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Do autocuidado ao cuidado coletivo

Lisa Chamberlain

Resiliência organizacional e trabalho sustentável em direitos humanos

Jayne

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RESUMO

As defensoras e os defensores de direitos humanos (DDHs) ao redor do mundo relatam uma experiência comum de cerceamento do espaço para a oposição aos conglomerados opressivos de poder, seja nas mãos do governo ou do setor privado. Uma das estratégias de resistência desenvolvida por quem defende os direitos humanos para combater esses desafios é a prática do autocuidado. O autocuidado é um conceito abrangente que pode incluir uma ampla variedade de medidas que contribuem para o bem-estar e aumentam a resiliência. No entanto, para as defensoras e os defensores de direitos humanos que trabalham em organizações, o autocuidado é mais eficaz quando institucionalizado. Isso requer uma mudança de mentalidade do autocuidado para o cuidado coletivo. Este artigo discutirá a necessidade desta mudança e sugerirá algumas questões práticas possíveis para uma abordagem de cuidado coletivo no âmbito institucional.

Palavras-Chave

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1. Introdução

Em um contexto internacional de crescente autoritarismo e cerceamento do espaço para oposição e dissidência, as pessoas que trabalham pela efetivação dos direitos humanos (chamados de defensoras e defensores de direitos humanos ou DDHs)11. Nota editorial: no original, a autora utiliza a sigla “HRD” (para human rights defender – defensoras e defensores de direitos humanos), assim como “WHRD” (para women human rights defenders – mulheres defensoras de direitos humanos) ao longo do texto. Em português, optamos por utilizar essas expressões por extenso para fins de clareza. enfrentam crescentes níveis de ameaças. Essas ameaças ocorrem de diversas formas, incluindo acesso restrito às informações, tentativas de desacreditar quem defende os direitos humanos, restrições de acesso a financiamento, repressão às atividades de livre manifestação, vigilância, intimidação e assédio, abuso do sistema jurídico por meio do uso de alegações infundadas de difamação (denominadas “ação judicial estratégica contra a participação pública”, que vêm da definição em inglês strategic lawsuit against public participation – SLAPP), criminalização, violência física e assassinatos.22. Ver, por exemplo, Report “Enemies of the State,” Global Witness, July 30, 2019, accessed May 4, 2020, https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/enemies-state/; East and Horn of Africa Human Rights Defenders Project, “Networks for the Protection of Human Rights Defenders: Notes from the Field,” Journal of Human Rights Practice 5, no. 3 (2013): 522; Karen Bennet, Danna Ingleton, Alice Nah, e James Savage, “Critical Perspectives on the Security and Protection of Human Rights Defenders,” International Journal of Human Rights 19, no. 7 (2015): 887. Para as mulheres defensoras de direitos humanos (MDDHs),33. As defensoras de direitos humanos são uma categoria de pessoas que defendem os direitos humanos que abrange tanto as defensoras que se identificam com o gênero feminino, como também qualquer defensor que trabalhe com questões de gênero ou pela defesa dos direitos das mulheres. Para mais informações ver “Report of the Study on the Situation of Women Human Rights Defenders in Africa,” African Commission on Human and People’ Rights, 2017, acesso em 4 de maio de 2020, http://peacewomen.org/sites/default/files/report_of_the_study_on_the_situation_of_women_human_rights_defenders_in_africa.pdf. as ameaças enfrentadas se manifestam de maneira mais ampla de modo significativo, especialmente devido a questões de gênero. Normalmente, isso ocorre porque as mulheres defensoras de direitos humanos são vistas como contestadoras das normas, tradições, percepções e estereótipos socioculturais sobre sua feminilidade, orientação sexual e papel e status das mulheres na sociedade. As defensoras de direitos humanos são, portanto, alvos tanto pelo que são (mulheres) quanto pelo que fazem (defesa dos direitos humanos).44. Inmaculada Barcia, “Our Right to Safety: Women Human Rights Defenders’ Holistic Approach to Protection.” Awid, março de 2014, acesso em 4 de maio de 2020, https://www.awid.org/sites/default/files/atoms/files/Our%20Right%20To%20Safety_FINAL.pdf, p. 5, um relatório promovido pela organização Association for Women’s Rights in Development (AWID) como parte de suas atividades na coordenação do Grupo de Trabalho de Medidas Urgentes da Women Human Rights Defenders International Coalition para as mulheres defensoras de direitos humanos em risco.

