e isso não pode acontecer, aí eu sei o que dizer – eu tenho que dizer de uma maneira publicitária. Comunicar.

Então, quando se fala em direitos humanos, como “conjunto amplo de valores”, diga-me em uma frase o que eu devo dizer sobre esse assunto. Você não vai conseguir. É difícil.

Conectas • Agora, há alguma frase final sua que poderia ser o título dessa entrevista?

F.A. • Se fosse para ser provocativo eu diria: “Desçam do pedestal”. Mas se não for para ser provocativo, eu diria algo do tipo…

Conectas • “Desçam do pedestal, sem abrir mão dos seus valores”, posso incluir?

F.A. • Pode. Outro título seria, considerando que tem gente que quer se engajar, mas precisa entender: “Ajude-me a te ajudar”. Porque, de verdade, esse é o principal problema. “Ajude-me a te ajudar que vai ser bom, que vai ser legal, que a gente vai mudar”. Porque eu acredito na publicidade, óbvio.

Conectas • Assim você está quase me convencendo de que a propaganda não é uma ferramenta de propagação do capitalismo sem limites. Está sendo um excelente publicitário…

F.A. • Mas a propaganda não é do mundo capitalista, a propaganda é de todos os regimes. Do anarquismo até. Se você olhar, durante a Guerra Civil Espanhola, os anarquistas eram os melhores publicitários; os melhores cartazes publicitários eram dos anarquistas – era aquela disputa publicitária. Foi um grande momento publicitário entre os comunistas, os fascistas e os anarquistas. Cada um fazendo propaganda para o seu lado. Anarquista – que é anti-instituição por definição. Propaganda não tem lado.

Tem até a história famosa do Eleazar de Carvalho. Eleazar de Carvalho foi um grande maestro brasileiro, fundador da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), e uma pessoa muito ativa, com uma personalidade muito especial e engraçada. Uma grande figura. Ele era regente de uma orquestra sinfônica e patrocinado pela Coca-Cola. Todo ano ele ia lá, até o diretor de marketing da Coca-Cola no Rio de Janeiro, para renovar o contrato. Ele dependia obviamente de patrocínio. O mundo artístico é muito parecido com o mundo das organizações não governamentais. “Até quando eu me vendo?”, “por quanto eu me vendo?” etc. Em um determinado ano, o diretor de marketing lhe disse: “Olhe, Sr. Eleazar, esse ano a Coca-Cola decidiu não renovar o contrato com a orquestra, porque, como sabe, a Coca-Cola é uma marca enorme, gigantesca, e a gente percebeu que a gente não precisa propriamente fazer mais propaganda”. Em todo caso, justamente nessa hora, tocou um sino de igreja, perto da sede da Coca-Cola, e então Eleazar falou assim: “Está ouvindo esse sino, diretor? Então, a Igreja tem 2000 anos e até hoje ela faz propaganda tocando sinos para atrair os fiéis”. O cara assinou o cheque.

Fernand Alphen

Fernand Alphen é Head of Strategy da JWT - Brasil (Thompson), a quarta maior agência de propaganda do mundo, criada em 1864, nos Estados Unidos, e hoje presente em 90 países. Estudou Administração de Empresas e História e começou no ramo da publicidade aos 22 anos.

Original em português.

Entrevista realizada em maio de 2014 por Lucia Nader (Conectas Direitos Humanos).