Além dessas ameaças, em grande medida externas, defensoras e defensores de direitos humanos também enfrentam normas nocivas dentro de suas comunidades, movimentos e organizações. Estereótipos e percepções perigosas permeiam o universo dos direitos humanos e sugerem que, para defender os direitos humanos “de verdade”, deve-se sacrificar tudo e se esforçar até a exaustão para promover uma causa maior. Em muitos lugares, a cultura do ativismo pode esperar, e até enaltecer, que uma defensora ou um defensor se coloque em risco.55. Jane Barry e Vahida Nainar, Insiste, Resiste, Persiste, Existe: Women Human Rights Defenders’ Security Strategies (Oakland: Urgent Action Fund for Women’s Human Rights, 2008): 29. Essas pessoas trabalham longas horas, raramente tiram folga e ignoram a necessidade de cuidar de sua saúde e bem-estar. O autossacrifício é uma norma cultural e, como resultado, quem defende os direitos humanos enfrenta altos níveis de esgotamento.66. Beth Kanter e Aliza Sherman, The Happy, Healthy Nonprofit: Strategies for Impact without Burnout (New Jersey: John Wiley & Sons, 2017): 7.

Não obstante, apesar dessas ameaças internas e externas, é amplamente reconhecido que defensoras e defensores de direitos humanos desempenham um papel fundamental na promoção da efetivação dos direitos humanos e, portanto, na promoção da democracia, do desenvolvimento sustentável e do Estado de Direito.77. Ver, por exemplo, o preâmbulo da resolução “273: Resolution on Extending the Scope of the Mandate of the Special Rapporteur on Human Rights Defenders in Africa,” ACHPR/Res.273(LV)2014, African Commission on Human and Peoples’ Rights, 2014, acesso em 4 de maio de 2020, https://www.achpr.org/sessions/resolutions?id=320, que reconhece “a importância do trabalho realizado pelos atores da sociedade civil, em especial das pessoas que defendem os direitos humanos que colaboram com o sistema africano de direitos humanos, para a promoção e proteção dos direitos humanos, da democracia e do Estado de Direito no continente africano”. Para mais informações, ver também Ulisses Terto Neto, Protecting Human Rights Defenders in Latin America: A Legal and Socio-Political Analysis of Brazil (London: Palgrave Macmillan, 2018): 33-38. Portanto, é extremamente importante garantir um ambiente seguro, saudável e adequado no qual lhes seja possível desempenhar seu trabalho. Este artigo examinará o autocuidado como uma estratégia para responder a essas ameaças: identificando o autocuidado como um ato político, enfatizando a necessidade de que o autocuidado seja institucionalizado ao se adotar uma abordagem de cuidado coletivo e discutindo os possíveis conteúdos de uma política organizacional de cuidado coletivo, bem como os recursos necessários para apoiá-la.

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2. O autocuidado

2.1. O autocuidado como uma estratégia de resistência

A resiliência é uma forma de proteção que consiste em se preparar para superar ameaças e traumas.88. Carlos Patiño Pereda, “Resilience in Times of Oppression,” SUR Journal 14, no. 26 (2017). A prática do autocuidado é uma das principais metodologias de construção de resiliência desenvolvidas por defensoras e defensores de direitos humanos, particularmente do movimento feminista.99. Barcia, “Our Right to Safety,” 13. Para mais informações, ver também IM-Defensoras, “A Feminist Alternative for the Protection, Self-Care, and Safety of Women Human Rights Defenders in Mesoamerica,” Journal of Human Rights Practice 5, no. 3 (2013): 446. O autocuidado é uma estratégia de resistência que pode incluir uma ampla variedade de medidas que contribuem para o bem-estar e aumentam a resiliência. O autocuidado não é uma solução rápida, mas sim a criação de hábitos que aumentam a resiliência. Então, o que seria autocuidado?

As pessoas que defendem os direitos humanos ocupam uma posição dupla, na medida em que trabalham com vítimas de violações de direitos humanos e podem também ser vítimas de tais violações, o que gera altos níveis de trauma primário e secundário.1010. “Defending Human Rights: A Resource Book for Human Rights Defenders,” East and Horn of Africa Human Rights Defenders, 2nd ed., 2012, acesso em 4 de maio de 2020, https://www.defenddefenders.org/wp-content/uploads/2011/07/EHAHRPD_Resource_book_ENG.pdf, 25-27. Nestas circunstâncias, um componente fundamental do autocuidado é o acesso ao apoio psicossocial.1111. Barry e Nainar, Insiste, Resiste, Persiste, Existe, 84. Outras características de um plano individual de autocuidado podem incluir: contar com sistemas de apoio de familiares e amigos, ter um sistema de crenças religiosas e espirituais, cuidados com a saúde por meio de sono, exercício e dieta, práticas de mindfulness (atenção plena) como meditação e yoga, o uso da arte, música ou natureza para facilitar o relaxamento e o bem-estar, gerenciar a relação com a tecnologia e estabelecer limites no tocante ao horário de trabalho.

Uma abordagem centrada no autocuidado convida defensoras e defensores de direitos humanos a refletirem se é verdade que o que precisa ser feito não pode esperar que se alimentem, durmam, descansem e se divirtam um pouco. Tal reflexão reconhece que, na busca por fazer mais, as pessoas que defendem os direitos humanos acabam física e emocionalmente exauridas, o que inibe a sua capacidade de realizar o trabalho de maneira eficaz.1212. Ana María Hernández Cárdenas e Nallely Guadalupe Tello Méndez, “Self-care as a Political Strategy,” SUR Journal 14, no. 26 (2017): 174.

2.2. O autocuidado como um ato político

A prática do autocuidado não é fácil de ser desenvolvida. Um dos principais desafios associados à prática do autocuidado é a culpa generalizada experenciada por defensoras e defensores de direitos humanos quando se trata do cuidado consigo mesmos. A ideia de “tirar uma folga” de lutas importantes é um conflito com o qual esses profissionais têm dificuldade de lidar. Este tipo de culpa é exacerbado entre defensoras e defensores de direitos humanos que prestam serviços de advocacia e assistência social. Para essas pessoas, o trauma “real” é aquele vivenciado por aqueles que são beneficiários de seu trabalho e, portanto, “quem somos nós para nos darmos ao luxo de fazer algo tão indulgente como ir ao cinema ou fazer uma aula de yoga”.

Ainda bem que o movimento feminista nos deu algumas ferramentas para nos afastarmos desse pensamento destrutivo e para termos uma compreensão do autocuidado como um ato político. Audre Lorde resumiu esta questão de modo notável da seguinte forma: “Cuidar de mim não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é um ato de cunho político”. Usando esta lógica, o autocuidado não é um complemento ao trabalho de um defensor de direitos humanos, a ser exercido apenas quando houver tempo ou recursos, mas é considerado parte fundamental de seu próprio trabalho. Dito de outra forma, nas palavras de Norma Wong, a“[f]alta de autocuidado é uma forma de repressão. O autocuidado básico é uma interrupção da violência contra nós mesmos”.1313. Kanter e Sherman, The Happy, Healthy Nonprofit, 6.

A Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Direitos Humanos (IM-Defensoras) é uma das pioneiras dessa abordagem, criada em 2010 com o objetivo de gerar alternativas para a proteção, autocuidado e segurança às mulheres em Honduras, na Guatemala, em El Salvador, no México e na Nicarágua. A IM-Defensoras adotou expressamente dois princípios feministas fundamentais como base de sua abordagem de autocuidado. O primeiro é que o que é de cunho pessoal é político. Este princípio enquadra as reflexões da organização sobre a importância das defensoras se verem como sujeitos políticos que fazem para si o que desejam para as outras – o que desencadeia perguntas reflexivas, tais como se elas gostariam que as pessoas que recebem atendimento tivessem as cargas de trabalho como as que elas têm.1414. Cárdenas e Méndez, “Self-care…,” 173. O segundo princípio é que a revolução não deve prescindir de prazer – motivado pela ativista anarquista Emma Goldman, famosa por ter dito: “Se eu não puder dançar, não quero fazer parte da sua revolução”. Entendido como um ato político e uma estratégia de resistência, o autocuidado pode, portanto, ser mais facilmente integrado ao trabalho de ser uma defensora ou um defensor de direitos humanos.

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3. Do autocuidado ao cuidado coletivo

A IM-Defensoras nos lembra que “o princípio do autocuidado está ligado à ideia de que sentimos emoções, não apenas porque somos humanos, mas também porque vivemos em uma comunidade e estamos constantemente nos relacionando com outras pessoas”.1515. Ibid., 175. Um dos desafios da prática do autocuidado é que, mesmo que as pessoas que defendem os direitos humanos compreendam que ela faz parte de seu trabalho em si, realizá-la ainda possui consequências para a sua atividade. Isto é particularmente acentuado nas organizações não governamentais (ONGs). Se uma defensora ou um defensor que trabalha em uma ONG tira uma semana de folga para descansar e se recuperar, o trabalho com o qual a organização está ocupada não necessariamente para, o que significa que alguém da equipe precisará dar conta deste enquanto a defensora ou o defensor estiver de folga. Se não for gerenciado com atenção, isso tem o potencial de criar divisões dentro das organizações, já que pode dar a impressão de que algumas pessoas têm espaço para se dedicar ao autocuidado, enquanto outras não. Portanto, é preciso encontrar um equilíbrio entre a prática individual de autocuidado e seu impacto na organização de maneira mais ampla.

Também é importante entender que o autocuidado traz benefícios para a organização como um todo. Uma defensora ou um defensor de direitos humanos que mantém uma prática de autocuidado provavelmente apresentará mais produtividade, inovação e colaboração. Além disso, a construção de resiliência por meio do autocuidado previne o esgotamento e, desta forma, aprimora a capacidade de uma organização de manter sua equipe.

Portanto, a prática do autocuidado individualmente tem consequências para outras pessoas em uma ONG tanto de maneiras positivas, quanto potencialmente negativas. Por essas razões, é fundamental que mudemos a nossa concepção de autocuidado para a noção de cuidado coletivo. Para as defensoras e os defensores de direitos humanos que trabalham nas organizações, o cuidado coletivo é o autocuidado institucionalizado.

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4. Possíveis características de uma abordagem institucional de cuidado coletivo

É necessário prestar atenção a algumas considerações para que as ONGs adotem uma abordagem institucional com o objetivo de promover o cuidado coletivo. Para organizações que estão começando a adotar essa abordagem, é essencial que as pessoas em posições de liderança deem o exemplo. De forma consciente ou não, seguimos a conduta de quem está em postos mais altos do que nós mesmos em uma organização. Se a diretora ou o diretor de uma ONG prega o autocuidado, mas trabalha até a exaustão, a culpa associada ao autocuidado permanecerá, e a cultura institucional prejudicial sobre a ética do trabalho não mudará. Para que uma abordagem institucional seja realmente eficaz, também é necessário obter adesão no âmbito diretivo, para que os membros da diretoria não somente compreendam quaisquer mudanças orçamentais e na carga de trabalho necessárias para implementar o cuidado coletivo, mas se tornem, fundamentalmente, promotores da causa assegurando que a organização e seus membros se cuidem.1616. Kanter e Sherman, The Happy, Healthy Nonprofit, 122.

Em segundo lugar, devemos reconhecer que a estrutura institucional pode afetar a capacidade de uma organização implementar o cuidado coletivo de diversas maneiras. Considere, por exemplo, uma organização composta principalmente por jovens, com apenas algumas pessoas mais experientes disponíveis para fornecer orientação e tomar decisões importantes. Esse tipo de estrutura de base piramidal alargada coloca um fardo muito maior em um número limitado de membros mais experientes, colocando-os em risco de esgotamento. O inverso também pode ser verdadeiro: se há majoritariamente profissionais seniores, mas apenas uma parcela de jovens que carregam o fardo de fazer todo o “trabalho braçal”, os últimos também podem se sentir mais constrangidos ao pedir folga, aumentando assim seu risco de esgotamento. Portanto, adotar uma estratégia de cuidado coletivo também envolve avaliar a estrutura organizacional, seja com o objetivo de alterá-la, ou pelo menos para entender como ela influencia a prática do cuidado coletivo.

Em terceiro lugar, um dos riscos de uma organização promover a prática do cuidado coletivo é que, como o autocuidado pode ser de difícil implementação, as defensoras e os defensores de direitos humanos acabem se julgando e/ou julgando os outros por não praticarem o autocuidado de modo “suficiente” ou “adequado”. Caso isso ocorra, o autocuidado se tornará apenas outra demanda em uma lista interminável de tarefas. Desta forma, deve-se ter prudência para que a promoção do cuidado coletivo não exacerbe apenas a culpa existente. Mensagens organizacionais resolutas são importantes nesse sentido. As pessoas que defendem os direitos humanos devem ter a sensação de que uma prática de autocuidado é personalizada, um processo em evolução e algo que ninguém “realiza com perfeição”.

É importante que a discussão sobre o cuidado coletivo não permaneça apenas como retórica, mas realmente se traduza em ação concreta. Uma maneira de começar sua implementação é por meio do desenvolvimento de uma política institucional escrita sobre os cuidados coletivos. A redação de políticas sinaliza o comprometimento e reconhecimento da necessidade de institucionalizar o autocuidado, bem como fornece uma plataforma para discussão dentro de uma organização. Além disso, apresenta uma oportunidade para concretizar a noção de que trabalhar de uma forma sustentável, que construa resiliência individual e institucional, é uma responsabilidade coletiva. Esse tipo de abordagem coletiva é importante porque o cuidado coletivo só funciona se houver comprometimento em toda a organização, pois sua implementação prática pode significar alterações na carga e nas condições de trabalho de todas e todos na organização, bem como em mudanças significativas na cultura institucional.

As sugestões a seguir são feitas com o objetivo de fornecer às organizações algumas ideias sobre o que poderia ser incluído em uma política de cuidado coletivo. Sua pertinência está sujeita ao contexto específico em diferentes países, dependendo de fatores como conjunturas econômicas, condições de segurança, contextos religiosos e culturais. Qualquer abordagem de cuidado coletivo institucional precisa ser adequada às necessidades de cada organização e de sua equipe. Não existe uma abordagem única. Se e como uma política de cuidado coletivo poderá ser implementada também dependerá de capacidade institucional, orçamento, liderança e cultura organizacional. Levando-se isso em consideração, essas ideias não pretendem de modo algum ser mandatórias, mas devem ser usadas como uma ferramenta por quem que advoga por uma abordagem de cuidado coletivo para promover sua implementação prática.

Uma das características mais importantes de uma abordagem de cuidado coletivo é a provisão de apoio psicossocial. Prover acesso a psicólogos, psiquiatras e/ou life coaches à equipe, de forma anônima e custeada pela organização, pode ajudar a resolver isso. É uma boa ideia apoiar iniciativas com foco na saúde física, como um complemento para atender às necessidades de saúde mental. Isso pode se dar na forma de auxiliar os membros da equipe a ter acesso a informações sobre que tipo de assistência médica pode lhes ser apropriado e para suas famílias, e contribuir para os custos de assistência médica sempre que possível. As organizações também devem pensar em maneiras com as quais podem contribuir proativamente para estilos de vida saudáveis – por exemplo, estabelecendo programas de bem-estar que possam colaborar para a matrícula em academias ou organizando seminários sobre temas como boa alimentação, meditação, yoga ou qualquer outra atividade que possa ser apropriada para o contexto em questão.

Prestar atenção à quantidade real de tempo que os membros da organização trabalham também é parte essencial do desenvolvimento de uma abordagem de cuidado coletivo. Isso pode ser difícil, pois as violações de direitos humanos não se limitam ao horário de trabalho, mas durante os períodos em que não existem emergências, práticas como definir um horário em que todos deixam o escritório (e instar uns aos outros a cumprir o mesmo) podem ser úteis. Garantir um intervalo para o almoço, de preferência em equipe, também aumenta a produtividade e a criatividade e cria coesão de grupo dentro da organização. Pedir a quem integra a equipe que evite o envio de mensagens nos grupos de WhatsApp da organização (ou grupos de natureza semelhante, caso o WhatsApp não seja usado devido a questões segurança) fora do horário de trabalho, a menos que seja estritamente necessário, também pode ajudar a estimular o tempo livre de qualidade.

Também é essencial gerenciar as práticas de licença da organização. Defensoras e defensores de direitos humanos tendem a errar ao não tirar as licenças a que têm direito. Nestes casos, as pessoas em cargos gerenciais podem ter que incentivar pró-ativamente os membros da equipe a tirar licenças, ao invés de aguardar que os pedidos de licença sejam feitos. Novamente, é importante que as pessoas em posição de gestão deem o exemplo e tirem suas licenças. Além disso, se alguém da equipe estiver de férias, essa pessoa não deve fazer atividades como responder e-mails. Esse tipo de prática é comum nas organizações de direitos humanos e precisa ser ativamente desencorajado. Vale a pena considerar o uso de uma política de cuidado coletivo que incentive os membros da equipe a colocarem grupos de WhatsApp (ou equivalentes) da organização no modo silencioso durante a folga.

Uma ideia inovadora usada por algumas organizações é o conceito de “dia do travesseiro”. Estas ocasiões são usadas para contemplar aqueles dias em que você acorda e simplesmente não consegue se levantar da cama e ir trabalhar devido à fadiga intensa, trauma, depressão ou a uma série de outras razões possíveis. As organizações podem permitir que toda a equipe tenha um número definido de dias do travesseiro por ano. Ter essa flexibilidade redigida em uma política de cuidado coletivo reconhece que o trabalho realizado pelas defensoras e pelos defensores de direitos humanos é árduo e não será explorado.

Incentivar e viabilizar a retirada de licenças e um horário de trabalho razoável são parte importante de uma abordagem de cuidado coletivo. Mas sua implementação terá eficácia limitada caso as pessoas sintam que, do jeito que as coisas são, suas cargas de trabalho são tão grandes que mal conseguem respirar. Nestas circunstâncias, pedir que defensoras e defensores deixem o escritório às 17h ou não trabalhem aos finais de semana pode piorar as coisas. Sempre que for possível, como complemento ao ajuste no horário de trabalho, também é necessário monitorar e gerenciar a quantidade de trabalho. Declinar trabalho relacionado a direitos humanos, seja como indivíduo ou como organização, pode ser extremamente difícil quando estamos diante de pessoas que estão sofrendo, precisando de ajuda e não têm mais para quem recorrer. No entanto, algum tipo de sistema de regulação da carga de trabalho é absolutamente vital para evitar o esgotamento e colapso organizacional. Ademais, é importante que as decisões sobre o trabalho a ser assumido sejam tomadas coletivamente, pois isto alivia a carga sobre uma pessoa ao tomar as decisões difíceis de recusar.

A dinâmica organizacional sempre se esgueira de questões como carga e horário de trabalho. É importante que essas questões sejam discutidas da maneira mais aberta possível, pois a transparência ajudará a eliminar as percepções de que algumas categorias profissionais recebem tratamento preferencial. Dinâmicas sensíveis como gênero e criação de filhos também precisam ser reconhecidas na determinação de como a carga de trabalho e a ética no trabalho são abordadas. Por exemplo, as mulheres que têm responsabilidade primária pela criação dos filhos podem precisar de uma folga adicional ou um horário de trabalho mais flexível. Da mesma forma, proporcionar a mesma flexibilidade aos homens pode incentivá-los a desafiar as normas sociais tradicionais em relação à criação dos filhos.

Um recurso adicional de uma abordagem que incentiva o trabalho de maneira sustentável é a introdução de um programa sabático que permita que os membros da equipe tirem uma licença de um mês a um ano (de acordo com o que for possível na organização). O período sabático não se configura como férias, mas pode dar à companheira ou ao companheiro de equipe tempo para se recuperar de um momento particularmente estressante ou de um evento traumático. Este período também pode ser usado para que a pessoa se concentre em um tema específico de pesquisa ou na geração de ideias novas e criativas que oxigenem a organização. Cada vez mais, os sabáticos estão sendo utilizados pelas ONGs como forma de prevenir o esgotamento1717. Ver Deborah S. Linnell e Tim Wolfred, “Creative Disruption: Sabbaticals for Capacity Building and Leadership Development in the Nonprofit Sector.” Third Sector New England and CompassPoint Nonprofit Services, 2009, acesso em 4 de maio de 2020, https://www.issuelab.org/resources/8888/8888.pdf, a study commissioned by the Rasmuson Foundation. de quem elas empregam e como parte de uma estratégia mais ampla de recrutamento e manutenção de equipe.

No entanto, é preciso ter cuidado para que, ao permitir que um membro da equipe tire um sabático, isso não aumente a pressão sobre quem segue trabalhando. Portanto, a carga de trabalho e a coordenação em torno dos sabáticos devem ser gerenciadas com muita atenção. Caso os recursos permitam, especialmente nos casos de um sabático mais longo, a organização pode considerar trazer alguém para cobrir as funções da pessoa no período enquanto ela estiver ausente. Além disso, critérios claros e transparentes devem ser usados para determinar quem, quando e sob quais circunstâncias sabáticos são permitidos. Não fazer isto pode resultar em percepções prejudiciais sobre favoritismo dentro da organização.

O próprio espaço físico de trabalho no qual defensoras e defensores de direitos humanos estão reunidos em um ambiente de escritório desempenhando suas funções é outro fator a ser considerado.1818. Ver Kanter e Sherman, The Happy, Healthy Nonprofit, 136-141. Por exemplo, não faz muito sentido promover uma alimentação saudável se a cozinha comunitária não estiver equipada para possibilitar isso. Caso muitos membros da equipe estejam interessados em incluir o mindfulness (práticas de atenção plena) em seus planos individuais de autocuidado, uma política de cuidado coletivo pode favorecer isso, dedicando-se um local no escritório à meditação ou yoga. O escritório deve ser um lugar no qual todos no trabalho anseiam por estar, então a atenção a detalhes como cor da parede, plantas e obras de arte pode ser uma parte importante de um plano de cuidado coletivo. Além de gerar um benefício diário para os membros da equipe, um local de trabalho atraente também pode fazer parte de uma estratégia de recrutamento e manutenção da equipe (acabando por contribuir com o compartilhamento da carga de trabalho e ter um impacto direto nos níveis de fadiga e esgotamento).

Outra dimensão possível para uma política de cuidado coletivo é o apoio ao acesso a retiros e locais sagrados. Em alguns países, as pessoas que defendem os direitos humanos podem ter a sorte de contar com acesso a locais sagrados, como a Casa La Serena, administrada pela IM-Defensoras como parte de sua abrangente estratégia de amparo. O estabelecimento de lugares como este é um desenvolvimento bem-vindo, tendo em vista as difíceis condições nas quais as defensoras e os defensores de direitos humanos desempenham seu trabalho. Ele fornece um modelo a partir do qual outros movimentos, coalizões e organizações podem aprender.

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5. Financiando o cuidado coletivo

Algumas das questões frequentemente levantadas em relação ao autocuidado e cuidado coletivo são quanto eles custam, quanto tempo consomem e se essas limitações são proibitivas. A IM Defensoras contesta a ideia de que dinheiro ou tempo são uma limitação. A organização defende o foco no contato com a natureza, nos momentos de reflexão, nos exercícios respiratórios e no apoderamento e desfrute do corpo, que geralmente têm mais a ver com disposição do que com recursos econômicos.1919. Cárdenas e Méndez, “Self-care…,” 175. No entanto, embora no âmbito organizacional algumas das ideias discutidas anteriormente não custem nada (como almoçar juntos), outras podem requerer despesas financeiras significativas da organização (como acesso a apoio psicossocial ou contratação de pessoal temporário para dar apoio a quem se encontra em período sabático). Essas necessidades devem ser levadas em consideração no orçamento anual da organização e nas metas de captação de recursos. Concomitantemente, a comunidade de doadores tem a obrigação de apoiar iniciativas que promovam a prática do autocuidado e, em particular, sua institucionalização na forma de cuidado coletivo. Muitos doadores exigem que as organizações recipientes pensem na sustentabilidade de suas intervenções. A implementação de uma política de cuidado coletivo é uma resposta direta a essa preocupação.

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6. Conclusão

As defensoras e os defensores de direitos humanos realizam seu trabalho em um mundo que é cada vez mais hostil, além de atuarem em meio a uma cultura prejudicial de se esforçar até o limite. Conforme Brian Reich expressou – “[n]ós vamos nos matar tentando mudar o mundo”.2020. Afirmação feita por Brian Reich, diretor da Hive, uma unidade especial de projetos do governo estadunidense para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) mencionada em Kanter e Sherman, The Happy, Healthy Nonprofit, 8. Caso queiramos que o trabalho em direitos humanos continue, nós temos que prestar atenção a este aviso. Essas pessoas estão combatendo forças poderosas. A sustentabilidade é completamente essencial para que essa luta seja travada de modo efetivo. Portanto, vale a pena gastar tempo e energia explorando estratégias que criem resiliência.

O autocuidado emergiu como uma parte importante da construção de resiliência e é uma medida proativa que as pessoas que defendem os direitos humanos podem utilizar para lidar com a imensa pressão à qual estão submetidas e para se preparar para os tempos difíceis pela frente, bem como para recuperar um sentimento de alegria e satisfação em seu trabalho. No entanto, o autocuidado não é uma prática fácil de ser cultivada. Um de seus maiores obstáculos é a culpa. Enquadrar o autocuidado como um ato político que faz parte do trabalho de quem defende os direitos humanos é uma maneira útil para superar isso.

Para defensoras e defensores de direitos humanos que trabalham em organizações, as práticas individuais de autocuidado são úteis, mas os melhores resultados são alcançados quando o autocuidado é institucionalizado, no que é referido aqui como uma abordagem de “cuidado coletivo”. Os possíveis elementos de uma política de assistência coletiva incluem: acesso ao apoio psicossocial; medidas que promovam a saúde física; gerenciamento prudente da carga e das horas de trabalho, particularmente por meio de práticas de licença e inovações, como períodos sabáticos e dias do travesseiro; a criação de um ambiente físico de trabalho favorável; e o apoio ao acesso a retiros e locais sagrados.

A implementação prática dessas medidas nem sempre é fácil. Deve-se prestar atenção à relevância da estrutura institucional e da cultura organizacional. Além disso, é fundamental a transparência no funcionamento desses mecanismos práticos e é necessária uma ampla adesão em todos os âmbitos de uma organização – e da comunidade de doadores. É importante ressaltar que não existe um modelo perfeito e uma abordagem de cuidado coletivo deve ser contextualizada, diferenciada e adequada à sua finalidade. Embora não sem desafios, vale a pena explorar o cuidado coletivo como um mecanismo de construção de resiliência. Para as defensoras e os defensores direitos humanos, o cuidado coletivo pode fazer com que seu trabalho continue a ser possível e de uma maneira que provenha apoio e não esgotamento. Renovadas, nutridas e altivas, as pessoas que defendem os defensores de direitos humanos podem alcançar grandes feitos.

Lisa Chamberlain - África do Sul

Lisa Chamberlain (bacharel em direito pela Universidade de Witwatersrand e mestre em direito pela Universidade de Michigan) é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e pesquisadora associada ao Southern Centre for Inequality Studies (Centro Meridional de Estudos sobre a Desigualdade, na tradução livre ao português) na mesma universidade. Chamberlain participou da equipe que dirigia o Centre for Applied Legal Studies (Centro de Estudos Jurídicos Aplicados, na tradução livre ao português), uma clínica de direito dos direitos humanos sediada na Universidade Wits. Suas áreas de expertise incluem a justiça ambiental e a mineração, o acesso à informação, os defensores de direitos humanos e o desenvolvimento institucional em organizações que trabalham pela justiça social.

Recebido em fevereiro de 2020.

Original em inglês.
Traduzido por Fernando Sciré.